Processo nº 801/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 20 de Abril de 2023
ASSUNTO:
- Compropriedade
- Uso da coisa
- Indemnização pela privação do uso
SUMÁRIO:
- Nos termos do artº 1032º do C.Civ. pertencendo o imóvel a vários comproprietários, na falta de regulamento sobre o uso da coisa, a todos é lícito servirem-se dela de acordo com o fim a que se destina, não podendo algum deles privar os outros consortes do uso a que também têm direito;
- Demonstrando-se que um dos consortes usa a coisa em exclusivo privando o outro de também a usar, age aquele ilicitamente, constituindo a privação do uso um dano que é indemnizável nos termos da responsabilidade por factos ilícitos.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 801/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 20 de Abril de 2023
Recorrente: A
Recorridos: B e C
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
B e C, também, com os demais sinais dos autos,
Pedindo o Autor/Recorrente que:
a) Que os 1.º e 2.ª réus sejam condenados a reembolsar ao Autor metade do preço de compra e venda da fracção “E1” no montante de HK$540.000,00 (equivalente a MOP$556.200,00), juntamente com juros legais a partir da data do trânsito em julgado da respectiva sentença (13 de Novembro de 2020) dos autos de proc.º n.º CV3-12-0103-CAO do TJB até ao pagamento integral; e
b) Que os 1.º e 2.ª réus sejam condenados a uma indemnização por privar o autor do gozo do exercício dos direitos devidos em relação à fracção “E1”, indemnização a qual é calculada em MOP$3.000,00 por mês até que o respectivo acto da privação cesse, juntamente com os juros legais a partir da data em que o autor adquiriu metade da propriedade da fracção (5 de Setembro de 2012) até ao pagamento integral da indemnização; ou
c) Se o Tribunal não entender como acima referido, apresentará o pedido subsidiário:
- Que o 1.º Réu e a 2.ª Ré sejam ordenados a reembolsar ao autor metade do preço de compra e venda da fracção “E1”, sendo a quantia de HK$540.000,00 (equivalente a MOP$556.200,00), com base no facto do enriquecimento sem causa na aquisição do preço da fracção “E1”, juntamente com juros legais a partir da data do trânsito em julgado da respectiva sentença do proc. n.º CV3-12-0103-CAO do TJB, até ao pagamento integral; e/ou
- Em virtude do gozo de enriquecimento sem causa dos 1.º e 2.ª réus pertence ao quinhão do autor na fracção “E1”, que é metade indivisa do autor, os réus são condenados a pagar uma indemnização ao autor, indemnização a qual é calculada em MOP$3.000,00 por mês a partir da data em que o autor adquire a fracção “E1” (5 de Setembro de 2012) até que o autor seja efectivamente autorizado a exercer plenamente os seus direitos em relação à fracção “E1”, juntamente com os juros legais a partir da data em que o autor adquiriu metade da propriedade da fracção “E1” até ao pagamento integral da indemnização.
Proferida sentença, foi a acção julgada parcialmente procedente e em consequência, decidido que seja condenado o 1º Réu a devolver MOP556.200,00 ao Autor, com juros legais desde a data da citação até integral e efectivo pagamento e indefere o resto do pedido.
Não se conformando com a decisão proferida vem o Autor e agora Recorrente interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões e pedidos:
1. O recorrente interpõe recurso contra o indeferimento pelo Tribunal a quo do pedido do recorrente: “Que os 1.º e 2.ª réus sejam condenados a uma indemnização por privar o autor do gozo do exercício dos direitos devidos em relação à fracção “E1”, indemnização a qual é calculada em MOP$3.000,00 por mês até que o respectivo acto da privação cesse, juntamente com os juros legais calculados a partir da data em que o autor adquiriu metade da fracção (5 de Setembro de 2012) até ao pagamento integral da indemnização; ou
Se o Tribunal não entender como acima referido, apresentará o pedido subsidiário, em virtude do gozo de enriquecimento sem causa dos 1.º e 2.ª réus pertence ao quinhão do autor na fracção “E1”, que é metade indivisível do autor, os réus são condenados a pagar uma indemnização ao autor, indemnização a qual é calculada em MOP$3.000,00 por mês a partir da data em que o autor adquiriu a fracção “E1” (5 de Setembro de 2012) até que o autor seja efectivamente autorizado a exercer plenamente os seus direitos em relação à fracção “E1”, juntamente com os juros legais calculados a partir da data em que o autor adquiriu metade da fracção “E1” até ao pagamento integral da indemnização.”
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A ilicitude da privação do recorrente da utilização do bem comum não dependia da existência de um acordo para a sua utilização
2. Conforme os factos provados, “a partir da data em que ele (o Autor, o recorrente dos presentes autos) adquiriu o referido quinhão (ou seja, a partir de 5 de Setembro de 2012 até à data de interposição da presente acção) terá direito ao referido quinhão, a totalidade da fracção E1 foi utilizada pelos 1.º e 2.º réus e o autor foi completamente impedido e privado de acesso a toda e qualquer parte da fracção E1”, e, que o recorrente “tinha solicitado à 2.ª ré que desocupasse imediatamente a fracção através de uma carta de advogado, ela não deu atenção de tal assunto.” O qual reflecte que o recorrente tinha pedido aos dois recorridos para tratar do assunto m relação à utilização das fracção E1 em questão e que foi devido ao pedido relevante do recorrente que os dois recorridos provavelmente o ignorariam.
3. No entanto, o Tribunal o quo considerou subsequentemente que os dois recorridos tinham agido legalmente com base no argumento de que “não havia factos que demonstrassem que o autor tinha pedido aos dois réus que utilizassem a fracção em questão em conjunto”.
4. Daí podem ver que, o entendimento do tribunal a quo foi claramente contraditório com os factos considerados provados e a decisão recorrida foi, portanto, nula nos termos do art.º 571.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil.
5. Deixando de lado a questão de saber se o recorrente e os dois recorridos tinham de alguma forma acordado o regulamento de utilização da fracção E1, pelo menos quando o Tribunal a quo considerou que o recorrente e os dois recorridos não tinham estabelecido regulamento para a utilização da fracção E1 em comum, as circunstâncias do caso devem ser consideradas em conformidade com o art.º 1302.º, n.º 1 do Código Civil.
6. Em seguida, ao concluir as circunstâncias em que “a partir da data em que ele (o Autor, o recorrente dos presentes autos) adquiriu o referido quinhão (ou seja, a partir de 5 de Setembro de 2012 até à data de interposição da presente acção) terá direito ao referido quinhão, a totalidade da fracção E1 foi utilizada pelos 1.º e 2.º réus e o autor foi completamente impedido e privado de acesso a toda e qualquer parte da fracção E1”., os dois recorridos obstruíram e privaram totalmente o autor do exercício dos seus direitos em relação à fracção E1, excedendo os limites dos seus direitos em relação ao uso do bem comum, e são responsáveis pela responsabilidade civil decorrente de um facto ilícito, tal como previsto no art.º 477.º do Código Civil.
7. Daí resulta que o Tribunal de Primeira Instância violou o art.º 1302.º, n.º 1 do Código Civil quando exigiu a que “um comproprietário deve solicitar a outros comproprietários o modo de utilização do bem comum” como condição dos pressupostos para o direito de uso do recorrente.
8. Ao mesmo tempo, uma vez que os dois recorridos deviam saber e tinham o dever de saber que o recorrente possui a propriedade da fracção E1 e tinha impedido e privado completamente o exercício dos direitos do recorrente em relação à fracção E1, havia uma culpa notória na sua conduta que tornava impossível ao autor “usar e gozar” da fracção E1 em comum com os dois recorridos de uma forma geral e simultânea e de igualdade.
9. O recorrente pôde “"indirectamente gozar” da fracção E1 através de um arrendamento, uma vez que o imóvel comum era um bem imóvel utilizado para fins de habitação e era juridicamente indivisível.
10. Como solicitado pelo recorrente, o montante de MOP$3.000,00 por mês (juntamente com os juros legais calculados desde a data de aquisição da metade da referida fracção até ao pagamento integral da indemnização) baseia-se na recente renda de MOP$6.000,00 pelo mesmo andar e dimensão do mesmo edifício do mesmo valor de mercado da fracção E1 (os factos relevantes também foram provados), na proporção da propriedade da fracção E1 pelo recorrente.
11. Por conseguinte, o recorrente é de opinião que o Tribunal a quo aplicou incorrectamente as disposições do art.º 1302.º, n.º 1 do Código Civil e solicita ao MM.º Juiz do TSI, que altere e conceda uma indemnização aos dois recorridos, tal como solicitado pelo recorrente, de acordo com as disposições do art.º 477.º do Código Civil.
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Enriquecimento sem causa (pedido suplementar)
12. A falta de um acordo entre o recorrente e os dois recorridos foi culpa destes últimos, não do recorrente.
13. Resumindo os factos apurados pelo Tribunal a quo da seguinte forma, é evidente que o recorrente adquiriu legalmente a propriedade completa da fracção E1 em 5 de Setembro de 2012 e pagou o preço de compra completo daquela fracção, e que o recorrente só tinha 1/2 da propriedade da fracção E1 como resultado do acto ilícito do 1º réu no proc. n.º CV3-12-0103-CA0 (ou seja, o 1.º requerido neste caso).
14. E pela sentença do TJB no processo n.º CV3-12-0103-CAO, é conhecido (como facto comprovado) que:
- Que pelo menos em 2012, quando a 2.ª recorrida apresentou o caso como autora no proc. n.º CV3-12-0103-CAO e o 1.º recorrido respondeu como 1.º réu no referido caso, eles tinham conhecimento e eram obrigados a saber que a metade indivisa da fracção E1 originalmente detidas pela D tinham sido transferidas para o recorrente.
- Em 08 de Janeiro de 2013, quando o recorrente enviou a carta de advogado relevante à requerida, o referido processo n.º CV3-12-1030-CAO já estava pendente e os dois recorridos sabiam e eram obrigados a saber que o recorrente tinha adquirido pelo menos metade da propriedade do imóvel.
- Como o Tribunal a quo observou na sua sentença no processo n.º CV3-12-0103-CAO de fls. 13: “O 1.º réu (ou seja, o 1.º réu neste caso) possui apenas a metade indivisa da fracção autónoma, e a outra metade indivisa pertence ao 2.º réu (ou seja, D) e não ao 1.º réu; por outras palavras, parte do acto de venda, mas não a totalidade, é viciada (mas não todo) constituía uma anulação parcial a um negócio jurídico”.
15. Pode-se ver que quando o recorrente emitiu a carta de advogado à 2.ª recorrrida a 8 de Janeiro de 2013, a sua intenção subjectiva deveria ter sido a de possuir a totalidade da propriedade da fracção E1, o pedido do recorrente para a utilização da fracção E1 na sua totalidade era inteiramente objectivo e de boa-fé, em oposição ao 1.º e à 2ª recorridos que subjectivamente sabiam que o recorrente possuía pelo menos 1/2 do título da fracção E1 (que originalmente pertencia a D), enquanto que ignoraram o direito e a intenção do recorrente de utilizar a fracção E1 quando tinham conhecimento do direito e da intenção do recorrente de a utilizar, tornando claro que havia malícia e culpa no facto de as partes não terem elaborado regras para a utilização da fracção E1.
16. Em conclusão, o Tribunal a quo errou ao considerar que “a recusa dos dois réus em conceder ao autor a utilização exclusiva da fracção em questão não violou o art.º 1302.º, n.º 1, do Código Civil, nem tem qualquer culpa no mesmo” e que a sentença recorrida violou o art.º 1302.º, n.º 1, do Código Civil, e solicita a V. Exa, que o altere e, em conformidade com o art.º 477.º do Código Civil, os dois recorridos sejam condenados a satisfazer a indemnização, como exigido pelo recorrente.
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Enriquecimento sem causa (pedido suplementar)
17. O Tribunal a quo considerou que o recorrente tinha adquirido validamente metade da fracção E1, que os 1.º e 2.ª recorridos tinham impedido e recusado completamente a utilização daquela fracção pelo recorrente, e que o recorrente e os 1.º e 2.ª recorridos não tinham chegado a acordo sobre o regulamento de utilização da fracção E1.
18. Por conseguinte, a utilização da fracção dos 1.º e 2.ª recorridos em excesso do seu quinhão deve ser considerada sem causa razoável e em detrimento do recorrente.
19. De acordo com o art.º 467.º do Código Civil de Macau, os dois recorridos devem ser obrigados a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. A sentença recorrida viola igualmente o art.º 1302.º, n.º 1 do Código Civil e condena os dois recorridos a restituir os benefícios pretendidos de acordo com o pedido suplementar dos recorridos, tal como estipulado no art.º 467.º, n.º 1 do Código Civil.
Em resumo, solicita-se ao Tribunal Colectivo do TSI que admite este recurso e que sejam julgados procedentes os fundamentos de recurso.
- A decisão recorrida for declarada nula e sem efeito, nos termos do art.º 571.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil; ou
- A decisão é revogada por ser contrária ao art.º 1302.º, n.º 1, e ao art.º 477.º do Código Civil; e
- Conceder aos 1.º e 2.ª réus uma indemnização por privar o autor do exercício dos direitos a que o autor tem direito relativamente à fracção E1, calculada em MOP$3.000,00 por mês até à cessação do respectivo acto privado, acrescida de juros legais a partir da data em que o autor adquiriu metade daquela fracção (5 de Setembro de 2012) até ao pagamento integral da indemnização; ou
- (Pedido suplementar) ser anulado com base no facto de a sentença recorrida ser contrária ao art.º 1302.º, n.º 1, e ao art.º 467.º, n.º 1, do Código Civil; e
- Condenar os 1.º e 2.ª réus, com base no facto de os seus gozos de enriquecimento sem causa pertencerem à parte indivisa do autor na fracção E1, uma indemnização calculada em MOP$3.000,00 por mês a partir da data em que o autor adquiriu a fracção E1 (5 de Setembro de 2012) até à data em que o Autor está efectivamente autorizado a exercer plenamente os seus direitos em relação à fracção E1, juntamente com os juros legais a partir da data em que o autor adquiriu a sua parte na fracção E1 até ao pagamento integral da indemnização.
Notificado do despacho de admissão de recurso os Recorridos silenciaram.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
- A 10 de Agosto de 1979, o 1º réu e a 2.ª ré casaram-se na província de Guangdong da RPC (fls. 23v dos autos, para os devidos efeitos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). (art.º 1.º da petição inicial)
- Em 27 de Maio de 1983, o 1.º réu e D [do sexo masculino, casado, titular do Bilhete de Identidade de Residente da Região Administrativa Especial de Hong Kong n.º …] compraram cada um à Companhia de Investimento Predial Iao Hon (Macau) Limitada, por aquisição da metade da fracção “E1” que se situa em Macau, Rua..., Edf. ... (bl. 2), 1.º andar-E, ..., (doravante referido como fracção “E1”) (fls. 23v e 152 dos autos, para os devidos efeitos, aqui se dá por integralmente reproduzidos). (art.ºs 2.º e 6.º da petição inicial)
- Em 9 de Julho de 1983, a compra e venda acima referida foi registada na Conservatória do Registo Predial sob a inscrição da propriedade n.º ..., com a descrição da CRP n.º ... (Livro …, fls. …) e na inscrição predial com o n.º ... (fls. 102 a 157 dos autos, para os devidos efeitos, aqui se dá por integralmente reproduzido). (art.º 3.º da petição inicial)
- Em 23 de Julho de 2012 e em 5 de Setembro de 2012 respectivamente, o autor assinou, com o 1.º Réu e D, que eram proprietários no registo da fracção “E1”, o “Contrato-promessa de compra e venda do imóvel” e a “Escritura de Compra e Venda” quanto àquela fracção (fls. 14 a 17 e 30 dos autos, para os devidos efeitos, aqui se dá por integralmente reproduzido). (art.º 4.º da petição inicial)
- A aquisição da fracção “E1” pelo autor está inscrita no registo predial da fracção “E1”, registo da propriedade sob o n.º ... (fls. 102 a 157 dos autos, para os devidos efeitos, aqui se dá por integralmente reproduzido). (art.º 5.º da petição inicial)
- Como o 1.º réu declarou erroneamente o seu cônjuge como E no “Contrato-promessa de compra e venda do imóvel” e na subsequente “Escritura de compra e venda” da fracção “E1” com o autor, e o regime matrimonial de bens é a separação de bens, em resultando de que a 2.ª Ré instaurou junto do TJB a acção declarativa sob a forma de processo ordinário n.º CV3-12-0103-CAO, a fim de anular o acto de compra e venda da fracção “E1” que foi transferido ao autor por escritura de compra e venda datada de 5 de Setembro de 2012 (fls. 14 a 17 e 22 a 29v dos autos, para os devidos efeitos, aqui se dá por integralmente reproduzido). (art.º 8.º da petição inicial)
- O TJB proferiu a seguinte sentença nos referidos autos (fls. 22 a 29 dos autos, para os devidos efeitos, aqui se dá por integralmente reproduzido). (art.º 9.º da petição inicial):
i) Declarar que a autora, C, seja a esposa do 1.º réu, B, e que os bens de ambos estão sujeitos ao regime previsto pela Lei do Casamento da República Popular da China;
ii) Ordenar à Conservatória do Registo Predial para corrigir os dados do item i) para ser a descrição n.º ... e a inscrição n.º ... em relação ao 1.º réu;
iii) Anular acto da compra e venda da metade(indivisa) da fracção “E1” que se situa em Macau, na Rua..., Edf. ... (bl. 2), 1.º andar-E, ..., pelo 1.º Réu ao 3.º Réu no acto de venda datado de 5 de Setembro de 2012;
iv) Ordenar à anulação da inscrição n.º ... no Registo Predial relativa ao quinhão desta parte.
Além disso,
i) Condenar que o autor reconheça que o 3.º réu, A, como proprietário de uma metade indivisa da propriedade da fracção “E1” que se situa em Macau, na Rua..., Edf. ... (bl. 2), 1.º andar-E, ....
ii) (…)
- A referida sentença foi transitada em julgado em 13 de Novembro de 2020 (fls. 13 dos autos, para os devidos efeitos, aqui se dá por integralmente reproduzido). (art.º 10.º da petição inicial)
- No acto de compra e venda da fracção “E1” efectuada em 5 de Setembro de 2012, o autor já pagou ao 1º réu e a D o montante total do preço de HK$1.080.000,00, como se segue:
• Em 23 de Julho de 2012, o autor pagou um depósito de HK$200.000,00 ao 2.ª ré e F através de uma nota promissória n.º … do Banco da X, que foi recebida e assinada conjuntamente pelo 1.º Réu e por F (fls. 18 dos autos, para os devidos efeitos, aqui se dá por integralmente reproduzido);
• Em 5 de Setembro de 2012, o autor pagou HK$700.000,00 ao 1.º Réu e a F através de uma nota promissória n.º … do Banco XX, que foi recebida e assinado conjuntamente pelo 1.º Réu e por F (fls. 19 dos autos, para os devidos efeitos, aqui se dá por integralmente reproduzido);
• Em 5 de Setembro de 2012, o autor pagou HK$180.000,00 em dinheiro ao 1º Réu e a D e o 1º Réu e D assinaram conjuntamente o recibo (fls. 19 dos autos, para os devidos efeitos, aqui se dá por integralmente reproduzido). (art.º 14.ºt da petição inicial)
- Contudo, que a totalidade da fracção “E1” tenha sido utilizada pelos 1.º e 2.ª réus desde a data da sua aquisição do referida quinhão até à data da instauração da presente acção, e o autor tenha sido totalmente impedido e recusado o uso da toda e qualquer parte da fracção “E1”. (art.º 18.º da petição inicial)
- O autor tinha pedido à 2.ª ré, que vivia na fracção “E1”, que se mudasse através de uma carta de advogado, mas a mesma o ignorou (fls. 20 e 21 dos autos, para os devidos efeitos, aqui se dá por integralmente reproduzido). (art.º 19.º da petição inicial)
- O último aluguer mensal para o mesmo andar e dimensão do mesmo edifício com o mesmo valor de mercado da fracção “E1” que se situa na Rua …, Edf. ..., quarto 113, para o período de 1 de Outubro de 2016 a 30 de Setembro de 2017 era de MOP6.000,00. (art.º 21.º da petição inicial)
- Com base na avaliação da indústria imobiliária, o valor de aluguer dos edifícios ou fracções circundantes da fracção “E1” é de aproximadamente MOP$6.000,00. (art.º 22.º da petição inicial)
b) Do Direito
A decisão recorrida tem dois segmentos, a saber, a condenação na devolução do preço pago relativamente à compra que foi anulada e o pedido de condenação na indemnização pela privação da usufruição da fracção autónoma.
Relativamente à devolução do preço a acção foi julgada procedente e não foi interposto recurso.
Assim sendo, o objecto do recurso concerne apenas com o segundo segmento da decisão relativamente à indemnização pedida pelo impedimento do Autor por culpa dos Réus de usufruir da fracção.
Na parte que agora se impugna é o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Depois de os factos do caso terem sido conhecidos, é agora necessário resolver as questões de direito relevantes aplicáveis à apreciação dos pedidos das partes.
Na presente acção, o autor invoca o facto de o contrato de compra e venda celebrado entre o autor e 1.º réu e D relativamente à fracção “E1”, que envolvia a venda da metade da propriedade da fracção “E1” pelo 1.º réu ao autor, ter sido anulado pelo tribunal, pretende que o 1.º réu e a 2.ª ré, como cônjuge do 1.º Réu, devem reembolsar ao autor uma metade do preço do referido contrato de compra e venda a partir da data do trânsito em julgado da referida sentença, com uma indemnização equivalente a metade do aluguer da referida fracção, juntamente com juros legais, pela privação do direito do autor a utilizar a referida fracção. Subsidiariamente, o autor pretende uma indemnização pelo enriquecimento sem causa dos dois réus de metade do preço de compra e venda e pelo gozo de metade daquela fracção, mais juros legais.
Os réus não apresentaram contestação.
Nós analisamos o seguinte:
*
(…)
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Indemnização
Em relação à alegação do autor de que foi privado do direito de utilização da fracção em causa pelos dois réus, temos de determinar se os dois réus cometeram um acto ilícito e se foram culpados.
De facto, de acordo com o art.º 1302.º, n.º 1 do Código Civil, na falta de regulamento sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.
Nas circunstâncias do presente caso, devemos também considerar o efeito da anulação da sentença do TJB no processo n.º CV3-12-0103-CAO, ou seja, o efeito do acto jurídico contra o 1.º réu pela venda da sua parte na fracção em questão, que não produz efeitos ab initio nos termos do art.º 282.º do Código Civil. Desta forma, embora o autor se tenha passado a ser o proprietário da fracção em questão desde o momento da celebração da referida escritura de compra e venda, os dois réus deixaram de ser comproprietários da fracção. Contudo, pelo efeito da referida sentença de anulação, ao referido quinhão da propriedade foram retroactivamente devolvidas aos dois réus, o que fez com que os dois réus fossem comproprietários da fracção em questão a partir desse momento.
Como a existência de um regulamento de utilização de coisa comum não foi provada, os dois réus tinham o direito de utilizar a coisa comum conjunto.
Embora tenha sido provado que ambos os réus utilizaram a totalidade da fracção em questão desde a data em que o autor adquiriu a sua parte até à data da instauração desta acção, de modo a impedir completamente o autor de utilizar toda e qualquer parte da fracção, a carta de advogado constante de fls. 20 e 21 dos autos indica que o autor tinha solicitado à 2.ª ré que desocupasse imediatamente a fracção.
Para além disto, não está provado que o autor tenha pedido aos dois réus para utilizarem em comum a fracção em questão, também não ficou provado que o autor tivesse a intenção de partilhar a utilização da fracção em questão, mesmo após a anulação da sentença do TJB no proc. n.º CV3-12-0103-CAO se ter tornado definitivo.
Por outras palavras, decorre dos factos acima referidos que a mensagem enviada pelo autor aos réus foi que o primeiro pretendia utilizar a fracção em questão numa base completamente exclusiva. Este requisito não cumpre os requisitos da parte inferior do art.º 1302.º, n.º 1 do Código Civil.
Nestas circunstâncias, teria sido apropriado que o autor e os réus negociassem a utilização conjunta da fracção em questão, a fim de procurar um acordo sobre as regras de utilização do bem comum, ou exercer o direito de partilha do bem comum se não fosse possível chegar a um tal acordo.
Contudo, até então, a recusa dos dois réus de permitir ao autor o uso exclusivo da fracção em questão não violava o art.º 1302.º, n.º 1 do Código Civil, nem havia qualquer culpa, a menos que o pedido do autor fosse de uso conjunto da fracção em questão e os réus recusassem, facto que não foi provado.
Por conseguinte, os factos acima referidos não constituem responsabilidade civil decorrente de um facto ilicito nos termos do art.º 477.º do Código Civil, e o autor não tem o direito de requerer uma indemnização aos réus.
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Enriquecimento sem causa
Sobre a questão de saber se a utilização da fracção em questão pelos dois réus constituiu um enriquecimento sem causa, o art.º 467.º, n.º 1 do Código Civil prevê que “1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.”
Para casos de enriquecimento sem causa que não resultem de prestação, Antunes Varela argumentou que o enriquecimento é impróprio porque se encontra na ordem substancial dos bens reconhecidos por lei como pertencentes a outra pessoa. Quando o enriquecimento surge em conformidade com a ordem jurídica dos bens aceites pelo sistema, é seguro dizer que o bem é dado com justa causa; se, pelo contrário, o benefício deve pertencer a outra pessoa sob a ordem da lei positiva, então o benefício carece de causa1.
Neste caso, uma vez que os dois réus foram tiveram acesso à fracção questão (o bem comum) ao abrigo do art.º 1302.º, n.º 1 do Código Civil, o interesse benéfico que receberam na utilização da fracção teve causa. Por conseguinte, a situação acima referida não está em conformidade com o art.º 467.º, n.º 1 do Código Civil e os dois réus não são obrigados a devolver ao autor o benefício que pretendia.
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Juros de mora
De acordo com o art.º 794.º, n.º 1 do Código Civil e o art.º 565.º n.º 3 do Código de Processo Civil, os juros legais devem ser calculados desde a data da citação até à data da liquidação total.».
Está já devidamente explicado na decisão recorrida que por força da aquisição da fracção autónoma a que se reportam os autos por banda do Autor e subsequente anulação da aquisição da quota parte pertencente ao aqui 1º Réu se têm Autor e Réus como comproprietários da mesma desde que se deu a aquisição pelo Autor, isto é, desde 05.09.2012.
Tal como também já se referiu na decisão recorrida de acordo com o disposto no artº 1302º do C.Civ. «na falta de regulamento sobre o uso de coisa de comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contando que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito».
No que concerne à utilização da fracção o que consta da factualidade apurada é que:
- Contudo, que a totalidade da fracção “E1” tenha sido utilizada pelos 1.º e 2.ª réus desde a data da sua aquisição do referida quinhão até à data da instauração da presente acção, e o autor tenha sido totalmente impedido e recusado o uso da toda e qualquer parte da fracção “E1”. (art.º 18.º da petição inicial)
- O autor tinha pedido à 2.ª ré, que vivia na fracção “E1”, que se mudasse através de uma carta de advogado, mas a mesma o ignorou (fls. 20 e 21 dos autos, para os devidos efeitos, aqui se dá por integralmente reproduzido). (art.º 19.º da petição inicial)
O que resulta do primeiro destes factos é que os 1º e 2º Réus desde a data da aquisição por banda do Autor têm impedido este do uso de toda e qualquer parte da fracção “E1” e que interpelando o Autor a 2ª Ré para que se mudasse da fracção esta ignorou o pedido.
Ora, assiste razão na decisão recorrida que nenhum dos Réus tinha de sair da fracção autónoma em casa e deixar de usufruir da mesma aquando do pedido do Autor, uma vez que, face ao disposto no artº 1302º do C.Civ. todos os comproprietários têm direito a usufruir da fracção na falta de um regulamento que defina de maneira distinta.
Mas já não acompanhamos a decisão recorrida quando conclui que daí não resulta que hajam impedido o Autor de ali viver.
Ora, está provado no primeiro destes factos que o Autor desde a aquisição tem sido pelos Réus “totalmente impedido e recusado o uso da toda e qualquer parte da fracção “E1”.
Destarte, demonstrou-se nos autos que os comproprietários aqui Réus impediram o comproprietário aqui Autor de usar a coisa, sendo irrelevante todas as considerações que se tecem em sentido contrário uma vez que o facto não precisa de interpretação.
Demonstrando-se que os Réus impediram o Autor de usar a fracção em causa verifica-se que estes incorreram na prática de um facto que viola ilicitamente o direito do Autor, pelo que, a questão haverá de ser resolvida de acordo com a disciplina consagrada no artº 477º do C.Civ., isto é, da responsabilidade por factos ilícitos.
Nos termos do nº1 do artº 477º do C.Civ. «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
São, assim, pressupostos da responsabilidade civil:
- O facto;
- A ilicitude;
- A imputação do facto ao lesante;
- O dano;
- Nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Quanto ao facto este tanto pode ser positivo, traduzido num acto ou acção, como também, negativo traduzido numa omissão quando «haja o dever jurídico de praticar um acto que, seguramente ou muito provavelmente teria impedido a consumação desse dano»2
«Por isso, facto voluntário significa apenas, no caso presente, facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade. Para fundamentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o acto ou omissão; não é necessária uma conduta predeterminada, uma acção ou omissão orientada para certo fim (uma conduta finalista). Fora do domínio da responsabilidade civil ficam apenas os danos causados por causas de força maior ou pela actuação irresistível de circunstâncias fortuitas (pessoa que é irresistivelmente impelida por força do vento, por efeito da vaga do mar, por virtude de uma explosão, de uma descarga eléctrica, da deslocação de ar provocada pelo arranque de um avião, ou de outras forças naturais invencíveis).» - Obra citada a pág. 449 -.
A ilicitude pode consistir na violação do direito de outrem (entre as várias formas que aquela pode revestir).
No caso em apreço o impedirem o Autor de também usar o imóvel por banda dos Réus, por violarem o direito de propriedade daquele e o inerente direito ao gozo e disposição da coisa por banda do Autor, são o facto ilícito a que alude o artº 477º C.Civ..
A imputação do facto ao lesante traduz-se na culpa do agente, ou seja, da violação ter sido praticada com dolo ou mera culpa.
A culpa pressupõe a imputabilidade do agente, ou seja de que este é capaz de discernir os efeitos da sua actuação ou omissão e que tem liberdade de determinação (capacidade intelectual e emocional e capacidade volitiva)3.
Age com dolo aquele que representando um facto que viole ilicitamente o direito de outrem, actua com a intenção de o realizar.
No caso em apreço ficou provado que os Réus impediram o Autor de usar a coisa e quando interpelados por aquele para a entregarem nada disseram, o que sem excluir que também tinham o direito a continuar a usá-la exigia por sua banda que se tivessem disponibilizado para que o Autor também o fizesse.
Pelo que, podemos concluir que os Réus não só sabiam do direito do Autor como também do interesse deste em usar a coisa o que nos leva a concluir terem actuado com dolo.
O dano consiste no prejuízo que a conduta do agente causou a outrem.
Por fim é necessário o nexo de causalidade entre o facto (acção/omissão) e o dano, ou seja, que este resulte daquele.
A privação do uso e da possibilidade de dispor da fracção autónoma é no caso em apreço o prejuízo sofrido pelo Autor decorrente da actuação dos Réus fazendo recair sobre estes a obrigação de indemnizarem.
Nos termos do artº 556º do C.civ. «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação».
Ora, no caso dos autos o evento que obriga à reparação foi o ter-se impedido o Autor de também usar a fracção, o que em termos de benefício/prejuízo, considerando a proporção dos direitos de cada um dos comproprietários, corresponde a metade do valor locativo da coisa o qual de acordo com a factualidade apurada se considera ser MOP6.000,00 mensais.
Assim, devem os Réus ser condenados a pagar uma indemnização que corresponda a metade do indicado valor mensal multiplicado pelos meses que durar o impedimento.
No que concerne ao momento a partir do qual a indemnização é devida entendemos que só é exigível desde que o Autor manifestou intenção de também usar a fracção, o que só aconteceu em 09.01.2013 aquando da recepção da carta a que se alude nos factos provados e se dá por reproduzida como sendo o que consta de fls. 20 e 21 dos autos.
Termos em que, face aos factos apurados haviam os Réus de ter sido condenados a pagar uma indemnização que corresponda ao valor de MOP3.000 multiplicado pelo número de meses durante o qual durar o impedimento do Autor de também usar a fracção a que se reportam os autos a contar desde 9 de Janeiro de 2013 até à cessação desse impedimento.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida na parte em que nega provimento à acção quanto pedido de indemnização por os Réus impedirem o Autor de usar a fracção autónoma a que se reportam os autos e em consequência condenam-se os Réus a pagar ao Autor uma indemnização igual ao valor de MOP3.000 multiplicado pelo número de meses que a contar de 9 de Janeiro de 2013 durar o impedimento do Autor de também usar aquela fracção, mantendo-se em tudo o mais o decidido.
Custas a cargo dos Recorridos.
Registe e Notifique.
RAEM, 20 de Abril de 2023
Rui Pereira Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(Primeiro Juiz Adjunto)
Ho Wai Neng
(Segundo Juiz Adjunto)
1 Antunes Varela, das Obrigações em Geral, vol. 1, 10ª edi, Almedina, P.487.
2 Cit. João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em geral, Vol. I, 4ª ed., pág. 448.
3 Obra citada pág. 481.
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801/2022 CÍVEL 4