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Processo nº 170/2020
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), A., propôs no Tribunal Judicial de Base acção declarativa de condenação em processo comum ordinário contra:
- (1°) B (乙);
- (2°) C (丙);
- (3°) D (丁);
- (4°) E (戊); e,
- (5ª) “F”, (“己”), RR., todos devidamente identificados nos autos.

A final, formulou pedido no sentido de se:

“a) Declarar nula a procuração que assinou em 08.02.2016; e,
Independentemente da declaração de nulidade da procuração,
b) Declarar a Escritura (doc. nº 5) ineficaz relativamente ao Autor, declarando a propriedade do Autor sobre a Fracção e condenando os Réus restituí-la ao Autor livre de ónus e encargos;
Assim não se entendendo,
c) Declarar a nulidade da Escritura (e que a nulidade é oponível aos Réus), declarando a propriedade do Autor sobre a Fracção e condenando os Réus restituí-la ao Autor livre de ónus e encargos;
Em qualquer dos casos supra (declaração de ineficácia ou nulidade),
d) Ordenar o cancelamento de todos os registos, derivados e assentes na Escritura, relativos à Fracção, na Conservatória do Registo Predial da RAEM;
Assim não se entendendo,
e) Condenar os 1º a 4º Réus a pagar ao Autor o preço de venda da Fracção, acrescidos dos juros legais;
Em qualquer dos casos supra,
f) Condenar os Réus a pagar solidariamente ao Autor indemnização pelos danos referidos nos artigos 85º e 86º supra, em valor a determinar na pendência da acção;
Caso o Tribunal entenda que não se trata se uma situação de responsabilidade por facto ilícito,
g) Condenar os Réus no pagamento das aludidas quantias ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa;
(…)“; (cfr., fls. 2 a 25 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Na sequência da normal tramitação processual veio-se a proferir sentença onde se julgou a acção parcialmente procedente porque parcialmente provada, consignando-se em sede de dispositivo o que segue:

“- Declara-se ineficaz relativamente ao Autor a escritura pública de compra e venda de 07.04.2016 a fls. 134-138 do Livro XXX-A do [Cartório do Notário Privado(1)] relativamente à fracção autónoma designada “ER/C” do rés-do-chão “E”, para comércio, do prédio sito em Macau, [Endereço(1)], denominado [Edifício(1)] e descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX-IV, a fls. 459, do Livro BXXK, inscrito na Matriz de S. Lourenço sob o nº XXXXX, e em consequência nula a inscrição nº XXXXXXG relativamente à mesma fracção autónoma;
- Reconhece-se ser o Autor titular do direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção da fracção autónoma designada “ER/C” do rés-do-chão “E”, para comércio, do prédio sito em Macau, [Endereço(1)], denominado [Edifício(1)] e descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX-IV, condenado os Réus a reconhecê-lo como tal e a restituir a coisa livre e devoluta de pessoas e bens;
- Absolvem-se os Réus dos demais pedidos formulados pelo Autor.
Mais se julga improcedente o pedido reconvencional subordinado formulado pelos Réus, absolvendo o Autor do mesmo.
(…)”; (cfr., fls. 294 a 306).

*

Oportunamente, em sede do recurso que do assim decidido interpuseram os (1° a 4°) RR., B, C, D e E, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 07.05.2020, (Proc. n.° 924/2019), onde, (no que agora interessa), na sua procedência, revogou a sentença recorrida do Tribunal Judicial de Base, julgando improcedentes todos os pedidos pelo A. deduzidos; (cfr., fls. 456 a 479).

*

Traz agora o aludido A. o presente recurso produzindo em sede das suas alegações as seguintes conclusões:

“Despacho de fls. 454
A. O despacho de fls. 454 viola o dever de cooperação e o direito de acesso aos autos: arts. 8°,117°/2 e 200°/1 do CPC, para além de que foi tacitamente deferido pelo tribunal (art. 209° CC), o que constitui revogação tácita do despacho de indeferimento. Assim, o despacho que ordena o pagamento de custas deve ser revogado pelo TUI, dado que o pedido foi tacitamente deferido e o indeferimento seria ilegal.
Vícios processuais do acórdão recorrido
B. A não decidir no sentido de ordenar a devolução da parte do preço pago (HK$800,000) antes da outorga da procuração, o Acórdão recorrido padece de omissão de pronúncia (art. 571°/1-d) do CPC).
C. Ao dar como provados factos que não podia ter dado como provados num recurso cingindo à matéria de direito (fls. 32, 33 e 40 do Acórdão), o Acórdão recorrido é nulo por violação dos arts. 3°, 5°, 575°, 582° e 599°, a contrario, do CPC.
D. A não decidir da nulidade suscitada nos pontos 3 e 4 da pronúncia de 27/04/2020, o Acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia, nos termos do art. 571°/1-d) do CPC.
E. A não decidir da nulidade suscitada no ponto 24 da pronúncia de 27/04/2020, o Acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia (art. 571°/1-d) do CPC).
F. Ao suscitar na fase de recurso o abuso de direito, que constitui matéria de excepção, sem conceder - como requerido pelo Autor - direito de produção de prova ou contraprova, o Acórdão recorrido é nulo por violação do contraditório (art. 3º do CPC). Alternativamente, será nulo por omissão de pronúncia sobre o pedido de produção de prova aduzido pelo autor no ponto 103 da pronúncia de 27/04/2020 (art. 571º/1-d) do CPC).
Abuso de Direito
G. O Autor não agiu dolosamente (não foi alegado ou feita prova), nem revelou consciência da nulidade (não foi alegado ou feita prova).
H. Apreciada a sua conduta globalmente, não se revela qualquer censurabilidade da sua conduta, mas somente que, quando tomou conhecimento dos factos relevantes, veio a Macau e agiu judicialmente.
I. O Autor nunca contactou com os Réus, pelo que não os induziu de que não havia nulidade, nem os induziu ou convenceu de que não invocaria a nulidade.
J. O Autor nunca tirou proveito ou procurou tirar proveito do acto nulo, não tendo recebido qualquer pagamento ou outra vantagem do acto nulo.
K. O Autor não revelou condutas contraditórias (exigidas pelo venire), assentando e beneficiando, numa primeira fase, de uma falsa validade ou eficácia do acto nulo, enquanto tal lhe interessava (prevalecendo-se do acto nulo), para vir, numa segunda fase, quando já lhe interessava mais a declaração de nulidade, invocar essa nulidade: não se verifica a contraditoriedade de condutas exigida tipicamente pelo venire e pela inalegabilidade.
L. A sua conduta contraditória (que, como se viu, não existe) não durou durante um longo período de tempo, acompanhado de actos expressos ou tácitos que transmitissem aos Réus a confiança de que a nulidade nunca seria invocada.
M. Os Réus agiram de má fé, quer perante o Autor, quer perante o Notário Privado, fazendo falsas declarações sobre o pagamento.
N. Os Réus conheciam a procuração desde a data da assinatura do contrato-promessa e não exercitaram o seu dever de indagação, tendo violado os seus deveres de cuidado, quer por omissão, quer por acção, ao longo de todo o processo.
O. Os sete requisitos cumulativos alinhados por MENEZES CORDEIRO, mais o oitavo que este autor estabelece de exigência de boa fé da parte contrária (os Réus), não estão preenchidos (inclusive por não haver prova de inexistência de terceiros de boa fé, havendo, pelo contrário, prova da existência de um terceiro de boa fé).
P. Se compararmos o caso dos autos com os exemplos de abuso de direito, citados da doutrina e jurisprudência, nos pontos 98 a 110 supra, conclui-se que o contraste entre os factos destes autos, globalmente considerados, e os factos dos casos de abuso ali referidos é patente e marcado, não permitindo qualquer analogia, donde também por aqui se conclui pela inexistência de abuso de direito na modalidade de inalegabilidade formal.
Nulidade da Procuração
Q. Dado que o contrato de compra e venda do bem imóvel situado em Macau, a que respeita a procuração, teria de ser celebrado por escritura pública (art. 866° e art. 94°/1 CN), resulta do art. 255°/2 que a procuração também teria de seguir essa forma (sem prejuízo do art. 128° do CN), independentemente do que resultasse das normas de conflitos.
R. Trata-se de uma consequência directa do direito material da RAEM (art. 255°/2), não havendo que analisar as normas de conflitos que determinariam a forma da procuração para decidir desta acção. Tal decorre do princípio da equivalência de formas entre o 'contrato de compra e venda' e a 'procuração', prescrito expressamente no art. 255°/2, que por sua vez decorre do facto de a manifestação de vontade do proprietário ser expressa na procuração, não na escritura.
S. Quer o TJB, quer o TSI entenderam que a procuração é governada pela lei de Macau (art. 38°/3 - TJB; art. 38°/1- TSI). O autor concorda que a lei reguladora, quer da substância, quer da forma da procuração é a lei da RAEM pelos motivos constantes dos arts. 21°, 35°, 38°/1, 38°/3, 45° e 255°/2 do CC e 128° do CN. Os motivos do Autor foram explanados nos pontos 13 a 89 das suas Alegações de 01/07/2019. Trata-se de questão ou fundamento sobre o qual o Autor foi parte vencedora, quer no TJB, quer no TSI. Assim, não lhe cabe alegar sobre a questão, salvo se vier a ter ou lhe for concedido direito de contraditório sobre a questão.
T. A forma da compra e venda e a forma da procuração constituem uma formalidade ad substantiam, como decorre dos arts. 66°, 67°, 72°, 156°/2 e 157° do CN, de modo que a sua observância é necessária para a validade e produção de efeitos do acto.
U. A aplicação da lei de Macau à forma da procuração para venda de bem imóvel sito em Macau resulta, antes de mais, do art. 21°, pois os arts. 255°/2 e 866°, bem como os arts. 70°, 94°/1 e 128°/3 do CN, são normas de aplicação imediata (pelo que nem seria necessário aplicar as normas de conflitos dos arts. 24° a 62° do CC).
V. Esta solução legislativa é consistente com o princípio da segurança jurídica do comércio, até porque não haveria maneira fácil para um notário de Macau averiguar em tempo útil as regras de direito material e de direito internacional privado de inúmeros países possíveis, incluindo países e línguas distintos (por ex., Ucrânia, Senegal ou Azerbaijão).
W. Aplicando-se a lei de Macau, a procuração teria de ter revestido a forma de instrumento público ou termos de autenticação, como prescrito no art. 128°/1, als. a) e b), do CN, e em decorrência dos art. 866° e dos arts. 70°/1 e 128°/3-d) do CN. Tendo a procuração revestido a forma de mero reconhecimento notarial, é nula por vício de forma, por violação destes preceitos legais, nos termos dos arts. 212° e 279° do CC.
X. A procuração viola ainda os arts. 55°, 57°, 58°/2, 59°/3, 66°/1-a), c), f), m), 67°/1-a) e 3, in fine, 68°/2, 70°/1, 72°/1 e 3 e 78° do CN, sendo nula por violação de formalidades legais, nos termos dos arts. 287° e 279° do CC.
Y. A posição do TSI no sentido de que o direito material da RAEM deve ser interpretado diferentemente consoante o acto seja praticado na RAEM ou no exterior não tem mérito, não tem em consideração tratar-se de formalidades ad substantíam, desrespeita o propósito das regras de conflito (arts. 35°, 38° e 45° do CC), o facto de o direito material da RAEM se aplicar directamente ao caso (arts. 21° e 255°/2 do CC), bem como a própria finalidade do DIP. Tal tese criaria dois ou mais direitos materiais da RAEM consoante o local de prática do acto e seria fonte de grande incerteza e insegurança para o comércio jurídico e os aplicadores do direito.
Z. Sendo a procuração nula por vício de forma ou de violação de formalidades obrigatórias, o 'procurador' não tem poderes de representação do autor. Assim, a escritura consubstancia venda de um bem alheio, como alheio, por pessoa sem poderes de representação. Não se trata de um caso de nulidade da venda (art. 882°), nem de abuso de representação (art. 262°), mas sim de um caso de ineficácia (art. 261°). Nos termos do art. 261°/1, tal venda é ineficaz para com o autor. A declaração de ineficácia não depende de quaisquer requisitos subjectivos relativos ao proprietário (designadamente a boa fé - Ac. TUI 39/2012), que, por isso, não releva.
AA. A procuração é nula por objecto indeterminado (art. 273°/1), pois os poderes têm de ser específicos, não gerais, e não contém os termos pelos quais o procurador é autorizado a realizar a venda, nem cláusula "pelo preço e condições que entender" (liberdade de estipulação).
BB. A procuração é, ainda, nula por objecto legalmente impossível (art. 273°/1), uma vez que o autor limitou a sua qualidade à de "comproprietário", pelo que, sendo interpretada como atribuindo poderes de "proprietário pleno", a procuração é de objecto legalmente impossível.
CC. Bem interpretada (art. 228°/1), a procuração não confere poderes para vender o imóvel, pelo que, se fosse válida, teria insuficientes poderes de representação para a venda, com a consequente aplicação do art. 261°/1.
DD. A considerar acertada a tese do TSI de que a procuração é válida, não haveria qualquer justificação para que os Réus não pagassem ao Autor a parte do preço pago antes da procuração ter sido outorgada, dado que se trata de um pagamento feito a terceiro, sem poderes de representação e não ratificado pelo Autor: arts. 759°, 760° e 787° do CC”; (cfr., fls. 489 a 549).

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Respondendo, dizem os (1° a 4°) RR. B, C, D e E que:

“I. O presente recurso vem do douto Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, em 7 de Maio de 2020, que doutamente julgou procedente o recurso oportunamente interposto pelos Réus, aqui Recorridos, e improcedente a ampliação do objecto do recurso requerida pelo ora Recorrente-Autor, revogando a decisão da Primeira Instância;
II. Dado que o Tribunal a quo conheceu primeiramente da questão do abuso de direito suscitada pelos Réus, então Recorrentes, nas conclusões IV. e XXV. a XXVII. das suas alegações (cfr. §. 4 e 34 a 38 das alegações), o conhecimento das outras questões - vício de forma da procuração, ineficácia da compra e venda e restituição do valor pago pelos Réus a título de preço - ficou prejudicada, pelo que, prevenindo a hipótese de procedência de alguma das questões ora suscitadas pelo Recorrente-Autor, os Recorridos-Réus requerem a apreciação. daquelas outras questões a título subsidiário, ampliando o objecto deste recurso ao abrigo do artigo 590.° do CPC;
III. A questão essencial neste recurso é a de saber se o Recorrente-Autor actua em abuso de direito, pois, sendo esse o caso, todas as demais questões cairão por terra;
IV. Há má fé, abuso de direito e abuso no exercício do direito de acção quando o autor requer em juízo a invalidade de um negócio jurídico por si desejado - a compra e venda -, com base numa procuração cuja eventual falta de formalismo se deve a si próprio;
V. Não age com probidade nem litiga de modo honesto, correcto e leal, quem, depois de outorgar uma procuração com determinados poderes - nos quais se inclui os de outorgar os documentos necessários à venda efectiva de um imóvel e de receber inclusivamente o próprio preço - vem, depois de se ver enganado pelo procurador por si livremente escolhido, invocar vícios de forma e incorrecções de escrita ou redacções infelizes, contra os compradores, pedindo a invalidade do negócio ou o pagamento do preço, mais deduzindo pedido cível contra o seu procurador;
VI. Um homem médio e diligente só confere poderes a alguém para receber o preço, sem sequer exigir o depósito numa conta em seu nome, quando a confiança é total;
VII. Quem confere poderes ao procurador para esse fim gera na contra-parte a convicção de que esse procurador é da total confiança do mandante e age em conformidade com as instruções deste;
VIII. Nas relações jurídicas estabelecidas entre os sujeitos rege como princípio fundamental inultrapassável aquele de que, tanto na formação, como na execução dos contratos e das relações jurídicas relevantes para a ordem jurídica, se devem usar valores de boa-fé e de correcção;
IX. O abuso de direito enquanto forma desviada e jurídico-socialmente reprovável de um direito subjectivo constitui-se como paralisador do exercício do direito na medida em que o interesse (positivo) prosseguido pelo respectivo titular se coloca numa posição de defraudação da expectativa jurídica expressa na estabilização jurídico-material da normação vigente e desejada pelo legislador;
X. A forma é o modo pelo qual se exterioriza a vontade das partes, ou como diz CASTRO MENDES, "o aspecto exterior que a declaração assume, o modo por que a vontade se revela";
XI. O princípio geral vigente - cfr. artigo 211.° do Código Civil de Macau - é o da. consensualidade, que significará que "a validade da declaração não depende, em princípio, da observância de formalidades determinadas", decorrendo da economia hermenêutica deste princípio que a necessidade de observar "certo tipo de forma, como condição de validade do negócio, só existe quando a lei expressamente o determine - forma legal."
XII. Das posições doutrinárias postas em confronto, a invocação de um vício de forma pode conduzir: (1) ou, a uma posição mais drástica e taxante, que conduziria à paralisação do direito da parte que se procura prevalecer da invocação, desde que se comprove a intenção de obter vantagens ilegítimas à custa do contraente que celebrou o negócio, convencido de que a forma era prescindível; ou (2) uma posição, mais mitigada e condescendente, que advoga que, não sendo de não declarar a nulidade, com as consequências que dela advêm para a extinção relação contratual, sempre o invocador deveria ser obrigado a indemnizar, pelo interesse contratual negativo, a parte que, de boa-fé, confiou que o contrato ficaria perfeito com a simples consensualização dos termos do trato contratual;
XIII. No caso concreto, a regra da consensualidade na formação do negócio jurídico deve prevalecer, impondo-se assim ao princípio da vinculação formal, por forma a impedir que a alegabilidade do vício de forma possa vir a beneficiar um dos sujeitos da relação jurídica, precisamente por invocação da falta de forma para lograr a nulidade do negócio;
XIV. A actuação do Recorrente-Autor manifesta má fé, abuso de direito e abuso no exercício do direito de acção, a qual não poderá prevalecer atento o disposto no artigo 326.° do Código Civil;
XV. Atento o disposto no artigo 35.° do Código Civil de Macau, conjuntamente com o n.° 1 do artigo 62.° do Código do Notariado, resulta claramente da lei que é suficiente a observância da lei em vigor no local onde a procuração foi feita;
XVI. Tendo a assinatura do Recorrente-Autor sido reconhecida por notário público da Califórnia, a procuração que foi outorgada neste Estado está em conformidade com a legislação do local, nomeadamente das secções 4120,4121, 4123b) do California Probate Code;
XVII. Age correctamente o notário privado de Macau - a quem compete a verificação da regularidade dos instrumentos de representação -, que lavra escritura de compra e venda com base na referida procuração;
XVIII. A procuração em causa não padece de qualquer vício de forma que possa afectar a sua validade ou eficácia, nem a venda ou pagamento de preço daí resultante;
XIX. Atento o disposto no n.? 2 do artigo 261.° do Código Civil de Macau, "o negócio celebrado por representante sem poderes é eficaz em relação ao representado, independentemente de ratificação, se tiverem existido razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justificassem a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do representante, desde que o representado tenha conscientemente contribuído para fundar a confiança do terceiro";
XX. Se um jurista especializado - notário - não detecta qualquer vício de forma na procuração, muito menos se poderá exigir a um cidadão normal que o detecte;
XXI. Se a procuração foi outorgada pelo mandante-proprietário perante notário e foi por aquele remetida ao procurador, conferindo-lhe poderes para outorgar a escritura e receber o preço, existem razões ponderosas que justificam a confiança dos Recorridos na legitimidade do representante;
XXII. Não existe nos autos qualquer prova de que exista uma acção-crime contra o procurador e que este não entregou ao Recorrente-Autor os valores pagos pelos Recorridos;
XXIII. Ainda que a procuração não revista a forma necessária para conferir poderes bastantes para a compra e venda do imóvel sub judice, a nulidade parcial não determina a invalidade de toda a representação, atento o disposto no artigo 285.° do Código Civil de Macau, aplicável ex vi do disposto no artigo 288.° do mesmo diploma;
XXIV. Na procuração conferem-se poderes ao procurador para receber qualquer depósito ou pagamento da venda do imóvel e assinar a respectiva quitação, pelo que, ainda que a parte que diz respeito à outorga da escritura pública de compra e venda fôsse inválida, a conferência dos demais poderes manter-se-á válida e eficaz, com o que o acto praticado pelo mandatário do Recorrente-Autor produz efeitos na esfera jurídica deste, nos termos do artigo 1083.° e ss. do Código Civil;
XXV. Tendo os montantes sido pagos ao procurador, que estava munido de poderes outorgados da forma correcta para o efeito, a decisão não poderá ser outra senão a de restituição do preço pago, caso venha a ser decretada a ineficácia ou invalidade do contrato de compra e venda”; (cfr., fls. 555 a 567).

*

Nada parecendo obstar, passa-se a conhecer.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como provados os factos seguintes:

“a) O Autor era até 13.04.2016 a pessoa inscrita no Registo Predial como proprietário da loja que constitua a fracção autónoma “ER/C” do rés-do-chão “E”, para comércio, do prédio sito em Macau, [Endereço(1)], denominado [Edifício(1)] e descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX-IV, a fls. 459, do Livro BXXK, em regime de propriedade horizontal (inscrito sob o nº XXXX do Livro FXXK e registo nº XXXXXXG); (alínea a) dos factos assentes)
b) O Autor concordou contratar, para efeitos de venda ou rentabilização da fracção, os mediadores imobiliários G庚 (“G1”), H辛 (“H1”) e a sociedade I, em chinês 壬 , sociedade de mediação imobiliária (“I1”), de que aqueles eram sócios e administradores, tendo H1 sido a pessoa por eles encarregue dos actos de mediação imobiliária relativamente à fracção; (alínea b) dos factos assentes)
c) O Autor assinou em 08.02.2016 uma procuração a favor de H, para a venda da fracção, com o teor constante a fls. 42 e 43 que aqui se dá por integralmente reproduzido; (alínea c) dos factos assentes)
d) Em 29.02.2016, H, assinou o contrato promessa de compra e venda na qualidade de representante do Autor, que incide sobre a referida fracção com os 1º, 2º, 3º e 4º Réus; (alínea d) dos factos assentes)
e) Em 07.04.2016, H, assinou, em representação do Autor, a escritura pública de compra e venda e facilidade bancárias com hipoteca constante de fls. 51 a 52; (alínea e) dos factos assentes)
f) Em consequência da Escritura, e para pagamento do preço, foram emitidos e entregues a H, os 5 cheques e cashier order seguintes:
Banco
Beneficiário
Data
Montante
Fls.
[Banco(2)]
H
05.02.2016
HKD800.000,00
57
[Banco(2)]
H
29.02.2016
HKD700.000,00
58
F
H
06.04.2016
HKD850.000,00
59
F
H
07.04.2016
HKD5.810.000,00
60
F
H
07.04.2016
HKD190.000,00
61
(alínea f) dos factos assentes)
g) Foi emitido em 05.02.2016 e sacado a favor de H1 o cheque nº XXXXXX, no valor de HKD800.000,00; (alínea f-1) dos factos assentes)
h) A fracção autónoma em causa foi registada a favor dos compradores, 1º, 2º, 3º e 4º Réus, e a hipoteca a favor do F. (alínea g) dos factos assentes).”; (cfr., fls. 298 a 299 e 458-v a 459-v).

Do direito

3. Como – cremos que – resulta do que se deixou relatado, e essencialmente, atentas as “conclusões” do A., ora recorrente, tem o presente recurso como objecto o “despacho de fls. 454” proferido pelo Exmo. Juiz Relator do Tribunal de Segunda Instância, assim como o deliberado no Acórdão deste mesmo Tribunal, com o qual, se decidiu revogar a sentença recorrida do Tribunal Judicial de Base, julgando-se improcedentes os pedidos pelo A. ora recorrente deduzidos.

–– Sem mais demoras – e acompanhando-se a mesma ordem das conclusões apresentadas – comecemos pelo impugnando “despacho de fls. 454”, (muito não se apresentando necessário consignar para se demonstrar da falta de razão do ora recorrente).

Vejamos.

Insurge-se o recorrente contra o aludido despacho em questão, com o qual se decidiu pela sua “condenação em custas” na sequência do indeferimento do pedido que deduziu da sua notificação postal de peças processuais, alegando ser o mesmo ilegal por “violação do dever de cooperação” e do “direito de acesso aos autos”, (cfr., art. 8°, 117°, n.° 2 e 200°, n.° 1 do C.P.C.M.), afirmando, por outro lado, que houve “deferimento tácito”.

Ora, antes de mais, cabe notar que o ora recorrente pediu a “notificação postal” de três peças processuais – sendo que duas daquelas nem sequer existiam – mostrando-se de ter igualmente presente que o “direito de exame dos autos” na secretaria, (ou o direito de obtenção de cópias ou certidões de quaisquer peças nele incorporadas), ou, ainda, e em geral, o “direito de acesso aos autos”, não se confundem com um (pretenso) “direito a ser notificado por via postal de qualquer elemento dos autos”.

Com efeito, dispõe o art. 177° do C.P.C.M. que:

“1. A citação e a notificação avulsa não podem efectuar-se sem despacho prévio que as ordene.
2. As notificações relativas a processo pendente são consequência do despacho que designe dia para qualquer acto em que devam comparecer determinadas pessoas ou a que as partes tenham o direito de assistir; são também notificados, sem necessidade de ordem expressa, as sentenças e os despachos que a lei mande notificar e todos os outros despachos que possam causar prejuízo às partes.
3. Cumpre ainda à secretaria, sem precedência de despacho, notificar as partes quando, por virtude de disposição legal expressa, possam responder a requerimentos, oferecer provas ou exercer qualquer direito processual que não dependa de prazo a fixar pelo juiz nem de citação prévia”.

Por sua vez, importa ainda reter que, nos termos do art. 102°, n.° 2 do mesmo C.P.C.M.: “Os requerimentos, as alegações e os documentos apresentados por qualquer das partes devem ser igualmente acompanhados de tantas cópias quantos os duplicados previstos no número anterior; estas cópias são entregues à parte contrária com a primeira notificação subsequente à sua apresentação”; (sub. nosso).

Dest’arte, razoável parece de concluir que não tem por isso a “parte” um “direito a requerer notificações postais avulsas em processo pendente”, sendo que tal notificação será realizada nos termos do comando ínsito no transcrito art. 102°, n.° 2, in fine, ou seja, com o primeiro despacho subsequente que vier a ser proferido no processo cuja notificação é imposta por lei ou por determinação do juiz, (e que, no caso, foi o Acórdão).

Sendo o que (efectivamente) sucedeu, apenas com uma muito fértil imaginação se consegue ver, e daí extrair, um alegado “deferimento tácito” do requerimento apresentado, quando em causa tão só estava a mera observância do estatuído no dito art. 102°, n.° 2, in fine.

Assim, visto está que improcedentes são os argumentos do A., ora recorrente no que toca ao aludido “despacho de fls. 454”.

–– Passemos agora para o que pelo recorrente é denominado de “vícios processuais do Acórdão recorrido”, começando-se pela apontada “omissão de pronúncia” por conta do pagamento parcial de HKD$800.000,00 feito pelos recorridos em momento anterior à procuração.

Pois bem, se bem ajuizamos, cremos que, concretamente, sobre o “ponto em questão”, não se pode olvidar que em processo com a natureza que agora nos ocupa, o Tribunal não pode ordenar uma suposta, (qualquer), “restituição” de HKD$800.000,00, quando tal nem sequer foi objecto de qualquer pedido…

Na verdade, e como cremos que sabido é, considera-se que a sentença padece do vício de “omissão de pronúncia” quando a mesma “(…) não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer, por força do art° 563.°, n.° 2, do C.P.C.M.”, (cfr., v.g., Antunes Varela in, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 690), certo sendo que por questão entendem-se “(…) todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes”, (cfr., v.g., A. Varela in, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, Ano 122, pág. 112), valendo a pena notar também que “A obrigatoriedade de o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não significa que o juiz tenha, necessariamente, de apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para fundamentarem a resolução de uma questão”, (cfr., v.g., Viriato de Lima in, “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., pág. 536), sendo, exactamente este o entendimento deste Tribunal de Última Instância que considera que “só a omissão de pronúncia sobre questões, e não sobre os fundamentos, considerações ou razões deduzidas pelas partes, que o juiz tem a obrigação de conhecer determina a nulidade da sentença”; (cfr., v.g., os Acs. de 20.02.2019, Proc. n.° 102/2018, de 11.12.2019, Proc. n.° 21/2016 e de 23.02.2022, Proc. n.° 109/2019).

Ora, tendo presente o que se deixou exposto, não se alcança como imputar (e muito menos dar-se como verificado) tal “vício”, não se vislumbrando nenhuma pretensão do A., ora recorrente, (seja da sua petição inicial, seja das suas contra-alegações de recurso para o Tribunal de Segunda Instância), que não tenha sido objecto de cabal e clara resposta.

Assim, e não nos parecendo que fez o ora recorrente (qualquer) pedido a este respeito, sendo, desta forma, uma “questão (absolutamente) nova”, não pode – seriamente – pretender que o Tribunal retirasse presunções de certos factos sem que fosse concretamente apurada a matéria relevante para um pedido inexistente…

No que toca às restantes “questões” pelo recorrente referidas nas “alíneas C a F” das suas conclusões, cremos que age o recorrente como se o que estivesse (efectivamente) em causa nos presente autos fosse algo bem diferente do que (efectivamente) está em discussão…

Passa-se a (tentar) explicitar o que se deixou consignado.

Vejamos.

No despacho de fls. 397 dos autos, o Exmo. Juiz Relator do Tribunal de Segunda Instância limitou-se a considerar (e consignar) que, em sua opinião, indiciado estava o “abuso de direito” do A., ora aqui recorrente, notando, nomeadamente, que: “todo o contexto em que estão inseridas as questões suscitadas no presente recurso e na resposta ao recurso e tendo em conta a atitude demonstrada pelo Autor nos seus articulados e ao longo de toda a tramitação processual dos autos”, atendendo ao “exercício, para mim indevido, do direito à acção com vista à anulação de um negócio jurídico praticado pelo seu representante voluntário com fundamento nos alegados vícios formais, de forma alguma imputáveis aos Réus, da procuração por ele outorgada a favor desse mesmo representante voluntário, de modo a procurar reaver o imóvel transmitido aos 1.º a 4.º Réus mediante o contrato de compra e venda titulado pela escritura pública assinada pelo mesmo representante voluntário no uso dos poderes que lhe foram conferidos pelo Autor mediante aquela procuração”.

E, em – perfeita – obediência ao “princípio do contraditório” consagrado no art. 3° do C.P.C.M., do assim consignado foi dado conhecimento às partes para, querendo, se pronunciarem como por bem entendessem quanto a essa questão.

Nesta conformidade, adequado se nos mostra de referir que o dito “despacho” (de fls. 397), constitui um “despacho de mero expediente”, com o mesmo se visando apenas assegurar a observância do aludido princípio do contraditório nos termos do art. 3°, n.° 3, do C.P.C.M., sendo também um despacho que se destina “a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes; (…)”; (cfr., art. 106°, n.° 4 do mesmo Código).

Porém, e em todo o caso, importa também referir que se o ora recorrente se sentisse (efectivamente) “prejudicado” com o aludido despacho, (e supondo que não se tratava de um despacho de mero expediente), então – e oportunamente – deveria ter reclamado para a Conferência, (cfr., art. 620° do C.P.C.M.), ao invés de arguir a sua nulidade.

E, de resto, e seja como for, de olvidar não é, igualmente, que não havendo qualquer decisão sobre uma “questão relativa ao conflito de interesses entre as partes”, possível não é que o mesmo padeça de um “vício” próprio e relativo a “decisões judiciais”, como é o caso do vício previsto no 571°, n.° 1, al. b) do C.P.C.M., não se vislumbrando também qualquer “nulidade” prevista no art. 147° do C.P.C.M., pois que o Tribunal ao assegurar o contraditório das partes, visa, precisamente, evitar o cometimento de alguma nulidade…

Não existe, assim, qualquer “omissão de pronúncia” no Acórdão que, a final, veio a ser proferido pelo Tribunal de Segunda Instância (por não conhecimento expresso de uma alegada – mas inexistente – “nulidade” de um despacho de mero expediente que se limitou a assegurar o contraditório das partes), tão pouco se vislumbrando qualquer “nulidade” por “omissão de pronúncia” quanto à nulidade arguida do “despacho de fls. 397 dos autos”, (por, como refere o recorrente, não se ter referido ao “abuso de direito”, nem invocado o “art. 326° do C.C.M.).

Como se referiu, em causa está um “despacho de mero expediente”, e o recorrente alcançou e percebeu, perfeitamente, todo o seu teor, sendo o que se extrai, (cabalmente e sem margem para dúvidas), da sua “pronúncia” que incide praticamente na sua totalidade sobre a questão do “abuso de direito”.

Ociosas se nos apresentando mais alongadas considerações sobre a questão, continuemos.

Sustenta ainda o recorrente que o Tribunal recorrido violou o contraditório ao lhe negar o seu “direito de defesa” por via de apresentação de prova, (“que não lhe foi concedido pelo despacho de fls. 397”), tendo, caso assim não se considere, incorrido em (nova) nulidade por “omissão de pronúncia” quanto a essa questão.

Ora, com todo o respeito devido, aqui, cremos que se trata de uma, (ou melhor, mais uma), clara “falsa questão”, com o objectivo de se insinuar “factos novos” que teriam ficado por apurar, e que supostamente obstariam à decisão tomada pelo Tribunal de Segunda Instância.

Com efeito, e refira-se, aliás, que mal se percebe que venha o recorrente atacar o Acórdão recorrido com base numa “violação do contraditório” quando entende que tal violação resulta do despacho de fls. 397 dos autos, (“ter-lhe-ia sido negado o direito de defesa por via de apresentação prova (sic), o que não lhe foi concedido pelo despacho de fls. 397” – ponto 41 das alegações de recurso), certo sendo porém que, nem sequer reclamou para a Conferência de tal despacho nos termos do art. 620° do C.P.C.M.…

Em todo o caso, e como de forma clara resulta daquele “despacho de fls. 397”, em causa estava, tão só e apenas, uma “questão de direito”, em face dos factos já apurados nos autos, não sendo por isso útil ou necessária a realização de qualquer prova sobre o que quer que fosse.

Na verdade, vale a pena reter, o recorrente, convidado como foi a pronunciar-se sobre uma “questão de direito”, podia defender, querendo, a sua correcção ou não, e, em recurso, sustentar até que a decisão proferida padecia de erro na interpretação e aplicação da lei.

Porém, adequado já não se mostra de considerar que possa defender que lhe deveria ter sido dada a oportunidade de apresentar “novos factos” e de “fazer prova” sobre esses novos factos, porque, tal extravasa, manifestamente, o objecto sobre o qual incidiu o despacho de fls. 397 dos autos.

Dest’arte, e como se acabou de ver, não há assim nem “violação do contraditório” nem “omissão de pronúncia” (sobre essa questão), sendo de se avançar para o que realmente interessa na presente lide recursória.

Nesta conformidade, vejamos.

Atenta a factualidade provada, adequado se mostra de realçar (e recordar) o que segue.

In casu, dúvidas não existem de que o recorrente, de forma voluntária e conscientemente, outorgou, no dia 08.02.2016, a “procuração” junta aos autos a favor H1 no âmbito do contrato de mediação imobiliária que celebrou com os mediadores imobiliários G, o já referido H1 e ainda a sociedade “I”, vindo o mencionado H1 a ser a pessoa encarregue dos actos de mediação imobiliária relativamente à fracção identificada nos autos; (cfr., “alíneas b) e c)” dos factos assentes atrás transcritos).

Por sua vez, claro se apresenta também que a celebração do “contrato de mediação imobiliária” e a “outorga da procuração” estavam (directamente) relacionadas com a “intenção do recorrente de vender a dita fracção”, (o que, resulta, aliás, cristalinamente, do que o próprio alega nos art°s 3° a 6° da sua petição inicial).

Por outro lado, adquirido cremos que resulta, igualmente, (sendo evidenciado pela própria alegação do recorrente), que a “relação de mediação imobiliária” teve o seu início em momento anterior à outorga da procuração, (cfr., os citados art°s 3° e 4° da petição inicial, onde se consignou: “H1, residente em Hong Kong, informou o Autor, por volta de finais de Janeiro, de que havia um interessado em comprar a Fracção, que concretizaria a aquisição até 15-Maio-2016”, e que, “Contexto em que solicitou uma procuração para se apresentar perante os compradores como representante autorizado do Autor e conduzir a negociação …”).

Resulta, assim, (claramente), que o próprio recorrente tem perfeito conhecimento que a “procuração” foi solicitada em “finais de Janeiro de 2016” porque havia um interessado em comprar a fracção, interessado esse que concretizaria tal aquisição até “15.05.2016”.

E, então, cabe dizer que, da “lógica”, “razoabilidade”, e “normalidade das coisas” referidas na sequência desta “descrição”, (igualmente vertida na sua petição inicial), tão só desafiando todas as regras da experiência comum é que se pode conceber que poderia o recorrente (eventualmente) considerar que a aludida procuração tinha sido solicitada para “outro fim” que não para a “celebração do negócio de compra e venda”.

Porém – e muito infelizmente – cabe também notar que o ora recorrente insiste em alegar como se não soubesse da “finalidade” da procuração, pedindo a “declaração de nulidade da procuração por vício de forma”, (já que a mesma não observa o disposto no art. 255°, n.° 2 do C.C.M. conjugado com o art. 866° do mesmo Código e art°s 94° e 128° do Código do Notariado – cfr., art°s 70° a 75° da sua petição inicial – sendo que as Instâncias recorridas entenderam que, não obstante a procuração ter sido outorgada no estrangeiro, impunha-se a sua regulação pelas normas jurídicas da R.A.E.M. em face do disposto no art. 38° do dito C.C.M.).

Assim, e, em nossa opinião, para o correcto exame das questões que se colocam, necessário é analisar a “posição pelo recorrente assumida nos autos”, notando-se, desde logo, que ao longo da sua petição inicial não alegou qualquer “discordância” em relação ao negócio celebrado pelo seu alegado “falso procurador”, H1, nem tão pouco alegou que foi enganado por aquele quanto aos termos do negócio concluído…

Na verdade, procurando evitar (ao máximo) uma clara tomada de posição quanto aos “termos do negócio”, limita-se a efectuar considerações vagas e imprecisas sobre o facto de ter ficado “(…) a aguardar pelo adiantamento das negociações e marcação de data possível de outorga da escritura pública de compra e venda para (…) viajar para Macau”, (cfr., art. 6° da petição inicial), que o tal H1 “foi informando o Autor de que a escritura só poderia ser outorgada por volta de 10-Jun-2016 (Doc. N.° 11)”, (cfr., art. 7° da petição inicial), e que “Entretanto, J – crê-se que indica tal nome por lapso quando se refere a H1 – informou o Autor de que a venda estava agendada para os finais de Junho, pelo que o Autor se preparou para vir a Macau e Hong Kong, onde tem outros interesses, para, após reunir as condições para o efeito, concluir os termos contratuais e outorgar a escritura de compra e venda”; (cfr., art. 9° da petição inicial).

Ora, como parece evidente e – cremos nós – resulta das “regras da experiência”, não é possível marcar a data para a celebração de uma escritura pública de compra e venda sem que antes esteja definido e acordado o “conteúdo” e “cláusulas” do respectivo contrato.

E, então, daqui só se pode retirar que, para o próprio recorrente, em causa nunca esteve o “conteúdo do negócio” concluído pelo aludido H1 por sua conta e em seu nome, mostrando-se, apenas, contrário ao facto de ter sido celebrada a escritura pública de compra e venda “sem a sua presença”, pois que, no seu entender, o referido H1, não teria os necessários poderes de representação.

Dest’arte, é deveras, (e, no mínimo bastante) impressionante que, tendo o recorrente celebrado um “contrato de mediação imobiliária” com o fim de vender o seu imóvel, outorgado uma “procuração” para tal, (ou pelo menos para facilitar essa finalidade), e tendo ficado, simplesmente, a aguardar a marcação de data para a outorga da escritura pública de compra e venda, (o que implica necessariamente um acordo quanto ao conteúdo do negócio), venha, agora, defender, que o negócio lhe é “inoponível” porque o seu suposto “representante” não tinha poderes de representação por conta de um “vício de forma” na procuração, e, como tal, o negócio por aquele celebrado em seu nome não o vincularia atento o teor do art. 261°, n.° 1 do C.C.M., defendendo ainda – incompreensivelmente – que, afinal, é apenas “comproprietário” do imóvel, e que haveria um misterioso comproprietário que não só não consta do registo predial como tão-pouco havia sido tido ou achado em todo este processo negocial de venda da fracção autónoma…

Pelo que, e como se referiu, e vale a pena repetir, adequado (e imprescindível) se mostra de atentar na “conduta do recorrente”, (e, obviamente, nos demais factos dados como assentes nos autos).

Ora, como se sabe, é geralmente aceite que “A procuração é um negócio incompleto. É só um trecho do negócio global. O seu sentido só se apreende uma vez realizada a integração nesse negócio global. (…)
Tal como a cessão, a procuração não é um negócio abstracto. Se for passada uma procuração sem mais, essa procuração estaria viciada por falta de causa. Assim deveria ser declarado em acção em que eventualmente se discutisse a sua validade. (…)
A lei é afinal expressa ao referir esta dependência da procuração no que respeita à relação fundamental.
O art. 265/1 – em Macau, art. 258°, n.° 1, do C.C.M. – determina a extinção da procuração quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base. A procuração não é pois um negócio abstracto.
Mais categórico ainda é o art. 264/1 – em Macau, art. 257°, n.° 1 –, relativo à substituição do procurador, que fala na «relação jurídica que a determina» (a procuração).
Portanto, a procuração tem sempre de se combinar com uma relação subjacente. Mas não perde a sua autonomia. Não deixa nomeadamente de ser um negócio unilateral. Pode é acontecer ser expressa por uma cláusula, contendo um negócio unilateral, compreendida no texto dum negócio mais vasto”; (cfr., v.g., Oliveira Ascensão in, “Direito Civil – Teoria Geral”, Vol. II, “Acções e Factos jurídicos”, pág. 237 e 238).

No mesmo sentido, afirma Pedro Pais de Vasconcelos que “A procuração, não sendo um negócio abstracto, não é também um negócio completo. O mandato é frequentemente a relação subjacente à outorga de poderes representativos, mas não é necessariamente a única. Outros actos e outras relações jurídicas podem fundar a outorga de poderes de representação e constituir a respectiva relação subjacente”; (in “Contratos Atípicos”, pág. 302 e 303).

Ora, a relação subjacente à procuração outorgada pelo recorrente é, (como já se viu), um “contrato de mediação imobiliária” celebrado com os mediadores imobiliários G, H1 e ainda a sociedade “I”, vindo o referido H1 a ser a pessoa encarregue dos actos de mediação imobiliária relativamente à fracção já identificada nos autos; (cfr., alíneas b) e c) dos factos assentes).

Aliás, o próprio recorrente ao defender a aplicabilidade do regime legal material da R.A.E.M. para a procuração por si outorgada sustenta que o alegado procurador era um mediador imobiliário, sendo por isso um profissional para efeitos do art. 38°, n.° 3 do C.C.M., (cfr., concl. E, a fls. 382), reconhecendo, assim, a “relevância da relação subjacente à procuração”, ou seja, da “mediação imobiliária”.

Na R.A.E.M., o “contrato de mediação” é legalmente típico, conforme se retira da sua previsão e regulamentação legal nos art°s 708° a 719° do C. Comercial, sendo a actividade do “mediador” a ser definida nos seguintes termos: “É considerado mediador quem põe em contacto dois ou mais interessados para a celebração de um negócio, sem estar ligado a qualquer dos interessados por uma relação jurídica de colaboração, de dependência ou de representação”.

Por outro lado, note-se que parece ter sido intenção do legislador da R.A.E.M. resolver uma querela doutrinária existente em Portugal com referência aos “elementos caracterizadores” do contrato de mediação, ao determinar que o mediador deve agir com “independência” e “imparcialidade” (“sem estar ligado a qualquer dos interessados por uma relação jurídica de colaboração, de dependência ou de representação”).

Com efeito, no ordenamento jurídico português, onde o contrato de mediação não é legalmente típico, há autores que entendem que o contrato de mediação é o “contrato pelo qual uma parte – o mediador – se vincula para com a outra – o comitente ou solicitante – a, de modo independente e mediante retribuição, preparar e estabelecer uma relação de negociação entre este último e terceiros – os solicitados – com vista à eventual conclusão definitiva de negócio jurídico”, (cfr., v.g., José Engrácia Antunes in, “Direito dos Contratos Comerciais”, 2007, pág. 458), e que, “Na sua actividade de pura aproximação dos futuros (eventuais) contraentes o mediador não está ligado a nenhum deles por uma relação de dependência, actuando, portanto, com neutralidade, característica que explica que a sua remuneração lhe possa ser devida por um ou por ambos e independentemente da execução do contrato promovido”, (cfr., v.g., Carlos Lacerda Barata in, “Sobre o Contrato de Agência”, pág. 110 e 111), posição reiterada pelo mesmo autor ao defender que a mediação é “o contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover, de modo imparcial, a aproximação de duas ou mais pessoas, com vista à celebração de certo negócio, mediante retribuição”; (in “Contrato de Mediação”, Estudos de Direito de Consumo, pág. 192, podendo-se ver, no mesmo sentido, Maria Helena Brito, que sustenta que a mediação “pressupõe uma actividade imparcial”, in “O Contrato de Concessão Comercial”, pág. 116).

Por outra banda, entende Carlos Ferreira de Almeida que “não merece apoio a afirmação de que o mediador não age nem por conta nem no interesse do seu cliente. O interesse deste é óbvio, situando-se até na base do negócio. A actuação por sua conta deriva de o mediador se colocar na posição jurídica em que o cliente estaria se fosse ele a praticar o acto (cfr. supra III), não importando para o caso se este é ou não um acto jurídico. Não se pode por isso compartilhar a ideia generalizada no sentido da neutralidade e imparcialidade do mediador. Perante o cliente, o mediador assume uma obrigação, que pode ser ou não de garantia de realização do contrato. Perante terceiro, que tenha indicado ou com quem negoceie, não assume obrigação correspondente, mas apenas um dever de lealdade de conteúdo negativo: não prejudicar, evitar conflitos de interesses. Só assim não será se houver dupla mediação, gerada por um só contrato ou por contratos paralelos de procura e oferta de bens da mesma categoria”; (in “Contratos”, Vol. II, pág. 204, podendo-se ver também, Maria de Fátima Ribeiro in, “O contrato de mediação e o direito do mediador à remuneração”, Scientia Iuridica, Tomo LXII, 2013, n.° 331, pág. 78 e segs. e 90 a 92).

Na mesma linha defende Higina Orvalho Castelo que “A difundida (ainda que não de forma unânime) imparcialidade do mediador costuma ser justificada com a invocação do art. 1754 do Código Civil italiano ou de doutrina estrangeira, sobretudo italiana, nunca havendo, no entanto, apelo a dados da prática contratual que permitam confirmá-la, seja a título de estipulação contratual, seja a título de uso do comércio.
Não creio adequado dizer-se que impende sobre o mediador um dever de conduta imparcial ou neutral. Nem da lei (seja da geral, seja da que regula o contrato de mediação imobiliária), nem da jurisprudência, nem dos usos do comércio, podemos extrair uma tal norma”; (in “O contrato de mediação”, pág. 236 e 237).

Havendo, ainda, quem defenda uma posição “intermédia”, (ou pragmática), pois que para António Menezes Cordeiro, sem prejuízo da actuação com independência, deve-se distinguir entre a mediação em sentido amplo e a mediação em sentido técnico ou estrito, segundo as quais: “Em sentido amplo, diz-se mediação o acto ou efeito de aproximar voluntariamente duas ou mais pessoas, de modo a que, entre elas, se estabeleça uma relação de negociação eventualmente conducente à celebração de um contrato definitivo. Em sentido técnico ou estrito, a mediação exige ainda que o mediador não represente nenhuma das partes a aproximar e, ainda, que não esteja ligado a nenhuma delas por vínculos de subordinação”; (in “Do contrato de mediação”, O Direito 139°, 2007, Tomo III, pág. 517).

Ora, sendo clara a intenção do legislador da R.A.E.M. ao caracterizar a actividade de mediação de forma estrita no C. Comercial, não se pode deixar de constatar que a Lei n.° 16/2012 pressupõe a “mediação” em sentido amplo, para aí integrar a “mediação imobiliária”.

Com efeito, a Lei n.° 16/2012, (“Lei da Actividade de Mediação Imobiliária”), define-a como “1) Actividade de mediação imobiliária: a actividade comercial destinada a promover, por conta e no interesse do cliente e mediante contrato de mediação imobiliária, a celebração, por terceiros, dos seguintes negócios jurídicos:
(1) Aquisição ou alienação dos direitos reais sobre bens imóveis;
(2) Arrendamento de bens imóveis;
(3) Aquisição ou alienação de estabelecimentos comerciais ou industriais;
(4) Cessão da posição contratual nos contratos cujo objecto seja um bem imóvel, independentemente da forma assumida”, (sub. nosso, cfr., art. 2°, n.° 1, al. 1) da Lei n.° 16/2012), sendo o “contrato de mediação imobiliária” definido como “Contrato de mediação imobiliária: o contrato de prestação remunerada de serviços, no âmbito de mediação imobiliária, celebrado entre o mediador imobiliário e o cliente, nele se estipulando, designadamente, os direitos e deveres de ambas as partes”; (cfr., art. 2°, n.° 1, al. 2) da mesma Lei n.° 16/2012).

Daqui resulta que a actividade de mediação imobiliária, tal como regulada pela Lei n.° 16/2012, aproxima-se, neste aspecto, de um outro “contrato de cooperação”, entre os quais se incluem os “contratos de distribuição” e de “agência”; (cfr., a este respeito, José Engrácia Antunes in, “Direito dos Contratos Comerciais”, e Maria Helena Brito in, “O Contrato de Concessão Comercial”, págs. 4 a 10).

Isto porque, tendo “em comum o facto de tanto o mediador como o agente se obrigarem, fundamentalmente, a “promover” a celebração de contratos, sendo que também sobre o agente impende o dever de exercer uma actividade material (que não jurídica), consistente na procura de um interessado, no mercado, para a aquisição de determinado bem”, (cfr., v.g., Maria de Fátima Ribeiro in, “O contrato de mediação e o direito do mediador à remuneração”, Scientia Iuridica, Tomo LXII, 2013, n.° 331, pág. 88), a doutrina tradicional costuma distinguir estes contratos (comerciais) através de dois aspectos: “O primeiro tem a ver com a estabilidade do vínculo que une o agente e o principal (cfr. supra), a qual não caracteriza a actividade do mediador. (…)
O contrato de mediação, atípico no nosso ordenamento jurídico, afasta-se do contrato de agência por uma segunda razão: ao contrário do agente que age por conta do principal (cfr. supra), a actividade do mediador é caracterizada pela imparcialidade”; (cfr., v.g., Carlos Lacerda Barata in, “Sobre o Contrato de Agência”, pág. 109 e 110).

Como se viu, não parece ser o caso da actividade de mediação imobiliária, uma vez que esta, de acordo com a lei, implica uma actuação “por conta e no interesse do cliente”, à imagem do que se passa na “agência”.

Por último, refira-se também que a mediação “não comporta tipicamente poderes de representação”, (cfr., v.g., Higina Orvalho Castelo in, ob. cit., pág. 337), posição que é sufragada pela generalidade da doutrina, (por exemplo, Maria de Fátima Ribeiro in, ob. cit., pág. 89; Carlos Lacerda Barata in, “Contrato de mediação”, pág. 219; Pedro Pais de Vasconcelos in, “Direito Comercial”, I, pág. 197), referindo, a esse respeito, António Menezes Cordeiro, que “(…) Já não será uma verdadeira mediação: poderemos falar em mediação imprópria”; (in “O Direito”, n.° 139, 2007, III, pág. 541).

Feitas estas notas sobre a “mediação imobiliária”, voltemos à “situação” que temos em mãos.

Ora, in casu, insurge-se o ora recorrente contra o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância considerando que sendo a procuração em causa regulada pelo Direito da R.A.E.M., (como foi decidido pelas Instâncias), a mesma se devia ter como “nula por vício de forma”, pois que não está em causa um instrumento público ou sequer um documento autenticado por um notário no estrangeiro, mas apenas um documento particular com reconhecimento da sua assinatura.

Perante a situação factual dos autos, não há dúvidas de que é a lei da R.A.E.M., especialmente, o art. 255° do C.C.M. e art. 128° do Código do Notariado, que regula a existência da procuração em causa.

E, como é bom de ver, o art. 128° do Código do Notariado constitui uma regra em contrário da norma do n.° 2 do art. 255° do C.C.M., considerando por exemplo que, uma procuração que envolva poderes de representação para outorgar numa escritura pública de compra e venda pode consistir num simples documento particular com termo de autenticação.

Isso mesmo é afirmado por João Calvão da Silva (indo mais longe e considerando-a uma norma excepcional), a propósito de norma semelhante do Código do Notariado de Portugal e que se pode transpor para o ordenamento jurídico da R.A.E.M. sem prejuízo da maior permissividade do Código português:

“Destarte, o legislador entende que a intervenção do notário assegura a liberdade e a ponderação do dominus e garante o esclarecimento deste acerca do sentido e alcance da procuratio, dispensando, por isso, o formalismo a que esta, de acordo com a regra geral do art. 262.°, n.° 2, do CC teria de obedecer, no caso de negócios representativos para os quais é exigida escritura pública.(52)
Em nossa opinião, percebe-se que a lei prescinda da exigência formal do direito substantivo relativamente à procuração, nos termos do art. 116.°, n.° 1, do CN: o notário é um oficial público(53) incumbido de assegurar um primeiro controlo de legalidade, podendo, enquanto delegatário da fé pública, dar garantias de autenticidade aos actos jurídicos extrajudiciais em que intervém(54).
Mutatis mutandis, na medida em que o notário intervenha, a lei dispensa a observância da regra do art. 262.°, n.° 2, do CC, permitindo que as procurações sejam lavradas, designadamente, por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado, quando o negócio principal esteja sujeito a escritura pública. Na base da norma constante do art. 116.°, n.° 1, do CN está, clara e inequivocamente, a ideia de que o notário garante a ponderação das partes e se certifica da correspondência entre a vontade manifestada e a vontade real destas, assegurando as cautelas subjacentes às exigências formais da lei substantiva”; (in “Procuração – art. 116° do Código do Notariado e artigo 38° do Decreto-Lei n.° 76-A/2006, de 29 de Março”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67, Vol. II, 2007).

Aqui chegados, há que referir que os “documentos autenticados” são “documentos particulares”, pois que como estatuído está, “Os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais”, (cfr., art. 356°, n.° 3 do C.C.M.), sendo de atentar igualmente que, desenvolvendo esta noção, preceitua também o art. 155° do Código do Notariado que “Os documentos particulares adquirem a natureza de documentos autenticados desde que as partes confirmem, perante o notário, que conhecem o seu conteúdo e que este exprime a sua vontade”.

Ora, essa “confirmação perante o notário” é feita através da elaboração por este de um “termo de autenticação”, o qual deve observar as seguintes formalidades de acordo com o art. 157° do dito Código do Notariado:

“1. O termo de autenticação, além de satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 1 do artigo 66.º, deve conter ainda os seguintes elementos:
a) A declaração das partes de que já leram o documento ou de que estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo, e que este exprime a sua vontade;
b) A ressalva das emendas, entrelinhas, rasuras, palavras eliminadas ou traços contidos no documento e que nele não estejam devidamente ressalvados.
2. Se o documento que se pretende autenticar estiver assinado a rogo, do termo devem constar, para além das menções referidas no número anterior, a identificação do rogado e a menção de que o rogante, que nele deve apor a sua impressão digital, confirmou o rogo no acto de autenticação”.

Tendo presentes estas regras, nota-se que na procuração dos autos parece constar que “o mandante pelo presente indica aceitação do conteúdo da procuração acima”, (cfr., art. 25° da contestação subscrita pelo “F”), o que pareceria indiciar a existência de um “termo de autenticação”.

No entanto, parece que tal não basta para efeitos de autenticação, atendendo às regras previstas no art. 66° e 157° do Código do Notariado, não se mostrando tal acto de autenticação lavrado pelo próprio notário com observância de todos os requisitos da lei notarial, não se podendo reconduzir esse incumprimento a uma mera irregularidade.

Daí que se nos afigure que a procuração traduz antes um documento particular com reconhecimento da assinatura do recorrente, não cumprindo assim com o disposto no art. 128° do Código do Notariado, o que implica a sua “nulidade” nos termos do art. 212° do C.C.M..

E, sendo a procuração nula, inexistem, originariamente, os poderes representativos; (cfr., v.g., Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde in, “A Responsabilidade do «Representado» na Representação Tolerada – Um problema de representação sem poderes”, pág. 18).

Contudo, a “conclusão” a que se chegou, não se mostra relevante para a solução a adoptar na presente lide recursória.

De facto, não se pode olvidar que o Ordenamento Jurídico da R.A.E.M. prevê normas de “tutela da aparência”, ou de “tutela da confiança”, que permitem que em certas situações, e não obstante a inexistência de poderes representativos, o negócio celebrado pelo falso procurador seja oponível ao “representado”.

Vejamos, então, se aqui são aplicáveis à situação dos presentes autos.

Pois bem, como atrás se deixou referido, no âmbito do contrato de mediação imobiliária pelo recorrente celebrado com os mediadores imobiliários G, H1 e ainda a sociedade “I”, outorgou o mesmo (recorrente) uma procuração a favor do mediador H1 para a venda da fracção identificada nos autos; (tudo conforme consta das alíneas b) e c) dos factos assentes).

E, da existência deste “acto” através do qual o recorrente pretendeu conferir “poderes representativos” ao seu mediador imobiliário H1, resulta, claramente, que as partes intervenientes no negócio de compra e venda – a começar pelo mediador-procurador e a culminar nos ora recorridos – agiram “de boa fé, convencidas de que o “procurador tinha os poderes que se arrogava”, pois os mesmos eram atestados por uma procuração comprovadamente assinada pelo recorrente, (e cuja suficiência foi devidamente atestada por Notário aquando da celebração da escritura pública de compra e venda).

Porém, não obstante isso, bate-se o recorrente pela nulidade da procuração outorgada por “vício de forma”, entendendo que dessa nulidade decorre, consequentemente, que o negócio celebrado pelo referido mediador imobiliário não o vincula, sendo-lhe ineficaz ao abrigo do art. 261°, n.° 1 do C.C.M., porquanto tal se consubstanciaria numa “representação sem poderes”.

Ora, não se mostra de acompanhar o assim entendido, pois que cremos que o art. 261° do C.C.M. não se aplica (directamente) ao caso dos autos.

Como se disse, a “procuração” tem como relação subjacente um contrato de mediação imobiliária, que consiste numa actividade marcadamente comercial.

Tendo isto presente, e sendo o contrato de mediação um contrato comercial legalmente típico, não se pode negar que as partes introduziram um elemento atípico na sua execução e que se traduz na outorga de poderes representativos a um dos mediadores, (H1), para agir em nome do seu cliente na celebração da escritura pública de compra e venda da fracção.

Deste modo, parece-nos claro que estamos perante um “contrato” que se vem a revelar como um “contrato atípico misto”; (cfr., v.g., Pedro Pais de Vasconcelos in, “Contratos Atípicos”, pág. 211 a 230).

Na verdade, constata-se que, pelo menos no que diz respeito à execução daquele contrato de mediação imobiliária, as partes introduziram uma modificação ao tipo contratual em questão ao acordarem que para a execução desse contrato de mediação seria relevante a outorga de uma procuração do cliente a favor do mediador; (cfr., art°s 4° e 5° da petição inicial, não havendo dúvidas de que a procuração veio a ser outorgada).

Tratando-se, assim, de uma “medição imprópria” ou “mista”, conforme definida por António Menezes Cordeiro:

“Anote-se, ainda, que a mediação mista pode ser uma actuação interessada, no sentido do solicitador ao qual, inclusive, o mediador poderá estar ligado, institucionalmente ou por contrato, incluindo, até, poderes de representação. Já não será uma verdadeira mediação: poderemos falar em mediação imprópria”; (in ob. cit., pág. 541)

Coloca-se, assim, a questão de saber qual a disciplina legal para regular esse elemento atípico, como é o caso de uma procuração que tem por relação subjacente um contrato de mediação imobiliária, nomeadamente em face da nulidade da procuração.

Há quem entenda a questão nos seguintes termos: “Como sabemos, o contrato de mediação, por definição, não autoriza o mediador a intervir no contrato desejado em representação do cliente. A verificar-se semelhante autorização estaremos no âmbito de um mandato com poderes de representação ou de um contrato atípico com notas de mediação e mandato representativo”; (cfr., v.g., Higina Orvalho Castelo in, ob. cit., pág. 402).

Porém, e como refere Pedro Pais de Vasconcelos, não se pode olvidar que: “Sempre que um contrato corresponda completamente à “noção” definitória do tipo legal – contrato francamente típico –, o processo subsuntivo é suficiente e não suscita, em princípio, dificuldades. Quando, todavia, o contrato concretamente celebrado contenha desvios em relação à definição da lei, já a subsunção será inadequada e insuficiente para a qualificação.
Em bom rigor, o procedimento subsuntivo deveria expulsar para fora dos “limes” bem determinado do conceito os contratos que não fossem francamente típicos. O seu regime, para além do estipulado pelas partes teria de ser encontrado nas regras gerais e na analogia ao tipo mais próximo. O recurso à analogia ao tipo mais próximo exige contudo critérios materiais e de intensidade sem os quais se estará a aplicar afinal o modelo regulativo do tipo que subsuntivamente se acabou de excluir. Os critérios da analogia só podem ser encontrados através da leitura tipológica das “noções” legais dos tipos contratuais e do processo tipológico”; (in “Contratos Atípicos”, pág. 178 e 179).

Dest’arte, em primeiro lugar, parece-nos que forçoso é concluir que a existência da procuração não transforma o contrato de mediação imobiliária pretendido pelas partes num “mandato com poderes de representação”, pelo simples facto de que não foi esse contrato que as partes pretenderam celebrar.

E, nesta conformidade, cabe referir que para efeitos de aplicação da analogia com o caso mais próximo, o “contrato de mediação imobiliária” aproxima-se do “contrato de agência”, na medida em que o mediador actua “por conta e no interesse do cliente”.

Aliás, como observa António Menezes Cordeiro, “Na prática, sucede que a mediação e a agência podem combinar-se”; (in ob. cit., pág. 546, com referência ao Ac. do S.T.J. de Portugal de 09.12.1993, B.M.J. 432°-332).

Sendo igualmente de notar que para alguns autores, o “contrato de agência” e o “contrato de mediação”, (da qual a imobiliária seria uma subespécie), inserem-se na categoria dos “contratos de cooperação e distribuição”, (cfr., v.g., José Engrácia Antunes in, “Direito dos Contratos Comerciais”, 2007, e Maria Helena Brito in, “O Contrato de Concessão Comercial”), desenvolvendo-se no âmbito de actividades vincadamente comerciais.

Assim, e considerando na sua totalidade as similitudes entre os “contratos de mediação” e “agência” nos termos sobreditos, e estando em causa contratos de natureza comercial, parece-nos que se impõe uma solução idêntica para o caso de (atipicamente) serem atribuídos (aparentes) poderes de representação ao mediador, sendo aplicáveis por analogia as normas previstas nos art°s 643° e 644° do C. Comercial, atenta à natureza comercial da relação subjacente, (analogia essa que sempre seria permitida nos termos do art. 4° do mesmo Código).

A idêntica solução se chegaria através do método da aplicação de uma combinação de normas jurídicas, conforme proposto tanto pela “teoria da absorção” como pela “teoria da combinação”, (cfr., v.g., Pedro Pais de Vasconcelos in, “Contratos Atípicos”, pág. 230 a 236, em especial nota 467 na pág. 231), afigurando-se de notar também que caso se assuma que tanto o “contrato de mediação imobiliária” como o “contrato de agência” se reconduzem à categoria dos “contratos de cooperação”, a referida analogia é igualmente defendida expressamente por Pedro de Albuquerque:

“X – Os termos do binómio relação-base/procuração não são, também, do ponto de vista da respectiva sorte, independentes. (…)
O facto de a procuração não ser independente relativamente ao negócio gestório não impede a existência de algumas situações nas quais o representado possa permanecer vinculado pela actuação do putativo representante apesar de faltar uma relação-base, de esta ter sido ultrapassada, já não existir ou se mostrar inválida, mesmo fora do âmbito de aplicação imediata dos artigos 266° e 269° do Código Civil.
Parece de admitir a aplicação analógica aos contratos de cooperação, ou mesmo de gestão, de uma representação aparente nos moldes e com os requisitos estabelecidos no artigo 23° do Decreto-Lei n.° 178/86 para o contrato de agência.
A tais pressupostos deverá, todavia, juntar-se a necessidade de a criação da situação aparente se mostrar consciente, como forma de se manter a necessária harmonia valorativa, no contexto do direito civil, com a exigência de consciência da declaração constante do artigo 246° do Código Civil”; (in “A representação voluntária em Direito Civil (Breve Síntese de um Ensaio de Reconstrução Dogmática)”, Código Civil – Livro do Cinquentenário, Vol. II, pág. 623).

Em suma, está em causa a (potencial) aplicabilidade dos art°s 643°, (e, quando muito por remissão, do art. 261° do C.C.M.), e 644° do referido C. Comercial.

Ora, como se sabe, a procuração “É um negócio unilateral que se completa com a declaração negocial do constituinte. Não carece de aceitação. A declaração negocial que constitui a procuração é receptícia ou recipienda: destina-se a ser conhecida por destinatários. Estes destinatários são, por um lado, o procurador a quem são conferidos os poderes de representação e, por outro, as pessoas perante quem os poderes vão ser exercidos. Em ambos os casos pode haver unidade ou pluralidade: a procuração pode constituir mais de um procurador e os poderes constituídos podem ser exercidos perante uma ou mais pessoas. (…)
A procuração é outorgada através de uma declaração de vontade. Na maior parte dos casos esta declaração é expressa. O constituinte declara então constituir seu procurador alguém, que identifica, e a quem declara conferir poderes de representação para, em seu nome, praticar certos actos ou celebrar certos negócios. (…)
O âmbito dos poderes conferidos pode ser mais amplo ou mais restrito. Desde a prática de certo acto até à administração geral, a autonomia do constituinte permite a maior liberdade. Por vezes os limites materiais do poder de representação ficam expressos no próprio documento em que é titulada, o que permite o seu conhecimento pela outra parte (interlocutor, notário e, em geral, os terceiros a quem seja exibida). (…)”; (cfr., v.g., Pedro Pais de Vasconcelos in, “Teoria Geral do Direito Civil”, 2012, 7ª ed., pág. 296 e 297).

Assim sendo, constata-se que o problema dos autos apresenta contornos bem menos duvidosos do que as situações tipicamente descritas pela doutrina como as de “procuração aparente” ou “tolerada”, isto é, “quando o representado tolera a conduta do representante, dele conhecida, e essa tolerância, segundo a boa fé e considerando os usos do tráfico, pode ser interpretada pela contraparte do negócio no sentido de que o representante recebeu procuração do representado para agir por ele”; (cfr., v.g., Paulo Mota Pinto in, “Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico”, pág. 115).

E, nesta conformidade, não obstante a “nulidade (formal) da procuração”, é evidente que a mesma demonstra, cabalmente, que, materialmente, houve uma (clara) “declaração” por parte do ora recorrente, destinada ao seu representante H1 (e às “pessoas perante quem os poderes vão ser exercidos”), onde se reconhecia todos os efeitos dos actos praticados por este como se tivessem sido realizados por si.

Por outras palavras, o facto de a procuração ser – formalmente – nula, não implica a “inexistência da declaração” pelo recorrente – efectivamente – feita naquele documento, notando-se, aliás, que, o próprio recorrente assim o reconhece no “ponto 283 das suas alegações de recurso” ao afirmar: “O autor é o declarante na procuração, os réus são os declaratórios”.

Com efeito, e como (magistralmente) afirmou João Baptista Machado: “(…) a toda a conduta (conduta significativa, comunicativa) é inerente uma «responsabilidade» - no sentido de um «responder» pelas pretensões de verdade, de rectitude ou de autenticidade inerentes à mensagem que essa conduta transmite. Dir-se-ia que é este desde logo o imposto que temos de pagar por pertencermos ao universo das pessoas de juízo, das pessoas com credibilidade. Desta «autovinculação» inerente à nossa conduta comunicativa derivam ao mesmo tempo regras de conduta básicas, também postuladas pelas exigências elementares de uma ordem de convivência e de interacção, que o próprio direito não pode deixar de tutelar, já que sem a sua observância nem essa ordem de convivência nem o direito seriam possíveis.
Donde poderíamos já concluir que as próprias «declarações de ciência» ou o simples dictum (que não chegue a ser um promissum) podem vincular, quer porque envolvem uma responsabilização pela pretensão de verdade que lhes é inerente, quer pelos efeitos que podem ter sobre a conduta dos outros que acreditam em tais declarações. E o que se diz das declarações de ciência pode dizer-se, mutatis mutandis, dos actos de comunicação (quer sejam actos verbalizados, quer sejam exteriorizações não verbais equivalentes) mediante os quais alguém se auto-apresenta (mensagens publicitárias, representação de papéis institucionalizados, condutas que induzam a confiar na coerência ou «identidade pessoal» do agente), pois a tais condutas inere a pretensão de autenticidade e, logo, de coerência com a imagem exteriormente projectada.
Do exposto, podemos também concluir que o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem. Assim tem de ser, pois, como vimos, poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens”; (in “Tutela da Confiança e «Venire Contra Factum Proprium», Obra Dispersa”, Vol. I, pág. 351 e 352).

Na verdade, razoáveis e adequadas se nos mostram as seguintes considerações tecidas a propósito do “fundamento da tutela de terceiros” em caso de “representação aparente”, no sentido de que é “de admitir que o representado não possa prevalecer-se da ineficácia relativa dos actos celebrados pelo falsus procurator, pelo menos se essa invocação traduzir um abuso do direito, nos termos do art. 334° do Código Civil (…) É claro, porém, que para se impedir o representado de invocar a ineficácia em relação a si dos actos do representante sem poderes, a contraparte do procurador no negócio representativo deverá estar de boa fé, ou seja, terá de ignorar sem culpa a falta de legitimidade – qualquer culpa sua fará com que não mereça ser protegida.
Por outro lado, a sua actuação deverá ter sido causada pela situação de aparência em que depositou a confiança. (…)
Que o representado fique então ligado ao negócio não parece desrazoável, já que criou conscientemente uma situação de aparência. É justo que suporte as consequências da sua própria actuação, com conhecimento da actividade do representante, não se podendo agora pôr em contradição com essa sua actuação. Seria isso um inadmissível venire contra factum proprium (não desconhecendo, contudo, possíveis diferenças entre a “representação aparente”, normalmente referida como um caso de tutela da aparência, e a proibição do comportamento contraditório, em que pode faltar de todo uma situação de aparência)”; (cfr., v.g., Paulo Mota Pinto in, “Aparência de Poderes de Representação e Tutela de Terceiros, Reflexão a propósito do artigo 23° do Decreto-Lei n.° 178/86, de 3 de Junho”, em B.F.D.U.C., Vol. LXIX, 1993, pág. 635 a 637).

E, se assim é para a generalidade dos casos em que estão em causa acções ou omissões do “representado” das quais se deduz a aceitação ou tolerância com o comportamento do “falso representante”, tanto mais será no caso de um “representado” que expressamente pretendeu e concedeu – efectivamente – poderes representativos ao seu “representante” através da outorga de uma procuração para celebração de um negócio jurídico (concreto), e, depois, vem defender a ineficácia negócio celebrado por esse “representante” por conta de um “vício de forma” da suposta “procuração”, consubstanciando tal actuação um evidente “venire contra factum proprium”; (como também, e bem, o entendeu o Tribunal de Segunda Instância).

É que “A vinculação “à palavra dada” é, aliás, como que um pré-dado, que repousa fundo na consciência social. A consagração normativa da proibição de comportamentos que a contrariem, verificadas certas circunstâncias – em especial, danos suportados por quem nela acreditou, tendo sérias razões para o fazer, conduzindo-se em conformidade, a partir daí, a par da sua irremovibilidade por outros meios que ao caso convenham – situa-se, por isso, ao nível do próprio imperativo ético que impregna o sistema jurídico. (…)
Há, assim, uma inestimável utilidade dogmática na preservação de ambas as categorias de exercício inadmissível. Tanto a suppressio como a surrectio, enquanto construções institucionais centradas na dinâmica das posições subjectivas, retiram do comportamento contraditório um exclusivo prisma jurídico, obnubilado no venire contra factum proprium, muito mais amplo, e, como tal, impreciso, marcado, igualmente, que está, de origem, pela forte reprovação social do desrespeito por uma vinculação assumida de livre vontade, ainda que desconhecendo a protecção fornecida pelo Direito contratual.
Também, por isso, nunca se abandonou um ponto de vista compreensivo do fenómeno global verificado em ambas as esferas: do confiante e daquele que lhe deu causa, mantendo-se a utilização da formulação integrada “suppressio/surrectio”. (…)
Na base, está um comportamento contraditório.
Uma primeira conduta do titular, vale, segundo as concepções dominantes no tráfico, como atribuição de uma procuração – é o factum proprium. Conhecida a falta de poderes, a conexão de sentido globalmente imputável ao comportamento anterior e actual do dominus, faz da ratificação uma conduta devida, segundo a boa fé. Recusada, consubstancia o venire, proibido pelo art. 334°”; (cfr., v.g., Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde in, ob. cit., pág. 282 a 285).

Ademais, não se pode esquecer que o fundamento teleológico para a não vinculação do “representado” pelos actos do “falso representante” impõe-se por conta do seu interesse “em não ficar vinculado contra a sua vontade” e “que a sua esfera jurídica não seja afectada sem o seu consentimento”; (cfr., v.g., Paulo Mota Pinto in, ob. cit., pág. 596 e 597).

Na verdade, cabe aqui ponderar: que interesse do “representado” é que haveria a proteger, quando foi ele próprio que procurou emitir uma declaração válida no sentido de conferir poderes representativos ao seu mediador imobiliário para vender o seu imóvel?

Poder-se-ia aqui colocar uma objecção, considerando-se que o legislador ao exigir uma forma solene para a procuração em causa considerando a natureza do negócio a ser celebrado, procura que o representado pondere cuidadosamente a importância e as consequências que podem resultar daquele acto, o que não estaria assegurado num acto em que essa forma solene não foi observada.

Porém, a referida objecção não se nos apresenta procedente.

Em primeiro lugar, cabe referir que a exigência de uma forma especialmente solene não está apenas relacionada com necessidades de ponderação e cautela da pessoa que celebra o acto, mas, também, influenciada por preocupações gerais de “segurança do tráfego jurídico”.

Em todo o caso, não se pode esquecer que a questão da “nulidade por falta de forma”, e as (graves) “injustiças” daí decorrentes, têm merecido considerações de “repúdio” na grande maioridade doutrina que trata o tema, valendo a pena aqui citar Pedro Pais de Vasconcelos que faz uma síntese das posições de ilustres autores:

“O regime geral de nulidade dos actos e negócios jurídicos por falta de forma legal conduz frequentemente a injustiças que impressionam os juristas.
Já Manuel de Andrade notou que o regime de nulidade por desrespeito da forma legal “pode dar lugar a injustiças, por não ficar válido o negócio que as partes na verdade concluíram, mas que (por ignorância, inadvertência ou para fugir a despesas) deixaram de dar a forma legal”. Na sua esteira, Mota Pinto manifestou a mesma preocupação e sugeriu uma via de solução que viria a revelar-se produtiva. As suas palavras tiveram forte impacto em Castro Mendes que as reproduziu no seu ensino.
Oliveira Ascensão aborda directamente a questão e recusa a salvação da validade do negócio admitindo, embora sem aplauso, situações previstas na lei de inalegabilidade de nulidades formais.
Menezes Cordeiro adopta uma posição mais aberta, embora cautelosa. Na sequência do que havia já escrito anteriormente, debruça-se sobre a solução consistente na inalegabilidade formal. Depois de afastar o recurso à boa fé (pois a nulidade sempre poderia ser invocada por terceiro e conhecida oficiosamente pelo juiz) e à redução teleológica das normas que exigem a forma (por as considerar “normas plenas” em relação às quais não seria possível detectar valores ou objectivos juridicamente perceptíveis), aponta o caminho da responsabilidade civil, em princípio natural ou específica, que obrigue quem alega a nulidade a supri-la, validando o negócio. “Quanto inacatada, esta obrigação poderia ser executada especificamente pelo tribunal”. Adverte, porém, que esta solução “só poderá funcionar em casos que particularmente a justifiquem, havendo que evitar a sua banalização”. E conclui: “Mas perante situações de injustiça, a Ciência do Direito não deve ficar desarmada, encobrindo-se com meros expedientes formais. No seu conjunto, todos os esquemas explorados conduzem a uma certa «relativização» da forma e das suas regras, a explorar com cuidado”.
Carvalho Fernandes usa de prudência. Contrapõe o carácter de ordem pública das exigências legais de forma com o cariz consensualista do sistema e dá preferência a “um entendimento restritivo dos efeitos da exigência da forma legal, favorável à conservação do negócio jurídico e à tutela da confiança da contraparte” (…) “mas apenas quando prevaleçam razões particularmente significativas. Fora disso, a exigência de forma legal, revestindo, embora carácter excepcional, quando imposta, tem de se entender ditada por razões superiores de interesse geral”.
Também Baptista Machado discorreu sobre o assunto. Com a profundidade que lhe era própria, concluiu que “na hipótese de, por força do princípio da tutela da confiança, se vir a conferir a um negócio nulo efeitos iguais àqueles que o negócio teria se fosse válido, esses efeitos, apesar de tudo, devem ser havidos como efeitos ex lege, valendo o negócio nulo agora como simples facto gerador de um estado ou situação de confiança”; (in ob. cit., pág. 619 a 621).

Em suma, respondendo à objecção que se levantou, pode concluir-se, com a necessária segurança, que a “tutela da aparência” encontra-se intimamente relacionada com a “protecção da confiança, boa fé, bons costumes e a proibição de comportamentos contraditórios”, visando, precisamente, combater as iniquidades resultantes da falta de um acto “formal” de concessão de poderes representativos.

Na R.A.E.M., a “tutela da confiança” encontra-se reflectida não só no art. 644° do C. Com. para o “contrato de agência”, mas também no art. 261°, n.° 2, do C.C.M., (podendo assim dizer-se que não há qualquer “desvio” ou “norma especial” no âmbito do direito comercial).

In casu, perante os elementos dos autos, sobretudo os “factos assentes das alíneas A) a G)”, parece-nos que, no mínimo, seria de qualificar a actuação do recorrente como “oportunista”.

Poderia ainda objectar-se que não estão preenchidos todos os requisitos exigidos pelo regime previsto no art. 644° do C. Com. ou art. 261°, n.° 2 do C.C.M., uma vez que, aparentemente não haveria prova de que os recorridos eram “terceiros de boa fé”.

Parece-nos, contudo, que sem razão, pois que como afirma Paulo Mota Pinto: “Um outro problema que se poderia pôr nesta sede diz respeito ao ónus da prova: é geralmente admitido que, provando o terceiro a situação de aparência, a sua boa fé se presume. Ou melhor, que o terceiro contraente terá apenas que provar que existia uma situação de aparência (os factos que a constituíam) e que a conhecia, após o que se presume o seu desconhecimento da realidade – assim, já J. Leauté, ob. cit., p. 171, e também a jurisprudência francesa, que, no quadro da responsabilidade por faute, só dava relevância à boa fé a propósito do nexo de causalidade, mas que chegava, para conseguir a inversão do ónus da prova, a presumir este, ao arrepio das regras gerais. Também em Itália é regra geral que a boa fé se presume. E cf. Tb. C.- W. Canaris, ob. cit., pp. 507 e 514, estendendo a presunção ao nexo de causalidade entre a aparência e a “Vertrauensdisposition” (isto é, a celebração do negócio). Poderia talvez argumentar-se a favor da inversão do ónus da prova com base no facto de se tratar aqui de um facto psicológico negativo, de difícil prova e, sobretudo (além de um argumento comparatístico e de um eventual lugar paralelo no que toca à boa fé possessória – art. 1260°, n.° 2; e cf. também o art. 431°, n.° 2 do Anteprojecto Vaz Serra), considerando que é a aparência verdadeiramente o facto constitutivo, enquanto a boa fé é apenas um requisito suplementar, em termos simplesmente de a má fé vir afastar a protecção do terceiro contraente”; (in ob. cit., pág. 637, continuação da nota 95).

In casu, importa ter presente que foi o próprio recorrente que alegou todos os factos constitutivos da “situação de aparência”, (entre os quais a outorga de uma procuração a favor do seu mediador imobiliário tendo em vista um potencial negócio de venda da fracção; art°s 3° a 5° da petição inicial), para que aquele mediador se pudesse “apresentar perante os compradores como representante autorizado do Autor e conduzir a negociação numa posição de relevo”, (cfr., art. 4° da petição inicial), desonerando-se, desse modo, os recorridos de alegarem e provarem a “situação de aparência”.

Por sua vez, considerando que o “ónus da prova” não se confunde com a “prova dos factos”, (cfr., art. 436° do C.P.C.M.) e demonstrado estando nos autos todos os elementos que configuram a “situação de aparência”, (os quais como se referiu, foram aliás alegados e reconhecidos pelo próprio recorrente), não se pode deixar de reconhecer que os recorridos estavam de “boa fé”, pois como indica Paulo Mota Pinto, a boa fé destes últimos presume-se em face da situação de aparência ou, por palavras nossas, a boa fé subjectiva ética é o resultado da demonstração da situação de aparência, pelo que competiria antes ao recorrente alegar e provar outros factos dos quais se retiraria a má fé dos recorridos, (não obstante a dita “aparência”).

Porém, ao longo do processo nada disso foi feito, de nada valendo as insinuações ou conclusões que agora faz em sede do recurso para este Tribunal de Última Instância.

Assim, e ao contrário do que defende o recorrente, chega-se à conclusão que o negócio celebrado pelo seu mediador, atípica e aparentemente investido em poderes de representação, (por conta de uma procuração nula por vício de forma), é “eficaz”, sendo-lhe “oponível”, através da aplicação (indirecta) da figura do “abuso de direito”, por conta do que resulta quer do art. 644° do C. Com. quer do art. 621°, n.° 2 do C.C.M..

Como se sabe e aqui se reitera, a procuração “destina-se a ser conhecida por destinatários. Estes destinatários são, por um lado, o procurador a quem são conferidos os poderes de representação e, por outro, as pessoas perante quem os poderes vão ser exercidos”.

A referida “procuração” que foi de livre e espontânea vontade outorgada pelo recorrente, foi, igualmente, voluntariamente aceite pelo mediador, e, pelos recorridos natural e conscientemente aceite como “acto” que legitimava o mediador imobiliário a agir em nome do recorrente na escritura pública de compra e venda.

Todas estas “circunstâncias” não se podem negar (nem apagar) por conta de um (mero) “vício de forma” da procuração, decorrente do facto da mesma ter sido outorgada no estrangeiro, sujeito a um regime jurídico distinto, e que terá influenciado a formalização daquele acto.

Por outro lado, ao contrário do que pretende insinuar o recorrente, não existem quaisquer factos nos autos que permitam extrair a conclusão de que os recorridos actuaram de má fé, sendo que, como se viu, era ao recorrente que competia ter alegado e provado factos dos quais se pudesse concluir pela má fé daqueles.

Mal se compreenderia, aliás, que a lei não viesse a tutelar a posição dos recorridos que legitimamente confiaram numa procuração pelo recorrente no estrangeiro outorgada com a sua assinatura reconhecida por notário (estrangeiro) em documento com apostilha, e que só é nula por “vício de forma” em face das regras de Direito Internacional Privado da R.A.E.M., no âmbito da representação voluntária e da sua sujeição ao direito material da Região, (que exige, para este tipo de actuação, que a procuração contenha um “termo de autenticação”).

Seria, uma interpretação, no mínimo, (muito) incongruente da lei.

De resto, toda esta “questão” é suscitada pelo recorrente sem que se perceba, exactamente, qual é o interesse que visa acautelar, pois que nem sequer se mostrou “contrário” ao negócio celebrado pelo seu mediador imobiliário.

Com efeito, e como se viu, logo no art. 6° da sua petição inicial, defendeu que “ficou a aguardar pelo adiantamento das negociações e marcação de data possível de outorga da escritura pública de compra e venda para (…) viajar para Macau, concluir os termos contratuais e outorgar a escritura”, (acrescentando no art. 9° do mesmo articulado que “Entretanto, J – deve ler-se I – informou o A. de que a venda estava agendada para os finais de Junho, pelo que o A. se preparou para vir a Macau e Hong Kong …”).

E, em suma, se estava apenas a aguardar pela marcação da data da escritura pública, conforme alegou, então não se compreende quais as razões para não aceitar o negócio entretanto celebrado pelo seu aparente “representante”.

Os ditames da “boa fé” impunham a “ratificação” do negócio celebrado pelos recorridos e o pretenso “representante”, (sem prejuízo dos eventuais direitos do recorrente perante o seu mediador imobiliário).

Perante o acima exposto, o negócio é-lhe eficaz tanto de acordo com o art. 644° do C. Com., como nos termos do n.° 2 do art. 261° do C.C.M..

Isto dito, adequado se considera de aqui se deixar uma derradeira nota.

Insurge-se ainda o recorrente contra a sua actuação por “abuso de direito”, defendendo que não se encontram preenchidos os requisitos expostos por Menezes Cordeiro para actuação daquilo que apelidou como “inalegabilidades formais”.

Salvo o devido respeito, o recorrente litiga em “clara confusão” e/ou “evidente erro”.

Em primeiro lugar, se é certo que a doutrina das “inalegabilidades formais” tem por base o “abuso de direito” e o “venire contra factum proprium”, não é menos certo que a mesma foi pensada em termos de requisitos e pressupostos por referência a “contratos”, isto é, “negócios jurídicos bilaterais”, o que não é o caso de uma “procuração”.

Por outro lado, e como se viu, a doutrina desenvolveu formas de combater a injustiça que decorreria de uma “procuração tolerada” mediante a imposição da eficácia do negócio ao representado que actuou de modo a criar a tal aparência de representação, que veio a ter consagração legal nos citados art°s 644° do C. Com. e 261°, n.° 2 do C.C.M., encontrando-se nessas normas os pressupostos de que depende a sua aplicação, e estando essas mesmas normas, conforme se expôs supra, fundamentadas no “abuso de direito” decorrente do “venire contra factum proprium”.

Alega, ainda o recorrente que é somente “comproprietário” da fracção e não proprietário pleno, (alegando que assim existe um elemento nos autos que “afirma precisamente que existe um terceiro interessado, que está necessariamente de boa fé quanto ao alegado abuso de direito dado não ser parte na procuração, que não é ali identificada”), parecendo porém que os art°s 7° e 8° do Código do Registo Predial não existissem, (ou não fossem relevantes…).

Assim – e não se apresentando minimamente sério o argumento no sentido de que a procuração não conferia poderes ao “representante” para realizar o negócio por si, (apenas o autorizando a “actos de preparação e pós-venda, o que é normal na mediação imobiliária” e “Repare-se que a procuração foi concedida a um mediador imobiliário, cuja função é facilitar a venda e tratar das burocracias, não realizar a venda”; cfr., pontos 271 e 272 das alegações de recurso – vista está a solução para a presente lide recursória, impondo-se a decisão que segue.

Decisão

4. Nos termos de todo o expendido, em conferência, acordam negar provimento ao presente recurso.

Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 20 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 26 de Outubro de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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