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Processo nº 79/2022
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Sob acusação do Ministério Público e em audiência colectiva no Tribunal Judicial de Base responderam:
(1°) A (甲),
(2°) B (乙),
(3a) C (丙),
(4°) D (丁), e,
(5°) E, todos com os restantes sinais dos autos.

A final, realizado o julgamento – e com a absolvição deste (5°) arguido E – decidiu-se condenar:

–– o (1°) arguido A, como autor material da prática em concurso real de:
- 1 crime de “produção ilícita de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 7°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
- 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
- 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 4 meses de prisão; e,
- 1 crime de “detenção indevida de utensílio”, p. e p. pelo art. 15° da Lei n.° 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016, na pena de 4 meses de prisão;
- Em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos e 1 mês de prisão.

–– o (2°) arguido B, como autor material da prática em concurso real de:
- 1 crime de “produção ilícita de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 7°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
- 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 5 anos e 6 meses de prisão; e,
- 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 4 meses de prisão;
- Em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos de prisão.

–– os (3ª e 4°) arguidos, C e D, como autores materiais da prática em concurso real de:
- 1 crime de “produção ilícita de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 7°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena (individual) de 5 anos e 6 meses de prisão;
- 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena (individual) de 4 meses de prisão; e,
- 1 crime de “detenção indevida de utensílio”, p. e p. pelo art. 15° da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena (individual) de 4 meses de prisão; e,
- Em cúmulo jurídico, na pena única (e individual) de 5 anos e 9 meses de prisão; (cfr., fls. 1656 a 1674 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Do assim decidido, os (1°, 2°, 3ª e 4°) arguidos – A, B, C e D – recorreram para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 05.05.2022, (Proc. n.° 227/2022), decidiu negar provimento aos recursos dos 1°, 2° e 3ª arguidos, e, no parcial provimento do recuso do 4° arguido, alterou a qualificação jurídico-penal pelo Tribunal Judicial de Base efectuada, condenando todos os (1°, 2°, 3ª e 4°) arguidos como autores da prática de 1 crime de “produção ilícita de estupefacientes para consumo”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 – e não n.° 1 – e art. 7° da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), mantendo, no restante, o Acórdão recorrido; (cfr., fls. 1865 a 1895).

*

Ainda inconformados, vem agora os (3ª e 4°) arguidos C e D recorrer para esta Instância; (cfr., fls. 1914 a 1942 e 1906 a 1909).

*

Em Resposta, foi o Ministério Público de opinião que os recursos não mereciam provimento; (cfr., fls. 1960 a 1966).

*

Oportunamente, nesta Instância, e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer considerando também que os recursos deviam ser julgados improcedentes; (cfr., fls. 1979 a 1983).

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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como “provados” os seguintes factos respeitantes aos ora recorrentes, (e que foram confirmados pelo Acórdão ora recorrido do Tribunal de Segunda Instância):

“Discutida a causa em julgamento, provaram-se os seguintes factos:
(…)
5.
Após a consulta e análise dos dados nos telemóveis utilizados pelos 1º e 2º arguidos, os agentes da PJ descobriram que a 3ª arguida tinha comprado juntos deles gomas contendo canábis.
No dia 15 de Junho de 2021, pelas 11 horas de manhã, os investigadores da PJ dirigiram-se ao domicílio do 4º arguido, sito na [Endereço(1)], e na porta, já sentiram o cheiro de produtos de canábis emanado da fracção. Com o consentimento da 3ª arguida que se encontrava na fracção, os investigadores da PJ entraram na fracção para efectuar a busca e investigação, encontrando uma planta de 85cm de altura (amostra n.º Tox-U0378), cultivada numa estufa de cor preta (que tem cerca de 60cm de comprimento e largura, e 90cm de altura); no caixote de lixo um saco plástico transparente contendo folhas de planta (amostra n.º Tox-U0379); acima da mesa de cabeceira um “cartucho” em forma de tubo de vidro (amostra n.º Tox-U0380a), um recipiente redondo de cor preta que continha fragmentos de planta (amostra n.º Tox-U0396), um recipiente redondo de cor azul que continha fragmentos de planta (amostra n.º Tox-U0397), um cachimbo electrónico de cor preta ligado ao “cartucho” (amostra n.º Tox-U0395); no armário para televisão na sala de estar uma caixa plástica que continha fragmentos de planta (amostra n.º Tox-U0381), um saco plástico transparente que continha ramos de planta (amostra n.º Tox-U0382), dois “cartuchos” em forma de tubo de vidro (amostras n.º Tox-U0380b e n.º Tox-U0380c), dois recipientes transparentes que continham fragmentos de planta (amostra n.º Tox-U0398), um recipiente redondo de cor prateada que continha fragmentos de planta (amostra n.º Tox-U0400), um cachimbo embrulhado em cartolina de cor roxa (amostra n.º Tox-U0401), uma caixa metal em forma oval, de cor vermelha, que continha filtro metal redondo e cinzas (amostra n.º Tox-U0402); no armário ao lado do sofá na sala de estar um recipiente metal contendo cinzas (amostra n.º Tox-U0407); no armário decorativo na sala de estar 7 folhas de planta (amostra n.º Tox-U0408) e 3 sementes embrulhadas em papel de estanho (amostra n.º Tox-U0409); e acima do balcão de cozinha ao lado da porta da fracção um cachimbo de vidro, de 30cm de altura (amostra n.º Tox-U0410)1. Os dois cachimbos, com os n.ºs de amostra Tox-U0395 e Tox-U0410, podem ser utilizados para o consumo de óleo de canábis e canábis2.
Submetidos a exame laboratorial no Departamento de Ciências Forenses da PJ, verificou-se que a planta com o n.º de amostra Tox-U0378 era canábis, cujas folhas e flores tinham o peso líquido de 37,208g, e que as folhas de planta com o n.º de amostra Tox-U0379, os fragmentos de planta contidos nas amostras n.º Tox-U0381, n.º Tox-U0396, n.º Tox-U0398 e n.º Tox-U0400, e as folhas de planta com o n.º de amostra Tox-U0408, eram canábis, com peso líquido de, respectivamente, 3,194g, 2,122g, 0,052g, 0,039g, 0,152g e 0,794g. Os três tubos com os n.ºs de amostra Tox-U0380a, Tox-U0380b e Tox-U0380c tinham vestígios de tetraidrocanabinol (Delta-9-THC). Os ramos de planta com o n.º de amostra Tox-U0382 continham elemento de tetraidrocanabinol (Delta-9-THC), com peso líquido de 5,463g, e após análise quantitativa, a percentagem de tetraidrocanabinol (Delta-9-THC) foi verificada em 0,537%, com peso de 0,0293g. O recipiente de cor azul com o n.º de amostra Tox-U0397, o recipiente metal com o n.º de amostra Tox-U0401, a caixa metal de cor vermelha com o n.º de amostra Tox-U0402, o recipiente metal com o n.º de amostra Tox-U0407, e os grãos com o n.º de amostra Tox-U0409, tinham vestígios de tetraidrocanabinol (Delta-9-THC). O recipiente de vidro com o n.º de amostra Tox-U0410 e o líquido contido nele tinham vestígios de tetraidrocanabinol (Delta-9-THC)3.
Além disso, nos três “cartuchos” em forma de tubo de vidro, com os n.ºs de amostra Tox-U0380a, Tox-U0380b e Tox-U0380c, no cachimbo com o n.º de amostra Tox-U0401, na caixa metal em forma oval, de cor vermelha, com o n.º de amostra Tox-U0402, e no recipiente metal com o n.º de amostra Tox-U0407, foram detectados os DNA da 3ª arguida e do 4º arguido4.
As aludidas sementes da planta canábis foram compradas pela 3ª arguida, a pedido do 4º arguido, junto do 1º arguido, e cultivadas pelo 4º arguido segundo os métodos que aprendeu na internet. Para o efeito, o 4º arguido comprou estufa, luzes LED de aquecimento, desumidificador e fertilizantes. Durante o período, a 3ª arguida, sabendo que a planta era árvore de canábis cultivada pelo 4º arguido e controlada por lei, praticou, por várias vezes e sob instruções do 4º arguido, actos de “ligar e desligar as luzes”, “ligar e desligar a válvula de escape” e “regar”, para assegurar o crescimento da árvore de canábis5.
No mesmo dia, às 12 horas, o 4º arguido foi interceptado pelos investigadores da PJ na Recepção do [Casino(1)] na Taipa, e admitiu que era responsável pela cultivação da árvore de canábis encontrada na supracitada fracção, e que os ramos de planta contendo elementos de canábis foram cortados da árvore que plantou com sucesso.
6.
Mais tarde no mesmo dia, os investigadores da PJ dirigiram-se à fracção em que a 3ª arguida morou junto com a família, sita na Taipa, [Endereço(2)], para investigação, encontrando um bong transparente contendo líquido transparente (amostra n.º Tox-U0411).6
Submetidos a exame laboratorial no Departamento de Ciências Forenses da PJ, verificou-se que o corpo, a tampa e o tubo de vidro do bong, bem como o líquido nele contido, continham elemento de tetraidrocanabinol (Delta-9-THC)7, tratando-se de um utensílio utilizado pela 3ª arguida para o consumo de produtos contendo substância controlada por lei.
7.
(…)
8.
(…)
A 3ª arguida e o 4º arguido, sabendo bem que a respectiva substância era controlada por lei, ainda agiram de forma livre, voluntária e consciente ao cultivar juntos canábis no domicílio, a fim de obter interesses ilegítimos.
(…)
O 1º arguido, o 2º arguido, a 3ª arguida e o 4º arguido, sabendo bem a natureza e as características da respectiva substância, ainda agiram de forma livre, voluntária e consciente ao adquirir e consumir produtos contendo substância controlada por lei.
O 1º arguido, a 3ª arguida e o 4º arguido agiram, de forma livre, voluntária e consciente, ao adquirir e deter instrumentos utilizados para o consumo de substância controlada por lei.
O 1º arguido, o 2º arguido, a 3ª arguida e o 4º arguido sabiam bem que as supracitadas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou:
Conforme o CRC, os 5 arguidos têm os seguintes registos criminais:
O 1º arguido, o 2º arguido, a 3ª arguida e o 4º arguido são delinquentes primários.
(…).
Têm os 5 arguidos as seguintes situações pessoal e familiar:
(…)
Arguida C
- Era comerciante e auferiu mensalmente MOP$30.000.
- Tem a seu cargo uma filha menor.
- Tem como habilitação literária o 1º ano do ensino secundário complementar.
Arguido D
- Antes de ser preso preventivamente, era recepcionista/assistente de relações públicas do casino, e auferiu mensalmente MOP$30.000.
- Tem a seu cargo os pais e um filho menor.
- Tem como habilitação literária o ensino superior.
(…)”; (cfr., fls. 1662 a 1667, 1882-v a 1887-v e 68 a 87 do Apenso).

Do direito

3. Vêm os (3ª e 4°) arguidos C e D recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que os condenou nos termos atrás já relatados.

Para uma cabal compreensão do que em causa agora está, útil é antes de mais atentar-se no teor da decisão recorrida.

Pois bem, em apreciação dos recursos pelos ora recorrentes então apresentados assim considerou o Tribunal de Segunda Instância no Acórdão agora recorrido:

“Na sua motivação do recurso, a 3ª arguida C entendeu o seguinte:
- O Tribunal a quo violou o art.º 64.º do CPM por não ter escolhido a pena de multa, uma vez que a recorrente é delinquente primária, pelo que no que concerne aos crimes de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” e de “detenção indevida de utensílio ou equipamento”, devem as penas aplicadas ser substituídas por multa;
- O relatório pericial do Departamento de Ciências Forenses é incompleto, não fez análise quantitativa da substância tetraidrocanabinol (Delta-9-THC) contida na planta canábis, e só referiu o peso de “canábis”. Por outro lado, a 3ª recorrente C entendeu que no acórdão recorrido, não foi suficientemente comprovada a finalidade da “produção”, e que ela não devia ser condenada pela prática do “crime de produção ilícita de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” previsto pelo art.º 7.º da Lei n.º 17/2009. Por isso, a referida condenação feita pelo Tribunal a quo incorreu no vício de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, previsto pelo art.º 400.º, n.º 2, al. a) do CPP.
- O art.º 5.º dos factos provados reconheceu que o 4º arguido cultivou canábis segundo os métodos que aprendeu na internet e deu instruções à 3ª arguida para executar tarefas secundárias, enquanto no art.º 8.º, o Tribunal a quo deu como assente que a 3ª arguida cultivou canábis. E o 4º arguido também negou na audiência que a 3ª arguida tinha conhecimento da cultivação de canábis por ele, razão pela qual a condenação da 3ª recorrente pela prática dum “crime de produção ilícita de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” incorreu no vício de “contradição insanável da fundamentação”, previsto pelo art.º 400.º, n.º 2, al. b) do CPP.
- A planta canábis em causa foi cultivada pelo 4º arguido, e pretendeu a recorrente que as suas condutas apenas constituíram a cumplicidade, uma vez que só prestou auxílio ao 4º arguido, não devendo ser considerada como autora. Isso porque, a 3ª recorrente C não prestou ao 4º arguido auxílio indispensável, e a sua participação era secundária, pelo que pertenceu ao cúmplice previsto pelo art.º 26.º do CPM, devendo-se, nos termos do art.º 26.º, n.º 2 do CPM, atenuar especialmente a pena aplicada à recorrente, redeterminar a medida da pena, e conceder a suspensão da execução da pena conforme o art.º 48.º do CPM.

Na sua motivação do recurso, o 4º arguido D entendeu o seguinte:
- Ao reconhecer que o 4º recorrente cultivou ilicitamente canábis para consumir, o acórdão a quo aplicou erradamente a lei, e no caso sub judice, devia-se aplicar o art.º 14.º, n.º 1 e n.º 2 da Lei n.º 17/2009, bem como as penas previstas no art.º 7.º ou art.º 11.º, consoante o caso.
- Mesmo que a quantidade da droga exceda 5 vezes a quantidade de referência de uso diário, não será necessariamente afastada a aplicação do art.º 11.º. Apontou o 4º recorrente que a planta canábis em causa ainda se encontrou em crescimento, e o relatório pericial apenas mostrou o peso da planta, mas não fez análise quantitativa. Do peso do tetraidrocanabinol (Delta-9-THC), concentrado dos ramos cortados da planta canábis (5,463g), resulta que, a respectiva planta ainda não madurou, não foi extraída ou secada ao vento, sendo, assim, impossível a sua colheita para consumo. Por isso, a qualidade bastante baixa da planta canábis em causa reduziu, consideravelmente, a ilicitude dos actos do recorrente. Ao mesmo tempo, tendo em conta os meios utilizados pelo 4º recorrente e a modalidade da acção, mostra-se consideravelmente diminuída a ilicitude dos factos, preenchendo-se os pressupostos no art.º 11.º, n.º 1, al. 1) da Lei n.º 17/2009. O recorrente entendeu que devia ser condenado pela prática dum crime previsto pelo art.º 14.º, n.º 1 e n.º 2 da Lei n.º 17/2009, punível com a pena prevista no art.º 11.º, n.º 1, al. 1), e devia ser redeterminada a medida da pena.
- O “crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. p. pelo art.º 14.º da Lei n.º 17/2009, pelo qual foi condenado o recorrente com base no 4º parágrafo do art.º 8.º dos factos provados, deve ser absorvido pelo supracitado “crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, pelo que os seus actos de consumo não devem ser punidos mais uma vez.

Vejamos.
(…)
Parte III Recurso da 3ª arguida C

(I) Escolha da pena de multa nos crimes de consumo de droga e de detenção de instrumentos para consumo
Como atrás se referiu, a 3ª recorrente C entendeu que, atendendo à circunstância de ser delinquente primária, o Tribunal a quo violou o art.º 64.º do CPM por não ter escolhido a pena de multa.
Obviamente, não é de assistir razão à recorrente.
Ao abrigo do disposto no art.º 44.º, n.º 1 do CPM, a aplicação da pena de multa pressupõe que o agente satisfaça as necessidades e exigências de prevenção criminal. Por um lado, não vemos, nos autos, a completa verificação de qualquer circunstância favorável à prevenção criminal, sobretudo, a 3ª recorrente manteve-se em silêncio na audiência, não manifestando arrependimento pelos seus actos criminosos. Por outro lado, conforme o registo de conversas telefónicas entre a 3ª recorrente e o 2º arguido e o 1º arguido (fls. 647, 688 a 690), a recorrente já consumiu drogas por um tempo não curto, o que revela o elevado grau de ilicitude dos factos. Tudo isso já é suficiente para negar a aplicabilidade da pena de multa.

(II) Vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Como é sabido, o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” previsto pelo art.º 400.º, n.º 2, al. a) do CPP ocorre quando o tribunal tenha omissão na investigação dos factos, e quando a matéria de facto provada se apresente insuficiente e incompleta para a respectiva decisão de direito.
E de acordo com o Acórdão de 17 de Julho de 2014, proferido no Processo n.º 316/2014:
“1. O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando o tribunal tenha omissão nos factos dados como provados, ou quando não forem investigados todos os factos sujeitos à investigação, impossibilitando o tribunal de fazer a decisão adequada. A insuficiência dos factos não se refere à insuficiência de prova.
…”
Primeiro, no que concerne ao reconhecimento de factos que constitui o objecto da acção, entendemos que o Tribunal a quo investigou, na audiência de julgamento e de forma suficiente, toda a matéria de facto imputada pelo MP, e deu como provados os respectivos factos, nos quais não se verifica qualquer omissão que impossibilita a aplicação adequada da lei.
Segundo, é verdade que, em muitos casos, incluindo casos semelhantes julgados pelo TUI, a falta da análise quantitativa da droga constituiu o vício fáctico em epígrafe, mas no caso sub judice, quanto à falta de análise quantitativa do tetraidrocanabinol (Delta-9-THC) contido pela planta canábis, são obviamente infundadas as dúvidas da recorrente. Isso porque, por um lado, na tabela I-C anexa à Lei n.º 17/2009, o n.º 1 refere expressamente a canábis, em vez de tetraidrocanabinol (Delta-9-THC). Por outro lado, dispõe-se no n.º 1 do art.º 7.º da Lei n.º 17/2009 que, o requisito constitutivo do crime é “cultivar plantas compreendidas nas tabelas I a III”. Daí que, as disposições legais usam a planta canábis, e não o tetraidrocanabinol (Delta-9-THC), para o efeito de qualificação, pelo que as dúvidas da 3ª recorrente não têm qualquer base legal.
Por isso, o acórdão recorrido adoptou a quantidade de canábis em vez da quantidade do tetraidrocanabinol (Delta-9-THC) para reconhecer a constituição do crime, não padecendo do vício de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”.

(III) Vício de contradição insanável da fundamentação
É consabido que, o vício de contradição insanável da fundamentação previsto pelo art.º 400.º, n.º 2, al. b) do CPP é um vício intrínseco da decisão, que consiste na contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto, bem como entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada. A contradição tem de ser absoluta, isto é, por um lado, diz-se “é isso”, e por outro, diz-se “não é isso”, e não se verifica entre os factos que exprimem vontades diferentes ou demonstram conteúdos diferentes, aos quais é imputada a contradição.8
In casu, segundo os 2º, 3º e 5º parágrafos do art.º 5.º dos factos provados, a pedido do 4º arguido D, a 3ª recorrente C comprou, junto do 1º arguido A, sementes da planta canábis, que foram cultivadas pelo 4º arguido, e durante o período, a 3ª recorrente, seguindo instruções do 4º arguido, praticou, por várias vezes, actos de “ligar e desligar as luzes”, “ligar e desligar a válvula de escape” e “regar”, para assegurar o crescimento da árvore de canábis. Daí que, 3ª recorrente participou directamente nas actividades de cultivação junto com o 4º arguido, e não executou as tarefas secundárias como defendeu. Por isso, não se constata qualquer contradição ou incompatibilidade no art.º 8.º dos factos provados, no qual o Tribunal a quo reconheceu a cultivação conjunta de canábis pela 3ª recorrente C e pelo 4º arguido. Improcede, assim, o vício previsto pelo art.º 400.º, n.º 2, al. b) do CPP, imputado ao Tribunal a quo pela 3ª recorrente.

(III) Cumplicidade e suspensão da execução da pena
Alegou a 3ª recorrente C que, a planta canábis em causa foi cultivada pelo 4º arguido, e ela apenas assumiu o papel de auxiliar o 4º arguido, pelo que as suas condutas só constituíram a cumplicidade, não devendo ela ser considerada como autora. Isso porque, a 3ª recorrente C não prestou ao 4º arguido auxílio indispensável, e a sua participação era secundária, pelo que seria uma cúmplice previsto pelo art.º 26.º do CPM. Entendeu a 3ª recorrente que, nos termos do art.º 26.º, n.º 2 do CPM, devia ser especialmente atenuada a pena lhe aplicada, bem como redeterminar a medida da pena, e conceder-lhe a suspensão da execução da pena conforme o art.º 48.º do CPM.
Segundo os factos provados no caso concreto, designadamente o 5º parágrafo do art.º 5.º, as sementes da planta canábis em causa foram compradas pela 3ª recorrente, a pedido do 4º arguido, junto do 1º arguido, e durante o período, a 3ª recorrente, por várias vezes e sob instruções do 4º arguido, praticou actos de “ligar e desligar as luzes”, “ligar e desligar a válvula de escape” e “regar”, para assegurar o crescimento da árvore de canábis. Tais factos permitem, em absoluto, reconhecer que a 3ª recorrente C não é, como indicou a petição de recurso, uma pessoa que não prestou o auxílio indispensável, mas ao contrário, o 4º arguido e a 3ª recorrente praticaram juntos as actividades de cultivação da planta canábis. Daí que, a 3ª recorrente e o 4º arguido agiram de comum acordo, em conjugação de esforços e divisão de tarefas, ao praticar os respectivos actos criminosos.
A par disso, de acordo com o registo da conversa com o 1º arguido mediante o software de comunicação no telemóvel da 3ª recorrente (fls. 688 a 690), constante das fls. 42 a 45 dos autos, sabemos que a 3ª recorrente C compartilhou com o 1º arguido a situação e o que se aprendeu na cultivação de canábis, pelo que os seus actos, obviamente, não tinham a natureza de auxílio, mas sim pertenceram à participação directa na cultivação.
Por isso, o grau de participação da recorrente não se limita à simples prestação de auxílio material ou moral, mas sim pertence à participação directa no plano criminoso, o que não corresponde, em absoluto, à forma prevista pelo art.º 26.º do CPM. Desta forma, concordamos com o Tribunal a quo, que após a apreciação de todas as provas constantes dos autos, reconheceu que a 3ª recorrente C era autora da prática dos actos criminosos, em vez de cúmplice que apenas prestou auxílio.
Por não ser aplicável a atenuação especial prevista para a cumplicidade, deve ser mantida a medida da pena da 3ª recorrente. A pena aplicada é superior a 3 anos de prisão, pelo que não se aplica o regime de suspensão da execução. Improcede, assim, o recurso da 3ª recorrente C nesta parte.

Parte IV Recurso do 4º arguido D
Como é sabido, através da Lei n.º 10/2016, foram aditados ao art.º 14.º da Lei n.º 17/2009 o n.º 2 e o n.º 3, e foi adoptado novo pensamento quanto à delimitação do “crime de produção da droga”/ “crime de tráfico da droga” e “crime de consumo da droga”, ou seja, o legislador estipulou deliberadamente que, o agente pratica o “crime de produção da droga”/ “crime de tráfico da droga”, sempre que a quantidade da droga detida por ele exceda a quantidade legal, ainda que não se verifique outro acto ilegal, nomeadamente o tráfico, para além de detenção da droga para consumo; quer dizer, a detenção da droga em medida superior a cinco vezes a quantidade de referência de uso diário já preenche, completamente, o tipo legal e constitui o “crime de produção da droga”, “crime de tráfico da droga”, independentemente da ponderação de qualquer elemento subjectivo do agente. Dito por outra palavra, no caso sub judice, ficou provado que os arguidos cultivaram canábis em medida superior à quantidade legal pelo menos para consumo próprio, conduta essa que basta para constituir o “crime de produção ilícita de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas para consumo”, previsto pelo art.º 14.º, n.º 2, conjugado com o art.º 7.º da Lei n.º 17/2009.
Por isso, concordamos com o recorrente, e passamos a condenar a 3ª arguida e o 4º arguido pela prática do “crime de produção ilícita de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas para consumo”, previsto pelo art.º 14.º, n.º 2, conjugado com o art.º 7.º da Lei n.º 17/2009.
Em virtude da comparticipação criminosa, a referida convolação também é aplicável aos 1º e 2º arguidos.

Quanto à aplicabilidade do art.º 11.º da Lei n.º 17/2009, entendeu o 4º recorrente que, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 14.º, especialmente quando a quantidade da droga exceda a quantidade de 5 anos (sic.), não se aplica automaticamente o art.º 7.º, uma vez que a lei ainda reserva a aplicabilidade do art.º 11.º. No entanto, afigura-se-nos que satisfeitas não estão as condições subjectivas e objectivas da aplicação do art.º 11.º no caso vertente.
É verdade que, segundo o n.º 2 e o n.º 3 do art.º 14.º, actualmente vigentes, apesar de a quantidade da droga exceder cinco vezes a quantidade de referência de uso diário, a lei não afasta automaticamente a aplicabilidade do art.º 11.º.
Relativamente à aplicação do art.º 11.º da Lei n.º 17/2009, o TUI fixou a seguinte jurisprudência no Processo n.º 126/2019, de 22 de Janeiro de 2020:
“1. Nos termos do art.º 11.º da Lei n.º 17/2009, se a ilicitude dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados, o agente é punido com o crime de produção e tráfico de menos gravidade. Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à lei.
2. A punição pelo crime de produção e tráfico de menor gravidade depende da consideração sobre se a ilicitude dos factos de produção ou tráfico da droga se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta as circunstâncias apuradas no caso concreto, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade da droga, devendo o tribunal atender especialmente à quantidade da droga.
3. Caso fique provado que, o agente deteve droga destinada à transacção em medida superior a cinco vezes a quantidade de referência de uso diário constante do mapa anexo à Lei n.º 17/2009, deve ser punido com o crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, previsto pelo art.º 8.º da mesma Lei.”
In casu, por um lado, segundo os factos provados, não é difícil constatar que, além de ser delinquente primário e ter confessado os factos, não houve nos autos qualquer circunstância relevante ou motivo que diminuiu, de forma acentuada, a ilicitude do facto ou a culpa do 4º recorrente, ou seja as referidas circunstâncias atenuantes “gerais”, sendo impossível a produção do efeito de acentuada diminuição da ilicitude ou censurabilidade do facto. Por outro lado, não é de assistir razão ao 4º recorrente que questionou a forma de cálculo da qualidade da droga de canábis, entendendo que a planta canábis em causa era de baixa qualidade, o que reduziu, consideravelmente, a ilicitude dos seus actos. Isso porque, no mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à Lei n.º 17/2009, dispõe-se expressamente no n.º 7 que é de 1g a quantidade de “canábis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas)”, mas não de tetraidrocanabinol (Delta-9-THC). Além disso, o requisito constitutivo, previsto no n.º 1 do art.º 7.º e no n.º 2 do art.º 14.º, é “cultivar plantas compreendidas nas tabelas I a III”, razão pela qual, as sementes e flores da planta canábis envolvida, com peso líquido de 37,208g (fls. 1181 e 1592 dos autos), já excede 37 vezes a quantidade de referência de uso diário de “canábis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas)”. É completamente infundado o cálculo da quantidade de tetraidrocanabinol (Delta-9-THC), ou da planta “secada ao vento”, pretendido pelo 4º recorrente.
Com base nisso, não é possível a aplicação do art.º 11.º por não haver circunstâncias atenuantes especiais.

Em relação à medida da pena após a convolação, não há diferença entre as penas aplicadas ao “crime de produção ilícita de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. p. pelo art.º 7.º da Lei n.º 17/2009, e ao “crime de produção ilícita de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas para consumo”, p. p. pelo art.º 14.º, n.º 2, conjugado com o art.º 7.º da mesma Lei, e deve ser mantida a medida da pena de 5 anos e 6 meses.

(II) Enquadramento no crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas
Estamos de pleno acordo com a análise feita pelo Digno Magistrado junto do Tribunal a quo na sua resposta, ou seja, foi o 4º recorrente condenado pela prática dum “crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, com base nos 2º a 4º parágrafos do art.º 5.º dos factos provados, segundo os quais a Polícia encontrou na fracção do 4º recorrente folhas e fragmentos de planta, bem como instrumentos para consumo de drogas. E o 4º recorrente já confessou a prática dos factos criminosos lhe imputados. A condenação pela prática dum “crime de produção ilícita de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” baseou-se nos 2º a 5º parágrafos do art.º 5.º dos factos provados, segundo os quais o 4º recorrente cultivou uma planta canábis no seu domicílio. Daí que, são diferentes as origens e os estados de canábis nos dois crimes (cultivada em casa VS origem desconhecida; planta a crescer VS folhas e fragmentos de planta), estando em causa drogas de natureza completamente diferente. Por serem diferentes a natureza das drogas, o tempo dos actos e a natureza dos dois crimes, andou bem o Tribunal a quo ao condenar o recorrente pela prática de dois crimes, entre os quais não há concurso legal. Ademais, atenta a redacção do art.º 14.º, não podemos negar a coexistência do crime de tráfico de drogas ou/e o crime de produção de drogas previstos pelo art.º 14.º, n.º 1, e 7.º, 8.º, 11.º, bem como o concurso real entre estes, ou seja, ficou provado que o 4º recorrente deteve droga para consumo, e ao mesmo tempo, praticou actividades de tráfico ou/e produção de drogas, devendo ele ser condenado pela prática dos crimes de tráfico ou/e produção de drogas, e de “consumo de drogas” previsto pelo art.º 14.º, n.º 1. Improcede, obviamente, o recurso do recorrente nesta parte.
(…)”; (cfr., fls. 1888 a 1888-v e 1892 a 1894-v, e 89 a 92 e 102 a 113 do Apenso).

Aqui chegados, vejamos.

Pois bem – excluídos do recurso da (3ª) arguida C estando, (por “irrecorribilidade”; cfr., art. 390°, n.° 1, al. f) do C.P.P.M.), os segmentos decisórios relativos à sua condenação pelos crimes de “consumo ilícito de estupefacientes” e “detenção indevida de utensílio”, p. e p. pelos art°s 14° e 15° da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016) – importa (tão só) apreciar os argumentos pela dita recorrente apresentados e dirigidos à sua condenação pelo Tribunal de Segunda Instância decretada quanto ao crime de “produção ilícita de estupefacientes para consumo”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 e art. 7° da referida Lei.

Atentas as conclusões produzidas a final da sua motivação de recurso, (que, com excepção das questões de conhecimento oficioso, limitam o “thema decidendum” do Tribunal), adequado é considerar que entende a dita (3ª) arguida, ora recorrente, que o Acórdão recorrido padece dos vícios de:
- “nulidade” (por omissão de pronúncia);
- “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”;
- “contradição insanável da fundamentação”; e,
- “errada qualificação jurídica”, considerando que devia apenas ser considerada “cúmplice” e não “co-autora” da prática do atrás referido crime.

Por sua vez, pugna (também) o (4°) arguido D por uma diversa “qualificação jurídica” da sua conduta, afirmando que se devia dar aplicação ao preceituado no art. 11°, n.° 1, al. 1) da Lei n.° 17/2009, (com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016).

Sem mais demoras, passa-se a apreciar as referidas questões e a decidir do mérito dos recursos pelos ditos (3ª e 4°) arguidos trazidos a este Tribunal de Última Instância.

–– Quanto à assacada “nulidade”, é a (3ª) arguida ora recorrente de opinião que o Acórdão recorrido padece de tal vício em consequência de uma alegada “omissão de pronúncia”.

Ora, como sabido é, a doutrina considera que se verifica tal vício de omissão de pronúncia quando “(…) a sentença não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer, por força do artº 660º, nº 2 [em Macau, o art. 563°, n.° 2 do C.P.C.M.]”; (cfr., v.g., Antunes Varela in, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 690).

E, por “questões”, entendem-se “(…) todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes”; (cfr., v.g., A. Varela in, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, Ano 122°, pág. 112).

Cumpre notar, no entanto, que “A obrigatoriedade de o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não significa que o juiz tenha, necessariamente, de apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para fundamentarem a resolução de uma questão”; (cfr., v.g., Viriato de Lima in, “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., pág. 536).

Este tem também sido o entendimento deste Tribunal de Última Instância que considera igualmente que: “só a omissão de pronúncia sobre questões, e não sobre os fundamentos, considerações ou razões deduzidas pelas partes, que o juiz tem a obrigação de conhecer determina a nulidade da sentença”; (cfr., v.g., o Ac. de 20.02.2019, Proc. n.° 102/2018, podendo-se sobre a questão ver também os Acs. de 31.07.2020, Proc. n.° 51/2020, de 09.09.2020, Procs. n°s 62/2020, 63/2020 e 147/2020, de 16.09.2020, Proc. n.° 65/2020, de 12.05.2021, Proc. n.° 39/2021, de 15.10.2021, Proc. n.° 111/2021, de 28.01.2022, Proc. n.° 137/2021 e de 27.05.2022, Proc. n.° 41/2022).

Porém, em face (do teor) da decisão pelo Tribunal de Segunda Instância proferida, não cremos que seja o caso.

Na verdade, e como cremos que se pode ver do que atrás se deixou transcrito (da decisão proferida pelo T.S.I.), o Acórdão recorrido apreciou e deu expressa solução a todas as “questões” pela recorrente (então) colocadas no seu anterior recurso, adequado não se nos mostrando assim de considerar que esteja inquinado com a maleita que a ora recorrente lhe imputa.

Poder-se-á – eventualmente – dizer que foi (algo) sintético, (ou curto), na fundamentação exposta.

Contudo, inegável se nos apresenta que “respondeu” a todas as “questões” pela recorrente suscitadas e que constituíam objecto do recurso.

Assim, e nesta parte, improcede o recurso.

–– Quanto à também assacada “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, vejamos.

Pois bem, repetidamente tem este Tribunal considerado que este vício apenas ocorre “quando o Tribunal não emite pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo”.

Isto é, o aludido vício apenas existe se houver “omissão de pronúncia” sobre “factos relevantes”, e os “factos provados” não permitirem uma boa (e sã) aplicação do direito ao caso submetido a julgamento.

Importa pois (também) atentar que a dita “insuficiência” não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devem suportar a matéria de facto, em causa estando, antes, o “elenco” desta, que poderá ser “insuficiente”, (não por assentar em provas nulas ou deficientes, mas) por não encerrar o “imprescindível núcleo de factos” que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver.

O vício de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” traduzir-se-á, afinal, na “falta de investigação” e de “pronúncia” sobre os “elementos fácticos” que permitam a integração na previsão típica criminal por falência de matéria integrante do seu tipo “objectivo” ou “subjectivo”, ou, até, de uma qualquer circunstância modificativa agravante ou atenuante, sendo, por sua vez, de se considerar que inexiste qualquer “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” quando os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento; (sobre o vício e seu alcance, cfr., v.g., e entre outros, o Ac. deste T.U.I. de 26.03.2014, Proc. n.° 4/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015, de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017, de 27.11.2020 Proc. n.° 193/2020, de 05.05.2021, Proc. n.° 40/2021 e de 30.07.2021, Proc. n.° 104/2021).

In casu, diz a recorrente que o vício em questão ocorre por falta de apuramento – e respectiva descrição em sede da decisão da matéria de facto – da “quantidade” e “finalidade” do estupefaciente, (apreendido nos autos).

Ora, (até mesmo atento o que se deixou consignado relativamente ao vício de “insuficiência”), cremos, (igualmente), que dúvidas não existem que – tanto a “acusação”, (cfr., art. 265°, n.° 3 do C.P.P.M.), como (e, em nossa opinião, especialmente) – a “decisão da matéria de facto” proferida após a audiência de julgamento, deve ser (o mais) “completa” (possível), nela se devendo incluir e “descrever”, (narrar, objectivamente), todos os “factos”, “elementos” e “circunstâncias” – provadas ou não provadas e favoráveis ou desfavoráveis ao arguido (ofendido ou assistente) – que permitam uma “justa decisão”; (sobre o tema, e com muito interesse, cfr., o recente estudo de Pedro Sá Machado, “Narração dos factos em Processo Penal”, in Revista do M.P., n.° 170, 2022, pág. 163 a 187).

No caso dos autos, e em face do(s) tipo(s) de crime(s) que à ora recorrente era(m) imputado(s), claro se nos apresenta que deve – devia – a matéria de facto especificar – e explicitar – (qual) a “quantidade” e “finalidade” do estupefaciente em causa para efeitos de se poder fazer um adequado – rigoroso – “enquadramento jurídico-penal” da sua conduta.

Porém, tendo presente o pelo Tribunal de Segunda Instância decidido no Acórdão agora recorrido, e, para já, no que à “finalidade” diz respeito, cremos que se está – agora – perante uma “falsa questão”.

Com efeito, o Tribunal de Segunda Instância, perante idêntica questão pela recorrente então colocada, e ponderando na factualidade dada como provada, concluiu que o cultivo – do estupefaciente, ou seja – da planta de “canabis” em causa, era para “consumo”, (e daí a decidida “convolação” operada), condenando-se a ora recorrente e o 4° arguido, (agora também recorrente), como “co-autores” do crime de “produção ilícita de estupefacientes para consumo”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 e art. 7° da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016).

Nesta conformidade, e não nos parecendo que o entendimento assim assumido deva merecer (qualquer) reparo, clara se nos apresenta a solução sobre o ponto – da “finalidade do estupefaciente” – em questão, necessárias não se afigurando mais alongadas considerações sobre a mesma.

Relativamente à aludida “quantidade” de estupefaciente, e, (como já se notou), em causa estando – especialmente – uma “planta de canabis”, (e o seu cultivo), vejamos.

Antes de mais, cabe consignar que a – “forma”, ou “método” utilizado para a determinação da – dita “quantidade” de estupefaciente constitui “questão” (algo) controversa e com resposta não unânime em termos de opções legislativas e soluções jurídicas adoptadas nos diversos regimes legais sobre a matéria da “Repressão da Produção, Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas”; (vd., a título de exemplo, art°s 347° e segs. do Código Penal da República Popular da China, valendo a pena cfr., também a “Public Security Administration Punishments Law” e a “Interpretação do Supremo Tribunal Popular n.° 8, de 04.11.2016”, sobre questões em processos relacionados com a droga; o regime previsto na “Dangerous Drugs Ordinance” da Região Administrativa Especial de Hong Kong; o “Narcotics Hazard Prevention Act” de Taiwan; o “Act for the control of dangerous or otherwise harmful drugs and substances and purposes connected therewith” de Singapura; assim como o D.L. n.° 15/93 de 22.01 e a Portaria n.° 94/96 de Portugal, onde o tema foi, e continua a ser largamente debatido a nível da jurisprudência e doutrina, podendo-se, com especial interesse, ver Eduardo Maia Costa in, “Breve nota sobre o novo regime punitivo do consumo de estupefacientes”, Revista do M.P., n.° 87, 2001, pág. 147 a 151, “O crime de tráfico de estupefacientes: o direito penal em todo o seu esplendor”, Revista do M.P., n.° 94, 2003, pág. 91 a 108, “Comentário ao Ac. do S.T.J. de 14.05.2003: Detenção de estupefacientes. Finalidade da detenção. Dever de investigação pelo tribunal”, Revista do M.P., n.° 95, 2003, pág. 121 a 131, e “Comentário ao Ac. 295/03 do T.C.: Constitucionalidade da integração no crime de tráfico de estupefacientes da detenção de quantidade superior a dez doses diárias para consumo pessoal”, Revista do M.P., n.° 96, 2003, pág. 157 a 169; José de Faria Costa in, “Algumas breves notas sobre o regime jurídico do consumo e do tráfico de droga”, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.° 134, 2002, pág. 275 a 280; João Conde Correia in, “Droga: exame laboratorial às substâncias apreendidas e diagnóstico da toxicodependência e das suas consequências”, Revista do C.E.J., n.° 1, 2004, pág. 77 a 99; Manuel Gonçalves Pereira in, “Detenção de estupefaciente em quantidade superior a dez doses diárias para consumo pessoal”, Revista do M.P., n.° 97, 2004, pág. 127 a 137; Patrícia Narí Agostinho in, “Posse de estupefacientes em quantidade que exceda o necessário para o consumo médio individual durante dez dias”, Revista do M.P., n.° 97, 2004, pág. 139 a 143; A. Lourenço Martins in, “Comentário ao Ac. de fixação de jurisprudência do S.T.J. n.° 8/2008: Droga. Aquisição ou detenção para consumo. Dose média individual de droga para período superior a dez dias”, Revista do M.P., n.° 115, 2008, pág. 171 a 230; e Celso Leal in, “Droga. Aquisição ou detenção para consumo. Da “não constitucionalidade” do Ac. Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/2008 do S.T.J.”, Revista do M.P., n.° 119, 2009, pág. 185 a 208).

Afigurando-se-nos, porém, que a “questão” – da “quantidade de estupefaciente” – não deixa de estar directamente relacionada com a pelo (4°) arguido, (D), ora recorrente, também suscitada quanto à “qualificação jurídica” (da matéria de facto), mais adequado se nos mostra de, oportunamente, em tal sede, a tratar, após pronúncia sobre o outro vício (de “contradição insanável”) pela mesma (3ª) arguida, recorrente, também imputado à “decisão da matéria de facto”, e em relação ao qual se nos mostra de dizer desde já que de forma alguma existe.

De facto, o vício de “contradição insanável da fundamentação” tem sido definido como aquele que ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 05.05.2021, Proc. n.° 40/2021 e de 11.03.2022, Proc. n.° 8/2022).

Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.

No caso dos autos, e se bem ajuizamos, é a recorrente de opinião que se verifica a dita contradição dado que considera que “por um lado, o Tribunal "a quo" dá como assente que foi o 4° arguido quem plantou e cultivou as plantas, segundo métodos que aprendeu na internet; mais referindo que a 3ª arguida, a arguida recorrente, apenas seguindo instruções do 4° arguido, executou algumas funções secundárias; por outro lado, dá-se como assente que a 3ª arguida e o 4° arguido, voluntária e conscientemente, plantaram árvore de marijuana” e “Isto é, entende a arguida recorrente que o Tribunal "a quo" não poderia dar como assente que foi o 4° arguido quem plantou e cultivou aquela planta de marijuana e, simultaneamente, dar como assente um facto conclusivo de que a arguida recorrente "agiu voluntaria e conscientemente" ao plantar aquela mesma planta, com o 4° arguido”; (cfr., concl. ll) e mm), a fls. 1939).

Porém, sem prejuízo do muito respeito devido a diverso entendimento, (e, como já deixamos adiantado), outra é a nossa opinião.

Com efeito, e admitindo-se que a descrição fáctica efectuada em sede da decisão da matéria de facto podia ser mais rigorosa, cremos que o que da mesma se deve – efectivamente – retirar é que os (3ª e 4°) arguidos agiram “conluiados” no que toca ao “cultivo da planta de marijuana” em questão.

Note-se pois até que, e ainda que a pedido do 4° arguido, foi a ora recorrente que “adquiriu as sementes”, e não obstante ter sido este 4° arguido a plantá-la, (ou melhor, a “semeá-la”), na mesma matéria de facto não consta (nem se extrai) nenhuma referência quanto a alegadas “funções secundárias” executadas pela 3ª arguida, ora recorrente, da mesma resultando, antes, a existência de um “projecto”, (“plano”), por ambos pensado, assumido e materialmente levado a cabo “em conjugação de esforços”.

De facto, ambos os arguidos, de acordo com a sua disponibilidade individual, asseguravam as condições de cultivo e crescimento da “planta”, proporcionando-lhe, especialmente, humidade, (água) e luminosidade para que se pudesse desenvolver como era pelos mesmos (conjuntamente) desejado e pretendido.

E, em conformidade com o assim exposto, visto está que apenas (muito) aparentemente existe a apontada “contradição”, clarificada ficando igualmente desta forma a pretensão quanto à qualificação da conduta da (3ª) arguida, ora recorrente, a título de um mero “cúmplice”, e não como “co-autora”, como foi, e que, nos exactos termos consignados, para todos os efeitos se confirma.

Isto dito, e voltando agora à atrás referida questão da “quantidade de estupefaciente”, (da qual também dependerá a solução no que toca à qualificação jurídico-penal da conduta da ora recorrente), eis o que se nos mostra de consignar.

Pois bem, no seguimento de algumas correntes que advogam que as “drogas” se deviam diferenciar pelo grau da sua “perigosidade” (para o seu consumidor), entendimentos existem no sentido de se deverem diferenciar (ou qualificar) em “drogas de alto – ou grande – risco” e “drogas de risco”, ou, com maior pormenor, em “drogas ultra-duras”, (v.g., a “heroína” e o “crack”), “drogas duras”, (a “morfina” e a “cocaína”), “drogas semi-duras”, (as “anfetaminas”, os “barbitúricos”, a “mescalina” e o “L.S.D.”), “drogas semi-suaves”, (o “ópio”, o “haxixe”, a “coca” e o “tabaco”), “drogas suaves”, (a “canabis”, o “álcool fermentado”, os “cogumelos alucinógenos” e a “codeína”), e, por fim, nas chamadas “drogas ultra-leves”, (onde se inclui o “chá”, o “café” e o “chocolate”); (cfr., o “Relatório da Comissão de Inquérito do Parlamento Europeu”, in Revista “Sub Judice”, n.° 3, 1992, pág. 99, e mesmo o Preâmbulo do D.L. n.° 5/91/M onde, ainda que sem aderir a esta “catalogação” se faz referência às “drogas leves”).

Não se negando que esta “classificação” tem o interesse de assumir a coragem de não fugir à polémica quanto às chamadas “drogas sociais”, outra classificação existe, assente na sua “natureza intrínseca” – diferenciando-se as “cultivadas” das “industrializadas” ou “fabricadas” – onde se procede à divisão das drogas em “naturais”, (onde por exemplo se incluem o “ópio”, a “coca” e a “canábis”), “semi-sintéticas”, (v.g., a “morfina”, a “heroína” e a “cocaína”), e “sintéticas”, (como a “metadona”, as “anfetaminas” e o “L.S.D.”).

Ora, no caso dos presentes autos, em causa estando a “canabis” – também conhecida por outros nomes, como, v.g., o já referido de “marijuana”, “erva”, “charro”, “ganja” ou “canhamo”, “ganza”, “maconha” ou liamba, etc…, e que, de acordo com o recente “Relatório Mundial sobre Drogas de 27.06.2022” elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, registou um (considerável) aumento no seu uso – cabe notar que a mesma é obtida através de um arbusto, (normalmente), a “canabis sativa”, (também podendo suceder com as espécies, ou sub-espécies, “índica” e “ruderalis”), cujo produto (mais) activo, (responsável por quase todos os seus efeitos característicos), o “Delta 9 tetrahidrocannabinol”, (“T.H.C.”), está especialmente concentrado na resina da parte superior da planta – cuja quantidade é influenciada pelo seu género, pelas condições ambientais (de luz, temperatura e humidade) durante o crescimento, e período (momento) de colheita – sendo considerada uma droga “perturbadora do sistema nervoso central”, podendo, (consoante as “espécies” e “quantidades consumidas”), provocar efeitos ou sintomas “psicadélicos” (leves), “alucinogénicos” e/ou “depressivos”.

Existem, (tanto quanto se julga saber), três “formas de preparação” da “canabis” para o seu consumo:
- “marijuana (ou erva)” – preparada a partir das folhas (secas), e sumidades floridas ou frutificadas da planta;
- “haxixe” – preparado a partir da resina da planta, a qual é prensada e transformada numa barra de cor castanha, (também conhecido como “chamom”), sendo, potencialmente, mais tóxico do que a “marijuana”, dado que o seu conteúdo em “T.H.C.”, (até 20%), é superior ao desta, (normalmente situando-se entre os 5% a 10%); e o,
- “óleo de canabis” ou “óleo de haxixe” – preparado a partir da mistura da resina com um dissolvente, (acetona, álcool ou gasolina), que se evapora em grande medida e dá lugar a uma mistura viscosa, (oleosa), cujas quantidades em “T.H.C.” são ainda mais elevadas, (podendo chegar aos 85%).

Estas – chamemos, para já – “substâncias” são, principalmente, consumidas por “inalação” (e “ingestão”), sendo que, quando fumada, a “canabis” é normalmente misturada com tabaco em cigarros feitos manualmente ou em cachimbos.

Considerando que no caso dos autos em causa está o “cultivo de – uma planta de – canabis” (para consumo), adequado se nos mostra de considerar também o que segue.

Como sabido é, a Lei n.° 17/2009, (com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016) – e que, como no seu art. 1° se estatui, “estabelece medidas de prevenção e de repressão da produção, do tráfico e do consumo ilícitos de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” – revogou o D.L. n.° 5/91/M de 28.01 que constituía o diploma legal que antes vigorava e regulava tal matéria; (cfr., art. 39°).

E, (como do seu art. 2° se pode constatar), esta mesma Lei n.° 17/2009, diversamente do que sucedia com o aludido D.L. n.° 5/91/M, incluiu, expressamente, as “plantas” no seu “âmbito de aplicação”, prescrevendo-se no (dito) art. 2°, n.° 1 que: “Os estupefacientes e as substâncias psicotrópicas sujeitos ao regime previsto na presente lei compreendem as plantas, as substâncias e os preparados que constam das tabelas I a IV anexas à presente lei, da qual fazem parte integrante”; (o mesmo sucedendo ao longo de diversos preceitos que integram o diploma, cfr., v.g., e especialmente, os art°s 3°, 5°, 7° a 17°, 23° e 24°).

Ponderando sobre a questão, cremos que tal terá sido o resultado de uma intenção legislativa no sentido de “clarificar” o “âmbito de aplicação” do referido diploma legal, (sendo, precisamente, esta a epígrafe do citado art. 2°), mostrando-se, aliás, de notar também que tal referência às “plantas” já constava de diplomas legais sobre a matéria anteriores ao aludido D.L. n.° 5/91/M, nomeadamente, no Decreto n.° 44763 de 04.12.1962, onde no seu art. 29° § único se referia (expressamente) como incluída na sua proibição e punição à “planta de género Cannabis indica ou sativa ou Papaver somniferum”, o mesmo sucedendo com o posterior Decreto n.° 46371 de 08.06.1965, que aquele (D.L. n.° 5/91/M) revogou, e que no seu art. 35°, n.° 3 se referia também ao “cultivo de plantas donde o estupefaciente se podia extrair”.

Na verdade, e relativamente à dita expressão – “planta” – adequado se mostra de aqui referir ainda que também no D.L. n.° 15/93 de 22.01 que define o regime sobre a mesma matéria em Portugal se faz idêntica referência, aí se estatuindo, logo no seu art. 2°, n.° 1 que “As plantas, substâncias e preparações sujeitas ao regime previsto neste decreto-lei constam de seis tabelas anexas ao presente diploma”, (redacção esta que, em face da anterior, existente do antecedente diploma que regulava a matéria, o D.L. n.° 430/83 de 13.12, e em que não se referia às “plantas”, mereceu o seguinte comentário de A. G. Lourenço Martins: “A referência às «plantas», que agora aparece em vários preceitos, visou «tornar mais claro que, por exemplo, a papoila do ópio ou papoila dormideira, tal como o arbusto da coca ou a planta da cannabis fazem parte, desde logo, do conteúdo da proibição» (extraído da «Nota Justificativa» que acompanhava o anteprojecto do GT)”, in “Droga e Direito – Legislação jurisprudência direito comparado comentários”, pág. 23).

Isto dito, e afigurando-se-nos que se começa a fazer (alguma) luz sobre a matéria e possível solução a adoptar, totalmente adequado se nos mostra de consignar (e repetir) que dúvidas não parece que devam existir que a “quantidade de estupefaciente”, (e/ou das “plantas”), constitui matéria de essencial – crucial – importância em processos como o que agora nos ocupa.

De facto, para além de ser “elemento típico” a ponderar nos termos do art. 14°, n.° 2 da Lei n.° 17/2009, pelo Tribunal de Segunda Instância invocado para a “qualificação jurídico-penal” da conduta dos ora recorrentes – e onde releva, especialmente, em termos de “quantidade de referência de uso diário”, remetendo para o “mapa” em anexo ao dito diploma legal – não se pode perder de vista que o dito “elemento” não deixa de ter igualmente especial importância para efeitos de “agravação da pena” nos termos do art. 10°, n.° 6, onde se prevê uma agravação da pena para o agente que “Corromper, alterar ou adulterar, por manipulação ou mistura, plantas, (…)”, (o que não deixa de implicar um apuramento sobre a quantidade da “planta” e das outras substâncias utilizadas), o mesmo sucedendo com o estatuído no art. 11°, n.° 1 e 2, onde, para efeitos da integração no crime de “produção e tráfico de menor gravidade” se deve atentar na “qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados (…)”.

Assim, e mostrando-se-nos de se dever agora atentar no referido “mapa da quantidade de referência de uso diário”, adequado se considera de, aqui, em seguida, o transcrever.

Tem o teor seguinte:

“ Mapa da quantidade de referência de uso diário
N.°
Plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV de consumo mais frequente
Tabela
Quantidade de referência de uso diário 【com notas】
1.
Heroína (diacetilmorfina)
I-A
0,25g【Notas 1 e 2】
2.
Metadona
I-A
0,1g【Nota 2】
3.
Morfina
I-A
0,2g
4.
Ópio (suco)
I-A
1g【Nota 3-(2)】
5.
Cocaína (cloridrato)
I-B
0,2g【Notas 2 e 4】
6.
Cocaína (éster metílico de benzoilecgo-nina)
I-B
0,03g【Notas 2 e 4】
7.
Canabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas)
I-C
1g【Notas 1】
8.
Canabis (resina)
I-C
0,5g【Notas 3-(3) e (4)】
9.
Canabis (óleo)
I-C
0,25g【Nota 3-(5)】
10.
Fenciclidina (PCP)
II-A
0,01g【Nota 3-(1)】
11.
Lisergida (LSD)
II-A
0,0002g【Nota 1】
12.
MDMA
II-A
0,15g【Notas 3-(1) e (6)】
13.
Anfetamina
II-B
0,2g【Nota 1】
14.
Metanfetamina
II-B
0,2g【Nota 1】
15.
Tetraidrocanabinol (Delta-9-THC)
II-B
0,05g
16.
Ketamina
II-C
0,6g【Nota 3-(1)】
Notas:
1. As quantidades de referência indicadas foram estabelecidas com base em dados da Junta Internacional de Fiscalização de Estupefacientes (INCB – International Narcotics Control Board).
2. As quantidades de referência indicadas foram estabelecidas com base em dados epidemiológicos referentes ao uso habitual.
3. As quantidades de referência indicadas referem-se:
(1) Às doses diárias mencionadas nos formulários oficiais de medicamentos;
(2) Às doses equipotentes à da substância de abuso de referência;
(3) À dose média diária com base na variação do conteúdo médio do THC existente nos produtos da Canabis;
(4) A uma concentração média de 10% de Delta-9-THC;
(5) A uma concentração média de 20% de Delta-9-THC;
(6) Às doses médias habituais referidas na literatura, que variam entre 80 mg e 160 mg (ca. 2 mg/kg) da substância pura. No entanto, pode aparecer misturada com impurezas (por exemplo, MDA, cafeína) ou ainda em associação com heroína.
4. Para a cocaína são especificadas doses diferentes, respectivamente para o cloridrato e para o éster metílico de benzoilecgonina, uma vez que existe uma evidente diferença na potência aditiva das duas composições químicas”.

Constatando-se que no “ponto 7°”, com referência à “Canabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas)”, nada se diz em relação ao seu “produto activo”, (“Delta 9 thetralidrocannabinol”, ou “T.H.C.”) – tão só se indicando o peso (líquido) de “1 grama” – como “quantidade de referência de uso diário”, quid iuris?

Ora, da reflexão que sobre tal “circunstância” nos foi possível efectuar, e sem prejuízo do muito respeito por opinião em sentido diverso, somos a concluir que, apresentando-se a “canabis” em “folhas e sumidades floridas ou frutificadas”, (“marijuana”, “erva”), tal “quantidade de referência de uso diário” é – terá de ser – aferida em face do seu (respectivo) “peso líquido”, sendo, assim, no caso, e como se viu, de “1 grama”.

Dir-se-á, (eventualmente), que tal entendimento não se mostra como o melhor ou o (mais) correcto, assim o considerando a ora recorrente que afirma essencialmente que se o “produto activo” proibido é o dito “thetrahidrocannabinol”, (ou “T.H.C.”), então a referida “quantidade” devia ser apurada não com referência ao (mero) “peso líquido”, mas com base na percentagem deste mesmo produto activo; (aliás, como sucede com a “resina” e óleo de “canabis”; cfr., pontos 8° e 9° do atrás exposto mapa).

Pois bem, compreende-se (perfeitamente) este raciocínio e ponto de vista.

Porém, em face do “regime legal” que sobre a matéria se encontra em vigor, não cremos que esta tenha sido a “opção legislativa” que se assumiu com o preceituado na Lei n.° 17/2009, (com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016).

Estas se nos apresentam dever (essencialmente) ser as razões para este nosso ponto de vista.

Desde já, a – própria – “diferença” na estatuição da “quantidade de referência de uso diário” quando a “canabis” se apresenta em “folhas e sumidades floridas ou frutificadas” e quando em “resina” e “óleo”: ali, em “peso líquido”, e, aqui, em concentração média de “percentagem de Delta-9-THC”, (substância esta que, aliás, é até – autonomamente – referenciada na Tabela II-B anexa ao diploma, e relativamente à qual o dito “mapa da quantidade de referência de uso diário” atrás exposto, também inclui no seu n.° 15).

E, dest’arte, motivos não parecendo existir para se considerar que em causa esteja uma “lacuna (involuntária)” – um mero “lapso” ou “esquecimento” do legislador, o que, (em nossa modesta opinião), não deixaria de constituir uma interpretação completamente contra legem e ao total arrepio das normas de interpretação da Lei consagradas no art. 8° do C.C.M., (em especial, o prescrito no seu n.° 3, onde se preceitua que “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”) – importa pois extrair as “devidas conclusões” sobre a questão.

Na verdade, e como já se referiu, compreende-se – perfeitamente – o inconformismo da ora recorrente, sendo, quiçá, de grande interesse ponderar na vantagem em se fazer (também) referência à “percentagem de T.H.C.” independentemente da forma de apresentação da “canabis”; (e, assim, também para a referenciada no “ponto 7°”, o que, aliás, é o que sucede em Portugal, com tabela anexa à Portaria n.° 94/96).

Porém, e como se deixou consignado, viável não se apresentando de considerar que a ausência de referência à “percentagem de T.H.C.” relativamente à “canabis” identificada no n.° 7 do dito mapa – “folhas e sumidades floridas ou frutificadas” – tenha como justificação uma “lacuna”, (ainda que “voluntária”), afastada se nos mostra qualquer possibilidade de, mesmo assim, (por “via judicial”), se pretender introduzir e exigir tal “critério” como condição “sine qua non” para efeitos de ponderação e decisão no que toca à sua “quantidade”; (cabendo aqui notar que a mesma “ausência” agora referida ocorre, igualmente, em idêntico mapa anexo à Lei n.° 2/2017 de 25.01 da República Democrática de Timor-Leste, que estabelece o “Regime Jurídico aplicável ao Tráfico e ao Consumo Ilícito de Estupefacientes”).

Aliás, há que ter igualmente em conta que o “mapa” em questão tão só se refere às “plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas Tabelas I a IV” – saliente-se – “de consumo mais frequente”, aí não figurando as quantidades de referência de uso diário de “todas” as “plantas, substâncias ou preparados” constantes das ditas Tabelas I a IV, certamente, não sendo por este facto, (ausência de indicação da percentagem do “produto activo”), que se deixará de ponderar e decidir da matéria e questão em conformidade.

Por sua vez, importa não olvidar que enquanto a “resina” e o “óleo” extraído da planta “canabis” obtém-se através de um (determinado) “processo de extracção”, (ou preparação, que, para além do demais, não deixa de alterar, completamente, a sua “aparência original”), as referidas “folhas e sumidades floridas ou frutificadas”, encontram-se, (digamos que), no seu “estado (absolutamente) natural”, (original), sem qualquer tipo de “processamento”, (com excepção da sua secagem), o que, não deixa de dever constituir uma “particularidade” a se ter em especial conta na (justificação da diferença de regime quanto à) forma de previsão e aferição em sede de “quantidade de referência do seu uso diário”; (cfr., v.g., a Tabela I-B, onde vem também referenciada a “folha da Erythroxilon coca e suas variedades, …, das quais se possa extrair a cocaína …”, e em relação à qual igualmente nada consta relativamente ao seu “produto activo”).

Por fim, cabe ainda notar que também o preceituado no art. 11° e 14° do aludido diploma legal se referem, expressamente, para efeitos da sua aplicação à “quantidade das – ou – de plantas”, fazendo-o, (importa referir), a par das (outras) “substâncias ou preparados”, o que para além de se dever considerar como demonstrador da intenção legislativa de encarar as “plantas”, (no seu estado natural), como incluídas no seu “âmbito de aplicação”, revela, simultaneamente, a “autonomia” que tal “circunstância” implica e que (parece) se lhes pretendeu atribuir.

Isto dito, (para não nos alongarmos), atenta a factualidade dada como provada – e ainda que melhor fosse que o exame laboratorial (pelo laboratório da P.J.) não deixasse de indicar a “quantidade” em questão nos termos pretendidos pela recorrente – cremos que se terá de decidir também na parte em questão no sentido de que censura não merece a decisão do Tribunal de Segunda Instância, ou seja, pela inexistência da assacada “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.

Porém, em conformidade com o que se acabou de expor, em causa estando (essencialmente) “uma – só – planta de canabis”, ainda em fase de crescimento, não adulta, com 85cm de altura, (e uns outros “vestígios” da mesma), cremos que mais adequado se nos mostra que a conduta dos (3ª e 4°) arguidos, ora recorrentes, seja considerada como integrando a prática em co-autoria do ilícito previsto no art. 14°, n.° 2, mas com referência – não ao art. 7°, mas sim – ao art. 11° da Lei n.° 17/2009, (alterado pela Lei n.° 10/2016), e, assim, punido com a pena prevista para o crime de “produção de menor gravidade”, ou seja, com a pena de prisão de 1 a 5 anos; (cfr., n.° 1).

Dest’arte, e sendo que o (4°) arguido D, ora também recorrente, coloca exacta e precisamente esta mesma questão em sede do seu recurso, imperativo se nos mostra de, em relação à mesma, lhe reconhecer razão, e, assim, nesta parte, julgar o recurso procedente, sendo igualmente de consignar que tendo agido em “co-autoria” com a (3ª) arguida C, aplicável é o preceituado no art. 392°, n.° 1 e 2, al. a) do C.P.P.M., implicando desta forma idêntica “qualificação jurídico-penal” para a sua conduta.

Cabendo então determinar as penas a aplicar ao “ilícito” pelos aludidos recorrentes cometido, ponderando na factualidade provada, e atentos os critérios a ter em conta em matéria de fixação da pena – especialmente, os art°s 40° e 65° do C.P.M., e sem se olvidar que nos termos do art. 28° do mesmo código “Cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes” – tem-se por justo e adequado fixar a pena de 1 ano e 6 meses de prisão para a (3ª) arguida C, e a de 1 ano e 9 meses de prisão para o (4°) arguido D, penas estas que, dada a necessidade de prevenção criminal, não se suspendem na sua execução; (cfr., art. 48° do C.P.M.).

Havendo que operar novo cúmulo jurídico com as penas que aos ora recorrentes foram aplicadas pelos crimes de “consumo ilícito de estupefacientes”, (4 meses de prisão), e de “detenção indevida de utensílio”, (4 meses de prisão), e em conformidade com o estatuído no art. 71° do C.P.M., vão os (3ª e 4°) arguidos respectivamente condenados na pena única de 1 ano e 9 meses de prisão e de 2 anos de prisão, (que, pelos indicados motivos, igualmente não se suspende na sua execução).

Tudo visto, resta decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixaram expostos, em conferência, acordam:
- negar provimento ao recurso da (3ª) arguida C;
- conceder provimento ao recurso do (4°) arguido D; e, atento o estatuído no art. 392° do C.P.P.M., em,
- alterar a decisão do Tribunal de Segunda Instância, condenando-se ambos os referidos (3ª e 4°) arguidos como co-autores materiais da prática de 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 e art. 11°, n.° 1, al. 1) da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 1 ano e 6 meses de prisão e de 1 ano e 9 meses de prisão, respectivamente, e, em (novo) cúmulo jurídico, nas penas únicas de 1 ano e 9 meses de prisão e de 2 anos de prisão (respectivamente).

Pelo seu decaimento pagará a (3ª) arguida C a taxa de justiça de 12 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 04 de Novembro de 2022

Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
1 Auto de busca e apreensão a fls. 803 dos autos.
2 Fls. 913 e 914 dos autos.
3 Relatório pericial a fls. 1177 a 1192 dos autos.
4 Relatório pericial a fls. 1162 a 1175 dos autos.
5 Auto de consulta do telemóvel e cartão inteligente a fls. 860 e 861 dos autos.
6 Auto de busca e apreensão a fls. 821 dos autos.
7 Relatório pericial a fls. 1177 a 1192 dos autos.
8 Cfr. o Acórdão proferido pelo TSI no Processo n.º 516/2011.
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