Processo nº 98/2022
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. “ADMINISTRAÇÃO DOS CONDÓMINOS DO EDIFÍCIO A”, (“甲管理委員會”), A., propôs no Tribunal Judicial de Base acção declarativa de condenação com processo ordinário contra a “B”, (“乙”), R., devidamente identificada nos autos.
A final, pediu a procedência da sua acção, e, em consequência, que fosse:
“(i) reconhecido aos condóminos o direito de propriedade sobre o piso de estacionamento sito no primeiro andar do pódium comum aos blocos I e II do Edifício A, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° XXXXX-A;
(ii) ordenada a restituição do piso de estacionamento ora reivindicado aos seus únicos e legítimos titulares, ou sejam, os condóminos;
(iii) condenada a R. a pagar aos condóminos do Edifício A um indemnização no valor de MOP1.064.120,00, pelos lucros cessantes resultantes da impossibilidade de exploração pela administração do condomínio do piso de estacionamento reivindicado, acrescida do juros vincendos, desde a citação até integral pagamento.
(iv) condenada a R. a pagar uma a quantia de MOP6.500,00, a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso culposo no cumprimento da decisão que ordenar a restituição do prédio reivindicado;
e, em qualquer dos casos,
(v) condenada a R. em custas, procuradoria e quaisquer outras despesas em que administração do condomínio haja de incorrer, nomeadamente, para efeitos de execução da sentença.
(…)”; (cfr., fls. 2 a 12 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, por sentença do Mmo Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial julgou-se parcialmente procedente a dita acção, (reduzindo-se o valor da indemnização pretendida a título de lucros cessantes de “MOP$1.064.120,00” para o de “MOP$953.490,00”; cfr., fls. 568 a 584-v).
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Em sede do recurso que do assim decidido interpôs a R. proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 05.05.2022, (Proc. n.° 183/2022), com o qual – aderindo à fundamentação exposta na sentença recorrida (nos termos do art. 631°, n.° 5 do C.P.C.M.) – negou provimento ao recurso, confirmando (totalmente) a decisão recorrida; (cfr., fls. 667 a 686-v).
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Ainda inconformada, traz a R. o presente recurso.
A final das suas alegações apresenta conclusões onde – em síntese – suscita as seguintes questões:
- i) “nulidade da decisão”, (cfr., concl. 1ª a 4ª);
- ii) “errada interpretação e aplicação do disposto no art. 1235° do C.C.M.”, (cfr., concl. 5ª a 23ª);
- iii) “violação do disposto no art. 326° do C.C.M.”, (cfr., concl. 24ª a 31ª);
- iv) “errada interpretação e aplicação do disposto nos arts 487° e 560° do C.C.M.”, (cfr., concl. 32ª a 40ª); e,
- v) “errada interpretação e aplicação do disposto no art. 333°, n.° 3 do C.C.M.”; (cfr., concl. 41ª a 44ª, a fls. 697 a 706 e 48 a 79 do Apenso).
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Respondendo, pugna a A. pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 713 a 731).
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Cumpre decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
Dos factos
2. O Tribunal Judicial de Base considerou provados os seguintes “factos”, (que, em sede do anterior recurso, foram integralmente confirmados pelo Acórdão agora recorrido):
“1. O piso de estacionamento reivindicado pela autora situa-se no primeiro andar do pódium comum aos blocos I e II do Edifício A, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX-A e consiste num auto-silo em elevação, com a área bruta de construção de 2476 m2, com 64 lugares de estacionamento para automóveis e 50 lugares de estacionamento para motociclos. (已證事實A項)
2. O terreno onde foi construído o empreendimento Edifício A, em regime de contrato de desenvolvimento para a habitação, foi concedido à “C” ao abrigo do Despacho n.º 32/SAES/86, publicado no Boletim Oficial de Macau, Número 39, Suplemento, de 29 de Setembro de 1986. (已證事實B項)
3. Em 08/06/1992 foi constituída a propriedade horizontal do referido prédio. (已證事實C項)
4. O piso de estacionamento situado no 1.º andar do pódium comum aos blocos I e II do Edifício A consiste numa parte comum do condomínio de acordo com a memória descritiva das fracções autónomas de fls. 18 e ss. do doc. 4 e com o extracto da descrição da PH constante da certidão emitida 23/12/2003 pela Conservatória do Registo Predial. (已證事實D項)
5. A partir de 21/11/2002, a ré explora comercialmente o parque de estacionamento reivindicado. (已證事實E項)
6. Mediante cartas de 2003/11/29, 2003/12/19, 2003/12/21 e 2003/12/26 a autora pediu à ré a restituição do piso de estacionamento reivindicado. (已證事實F項)
7. Ao recusar-se a desocupar e restituir o piso de estacionamento reivindicado, a R. impediu os condóminos do Edifício A e a respectiva administração do condomínio de usarem e de fruírem aquele espaço. (已證事實G項)
8. A ré foi constituída por escritura de 21 de Novembro de 2002. (已證事實H項)
9. São seus sócios e administradores os seguintes indivíduos: D (丁), E (戊), F (己) e G (庚). (已證事實I項)
10. No dia 05 de Setembro de 1992, a H, na qualidade de Procuradora da Concessionária do Terreno onde está implantado o prédio – “C” - concedeu a I e J o direito de administrar e utilizar o piso ora reivindicado. (已證事實J項)
11. No dia 29 de Dezembro de 1992 o direito assim adquirido por I e J foi por estes cedido, com autorização da H, procuradora da concessionária “C”, a E, F e D. (已證事實K項)
12. Foi expressamente estipulado por escrito que os cedentes concordam que os cessionários constituam no futuro uma sociedade comercial provisoriamente denominada por “K” para figurar como cessionário do direito de utilização. (已證事實L項)
13. Os cessionários constituíram então a sociedade ré a qual ao abrigo da cessão referida passou a exercer os direitos dela emergentes. (已證事實M項)
14. Desde a data da constituição da Ré em 21 de Novembro de 2002 até ao presente, a Ré tem explorado o piso de estacionamento referido na al. A dos Factos Assentes, cobrando, pelo menos até a interposição da presente acção em 08 de Novembro de 2004, MOP500,00, MOP600,00 ou MOP700,00/mês por cada lugar de estacionamento para automóvel e MOP150,00/mês por cada lugar de estacionamento para motociclo ou ciclomotor. (對待證事實第1條的回答)
15. Desde a data da constituição da Ré em 21 de Novembro de 2002 até ao presente, os 50 lugares de estacionamento para motociclo/ciclomotor têm estado sempre ocupados permanentemente cobrando a Ré aos respectivos utentes uma contraprestação mensal. (對待證事實第2條的回答)
16. E apenas uma parte dos 64 lugares de estacionamento para automóvel tem estado sempre ocupada permanentemente cobrando a Ré aos respectivos utentes uma contraprestação mensal, com o esclarecimento de que os lugares de estacionamento para automóvel que não têm estado ocupados permanentemente bem como o espaço do piso não destinado a estacionamento, vêm sendo utilizados pela Ré para permitir o estacionamento de automóveis, motociclos ou ciclomotores por outrem cobrando uma contraprestação calculada por hora de permanência. (對待證事實第2條的回答)
17. Por causa da ocupação da Ré, a Autora ficou privada do uso e da fruição do piso de estacionamento. (對待證事實第2條的回答)
18. As contraprestações, referidas nas respostas dadas aos quesitos 1º e 2º, pagas pelos utentes do piso de estacionamento foram recebidas pela Ré como rendimentos da sua exploração comercial. (對待證事實第3條的回答)
19. Concluída a construção do Edifício A em 1989, a C. passou a administrar as partes comuns, incluindo o piso de estacionamento, do Edifício. (對待證事實第4及5條的回答)”; (cfr., fls. 671 a 672-v).
Do direito
3. Com o presente recurso insurge-se a R. contra a decisão ínsita no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a sentença proferida pelo Mmo Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base, e que, como atrás se referiu, julgou parcialmente procedente a “acção de reivindicação” pela A. proposta.
Em sede do seu recurso coloca a R., ora recorrente, as “questões” seguintes:
- i) “nulidade da decisão”, (cfr., concl. 1ª a 4ª);
- ii) “errada interpretação e aplicação do disposto no art. 1235° do C.C.M.”, (cfr., concl. 5ª a 23ª);
- iii) “violação do disposto no art. 326° do C.C.M.”, (cfr., concl. 24ª a 31ª);
- iv) “errada interpretação e aplicação do disposto nos arts 487° e 560° do C.C.M.”, (cfr., concl. 32ª a 40ª); e,
- v) “errada interpretação e aplicação do disposto no art. 333°, n.° 3 do C.C.M.”; (cfr., concl. 41ª a 44ª).
Porém, e sem prejuízo do muito respeito por opinião diversa, nenhuma razão lhe assiste, muito não se mostrando necessário consignar para o demonstrar.
Vejamos.
Em causa já não estando a “decisão da matéria de facto”, (que a ora recorrente incluiu no seu anterior recurso para o Tribunal de Segunda Instância mas que foi integralmente confirmada), e, tendo – como se referiu – o Acórdão recorrido aderido à fundamentação exposta na sentença do Tribunal Judicial de Base, útil se apresenta aqui recordar o teor do que nos presentes autos se decidiu.
Pois bem, tem a decisão – na parte agora em questão – o teor seguinte:
“(…)
4.1. Natureza do piso de estacionamento em questão
Resulta do facto provado n.º 4 que segundo a memória descritiva das fracções autónomas do edifício (a fls. 42 dos autos), o piso de estacionamento em questão se integra nas partes comuns do edifício previstas pelo art.º 1421.º, n.º 2 do então vigente CC.
Portanto, seja ao abrigo do art.º 1421.º, n.º 2 do antigo CC, seja ao abrigo do art.º 1324.º, n.º 1, alíneas i) e j) do actual CC, seja como for, é de considerar os lugares de estacionamento em causa como parte comum do edifício.
Sabe-se do art.º 1323.º, n.º 1 do actual CC que é dúplice o direito dos condóminos sobre o prédio; o primeiro é o exclusivo e autónomo da fracção autónoma que pertence a cada condómino, e o segundo, a co-propriedade das partes comuns do condomínio comum a todos os proprietários das fracções autónomas
Ou seja, por via de regra, devem-se considerar os condóminos como contitulares do piso de estacionamento em causa.
Por um lado, quanto aos fundamentos invocados pela ré nas suas alegações jurídicas, o douto TSI já conheceu da mesma questão no acórdão n.º 906/2020, de 03/12/2020, no qual se lê em termos explícitos:
"2) – Nas alegações do recurso, a Ré pretende defender que as partes comuns não pertencem aos condóminos, mas sim continuam a ficar na mão da concessionária (e esta transmitiu para terceiros validamente), tendo alegado o seguinte:
“(…)
Além disso, prescreve o art.º 2.º, n.º 1, alíneas e) e f) do então aplicável DL n.º 31/85/M: 1. Os projectos apresentados para os fins previstos no artigo 1.º devem ser instruídos com a memória descritiva das fracções autónomas, assinada pelo proprietário do prédio, da qual devem constar: e) A indicação das partes comuns referidas no n.º 2 do artigo 1421.º do Código Civil, que façam parte do edifício; j) Os direitos eventualmente atribuídos aos condóminos sobre as partes comuns, designadamente quanto ao uso de lugares de parqueamento, terraços ou logradouros.
Sabe-se assim que segundo a lei então aplicável, na constituição da propriedade horizontal, não se podiam registar autonomamente o inteiro parqueamento ou os lugares de estacionamento no condomínio.
O que não quer dizer, porém, que os proprietários adquirentes das fracções autónomas do "Jardim M" sejam proprietários do piso de estacionamento.
Nos termos do art.º 32, n.º 1 do DL n.º 124/84/M: 1. Nos termos das condições contratuais estabelecidas no artigo 2.º deste diploma para os contratos de desenvolvimento, serão propriedade da empresa concessionária todos os fogos construídos que não forem cedidos à Administração a título de contrapartida pela concessão do terreno e dos demais benefícios recebidos.
Por isso, eram propriedade da empresa concessionária todos os fogos construídos que não fossem cedidos à Administração a título de contrapartida pela concessão do terreno e dos demais benefícios recebidos.
Além disso, os art.º 34 e art.º 35 do DL n.º 124/84/M estabelecem o preço de venda das habitações, sem incluir nele o preço dos lugares de estacionamento, ou seja, o preço de venda das habitações não continha o dos lugares de estacionamento.
De facto, resulta do art.º 6.º do mesmo DL que tinham acesso às habitações residentes de Macau de disponibilidade económica inferior a determinados valores. Ou seja, o "Jardim M", agora habitação económica, destinava-se a resolver o problema de habitação de residentes de Macau de exíguos meios económicos que não podiam dar-se ao luxo de comprar uma casa particular.
Além disso, no momento da constituição da propriedade horizontal, eram poucos possuidores de carros particulares em Macau, os quais gozavam, geralmente, de bem-estar económico. Por outras palavras, os adquirentes do "Jardim M" eram obviamente "sem-carros" de famílias de baixo rendimento.
Por outro lado, indica o art.º 16.º do documento 11 da petição inicial:
1. O segundo outorgante compromete-se a assegurar o serviço de administração das partes comuns do edifício, de acordo com o Regulamento Geral de Administração dos Edifícios promovidos em regime de Contratos de Desenvolvimento, designadamente:
a) Gerir o uso dos espaços comuns do edifício destinados a parqueamento, mediante o acordo prévio dos compradores;
Resulta que o contrato de desenvolvimento para a habitação estabelece em termos explícitos que a administradora do parqueamento era a concessionária.
Nem os factos provados nem a base instrutória indicam que os adquirentes das fracções autónomas do "Jardim M", aquando do exacto momento da compra, se tenham oposto à administração do parqueamento por parte da concessionária.
O que quer dize que ao comprar as fracções autónomas do "Jardim M", os adquirentes não contavam nada com gozar da propriedade do piso de estacionamento.
O motivo por que a sociedade concessionária incluiu o parque de estacionamento na construção do "Jardim M" é por respeitar os condicionalismos urbanísticos nos termos do art.º 14.º do Decreto-Lei nº 124/84/M, segundo o qual os edifícios em regime de propriedade horizontal teriam obrigatoriamente parques de estacionamento.
À luz do art.º 32.º, n.º 1 do supra citado Decreto-Lei nº 124/84/M, pode-se entender que o parque de estacionamento já construído pertence à concessionária, i.e., o Decreto-Lei não prevê em termos explícitos quem é o proprietário do parque de estacionamento já construído pela concessionária.
Na realidade, o Decreto-Lei n.º 13/93/M revogou o Decreto-Lei nº 124/84/M. Lê-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 13/93/M:
Com o presente diploma pretende-se adequar à realidade presente a figura dos contratos de desenvolvimento para a habitação, regulamentando-se, simultaneamente, áreas que anteriormente não se encontravam contempladas.
São assim regulamentados neste diploma aspectos relacionados com a concessão dos terrenos, com a elaboração de projectos e com a comercialização dos fogos construídos que ficam pertença da empresa concessionária.
Evidentemente com "regulamentando-se, simultaneamente, áreas que anteriormente não se encontravam contempladas" no preâmbulo do diploma refere-se à impossibilidade de registrar autonomamente o parque e os lugares de estacionamento para venda.
O motivo é que assim prescreve o art.º 2.º, n.º 3, alíneas d) e e) do Decreto-Lei n.º 13/93/M: 3. As empresas concessionárias obrigam-se: d) A entregar à Administração uma percentagem das fracções, concluídas e prontas a ocupar, a título de contrapartida da concessão do terreno e dos demais benefícios recebidos, a calcular nos termos do artigo 17.º; e) A comercializar em proveito próprio as restantes fracções, observando o disposto no presente diploma;
Assim prescreve o art.º 13.º (sic – N. da T.), n.º 3, alíneas d) e e) do Decreto-Lei n.º 13/93/M: d) As áreas de estacionamento podem ser constituídas em fracção autónoma para venda aos condóminos ou a terceiros, gozando aqueles do direito de preferência em relação à primeira alienação das partes daquela fracção autónoma; e) O direito de preferência referido na alínea anterior pode ser exercido pelos condóminos até 30 dias após terem recebido o respectivo termo de sancionamento de venda da habitação ou, no caso dos condóminos de fracções não habitacionais, até 30 dias após a celebração do respectivo contrato-promessa de compra e venda;
Por outras palavras, o art.º 13.º (sic – N. da T.), n.º 3, alíneas d) e e) do Decreto-Lei n.º 13/93/M prevê explicitamente a possibilidade de registar autonomamente e alienar os lugares de estacionamento, o que significa que o parque de estacionamento já construído, sendo fracções autónomas, pertence à concessionária.
O que conta ainda mais é o facto já acima referido, a saber, ao comprar as fracções autónomas do "Jardim M", os adquirentes não contavam nada com gozar da propriedade do piso de estacionamento.
Vê-se então que o Decreto-Lei n.º 13/93/M nasceu precisamente para responder à necessidade real de registar autonomamente e alienar os lugares de estacionamento. Foi o primeiro diploma a prescrever explicitamente sobre a possibilidade de registar e vender autonomamente os lugares de estacionamento, satisfazendo assim a exigência social.
Trata-se de uma disposição legal directa sobre o conteúdo de determinada relação jurídica, sem contemplar os factos causadores da mesma relação jurídica. Portanto, ao abrigo da segunda parte do art.º 11.º, n.º 2 do CC (correspondente ao art.º 12.º, n.º 2 do CCP de 1966), o novo diploma, o Decreto-Lei n.º 13/93/M acima referido, aplica-se imediatamente às relações jurídicas já constituídas e ainda existentes no dia da sua entrada em vigor.
Como a concessionária já adquiriu a propriedade do piso de estacionamento segundo a lei acima mencionada, ainda que revogada posteriormente, o direito adquirido não é colocado em causa.
Além disso, a Lei n.º 25/96/M também revogou o disposto nos artigos 1414.º a 1438.º do CCP de 1966 acima mencionado, bem como o Decreto-Lei n.º 31/85/M. Prescreve o seu art.º 2., n.º 2: Podem ainda constituir fracções autónomas os lugares de estacionamento, desde que o respectivo espaço seja suficientemente delimitado, mesmo que não constituam unidades distintas e isoladas entre si.
Prescreve, aliás, o art.º 10.º, n.º 2, alínea d) e n.º 3 da Lei 25/96/M: 2. Presumem-se ainda comuns: d) Os lugares de estacionamento, quando não constituam fracções autónomas nos termos do artigo 2.º, n.os 2 e 3; 3. O título constitutivo pode afectar ao uso exclusivo de um condómino zonas das partes comuns previstas na alínea b) do n.º 1 e na alínea d) do n.º 2, devendo as mesmas ficar delimitadas nos termos do n.º 3 do artigo 2.º.
Vê-se daqui que depois da alteração, o parqueamento ou os lugares de estacionamento podem ser registados autonomamente enquanto fracções autónomas; mesmo não constituindo fracções autónomas, é apenas por presunção que se integram nas partes comuns do edifício.
Resumindo todo o acima referido, segue-se que o registo do parqueamento do "Jardim M" como parte comum do edifício se deveu somente à impossibilidade de registar autonomamente os lugares de estacionamento determinada pela legislação então aplicável. Não é verdade que logo desde o início tenha sido projectado como parte comum do edifício.
Prescreve o art.º 8.º, n.º 1 do CC: "A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada."
Ao interpretar a lei, não deve cingir-se à letra da lei. É preciso ter em conta o contexto da legislação e os factores históricos.
Apesar de o piso de estacionamento do "Jardim M" resultar registado como parte comum do edifício, considerados o contexto da legislação e os factores históricos, não se pode ter a certeza que as autoras sejam proprietárias do piso de estacionamento Ou seja, com a conclusão atingida através da análise da disposição legal acima mencionada pode-se derrubar a presunção de o parqueamento pertencer somente às partes comuns do edifício, presunção essa prevista pelo art.º 1421.º, n.º 2, alínea d) do CCP de 1966.
Ou seja, já que nem os factos provados nem a base instrutória demonstram que as autoras sejam proprietárias do piso de estacionamento do "Jardim M", a recorrida, de facto, não é legítima para instaurar a presente acção.
De resto, tal como dito atrás, ao abrigo da lei então aplicável, no momento de constituição da propriedade horizontal, o parqueamento no condomínio não podia ser registado autonomamente enquanto um parqueamento inteiro ou lugares de estacionamento. Foi uma situação ocasionada pela imperfeição legislativa de então.
O que é mais importante é o facto já mencionado atrás que os adquirentes das fracções autónomas do "Jardim M" eram evidentemente "sem carros" de famílias de rendimento diminuto. Não é minimamente possível que, tais pessoas, ao comprar as fracções autónomas, tenham contado com um gozo futuro da propriedade de lugares de estacionamento.
Suspeita-se que a recorrida esteja a abusar do direito, à luz do art.º 326.º do CC, por pretender obter o piso de estacionamento aproveitando-se da imperfeição da legislação de então.
Nos termos do art.º 568.º do CPC, "Quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um acto simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objectivo anormal prosseguido pelas partes."
O tribunal recorrido ponderou somente o disposto no art.º 1323.º do actual CC, sem ter interpretado de maneira abrangente o todo em função da natureza do piso de estacionamento em questão, nem tendo em conta simultaneamente a lei acima citada e o contexto legislativo, o que faz que a decisão recorrida enferme do vício de aplicação errónea da lei.
(…)"
Ora, salvo o melhor respeito, não encontramos nenhum fundamento legal para defender a tese da Ré. O artigo 32º do DL nº 124/84/M, diploma vigente na altura, é muito claro ao preceituar:
Se a tese da Ré vingasse, significaria que as partes comuns, nomeadamente o acesso público, os elevadores, as escadas etc, todas as partes comuns são da concessionária, sem a autorização desta os condóminos não podem utilizar, até, a concessionária podia cobrar preços a quem utilizassem tais partes comuns! Uma tese absurda!
Mais, a tese da Ré veio a fazer uma “revolução” radical em matéria de propriedade horizontal, pois, para além das fracções autónomas e partes comuns do condomínio, existiria ainda uma terceira parte: “partes comuns” pertenciam à concessionária, relativamente às quais não se sabe como se definiria e como se registaria!!
É de ver que falecem nitidamente estes argumentos da Ré.”
O nosso parecer é que o veredicto do TSI é correctíssimo e por isso digno de adesão.
O que significa que é de considerar o piso de estacionamento como parte comum do edifício, enquanto os condóminos, co-proprietários do piso de estacionamento.
Nem o outro fundamento da ré (i.e., a verdadeira proprietária do piso de estacionamento seria C) é capaz de colocar em questão tal convicção, pois que o processo n.º CV1-04-0006-CAO, instaurado pela C e julgado improcedente, já transitou em julgado.
Pelas razões acima mencionadas, este tribunal deve considerar o piso de estacionamento como parte comum do edifício.
4.2. Os pedidos n.º 1 e n. 2 da autora
Tendo qualificado o piso de estacionamento como parte comum do edifício, está-se em condições para apreciar o pedido n.º 1 da autora.
Nos termos do art.º 1235.º do CC:
"1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei."
Como se sabe, a acção de restituição da coisa é composta de duas partes: a primeira é que a autora deve demonstrar o seu direito de propriedade; a segunda é indagar se a favor da ré estão razões legítimas para não restituir a coisa. Uma vez demonstrado e reconhecido o direito de propriedade da autora, a restituição só pode ser recusada pela ré nos casos previstos na lei.
No presente caso, o 1.º pedido apresentado pela autora é reconhecer que o direito de propriedade sobre o piso de estacionamento em causa pertence aos condóminos. Enquanto entidade administradora, a autora é legítima para apresentar o pedido (vd. a decisão a fls. 391 dos autos; o 1.º resultado de votação a fls. 16 dos autos; o art.º 1359.º, n.º 3 do CC já substituído pela Lei n.º 14/2017 e o art.º 45.º, n.º 3 da Lei n.º 14/2017).
Segundo a análise acima realizada, o piso de estacionamento em causa é parte comum do edifício.
Pelas razões referidas nos últimos dois parágrafos, é de considerar que a autora já demonstrou, nos termos do art.º 1235.º, n.º 1 do CC, que o direito de propriedade sobre o piso de estacionamento pertence aos condóminos.
Assim sendo, a ré pode continuar a deter a coisa da qual a autora requer a restituição mas só a condição de alegar e demonstrar fundamentos legítimos legalmente admissíveis, nos termos do art.º 1235.º, n.º 2 do CC.
Passamos a analisar se assistem a ré fundamentos legítimos.
Salvo o devido respeito, acreditamos que a resposta é de não.
Em primeiro lugar, tal como referido na análise 4.1, o piso de estacionamento é parte comum do edifício. Não é verdade o que a ré pretende, segundo o qual o piso de estacionamento pertenceria à concessionária C De facto, já foi julgado improcedente o processo n.º CV1-04-0006-CAO, no qual C requeria ser declarada proprietária do piso de estacionamento por usucapião. A decisão já transitou em julgado.
Já que C não é proprietária do piso de estacionamento, e sem o consentimento unânime de todos os condóminos, não é vinculativa para os pequenos proprietários do edifício a disposição do piso de estacionamento ou a atribuição do direito de uso a terceiro através de negócio jurídico (em vez de mediante meios regulares tais como a assembleia geral dos condóminos) – vd. o facto provado 10.º. Isto quer dizer que os factos provados 10.º a 13.º não são capazes de sustentar a legitimidade da ré nos termos do art.º 1235.º, n.º 2 do CC.
Para além dos fundamentos acima referidos, merece ainda ser mencionado que também no processo n.º CV2-17-0088-CAO se declarou que a ré no presente processo não gozava de qualquer direito de operar comercialmente ou usar o piso de estacionamento em questão. Ordenou-se que cessasse a sua operação comercial no parqueamento e o uso. A decisão já transitou em julgado (vd. a fls. 503 a 550). A parte desfavorável para a ré B da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância no processo n.º CV2-17-0088-CAO, sobretudo as primeiras duas decisões (vd. os pontos 1 e 2 a fls. 518 e verso dos presentes autos), produz autoridade do caso julgado material para com a ré no presente caso. Por outras palavras, devido à autoridade do caso julgado material do processo acima referido, é de considerar também no presente processo que a ré não goza de qualquer direito de operar comercialmente ou usar o piso de estacionamento em questão.
São já bastantes os fundamentos acima invocados para demonstrar que a ré não conseguiu provar a sua legitimidade para continuar a deter o piso de estacionamento em questão nos termos do art.º 1235.º, n.º 2 do CC. É de, portanto, julgar procedentes os pedidos n.º 1 e n. 2 da autora.
4.3. O pedido n.º 3 da autora
A autora solicitou que se condenasse a ré a indemnizar os condóminos do Edifício A em MOP 1.064.120,00, pelos lucros cessantes ocasionados pela impossibilidade de usufruir dos lugares de estacionamento por parte da Administração dos Condóminos.
Já no processo n.º CV2-17-0088-CAO se condenou a ré no processo em apreço a indemnizar os pequenos proprietários que tinham instaurado a acção. Lê-se no acórdão recorrido naquele processo:
“Relativamente ao prejuízo que os Autores tiveram na sequência da exploração e utilização dos lugares de estacionamento, alegam que os mesmos correspondem ao montante das rendas que a exploração comercial dos lugares de estacionamento permitiriam proporcionar aos Autores, montante este devido a título de lucro cessante.
Quanto à responsabilidade da Ré, defendem que a mesma emerge do facto de a exploração e utilização dos lugares de estacionamento ter sido feita contra a vontade dos Autores que impediu que estes os explorassem comercialmente.
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Dispõe o artigo 477º, nº 1, do CC, “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Dessa norma vê-se que a ocupação de um imóvel alheio, por si, não basta para impor qualquer obrigação de indemnizar ao respectivo ocupante. É preciso que haja lesão ilícita e culposa de direitos ou interesses legalmente protegidos da qual resultam danos.
Além disso, é indispensável que haja nexo de causalidade entre a lesão e o dano. Com efeito, dispõe o artigo 557º do CC que “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”
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Está já demonstrado que a Ré ocupa os lugares de estacionamento sem dotar de qualquer título sendo, portanto, a ocupação ilegítima.
O que está em causa é o direito de usar, fruir e dispor dos lugares de estacionamento pertencentes aos Autores, direito este previsto no artigo 1229º do CC cuja violação merece tutela do direito.
Mais está assente que a Ré recusou aceder ao pedido de cessação da exploração e restituição dos lugares de estacionamento ao condomínio.
Normativamente “A culpa pode ser definida como o juízo de censura ao agente por ter adoptado a conduta que adoptou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adoptar conduta diferente.”
E a culpa “É um juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor.”
Foi já dito que a Ré tem vindo explorar e usar os lugares de estacionamento sem título violando os direitos dos Autores. Isso demonstra que teve um comportamento contrário às respectivas normas legais cuja voluntariedade é evidenciada pela recusa de adopção de uma comportamento diferente.
No que se refere aos danos, os Autores limitaram a alegar o valor das rendas cobradas pela Ré ao longo dos anos, a taxa de ocupação e a impossibilidade de uso e exploração comercial dos mesmos lugares de estacionamento pelos Autores em virtude da recusa da Ré de restituir os lugares de estacionamento, factos estes dados como provados pelo tribunal.
Do acima exposto vê-se que estão reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, quais sejam, o facto ilícito, a culpa, o dano (a impossibilidade de uso e exploração comercial dos mesmos lugares de estacionamento) e nexo de causalidade entre o dano e o facto ilícito.
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Porém, a impossibilidade de uso e exploração comercial dos mesmos lugares de estacionamento consubstancia um mero dano de privação de uso destes bens, mais especificamente a fruição dos mesmos, desde 21 de Novembro de 2002.
Com efeito, não há nenhum facto, aliás, nem sequer foi alegado, sobre o concreto aproveitamento que os Autores pretenderam, no passado, e pretendem, no futuro, dar a esses bens, nomeadamente ocupando os mesmos para o estacionamento dos seus veículos, cedendo o gozo dos mesmos a terceiros mediante uma contraprestação qualquer, etc.
Portanto, o dano que tiveram e terão não passa da impossibilidade abstracta de ter estes bens ao seu dispor para os fins previstos no artigo 1229º do CC durante o período de ocupação.
No entanto, não deixa de ser um dano real correspondente à perda da citada faculdade.
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Tem-se discutido na doutrina e na jurisprudência portuguesa se a mera privação de uso causada pela ocupação constitui dano autonomamente indemnizável independentemente da prova dos concretos prejuízos.
Como se pode constatar da análise que se segue, o que se equaciona é se, nesse tipo de casos, é imprescindível dar mais um passo a fim de demonstrar a existência de um dano patrimonial correspondente ao efeito dessa privação no património da Autora – cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 26 de Outubro de 2000, CJ, Ano XXV, Tomo IV – 2000, pg 268.
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Demonstrado a existência de um dano, dispõe do artigo 556º do CC “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”.
Por força do princípio da reconstituição natural aí consagrado, assiste aos Autores o direito de ver a referida faculdade reintegrada na sua esfera jurídica a fim de restabelecer o equilíbrio patrimonial perdido.
Contudo, a faculdade de usar, fruir e dispor ou não dos lugares de estacionamento dos autos durante o período de tempo em que estavam ocupados pela Ré jamais pode ser reintegrada na esfera jurídica dos Autores nos exactos termos em que se manifesta a privação.
Por isso poder-se-á, na tentativa de ainda respeitar o princípio de reconstituição natural, obrigar a Ré a facultar aos Autores um outro espaço com as mesmas ou semelhantes características dos lugares de estacionamento pelo tempo por que durou a ocupação.
Trata-se de uma forma sucedânea para, de certa maneira, repor a referida faculdade secundária na esfera jurídica dos Autores.
Contudo, por ser deveras difícil encontrar um espaço igual em termos de tamanho e características e localizado no mesmo condomínio com a mesma comodidade para os Autores, a reconstituição natural do dano nesses termos não resolve o problema em equação relativamente à parte não totalmente reconstituída.
Daí que, com toda a razão defende António Santos Abrantes Geraldes que a perda consubstancia “uma lacuna insusceptível de ser naturalmente reconstituída”.
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Nesse cenário bem como no caso de ser totalmente afastada a hipótese de reconstituição natural, como tudo indica que será o caso dos autos dadas as dificuldades e insuficiências acima apontadas – cfr. artigo 560º, nºs 2 e 1, do CC respectivamente – deve-se socorrer à indemnização em dinheiro nos termos previstos no artigo 560º do CC a qual, de acordo com o seu nº 5, tem como medida a diferença entre a situação patrimonial dos Autores, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existisse danos.
Trata-se do princípio da diferença relativamente ao qual se depara a dificuldade de quantificação do dano patrimonial para os casos como o dos autos.
É que, a privação de uso sofrida pelos Autores não corresponde a qualquer prejuízo patrimonial quer (1) a título de danos emergentes, como por exemplo as despesas tidas pelos Autores para suprir a necessidade de estacionamento dos seus veículos que teriam sido estacionados nos lugares de estacionamento dos autos não fosse a ocupação da Ré, quer (2) a título de lucros cessantes, designadamente a renda que poderiam ter cobrado com o arrendamento dos lugares de estacionamento.
Relativamente à ausência de lucros cessantes, a asserção feita funda-se no facto de a demonstração da privação mas não acompanhada de outros factos, por exemplo, os relativos a planos de fruição dos lugares de estacionamento e à implementação deste plano, não permitir concluir, nos termos do artigo 557º do CC, que a ocupação impediu que os Autores arrecadassem os rendimentos que poderiam ter obtido com eventual plano de fruição.
Com efeito, uma coisa é a impossibilidade abstracta de usar, fruir e dispor de certo bem, outra, bem diferente, é a impossibilidade de concretizar determinada forma de uso, fruição e disposição que se pretende dar ao bem.
É precisamente por força dessas ponderações que a quantia mensal arrecada pela Ré com a exploração comercial dos lugares de estacionamento não pode ser considerada como correspondente ao lucro cessante sofrido condomínio.
Ademais, há que ter em conta que o valor que os Autores teriam conseguido arrecadar pode não ser o mesmo valor obtido pela Ré. Além disso, haveria sempre que deduzir os custos de exploração que teriam que suportar.
Assim sendo, numa primeira aproximação, não há qualquer diferença entre a situação patrimonial actual e hipotética dos Autores o que impede a quantificação do dano.
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O que se pergunta, então, é se dessa privação não resulta realmente obrigação de ressarcir os Autores.
Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Maio de 2007, http://www.dgsi.pt/, que aqui é citado a título de direito comparado, “A mera privação (de uso) da fracção reivindicada, impedindo, embora, o proprietário do gozo pleno e exclusiva dos direitos de uso, fruição e disposição nos termos do art. 1305º do CC, só constitui dano indemnizável se alegada e provada, pelo dono, a frustração de um propósito, real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante.”
Contra essa posição veio António Santos Abrantes Geraldes, defender “a autonomização da privação do uso como dano de natureza patrimonial a integrar através de indemnização” dispensando-se a demonstração de concretas perdas patrimoniais decorrentes da privação.
Os argumentos com mais força dissuasiva são os seguintes:
1. “O principal obstáculo à admissão do direito de indemnização decorrente da simples privação do uso advém da sua integração na categoria de dano concreto e na sua compatibilização com a teoria da diferença como critério quantificador. No que concerne ao primeiro aspecto, a formulação de juízos assentes em padrões de normalidade e, se necessário, com recurso às presunções naturais ou judiciais, facilmente permite inferir que, em regra, aquela privação comporta um prejuízo efectivo na esfera jurídica do lesado correspondente à perda temporária dos poderes de fruição. A amplitude das consequências pode variar de acordo com as específicas circunstâncias objectivas e subjectivas, mas raramente será indiferente para o lesado a manutenção intangível do uso ou a sua privação durante um determinado período de tempo. Quanto à conjugação com a teoria da diferença, sem ocultar os problemas que a mesma suscita, pode asseverar-se que se a sua capacidade avaliativa é patente face a situações que se traduzem em perda definitiva de bens, determinando-se a indemnização com base no seu valor corrente, já os resultados se revelam menos seguros quando somos confrontados com a mera privação temporária, em que se torna mais difícil estabelecer uma comparação entre a situação presente e a que provavelmente existiria se não ocorresse a privação. O que é insofismável, bastando-se com a invocação das regras da experiência, é que a privação do uso de um bem que não tenha sido prontamente substituído por outro com semelhantes utilidades ou que não tenha sido colmatada com a atribuição imediata de um quantitativo destinado a suprir a sua falta, determina na esfera do lesado uma lacuna que jamais poderá ser “naturalmente” reconstituída. Independentemente da função desempenhada por esse bem e dos prejuízos que, em concreto, possam imputar-se a tal privação, é seguro que a sua utilização no período transcorrido jamais poderá ser “restituída” em espécie, nos termos e para efeitos do art. 566-º, n.º 1, do CC.”;
2. A coerência e racionalidade do sistema não afasta a possibilidade de se impor a reparação de um dano ainda que não se prove o seu concreto valor tendo em conta que consta do direito positivo disciplina deste género, tais como a relacionada com a cláusula penal e com a o atraso na restituição da coisa locada, e que as normas dos artigos 562º a 564º do CC português, aos quais correspondem os artigos 556º a 558º do CC de Macau, são expressos em fazer recair sobre o lesante o dever de ressarcir os danos causados.
3. “Sendo … inequívoco que o sistema atribui ao lesado o direito à reconstituição natural da situação, o simples facto de essa faculdade não ter sido utilizada ou, mais do que isso, o facto de o lesado ter enfrentado uma recusa ilegítima de substituição, não pode desembocar, sem mais, na total liberação do responsável. Pelo contrário, a recomposição da situação danosa reclama que, pela única via então possível, ou seja, pela atribuição de um equivalente pecuniário, o lesado consiga ser reintegrado ‘a posteriori’. Diverso entendimento que impusesse invariavelmente ao lesado da prova da ocorrência de danos imputáveis à privação reverteria em benefício injustificado do responsável em medida correspondente ao aforro de despesas, não sendo de presumir que a ordem jurídica consinta em tal resultado. Se a privação do uso do veículo durante um determinado período originou a perdas das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição (substituição) impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente.”;
4. O legislador consentiu no recurso à equidade para a fixação da indemnização porque estava ciente das dificuldades de prova.
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Trata-se de uma posição também acolhida em diversos arestos proferidos em Portugal aqui citado a título de direito comparado, a saber Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Maio de 1996, BMJ, nº 457, pg 325, Acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Novembro de 1999, Acórdão da Relação de Porto, de 10 de Janeiro de 2002, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Maio de 2002, alguns do muitos citados por António Santos Abrantes Geraldes, nos quais se fixou indemnização pelo dano da privação de uso de veículos paralisados devido a acidentes de viação apesar de não se conseguir autonomamente quantificar o montante dos prejuízos e em diversos ordenamentos jurídicos indicados por António Santos Abrantes Geraldes nas mesmas obras.
Em Macau, a mesma posição é também defendida no Acórdão do Tribunal de Última Instância, de 27 de Janeiro de 2010.
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Ora, flui do acima expendido de houve um dano real visto que os Autores ficaram privados da faculdade de usar, fruir e dispor ou não dos lugares de estacionamento dos autos durante o período de tempo em que estavam ocupados pela Ré.
Mais acima foi já referido que a norma do artigo 556º do CC atribui aos Autores o direito de ver o dano eliminado através da reconstituição natural da situação em que estariam não fosse a privação.
Portanto, é inquestionável que lhes assiste o direito de serem indemnizados.
A questão não resolvida é tão-só como face à impossibilidade ou dificuldade de reconstituição natural.
Dispõe o artigo 560º do CC que “1. A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível. 2. Quando a reconstituição natural seja possível mas não repare integralmente os danos, é fixada em dinheiro a indemnização correspondente à parte dos danos por ela não cobertos. 3. A indemnização é igualmente fixada em dinheiro quando a reconstituição natural seja excessivamente onerosa para o devedor. 4. Quando, todavia, o evento causador do dano não haja cessado, o lesado tem sempre o direito a exigir a sua cessação, sem as limitações constantes do número anterior, salvo se os interesses lesados se revelarem de diminuta importância. 5. Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos. 6. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julga equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.” (sublinhado nosso)
Desse preceito vê-se que é a própria lei que obriga a fixação de uma quantia pecuniária no presente caso consagrando o princípio da diferença como critério para a determinação do seu quantum.
É ainda esse mesmo preceito que prevê alternativas à forma como deve ser fixada esse quantum ao estipular logo início da norma do seu nº 5, dizendo que o princípio da diferença não prejudica a aplicação do preceituado noutras disposições.
Uma dessas disposições é precisamente o seu nº 6 que permite que a quantificação do dano seja feita segundo a equidade se o valor exacto não tiver sido apurado.
Como é fácil de ver, trata-se de uma forma alternativa de reparação de danos ao lado da reconstituição natural e da indemnização em dinheiro, tudo destinado a repor o equilíbrio patrimonial perdido.
Assim, crê-se que nada obsta a que se fixe o valor da indemnização nesses termos face à impossibilidade de apuramento do seu valor.
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Mesmo que se entenda que a lei não é expressa nesse sentido, os demais argumentos invocados por António Santos Abrantes Geraldes são mais que suficientes para demonstrar a justeza da solução por este sufragado.
A pretensão de afastamento do dever de indemnizar o dano da privação evoca a velha querela sobre a ressarcibilidade dos danos morais em que os argumentos invocados para enjeitar esta possibilidade estão mais que infirmados. Dizia-se, então, que os danos morais eram irreparáveis com dinheiro por este não ser capaz de os fazer desaparecer, eram difíceis senão impossíveis de os quantificar sem arbítrio e a pretensão de os ressarcir com dinheiro correspondia a uma visão grosseiramente materialista da vida e era contra a ordem moral.
O único fundamento eventualmente válido para o dano da privação de uso diz respeito à dificuldade de quantificação desse dano.
Os demais argumentos, a irreparabilidade do dano com dinheiro e a sua inconformidade com valores éticos, nem sequer aqui se colocam visto que a faculdade que assistia aos Autores acima referida tem inegavelmente natureza patrimonial. Com efeito, o direito de compropriedade dos Autores sobre os lugares de estacionamento ficou parcialmente diminuído quer em conteúdo quer em duração.
Se relativamente aos danos morais a questão da sua ressarcibilidade jamais se equaciona por o direito positivo ter acolhido expressamente a possibilidade da sua reparação estipulando os termos em que isto deve ser feito no artigo 489º do CC, não se vislumbra como negar idêntica pretensão em relação ao dano da privação de uso visto que a dificuldade de quantificação do dano está acautelada com a possibilidade de o determinar seguinte a equidade como foi referido anteriormente.
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Fixados os termos da quantificação do dano sofrido pela Autora, é de determinar o respectivo valor.
Entendem os Autores que o prejuízo sofrido pelo condomínio corresponde à quantia total cobrada pela Ré com a exploração dos lugares de estacionamento ao longo desses anos devendo, consequentemente, a indemnização a que cada um dos Autores tem direito ser calculada com base na percentagem do valor total do condomínio atribuída às suas fracções autónomas.
Disso se vê que são dois os factores a ponderar na quantificação da indemnização: o valor total dos prejuízos sofridos por todo o condomínio e a percentagem que cada uma das fracções autónomas pertencentes aos Autores representa no valor total do condomínio.
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Relativamente ao segundo factor, está demonstrado que a fracção autónoma do:
- 1.º Autor (“J12”) corresponde a 0,438% do valor total;
- 2.º Autor (“D18”) corresponde a 0,338% do valor total;
- 3.º Autor (“O6”) corresponde a 0,422% do valor total;
- 4.º Autor (“H16”) corresponde a 0,438% do valor total;
- 5.º Autor (“G7”) corresponde a 0,438% do valor total;
- 6.º Autor (“R9”) corresponde a 0,422% do valor total;
- 7.º Autor (“R7”) corresponde a 0,422% do valor total;
- 8.º Autor (“C9”) corresponde a 0,338% do valor total;
- 9.º Autor (“H12”) corresponde a 0,438% do valor total.
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No que diz respeito aos prejuízos sofridos por todo o condomínio, foi mais acima referido que:
- o que está demonstrado é a mera privação de uso dos lugares de estacionamento porque não há nenhum facto, sobre o concreto aproveitamento que os Autores pretenderam, no passado, e pretendem, no futuro, dar a esses bens;
- o dano é a impossibilidade abstracta de uso, fruição e disposição dos mesmos durante o período de ocupação; e
- não pode a quantia mensal arrecada pela Ré com a exploração comercial dos lugares de estacionamento ser considerada como correspondente ao valor dos prejuízos.
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O que efectivamente urge indagar é, antes, o valor da faculdade de uso, fruição e disposição dos lugares de estacionamento durante o período de ocupação da Ré.
Isto porque o que se pretende é tornar incólume o património dos Autores de que fazia parte a faculdade abstracta de uso, fruição e disposição dos lugares de estacionamento dos autos durante o período de ocupação feita pela Ré, repondo essa possibilidade na esfera jurídica dos Autores. Como jamais se consegue proceder à reintegração nesses termos, a reposição tem que ser feita com o valor dessa possibilidade abstracta.
Note-se que não se trata do valor locativo efectivamente praticado no mercado porque não há indicação de que, durante o mesmo período, os Autores teriam usado os lugares de estacionamento ou cedido o gozo dos mesmos não fosse a ocupação como foi já sobejamente salientado. Aliás, a ter-se demonstrado esse plano dos Autores, os danos seriam lucros cessantes para cuja quantificação teria de recorrer à teoria da diferença.
Apesar disso, o valor locativo não deixa de poder servir de referência para a nossa indagação.
Por outra banda, como é muito provável que a citada possibilidade abstracta tenha sido efectivamente utilizada pelos Autores, tendo em conta as condições do meio urbano de Macau com poucos lugares de estacionamento gratuitos disponíveis, em que muitos dos seus habitantes dispõem de veículos automóveis, motociclos ou ciclomotores, julga-se que a faculdade de que os condóminos ficaram privados deve corresponder a 90% do valor locativo.
Ora, estando demonstrado que a Ré tem vindo a ceder os lugares de estacionamento ao público cobrando mensalmente uma quantia certa, no apuramento do valor concreto do prejuízo os montantes conseguidos pela Ré ao longo dos anos são os mais indicados para serem tidos como o valor locativo acima referido.
Assim, para o período compreendido entre 21 de Novembro de 2002 e 31 de Janeiro de 2015, a faculdade de uso, fruição e disposição em questão tem o valor de MOP$41.310,00 {90% x [(MOP$600,00 x 64) + (MOP$150,00 x 50)]} por mês.
Para o período compreendido entre 1 de Fevereiro de 2015 e 18 de Outubro de 2017 (data da interposição da presente acção), a mesma faculdade tem o valor de MOP$179.820,00 {90% x [(MOP$2.700,00 x 64) + (MOP$540,00 x 50)]} por mês.
Depois de 19 de Outubro de 2017, a mesma faculdade terá o valor de calculado segundo a mesma fórmula mas empregando os valores que mensalmente arrecadados pela Ré nesta altura, a apurar em execução de sentença.
É, pois, como base nesses valores mensais que será apurado o valor total da faculdade de uso, fruição e disposição desde 21 de Novembro de 2002.
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A indemnização final acima referida corresponde ao valor da faculdade de uso, fruição e disposição que assiste a todos os condóminos.
Pertencendo os lugares de estacionamento aos condóminos em regime de compropriedade, cada um deles participa nas vantagens da coisa, designadamente na faculdade de usar, fruir e dispor dos lugares de estacionamento, em proporção das suas quotas - o artigo 1302º, nº 1, do CC.
Assim, os Autores têm apenas direito a receber uma parte da indemnização, proporcional à percentagem que as suas fracções autónomas representam no valor total do condomínio.”
A decisão acima citada, com argumentação enérgica, defendia que os sofridos pelos autores deviam ser considerados como dano de privação de uso. Convencidos pela correcção da decisão em termos de interpretação e de aplicação da lei, adoptamos o raciocínio atrás reproduzido, dando por assente que no presente caso, o sofrido pela autora é dano de privação de uso, em vez de lucros cessantes.
Então, cumpre a este tribunal fixar o montante de indemnização adequado, em função dos factos provados 14.º a 16.º, de acordo com o art.º 560.º, n.º 6 do CC e aplicando o princípio da equidade.
Cá resulta dos factos provados que a ré arrendou uma parte dos lugares de estacionamento para veículos ligeiros contra MOP 500,00, MOP 600,00 ou MOP 700,00; enquanto para os restantes lugares de estacionamento para veículos ligeiros não sujeitos ao alugamento mensal, bem como os outros lugares no piso de estacionamento originariamente não destinados a parqueamento, cobrava-se em regime horário. Dada a impossibilidade de determinar com precisão a renda cobrável mensalmente pela ré proveniente dos 64 lugares de estacionamento para veículos ligeiros, bem como o facto de que a exploração por parte da ré (em regimes mensal e horário) impossibilitou a autora de utilizar os 64 lugares de estacionamento para automóvel ligeiro, aplicando-se o art.º 560.º, n.º 6 do CC, para a fixação dum montante razoável, este tribunal considera adequado fixar a renda média mensal dos 64 lugares de estacionamento para veículos ligeiros em MOP 600,00.
Portanto, tendo em conta os 50 lugares de estacionamento para motociclos e os 64 lugares de estacionamento para automóveis ligeiros em todo o parque de estacionamento, a renda mensal totaliza MOP 45.900,00; e a renda referente ao período de pagamento segundo o requerimento da autora (de 21/11/2002 a 08/11/2004, por um total de 23 meses e 17 dias) totaliza MOP 1.100.070,00.
Tal como o fundamento exposto na sentença citada, segundo este tribunal, é de descontar os 10% do dano sofrido pela autora.
Então eis a indemnização devida à autora pelo dano de privação de uso: (64 lugares de estacionamento para veículos ligeiros x a renda mensal MOP 600,00 + 50 lugares de estacionamento para motociclos x a renda mensal MOP 150,00) x 23 meses e 17 dias x 90% = MOP 990.063,00.
Tal como referido no despacho a fls. 564 e v dos autos, acreditamos que para a justiça, e sem qualquer oposição por parte da autora depois da comunicação, da indemnização devida à autora pelo dano sofrido é de descontar o determinado referente ao mesmo período (ou seja, de 21/11/2002 a 08/11/2004) no processo n.º CV2-17-0088-CAO. De facto, o processo n.º CV2-17-0088-CAO foi instaurado por alguns dos condóminos do edifício em causa contra a Ré B, enquanto o presente, pela autora Administração dos Condóminos do Edifício A contra a Ré B. Em ambos os casos estão presentes requerimentos de indemnização por danos sofridos. Deu-se sobreposição dos dois no período que vai de 21/11/2002 a 08/11/2004.
Salvo melhor entendimento, acreditamos que os factos no caso são suficientes (pode-se conhecer da questão agora, ao abrigo do art.º 414.º do CPC). Sem oposição da autora, já que a Administração dos Condóminos, por natureza, representa o interesse de todos os condóminos, então não é bem repetir a condenação da ré no pagamento em uma única prestação no processo em apreço, para além da sua condenação no pagamento a alguns dos pequenos proprietários (como co-proprietários das partes comuns) (sendo questão interna da autora e da Administração dos Condóminos como tratar e repartir a indemnização já cobrada pela autora). Logo é de descontar a quota que toca à autora, decidida no processo n.º CV2-17-0088-CAO, com referência ao período que vai de 21/11/2002 a 08/11/2004.
A percentagem de indemnização que toca à parte dos condóminos envolvidos no processo n.º CV2-17-0088-CAO é de 3,694% (0,438% + 0,338% + 0,422% + 0,438% + 0,438% + 0,422% + 0,422% + 0,338% + 0,438%). Portanto, descontado o fixado referente ao mesmo período no processo n.º CV2-17-0088-CAO (MOP 990.063 – 990.063 x 3,694%), o montante de indemnização totaliza MOP 953.490,00.
Portanto, é justo que este tribunal condene a ré no pagamento de MOP 953.490,00, a título de indemnização.
Ao montante acima referido acrescem-se os juros legais desde o proferimento da presente sentença – ou seja, da liquidação do montante de indemnização.
4.4. O pedido n.º 4 da autora
A autora pediu ainda que se condenasse a ré no pagamento diário de MOP 6.500,00, a título de sanção pecuniária compulsória pelo atraso na restituição do piso de estacionamento em causa.
Prescreve o art.º 333.º do CC;
" 1. O tribunal, em acréscimo à condenação do devedor no cumprimento da prestação a que o credor tenha contratualmente direito, à cominação de pôr termo à violação de direitos absolutos ou à condenação na obrigação de indemnizar, pode, a requerimento do titular do direito violado, condenar o devedor a pagar ao ofendido uma quantia pecuniária por cada dia, semana ou mês de atraso culposo no cumprimento da decisão ou por cada infracção culposa, conforme se mostre mais conveniente às circunstâncias do caso; a culpa no atraso do cumprimento presume-se.
2. A sanção pecuniária compulsória não pode ser estabelecida para o período anterior ao trânsito em julgado da sentença que a ordene, nem para o período anterior à liquidação da indemnização, salvo se o devedor for condenado por ter interposto recurso com fins meramente dilatórios, caso em que a aplicação da sanção é reportada à data da notificação da decisão que a tenha cominado.
3. A sanção pecuniária compulsória só será cominada quando o tribunal a considere justificada e será fixada segundo a equidade, atendendo à condição económica do devedor, à gravidade da infracção e à sua adequação às finalidades de compulsão ao cumprimento.
4. Não é aplicável a sanção pecuniária compulsória nos casos em que tenha sido estabelecida uma cláusula penal compulsória com os mesmos fins, ou nas decisões em que se condene o devedor no cumprimento de uma prestação de facto infungível, positivo ou negativo, que exija especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, a que o credor tenha contratualmente direito."
Considerando as circunstâncias concretas no presente caso como um conjunto, entendemos que é de julgar procedente o requerimento da autora.
Em primeiro lugar, tal como nos ensina a doutrina, o artigo acima citado aplica-se também à violação de direito absoluto. A sanção pecuniária deve adequar-se à cominação efectiva para que a ré cesse com a ofensa.
De acordo com os factos provados (sobretudo os n.º 5 e n.º 6), é desde 2002 que a ré explora o parque de estacionamento em discussão, e que é desde 2003 que a autora solicita que a ré o restitua. Além disso, apesar de a ré ser a parte vencida no processo n.º CV2-17-0088-CAO (onde se tinha julgado que não tinha direito de operar ou utilizar o piso de estacionamento), até agora ainda não restituiu o parque de estacionamento à autora. Portanto, tendo em conta o factor aliciador da falta de restituição e da exploração comercial contínua do parque de estacionamento, a fim de evitar que a ré falte ao dever de restitui-lo à autora, é de condená-la em sanção pecuniária compulsória, esperando-se numa eficácia dissuasória, prevenindo que a ré siga a faltar ao cumprimento ou se atrase com o cumprimento, mesmo depois do trânsito em julgado da presente decisão.
Tendo em conta o valor das rendas devidas à exploração da actividade por parte da ré no parque de estacionamento em questão, orientando-nos pela experiência de vida social actual, segundo nós é adequado condenar a ré no pagamento diário de MOP 6.500,00, a título de sanção pecuniária compulsória pelo atraso na restituição do piso de estacionamento em causa.
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V. Decisão:
Nestes termos, julga-se procedente a acção intentada pela autora, e por conseguinte:
1. Declarar os condóminos como os proprietários das partes comuns do piso de estacionamento situado no primeiro andar dos blocos I e II do Edifício A, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX-A;
2. A ré obriga-se a restituir o piso de estacionamento aos condóminos do Edifício A e para tal, a entregar o mesmo piso de estacionamento à autora;
3. Condena-se a ré à indemnização no montante de MOP 953.490,00 a favor dos condóminos do Edifício A, com os juros legais desde o proferimento da presente sentença até o pagamento integral. Para o efeito, será a autor que a cobra em nome dos condóminos;
4. Não respeitando a decisão n.º 2 supra, a ré será condenada à sanção pecuniária compulsória a favor da autora, calculada em base diária de MOP 6.500,00, até ao seu cumprimento.
(…)”; (cfr., fls. 572 a 584-v, 674 a 686 e 25 a 45 do Apenso).
Ao que se deixou transcrito, aditou o Tribunal de Segunda Instância a seguinte fundamentação para a decisão de confirmação da sentença proferida (e então recorrida):
“Vendo-nos de perfeito acordo com o tribunal recorrido tanto na argumentação quanto na decisão proferida em torno das questões em discussão, julgamos, nos termos do art.º 631.º, n.º 5 do CPC, improcedente o recurso, citando a decisão juntamente com a fundamentação.
Na realidade, o caso julgado com efeitos definitivamente produzidos (proc. n.º CV2-17-0088-CAO) já deu por assente o piso de estacionamento como parte comum do edifício; ao mesmo tempo, condenou a ré (que é a ré no processo em apreço) à indemnização a favor dos condóminos pela ocupação do piso de estacionamento.
No que se refere ao montante da indemnização, não é exorbitante o critério de cálculo fixado pelo tribunal recorrido, que adoptou a renda média de 600,00 por mês por lugar de estacionamento. Trata-se de um montante regular inferior ao praticado no mercado.
Em termos de sanção pecuniária compulsória, tal como dito atrás, dado o caso julgado com efeitos definitivamente produzidos que já deu por assente o piso de estacionamento como parte comum do condomínio e que já condenou a ré à indemnização a favor dos condóminos pela ocupação do piso de estacionamento, como a ré, porém, ainda não restituiu o piso de estacionamento, irrepreensível é a decisão proferida pelo tribunal recorrido da sanção pecuniária compulsória.
No que toca ao montante diário, não consideramos excessivo o fixado pelo tribunal recorrido, pois que a ré pode beneficiar economicamente do arrendamento dos lugares no piso de estacionamento, assim como da exploração da actividade comercial de limpeza de veículos ali dentro.
(…)”; (cfr., fls. 686 a 686-v e 45 a 46 do Apenso).
Aqui chegados, vejamos.
–– Diz a ora recorrente que o Tribunal de Segunda Instância incorreu em nulidade por “omissão de pronúncia”.
Ora, como sabido é, este vício apenas ocorre quando “a sentença não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer, por força do artº 660º, nº 2 [em Macau, o art. 563°, n.° 2 do C.P.C.M.]”; (cfr., v.g., Antunes Varela in, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 690).
E, por “questões”, entendem-se “todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes”; (cfr., v.g., A. Varela in, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, Ano 122°, pág. 112).
Cumpre notar, no entanto, que “A obrigatoriedade de o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não significa que o juiz tenha, necessariamente, de apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para fundamentarem a resolução de uma questão”; (cfr., v.g., Viriato de Lima in, “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., pág. 536).
Este tem também sido o entendimento deste Tribunal de Última Instância que considera igualmente que: “só a omissão de pronúncia sobre questões, e não sobre os fundamentos, considerações ou razões deduzidas pelas partes, que o juiz tem a obrigação de conhecer determina a nulidade da sentença”; (cfr., v.g., o Ac. de 20.02.2019, Proc. n.° 102/2018, podendo-se sobre a questão ver também os Acs. de 31.07.2020, Proc. n.° 51/2020, de 09.09.2020, Procs. n°s 62/2020, 63/2020 e 147/2020, de 16.09.2020, Proc. n.° 65/2020, de 12.05.2021, Proc. n.° 39/2021, de 15.10.2021, Proc. n.° 111/2021, de 28.01.2022, Proc. n.° 137/2021, de 27.05.2022, Proc. n.° 41/2022 e, mais recentemente, de 04.11.2022, Proc. n.° 79/2022).
Ora, em conformidade com o que se deixou exposto, e atento o que decidido foi – e que se deixou transcrito, em especial, no “ponto 4.1”, (a pág. 10 a 14 deste aresto) – evidente é que inexiste qualquer “omissão de pronúncia”, necessárias não se apresentando mais alongadas considerações sobre esta questão porque totalmente ociosas.
–– Quanto à imputada “errada interpretação e aplicação do disposto no art. 1235° do C.C.M.”, vejamos.
Sob a epígrafe “Acção de reivindicação” prescreve o invocado art. 1235° que:
“1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.
Tratando de idêntica matéria teve este Tribunal de Última Instância oportunamente de considerar que:
“A “acção de reivindicação” é uma acção petitória, (declaratória e condenatória), destinada à defesa da propriedade, (estando este tipo de acção prevista na Seção II do Título II, precisamente dedicada à “Defesa da Propriedade”), tratando-se assim do “meio processual próprio” para obter a “restituição da coisa” de que se é proprietário do seu possuidor ou detentor.
Há assim na acção de reivindicação um indivíduo que é o titular do direito de propriedade, que não possui, há um possuidor ou detentor que não é o titular daquele direito, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade, e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração da existência da propriedade no autor e pela entrega do objecto sobre que o direito de propriedade incide.
Essencial à caracterização de uma acção como de “reivindicação” é que esta prossiga uma “dupla finalidade” típica da «rei vindicatio»:
- o “reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre a coisa”, (imóvel ou móvel); e,
- a consequente “restituição – entrega – da coisa” pelo possuidor ou detentor dela.
Reconhecido o “direito de propriedade” do reivindicante sobre a coisa reivindicada, esta, nos termos do n.º 2 do enunciado no art. 1235° do C.C.M., só não lhe será restituída se o reivindicado alegar e provar que é titular de um direito real, (por ex: “servidão”, “usufruto”, etc…), ou de um direito de crédito, (ex: “contrato de arrendamento”), que legitime a sua recusa em restituí-la, pelo que ao reivindicante apenas compete alegar e provar que é “proprietário” da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do reivindicado, cumprindo, por sua vez, ao reivindicado o “ónus de alegar e provar” matéria que extinga, modifique ou impeça o direito do reivindicante em ver-lhe restituída a coisa”; (cfr., v.g., o Ac. de 25.03.2022, Proc. n.° 15/2022).
Feita a exposição supra, voltemos à situação dos autos.
Pois bem, em síntese (que se nos mostra correcta), e não obstante invocar o art. 1235° do C.C.M., discute, apenas, a R., ora recorrente, a “natureza” (de “bem comum”) do parque de estacionamento aqui em causa – do “Edifício A” – pretendendo, (tentando), a todo o custo, alterar o que “provado” está no “ponto 4°” da decisão da matéria de facto, onde consta que:
“O piso de estacionamento situado no 1.º andar do pódium comum aos blocos I e II do Edifício A consiste numa parte comum do condomínio de acordo com a memória descritiva das fracções autónomas de fls. 18 e ss. do doc. 4 e com o extracto da descrição da PH constante da certidão emitida 23/12/2003 pela Conservatória do Registo Predial. (已證事實D項)”.
Ora, em causa estando um “facto dado como provado” – no caso, com base numa “Certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial” – e nenhum motivo havendo para o alterar, também aqui evidente se apresenta que inexiste qualquer errada interpretação e/ou aplicação do art. 1235° do C.C.M., (que até se nos apresenta como um “argumento” que nada tem a ver com a “questão” colocada).
–– Quanto à alegada “violação do disposto no art. 326° do C.C.M.”.
Diz ainda a ora recorrente que a consideração do dito “parque de estacionamento” como “bem comum” dos condóminos do referido edifício não deixa de constituir um “abuso de direito”.
Ressalvado o devido respeito por outro entendimento, também aqui não se mostra de acompanhar o ponto de vista da ora recorrente.
De facto, para além da “natureza comum” em questão constituir “matéria adquirida” nos presentes autos, não se vislumbra como, ou em que termos (ou medida) possa tal realidade integrar o exercício abusivo de um direito contra a R., ora recorrente, (ou seja quem for).
Na verdade, nos termos do art. 326° do C.C.M.:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
E, como já tivemos oportunidade de considerar, importa ter presente que o abuso do direito é uma expressão consagrada para traduzir, hoje, um “instituto multifacetado”, e que prossegue, os “objectivos últimos do sistema”, cabendo salientar que o “princípio da boa fé” tem de ser muito mais que (mero) idílico verbalismo jurídico, implicando, sempre, uma ponderação global da “situação em jogo”, sob pena de se descambar em puro formalismo de que se pretende fugir…; (cfr., Ac. de 08.04.2022, Proc. n.° 127/2021).
Porém, e como se referiu, assente (e declarado) estando que o dito parque de estacionamento é um “bem comum” (nos termos já vistos), totalmente inviável se apresenta considerar verificada uma situação como a prevista no transcrito art. 326° do C.C.M., (devendo antes a R., ora recorrente, reflectir sobre o verdadeiro “objecto” do negócio e acordo que celebrou, e se, com o mesmo, adquiriu, efectivamente, qualquer “direito real” sobre o parque de estacionamento em questão…).
Continuemos.
–– Da “errada interpretação e aplicação do disposto nos arts 487° e 560° do C.C.M.”.
Em sede desta “questão”, alega (fundamentalmente) a recorrente que excessivo é o valor indemnizatório fixado que, em sua opinião, viola o “princípio da equidade”; (sobre esta matéria, cfr., v.g., o recente Ac. deste T.U.I. de 27.07.2022, Proc. n.° 71/2022).
Contudo, atenta a “factualidade provada” e atrás retratada, cremos que só por – manifesto – equívoco se poderá considerar que o montante indemnizatório fixado é excessivo ou inflacionado.
De facto, não se pode olvidar que em causa está um “auto-silo … com a área bruta de construção de 2476 m2, com 64 lugares de estacionamento para automóveis e 50 lugares de estacionamento para motociclos. (已證事實A項)” – cfr., facto provado n.° 1 – que “Mediante cartas de 2003/11/29, 2003/12/19, 2003/12/21 e 2003/12/26 a autora pediu à ré a restituição do piso de estacionamento reivindicado. (已證事實F項)” – cfr., facto provado n.° 6 – o que a R. recusou – cfr., facto provado n.° 7 – e que a decisão em questão tão só a condenou “a pagar aos condóminos do Edifício A uma indemnização no valor de MOP953.490,00, pelos lucros cessantes resultantes da impossibilidade de exploração pela administração do condomínio do piso de estacionamento reivindicado, acrescida do juros vincendos, desde a citação até integral pagamento”, o que, de forma alguma, se pode considerar excessivo.
–– Por fim, quanto à “errada interpretação e aplicação do disposto no art. 333°, n.° 3 do C.C.M.”.
Aqui, está em causa o segmento decisório que condenou a R. a pagar à A. “uma quantia de MOP6.500,00, a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso culposo no cumprimento da decisão que ordenar a restituição do prédio reivindicado”.
E, em face do que provado está, também nesta parte não se pode reconhecer razão à ora recorrente, pois que totalmente justa e adequada é a fundamentação do decidido, onde se explicitou – e vale a pena repetir – que:
“De acordo com os factos provados (sobretudo os n.º 5 e n.º 6), é desde 2002 que a ré explora o parque de estacionamento em discussão, e que é desde 2003 que a autora solicita que a ré o restitua. Além disso, apesar de a ré ser a parte vencida no processo n.º CV2-17-0088-CAO (onde se tinha julgado que não tinha direito de operar ou utilizar o piso de estacionamento), até agora ainda não restituiu o parque de estacionamento à autora. Portanto, tendo em conta o factor aliciador da falta de restituição e da exploração comercial contínua do parque de estacionamento, a fim de evitar que a ré falte ao dever de restitui-lo à autora, é de condená-la em sanção pecuniária compulsória, esperando-se numa eficácia dissuasória, prevenindo que a ré siga a faltar ao cumprimento ou se atrase com o cumprimento, mesmo depois do trânsito em julgado da presente decisão”; (cfr., pág. 27 deste aresto).
De facto, constatando-se que o “litígio” que os autos dão conta dura há quase “20 anos”, nenhum motivo existe para se considerar injustificado o segmento decisório impugnado que condenou a R., ora recorrente, a pagar a “sanção pecuniária” em causa, pois que à vista está a razão de tal “meio de compulsão” ao atempado cumprimento do decidido; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 25.03.2022, Proc. n.° 26/2021).
Outra questão não havendo a apreciar, resta decidir como segue.
Decisão
4. Nos termos de todo o expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 15 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 09 de Novembro de 2022
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 98/2022 Pág. 18
Proc. 98/2022 Pág. 19