Processo nº 118/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 18 de Maio de 2023
ASSUNTO:
- Competência dos juízos laborais
SUMÁRIO:
- Invocando-se como causa de pedir um contrato de trabalho e um acidente de trabalho e sendo instaurada acção por acidente em trabalho estão preenchidos os requisitos do artº 29º-C da LBOJ – ser a causa de pedir emergente de relações jurídicas de natureza laboral e ser aplicável à solução do litígio o CPT – para que se conclua pela competência dos juízos laborais;
-As normas jurídicas com base nas quais se invoca a responsabilidade do Réu não são determinantes da competência do tribunal.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 118/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 18 de Maio de 2023
Recorrente: A
Recorrida: B Limited
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção de processo especial para efectivação de direitos resultantes do acidente de trabalho contra,
B Limited, Sucursal de Macau, também, com os demais sinais dos autos,
Pedindo que:
1. Seja julgada integralmente procedente a presente petição inicial;
2. Seja a Ré condenada a pagar ao Autor, a título de indemnização pelos danos morais, uma quantia de MOP$1.000.001,00, acrescida de juros legais contados a partir da data da prolação da sentença;
Pelo Tribunal “a quo” foi proferido despacho a julgar os Juízos de Trabalho incompetentes, remetendo os autos aos Juízos Cíveis.
Não se conformando com a decisão proferida vem o Autor interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões:
1. O despacho a quo entendeu que o Juízo Laboral era incompetente para conhecer da causa, por a indemnização pelos danos morais pretendida pelo Autor ter apenas a natureza civil;
2. De acordo com os factos constantes dos art.º 1. a 4. da petição inicial, a existência do referido acidente de trabalho baseia-se na celebração, entre o Autor e a Ré, do contrato de trabalho indicado na petição inicial (nos termos do art.º 1079.º, n.º 1 do Código Civil, e da Lei n.º 7/2008, aplicável por força do n.º 2 do mesmo artigo);
3. In casu, se não fosse o contrato de trabalho celebrado entre o Autor e a Ré, como é que poderia acontecer ao Autor o acidente no local do trabalho, e porque é que a Ré precisaria de pagar ao Autor a indemnização pelos danos morais emergentes do acidente de trabalho?
4. Não se pode afastar completamente o contrato de trabalho regulado pela Lei n.º 7/2008 dos dispostos no art.º 1079.º do Código Civil, uma vez que o Código Civil também se aplica subsidiariamente às situações que a respectiva Lei não regule!
5. No caso vertente, a indemnização pelos danos morais causados pelo acidente de trabalho faz parte das questões cíveis de relações jurídicas de natureza laboral, previstas pelo art.º 29.º-C da Lei n.º 9/1999, alterada pela Lei n.º 4/2019!
6. Salvo o devido respeito, não pode o tribunal a quo entender, apenas com fundamento em que não foi prevista a fixação da indemnização pelos danos morais na reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho no DL n.º 40/95/M, que o presente processo é da matéria cível e não tem natureza laboral!
7. Isso porque, as causas de pedir residem no acidente de trabalho acontecido ao Autor e em consequência, nos danos morais lhe causados pelo mesmo acidente, sendo ambas baseadas no contrato ou na relação de trabalho contraída entre o Autor e a Ré, da qual resultaram o acidente de trabalho e depois, a indemnização pelos danos morais;
8. Por isso, o despacho a quo fez uma errada interpretação do art.º 29.º-C da Lei n.º 9/1999, incorrendo, assim, no vício de errada interpretação de lei.
Contra-alegando veio a Recorrida apresentar as seguintes conclusões de recurso:
1. No entender do recorrente, o despacho de fls. 889 e v dos autos acima referidos padece do vício de errada compreensão da norma do artigo 29º-C da Lei n.º 9/1999.
2. Salvo o devido respeito, a ré não acompanha os fundamentos e entendimento perfilhado no recurso do recorrente.
3. Em primeiro lugar, a ré e o recorrente nunca celebraram qualquer contrato de trabalho.
4. Tal como refere o recorrente no ponto 1 da petição inicial, o recorrente estabeleceu relação laboral, em 8 de Maio de 2017, com a sua empregadora, C S.A, exercendo o cargo de operário qualificado de 2ª classe na área de construção.
5. A empregadora do recorrente, C S.A, celebrou com a ré apólice de seguros, transferindo para esta última, ao abrigo do disposto no artigo 62.º, n.º 1 do DL n.º 40/95/M, a responsabilidade pelas reparações previstas neste diploma.
6. Quanto à reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, o legislador estabeleceu, através do DL n.º 40/95/M, um regime completo e avançado, fixando nele o âmbito indemnizatório relativo a danos emergentes de acidente de trabalho.
7. Nos termos do disposto no artigo 3.º, alíneas a), g), h) e i), artigo 4.º, artigo 27.º, artigo 28.º e artigos 46.º a 52º do falado diploma, o direito à reparação por acidentes de trabalho apenas compreende as prestações em espécie, que visam o restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da vítima, e as prestações em dinheiro, que compreendem a indemnização por incapacidade temporária, permanente ou morte.
8. No entanto, os factos invocados pelo recorrente no presente caso e a indemnização por danos morais por si pretendida não caem no âmbito do direito à reparação por acidente de trabalho previsto no DL n.º 40/95/M.
9. Não tendo a indemnização por danos morais reclamada pelo recorrente recaído no âmbito do direito à reparação previsto no DL n.º 40/95/M, nem tendo a mesma derivado de qualquer relação laboral entre a ré e o recorrente, a causa de pedir e os pedidos formulados pelo recorrente na petição inicial não têm natureza laboral.
10. Ao abrigo do disposto no artigo 29.º-C da Lei n.º 9/1999 e artigo 2.º do CPT, a contrario sensu, por a respectiva causa de pedir e pedidos não ser de natureza laboral, o Juízo Laboral do TJB não tem competência para conhecer dos presentes autos.
11. Termos em que o recurso interposto pelo recorrente é manifestamente improcedente. Pede aos Venerandos Juízes do TSI a absolvição de todos os seus pedidos recursórios, com a consequente manutenção do despacho proferido pelo Tribunal a quo.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
É do seguinte teor a decisão recorrida:
«Devido às dores, à ansiedade, à insónia, à incomodidade, à influência psicológica e aos outros danos causados pelo acidente de trabalho, o Autor pediu, nos termos dos art.ºs 3.º, al. a) e 4.º do DL n.º 40/95/M, e 492.º, n.º 1 e 489.º, n.º 1 do Código Civil, para condenar a Ré, ou seja a seguradora do acidente de trabalho da empregadora do Autor, a pagar-lhe a indemnização pelos danos morais.
De acordo com as alegações do Autor e os factos oficiosamente conhecidos por este Juízo no exercício das funções, foi intentada pelo Autor, com base no mesmo acidente de trabalho (ocorreu no dia 4 de Junho de 2017), acção de processo especial para efectivação de direitos resultantes do acidente de trabalho ou da doença profissional, que correu termos sob o n.º LB1-18-0281-LAE, cuja sentença já transitou em julgado.
Ressalvado o respeito por opinião diferente, este Juízo, após apreciação da petição inicial, descobre que existe questão diferente.
Porém, segundo a ordem lógica do julgamento, cumpre apreciar primeiro a questão de competência.
No caso sub judice, o Autor qualificou o caso como indemnização por danos emergentes do acidente de trabalho, mas os factos danosos alegados por ele, bem como a indemnização pelos danos morais reclamada, não se encontram no âmbito do direito à reparação emergente de acidentes de trabalho ou de doenças profissionais.
Ao abrigo dos dispostos nos art.ºs 3.º, al.s a), g), h) e i), 4.º, 27.º, 28.º, 46.º a 52.º do DL n.º 40/95/M, o supracitado direito à reparação compreende prestações em espécie e prestações em dinheiro, que visam a reconstituição natural, a indemnização pela morte e pela incapacidade temporária ou permanente causada pelo acidente de trabalho. As prestações em espécie compreendem principalmente as despesas médicas para o restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da vítima, enquanto as prestações em dinheiro compreendem indemnização por incapacidade temporária absoluta ou parcial, indemnização por incapacidade permanente, prestações por morte e despesas de funeral.
Obviamente, a indemnização pelos danos morais, pretendida pelo Autor, não se encontra no âmbito do direito à reparação emergente de acidentes de trabalho ou de doenças profissionais previsto pelo DL n.º 40/95/M, nem no âmbito dos direitos emergentes de contrato de trabalho.
Assim sendo, conforme as regras gerais, a referida responsabilidade indemnizatória pretendida pelo Autor deve ser qualificada como responsabilidade meramente civil por factos ilícitos, a que devem ser aplicáveis o art.º 477.º e os segs. do Código Civil.
Desta forma, a relação jurídica material controvertida, invocada pelo Autor, não tem a natureza laboral, sobretudo, não faz parte das questões emergentes de relações jurídicas de natureza laboral (art.º 2.º, n.º 2, al. 6) do CPT), ao mesmo tempo, não foi formulado qualquer outro pedido de natureza laboral, e em consequência, não se verifica a extensão da jurisdição do trabalho.
Por não ser competente este Juízo, fica prejudicado o conhecimento das outras questões.
Com base nisso, nos termos dos art.ºs 29.º-C da Lei n.º 9/1999 «Lei de Bases da Organização Judiciária», e 2.º e 3.º do CPT, a contrario sensu, declara-se este Juízo incompetente.
Após o trânsito em julgado do presente despacho, nos termos do art.º 33.º, n.º 1 do CPC, remeta os autos ao Juízo Cível para tratamento adequado.
Notifique e tome diligências necessárias.».
Em síntese entende-se na decisão recorrida que a relação material controvertida uma vez que a responsabilidade imputada pelo Autor à Ré resulta da responsabilidade por factos ilícitos não tem natureza laboral.
Vejamos então.
Dispõe o artº 29º-C da Lei de Bases da Organização Judiciária que “sem prejuízo de outras que por lei lhes sejam atribuídas, são da competência dos Juízos Laborais as acções, incidentes e questões cíveis e contravencionais emergentes de relações jurídicas de natureza laboral às quais se aplica o Código de Processo de Trabalho”.
Na determinação da competência dos Juízos Laborais estabelece as leis dois critérios a saber:
- Ser a causa de pedir emergente de relações jurídicas de natureza laboral;
- Ser aplicável à solução do litígio o Código de Processo de Trabalho.
Por sua vez consagra o artº 2º do Código de Processo de Trabalho quais as questões emergentes de relações jurídicas de natureza laboral às quais se aplica.
Na sua p.i. no artº 1º a 4º invoca o Autor que havia celebrado com determinado sujeito determinado contrato ao abrigo do qual prestaria a sua actividade mediante o recebimento de um salário, sendo que no desempenho das suas funções ao abrigo desse contrato sofreu um acidente do qual resultaram as lesões que indica.
Mais alega que o sujeito com quem havia celebrado esse contrato transferiu a responsabilidade emergentes de acidentes de trabalho para a Ré.
Designa o Autor esse contrato como sendo de trabalho.
Da leitura do despacho recorrido resulta que não se duvida que o alegado contrato é de trabalho e que o referido acidente foi em trabalho.
Salvo melhor opinião, sempre se adiantaria que para a caracterização do contrato de trabalho e de acidente em trabalho sempre seria de convidar o Autor a aperfeiçoar a p.i. no sentido de invocar os factos que uma vez provados permitem ao tribunal concluir pela caracterização do contrato como sendo de trabalho e do acidente como tendo ocorrido em trabalho, uma vez que as afirmações feitas são conclusivas sem o suporte factual que uma vez provado permite ao tribunal extrair essa conclusão.
A propósito de noção de contrato de trabalho vejam-se António Monteiro Fernandes em Direito do Trabalho, Almedina, 16ª Ed., pág. 107 e seguintes e José Carlos Bento da Silva e Miguel Quental em Manual de Formação de Direito do Trabalho em Macau, CFJJ, 2006, pág. 34 e sgts.
No entanto sem prejuízo da deficiente alegação quanto aos factos que integram a noção de contrato de trabalho, bem como da caracterização do acidente como sendo de trabalho, e do convite ao aperfeiçoamento que se impõe no que concerne a estas matérias, alega-se que se trata de um contrato de trabalho e de um acidente de trabalho.
A Acção foi instaurada sob a forma de processo especial de trabalho – acidente de trabalho.
Ou seja, de forma desenvolvida ou não invoca-se um contrato de trabalho e um acidente de trabalho.
Nos termos do CPT artº 2 nº 1 e nº 2 al. 1) e 6) estas questões seguem uma forma do processo de trabalho.
Em termos de direito vem sustentar-se que a responsabilidade pelos acidentes de trabalho é um género de responsabilidade pelo risco ao qual são extensíveis as normas da responsabilidade por factos ilícitos e como tal os danos patrimoniais são indemnizáveis.
Ora, se as normas pela responsabilidade por factos ilícitos podem ou não ser aplicáveis a acidentes de trabalho, se a indemnização por danos morais pode ou não ser arbitrada na sequência de acidentes de trabalho são questões que cabem decidir quando se conhecer do mérito da causa.
No entanto, a aplicação ou não das normas pela responsabilidade por factos ilícitos ou o facto de se pedir que sejam fixados danos não patrimoniais ou morais não podem é de forma algum ser determinantes da competência do tribunal enquanto fundamento jurídico de onde o Autor faz depender o seu pedido.
Invocando o Autor o contrato de trabalho que ocorreu um acidente em trabalho e instaurando uma acção especial por acidente de trabalho, estão preenchidos os requisitos enunciados (Ser a causa de pedir emergente de relações jurídicas de natureza laboral; Ser aplicável à solução do litígio o Código de Processo de Trabalho) e que resultam do disposto no artº 29º-C da Lei de Bases da Organização Judiciária.
Outra questão é saber se este pedido tem viabilidade para proceder ou se é manifestamente improcedente, ou quiçá a eventual excepção do caso julgado uma vez que parece resultar dos autos já ter sido instaurada acção por acidente de trabalho por este mesmo acidente, ou qualquer outra que obsta ao conhecimento do mérito da causa e que seja fundamento legal para o indeferimento liminar.
O que, de modo algum pode fundamentar o indeferimento liminar é a incompetência do tribunal por este não ser competente para conhecer de pedidos emergentes com base nas normas da responsabilidade por factos ilícitos!
Qualquer tribunal desde que a causa caiba no âmbito da sua competência é competente para a solução do litígio independentemente da origem (jurisdição, natureza, ramo de direito, etc.) das normas de direito que legalmente forem aplicáveis.
Destarte, impõe-se revogar o despacho recorrido, concluindo-se pela competência dos Juízos Laborais para conhecer deste processo, se outras questões não houver que obstem ao conhecimento da causa e sem prejuízo de se assim se entender por necessário convidar ao aperfeiçoamento da p.i. quanto à caracterização do contrato de trabalho e acidente em trabalho.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos concedendo-se provimento ao recurso revoga-se a decisão recorrida, declarando os Juízos de Trabalho competentes para acção, ordenando a remessa dos autos à 1ª instância para se decidir como se tiver por conveniente quanto aos demais pressupostos da acção e eventual convite ao aperfeiçoamento se se entender necessário.
Custas a atender a final pela parte vencida.
Registe e Notifique.
RAEM, 18 de Maio de 2023.
Rui Pereira Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(1º Adjunto)
Ho Wai Neng
(2º Adjunto)
118/2023 CÍVEL 4