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Processo nº 105/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 1 de Junho de 2023
Recorrente: A
Recorrido: B
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  A, com os demais sinais dos autos,
  vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo sumário contra
  B, também, com os demais sinais dos autos,
  Pedindo a Autora/Recorrente que:
  Seja o Réu condenado no pagamento da indemnização das quantias seguintes:
  - 6 moedas de ouro, MOP$123,107,70, ou pelo menos MOP52,800,00;
  - Certificado e despesas de transporte MOP$204.00 e MOP$600.00;
  - Indemnização dos danos não patrimoniais MOP$125,000.00; e
  - Face às 3 indemnizações acima referidas são acrescidos de juros de mora contados a partir da data de trânsito em julgado da sentença (29/04/2021), até integral pagamento.
  Proferida sentença, foi julgado procedente a violação do princípio da adesão alegada na excepção dilatória apresentada pelo Réu e indeferida a petição inicial.
  Não se conformando com a decisão proferida vem a Autora e agora Recorrente interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões:
  ----- Erro de interpretação e aplicação do direito.
1. Salvo o devido respeito pela sentença proferida pelo Tribunal a quo, a Recorrente não concorda com a decisão supracitada, entende que o pedido de indemnização apresentado não deve ser restringido por causa do princípio da adesão, devendo ser aceite o pedido em acção cível separada.
2. No ponto 17 da sentença recorrida supostamente provados os factos, vimos que no dia 10/05/2019, a Recorrente participou queixa do recorrido B por ter praticado o “crime de furto”.
3. Posteriormente em 15/07/2021, a Recorrente intentou acção de processo sumário de declaração no TJB contra o Réu para pedir a indemnização dos danos sofridos.
4. Daí se vê que a Recorrente antes de deduzir o pedido de indemnização civil, já tinha exercido o poder de queixa ao recorrido.
5. Nos termos do artº 61º, nº 2 do CPP, a interpretação da lei sobre dedução do pedido em acção cível vale como renúncia ao direito de queixa, no acórdão do TSI nº 736/2009 fez uma análise muito detalhada sobre isso, dito de maneira mais simples a situação de renúncia ao direito de queixa prevista no artº 61º, nº 2 do CPP só tem lugar, antes do ofendido ter exercido o direito de queixa, e quanto à situação de ter deduzido pedido em acção cível separada para exigir a indemnização, não está incluído na situação de antes de deduzir pedido de indemnização civil, já o ofendido exerceu o direito de queixa.
6. No processo em apreço, dado que a Recorrente antes de deduzir acção de processo sumário de declaração contra o Recorrido B, já tinha exercido o direito de queixa, pelo que não deve ser regulada pelo artº 61º, nº 2 do CPP.
-----Pode através de dedução de pedido de acção cível separada exigir indemnização civil
7. Por outro lado, situações excepcionais do “princípio da adesão” não é somente aplicável o artº 61º, nº 1, al. c) e nº 2 do CPP, porque existe ainda outras disposições.
8. Conforme a interpretação do acórdão do TUI nº 80/2013, a falta de dedução de pedido cível de indemnização ou a dedução intempestiva só preclude o direito de acção no processo penal. Mas não preclude o próprio direito à indemnização. E, quando o juiz não fixa indemnização, quer haja pedido cível, quer não haja, neste caso, quando o arbitramento oficioso se impusesse, de acordo com o artigo 74.º do Código de Processo Penal, a solução está em impugnar a sentença com fundamento em nulidade por omissão de pronúncia, sem prejuízo de o lesado poder intentar acção cível separada com fundamento do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal, se for caso disso.
-----Preenche o disposto no artº 61º, nº 1, al. d) do CPP
9. Preenche o disposto no artº 61º, nº 1, al. d) do CPP: “Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão”.
10. O facto hipotético descrito no ponto 15 do acórdão recorrido, vimos: “Presentemente, 1 onça de moeda de ouro com folha canadense cunhada no ano 1985, custa USD$2,481.69 (equivalente a MOP$19,932.69), o frete é de USD$72.88 (equivalente a MOP$585.26)”.
11. No ponto 2 da acusação deduzida em 29/04/2020 indica: “…Na altura, o valor de cada moeda de ouro imprimida com folha de carvalho apoderada era de oito mil e oitocentas e trinta e cinco patacas…”, bem como no ponto 3 da acusação: “… na altura, apropriou 3 moedas e 1 moeda de ouro, cada moeda custava no valor de oito mil e setecentas e oitenta e duas patacas e cinquenta avos …”
12. Daí se vê que na acusação, o valor das moedas imprimidas com folha de carvalho não era a totalidade do valor dos seus prejuízos patrimoniais da Recorrente.
13. Dado que o recorrido depois de apropriado as moedas de ouro imprimidas com folha de carvalho, até à presente data, nunca efectuou qualquer indemnização, nos termos do artº 560º, nº 5 do CC, tais prejuízos por desaparecimento das moedas de ouro, o valor deve ser avaliado à data da dedução da presente petição, ou seja, cada moeda avaliada ao preço de mercado USD2,481.69 (correspondente a MOP$19,932.69), mais o frete USD72.88 (equivalente a MOP585.26).
14. Pelo exposto, a Recorrente preenche a situação prevista no artº 61º, nº 1, al. d) do CPP, portanto pode deduzir pedido de acção cível separada, a sentença recorrida aplicou erradamente o artº 61º, nº 1, al. c) e nº 2 do mesmo código.
-----Preenche o disposto no artº 61º, nº 1, al. a) do CPP
15. Caso V. Exª é de entendimento diferente, também deve considerar a situação da Recorrente preenche a situação prevista no artº 61º, nº 1, al. a) do CPP.
16. Como acabamos de referir, a Recorrente apresentou queixa na PJ em 10 de Maio de 2019 (fls. 62 dos autos), enquanto que o MP deduziu a acusação em 29 de Abril de 2020 (fls. 63 dos autos).
17. Obviamente que depois da Recorrente ter feito queixa em 10 de Maio de 2019, MP ultrapassou 8 meses, a contar da notícia do crime, para deduzir a acusação contra o recorrido.
18. Portanto, a situação da Recorrente preenche o disposto nº artº 61º, nº 1, al. a) do CPP, pode deduzir pedido em acção cível separada.
19. Porém, o acórdão recorrido não considerou a disposição supracitada, aplicou erradamente o artº 61º, nº 1, al. c) e nº 2 do CPP, foi por isso que indeferiu a petição intentada pela Recorrente contra o Réu B, posto isto o acórdão recorrido padece do vício de erro de interpretação e aplicação da lei.
-----As despesas de transporte, administrativas e documentais, a indemnização pelos prejuízos morais, devem ser tratadas separadamente.
20. Tal como indica na sentença recorrida: “Já foram provados que os factos alegados pela Autora neste processo são iguais aos dos factos julgados no processo nº CR1-20-0159-PCC. No acórdão do processo nº CR1-20-0159-PCC.”, “a Autora apresentou pedido de indemnização com base no facto criminoso praticado pelo Réu. Nos termos do artº 60º do CPP estipula o princípio da adesão, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, em acção cível, nos casos previstos na lei.”
21. Na verdade, os factos alegados nos pontos 18 a 40 da petição inicial, tratam-se das despesas de transporte, administrativas e documentais, a indemnização pelos prejuízos morais da Recorrente, que são diferentes dos factos julgados no processo penal CR1-20-0159-PCC.
22. Assim sendo, os factos constantes nos pontos 18 a 40 da petição inicial, não devem ser restringidos pelo princípio de adesão previsto no artº 60º do CPP, ao mesmo tempo, a Recorrente por causa de tais factos deduziu pedido em acção cível separada, o Tribunal a quo também devia ajuizar tais factos.
23. Contudo, a sentença recorrida não julgou tais factos, por isso interpretou e aplicou erradamente o artº 60º do mesmo código, que por sua vez a sentença recorrida padece do vício de erro de interpretação e aplicação da lei.
  
  Notificado do despacho de admissão de recurso o Réu/Recorrido silenciou.
  
  Foram colhidos os vistos.
  
  Cumpre, assim, apreciar e decidir.
  
II. FUNDAMENTAÇÃO

a) Factos
  
  A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
1. Por volta de princípio de Julho de 2018, o Réu começou a residir no apartamento da Autora, sito na XXXXXXXXXXX, Macau, bem como, ele tinha a chave do apartamento.
2. Em 17/08/2018, o Réu aproveitando a Autora fora de casa, apropriou dentro desse apartamento, duas moedas de ouro imprimidas com folha de carvalho no valor de MOP$8,835.00 cada, pertencentes à Autora, bem como na madrugada de 00:01 do dia 20, penhorou-as na “casa de penhor C”, sita no XXXXXXXXX, pelo preço de HK$16,000.00, posteriormente usou o dinheiro para jogo.
3. Entre 24 a 26 de Setembro de 2018, o Réu aproveitando a Autora fora de casa, dentro desse apartamento, apropriou por duas vezes, respectivamente, 3 moedas e 1 moeda de ouro imprimidas com folha de carvalho no valor de MOP$8,835.00 cada, pertencentes à Autora, bem como, enfim, sucessivamente, às 17:26 e 21:50, penhorou-as na aludida casa de penhor, as 3 moedas de ouro pelo preço de HK$24,000.00 e 1 moeda de ouro pelo preço de HK$8,000.00, posteriormente usou o dinheiro para jogo.
4. O Réu bem sabia que os bens acima referidos pertencem à Autora, porém sem conhecimento e consentimento da Autora, ele apropriou-os para si.
5. O Réu bem sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei.
6. No processo penal nº CR1-20-0159-PCC, o Réu por ter praticado a conduta supracitada foi condenado pela prática em autoria material e na forma consumada e continuada de 1 crime de furto p.p.p. artº 197º, nº 1 do CP, na pena de 1 ano de prisão, suspensa a sua execução pelo período de 3 anos, no acórdão supracitado foi transitado em julgado no dia 29/04/2021.
7. As 6 moedas de ouro apoderadas pelo Réu, cada uma tem peso de 1 onça (ou seja, 31.15g), com um valor nominal de 50 dólares canadense, em 2019 as 6 moedas de ouro custavam, respectivamente, MOP$8,835.00 e MOP$8,8782 cada.
8. As 6 moedas de outro presentemente já ultrapassaram o valor do ano 2019.
9. As 6 moedas de ouro de uma onça cada, imprimidas com folha de carvalho canadense, foram fabricadas em 1985 (inglês: Canadian Gold Maple leaf).
10. As supracitadas 6 moedas de ouro foram cunhadas pela Casa da Moeda Real Canadense, emitidas a partir de 1979, são de ouro puro, para além de terem sidas emitidas em datas diferentes, nessas moedas encontram-se imprimidas folha de carvalho canadense e a Rainha Isabel II.
11. As moedas com folha de carvalho canadense até hoje em dia continuam a ser um dos produtos de investimento muito popular, razão porque cada onça tem uma pureza de ouro 99.99%.
12. As supracitadas 6 moedas de ouro foram cunhadas em 1985, presentemente a Casa da Moeda Real Canadense já não torna a fazer cunhagem de moedas desse ano.
13. As supracitadas 6 moedas de ouro desde o ano de cunhagem já decorreram 36 anos, pois possuem valor histórico e de colecção.
14. No mercado de Macau, já não consegue encontrar moedas de ouro cunhadas nesse ano.
15. Presentemente, 1 onça de moeda de ouro com folha canadense cunhada no ano 1985, custa USD$2,481.69 (equivalente a MOP$19,932.69), o frete é de USD$72.88 (equivalente a MOP$585.26)
16. A Autora com vista a recuperar as supracitadas 6 moedas de ouro, teve que percorrer, várias vezes, à PJ, MP, Tribunais e Comissão de Apoio judiciário.
17. 10 de Maio de 2019, a Autora foi participar à PJ, bem como, foi com o investigador da PJ à residência da Autora para fazer a busca domiciliária.
18. 16 de Maio de 2019, a Autora foi prestar auto de declarações na PJ.
19. Depois dessa data, a Autora foi ao MP prestar auto de declarações.
20. 20 de Abril de 2020, a Autora foi ao MP pedir a junção nos autos dos elementos sobre a finura e qualidade das moedas de outro.
21. 2 de Fevereiro de 2021, a Autora compareceu como testemunha na audiência de julgamento do Tribunal criminal do TJB.
22. 4 de Fevereiro de 2021, a Autora foi à Comissão de Apoio judiciário apresentar o pedido de apoio judiciário e junção dos respectivos documentos.
23. 22 de Março de 2021, a Autora foi à Comissão de Apoio judiciário apresentar a junção complementar dos respectivos documentos.
24. 9 de Abril de 2021, a Autora compareceu na audiência de julgamento do Tribunal criminal do TJB para ouvir a leitura da sentença.
25. Finais de Junho de 2021, com vista a deduzir, da melhor forma, a presente acção, a Autora foi ao Juízo Criminal pedir a certidão da sentença do processo criminal.
26. 5 de Julho de 2021, a Autora foi ao Juízo Criminal assinar o recebimento da certidão da sentença. Com vista a obter a respectiva sentença, a Autora pagou no total de MOP$204.00.
27. A Autora pelo menos perdeu 3 anos de tempo para tratar do assunto supracitado.
28. Durante esses 3 anos, a Autora percorreu, várias entidades, tal como, PJ, MP, Tribunal, Comissão de Apoio judiciário, todas as vezes que deslocava a esses locais, ia de táxi, pagou no total de MOP$600.00 de transporte.
29. A própria Autora sofre de depressão e ansiedade há mais de dez anos, sempre teve que ir, pontualmente, ao psiquiatra e psicólogo para consulta.
30. Depois desse incidente, a doença da autora tem vindo a piorar, sofre constantemente de insónias, encontra-se em estado de transe, depressão e chora com frequência.
31. A Autora tem de ir com mais frequência ao psiquiatra e psicólogo para consulta, toma vários medicamentos para acalmar o seu estado mental e aliviar a sua doença.
32. Por causa do incidente supracitado, a Autora até teve pensamento de se suicidar, mas foi impedida pelos médicos e assistente social.
33. A Autora recebe, desde longa data, apoio económico do governo, a sua vida já é bastante difícil, tendo ainda que gastar a sua mente para tratar do assunto supracitado, isto causou ainda mais problemas e depressão à Autora.
34. As 6 moedas de ouro envolvidas no processo foram oferecidas pelas pessoas amigas da Autora, para ela, tais moedas têm valor memorial.
35. Presentemente já não há possibilidade de encontrar moedas de ouro iguais, mesmo que fossem encontradas moedas de ouro do mesmo ano, também já não são as tais 6 moedas de ouro.
36. A Autora por causa desse incidente, houve certo tempo, impossível de ter disposição para ir à procura de emprego, até à presente data ainda está desempregada.
37. Devido a este incidente, a Autora passou a ter precaução com pessoas amigas, deixou de acreditar em qualquer pessoa, tendo assim piorado as suas relações sociais.
38. A Autora ficou mentalmente chocada por causa desse incidente, causando-lhe danos irreparáveis.
39. Devido a este incidente, o estado mental e psíquico da Autora piorou, que por sua vez necessitou de tomar muito mais medicamentos para acalmar o seu estado mental e aliviar a sua doença.
40. Por causa deste incidente a Autora até pensou em suicidar-se.

b) Do Direito
  
  É o seguinte o teor da decisão recorrida:
  «O Réu com fundamento de violação do princípio da adesão apresentou excepção dilatória, alegando que o pedido da Autora deste processo baseou-se nos factos julgados no processo nº CR1-20-0159-PCC do TJB, e que no processo nº CR1-20-0159-PCC não apresentou pedido legal de indemnização, violou as disposições do princípio de adesão, que por sua vez deve indeferir a petição inicial.
  Já foram provados que os factos alegados pela Autora neste processo são iguais aos dos factos julgados no processo nº CR1-20-0159-PCC. No acórdão do processo nº CR1-20-0159-PCC, o Réu por ter apropriado as 6 moedas de ouro da Autora, foi condenado a prática de 1 crime de furto na forma continuada p.p.p. artº 197º, nº 1 do CP, na pena de 1 ano de prisão, suspensa a sua execução pelo período de 3 anos, o acórdão supracitado foi transitado em julgado no dia 29/04/2021.
  Quer dizer, a Autora apresentou pedido de indemnização com base no facto criminoso praticado pelo Réu. Nos termos do artº 60º do CPP estipula o princípio da adesão, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, em acção cível, nos casos previstos na lei.
  Nos termos do artº 61º do CPP, o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em acção cível separada quando o procedimento depender de queixa ou de acusação particular (vide artº 61º, nº 1, al. c) do CPP).
  No processo em apreço, a conduta do Réu de ter apropriado as 6 moedas de ouro da Autora envolve crime de furto. Nos termos do artº 197º, nº 3 do CP, o crime de furto envolvido pelo Réu, sem queixa não há lugar a procedimento criminal.
  No artº 61º, nº 1, al. c) do CPP estipula que o ofendido perante tal situação pode deduzir pedido em acção cível separada pela razão de permitir que o ofendido possa exercer livremente o seu direito de queixa, sem necessidade de, por causa da dedução da acção do pedido cível, ter que exercer o direito de queixa.
  No artº 62º, nº 2 do CPP estipula que em caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a dedução do pedido em acção cível separada pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito.
  Feito a conjugação dos artºs 60º, 61º, nº 1, al. c) e 61º, nº 2 do CPP, sabemos que, se o processo penal foi aberto porque a pessoa a que tem direito de queixa denunciou o crime, então já não deve admitir a pessoa que tem direito a queixa deduzir pedido em acção cível separada, razão porque na situação de ter aberto processo penal, já não existe fundamento razoável para admitir a pessoa com direito a queixa deduzir pedido em acção cível separada.
  Face a isto no acórdão do TSI nº 465/2018 é da posição que: “Nos termos do artº 61º, nº 1, al. c) e nº 2, do CPP, na situação de crime semi-público ou privado, uma vez adoptada a indemnização por meio de dedução de pedido em acção cível separada, considera-se renúncia ao exercício do direito de queixa pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação. A renúncia ao direito de queixa ou acusação particular é diferente da desistência do direito de queixa ou acusação particular, sendo a primeira antes do exercício do direito de queixa ou acusação particular declarar de forma expressa ou tácita a renúncia ao exercício desse direito, a segunda é depois de exercer o direito de queixa ou acusação particular desistir da respectiva queixa ou acusação.
  De facto, depois de conjugar com os nºs 1 e 2 do artº 61º, do CPP, só quando a pessoa que tem o direito de queixa ou de acusação particular não tiver exercido antes o direito de queixa ou de acusação, é que permite o ofendido através de dedução de pedido de acção cível separada exigir indemnização ao responsável pelos danos, considerando assim que o ofendido renunciou o exercício do direito de queixa ou de acusação particular que inicialmente tinha direito. Em outras palavras, uma vez exercido o direito de queixa ou de acusação particular, se bem que envolve situação de crime semi-público ou privado, já não preenche o disposto no artº 61º, nº 1, al. c) (e nº 2) do CPP, pois tem de necessariamente aplicar o princípio disposto no artº 60º do CPP para resolver o caso.
  Neste caso, como a Recorrente não deduziu pedido de indemnização civil acessório no processo penal, não importa se no processo penal foi ou não arbitrada oficiosamente a indemnização, já não permite deduzir pedido de acção cível separada.”
  O estudioso português António Rocha expôs: “A alínea c) do n.º 1 do artigo 72.º pretende apenas não sujeitar o ofendido ao ónus de instaurar um processo crime para obter uma indemnização, tendo em conta que a lei lhe confere a faculdade de apresentar queixa ou não. Deste modo, o ofendido não será penalizado pelo facto de não pretender seguir adiante a parte criminal. Uma vez apresentada a queixa, nenhuma razão ponderosa justificará o recurso aos tribunais cívis para dedução do pedido de indemnização apenas com base na alinea c) do n.º 1 do artigo 72.º. Tal faculdade, a ser admitida, introduziria, sem qualquer fundamento material, uma diferença de tratamento entre os crimes semi-públicos e particulares, por um lado, e os crimes públicos, por outro. Logo, tendo em conta o seu espírito, a alínea c) deverá ser objecto de redução teleológica, aplicando-apenas aos casos em que o pedido de indemnização antecede a representação da queixa.1”.
  No processo em apreço, a conduta criminosa envolvida pelo Réu, foi aberto processo penal nº CR1-20-0159-PCC para julgamento, a Autora não apresentou pedido de indemnização civil no referido processo.
  Nos termos do artº 60º em conjugação com o artº 61, nº 2 do CPP, a Autora devia apresentar pedido de indemnização civil no processo penal nº CR1-20-0159-PCC.
  Posto isto, pode-se reconhecer que a acção civil deduzida pela Autora viola o princípio da adesão.
  Com base no exposto, deve julgar procedente o fundamento de que houve violação do princípio de adesão alegado pelo Réu na sua excepção dilatória, nos termos do artº 230º do CPP, indefere a petição formulada contra o Réu.».
  
  Nada mais se releva de interesse acrescentar aos fundamentos da decisão recorrida, a qual por sua vez também já se fundamenta no Acórdão deste Tribunal de Segunda Instância de 25.10.2018 proferido no processo que correu termos sob o nº 465/2018, para cuja leitura se remete e cuja parte transcrita na decisão recorrida muito bem responde às conclusões de recurso 1 a 6, e que mais uma vez se pode sintetizar do seguinte modo:
  1. Quanto ao procedimento criminal:
  - Dependendo o procedimento criminal de queixa e deduzindo-se pedido em acção cível separada por quem é titular do direito de queixa, vale como renúncia ao direito de queixa.
  - Logo deduzida acção cível em separado por quem é titular do direito de queixa para efeitos de procedimento criminal antes de exercer este direito, ficou precludida a possibilidade de o fazer, isto é de deduzir queixa crime.
  2. Quanto à acção cível:
  - Exercendo o lesado o direito de queixa crime dando assim início ao procedimento criminal, não se verificando nenhuma das outras situações previstas no nº 1 do artº 61º do CPP, face ao disposto no artº 60º do mesmo diploma legal, ficou precludida a possibilidade de vir a deduzir acção cível em separado.
  Nas suas alegações de recurso 7 e 8 vem a Recorrente invocar o Acórdão do TUI de 22.01.2014 proferido no processo que correu termos sob o nº 80/2013, contudo faz uma errada leitura e interpretação do mesmo.
  Mais uma vez em síntese o que resulta daquele Acórdão é que quando o lesado não deduziu pedido cível no processo penal, ou quando o deduziu mas foi julgado intempestivo, “o juiz deve arbitrar oficiosamente indemnização ao lesado, desde que se verifiquem os três pressupostos previstos na norma”2
  Mais se diz naquele Arresto que, se o Juiz, uma vez verificados os três pressupostos para arbitrar oficiosamente a indemnização, não remeter as partes para acção cível separada nos termos do nº 4 do artº 71º do CP, nem fixar indemnização, o lesado terá de impugnar a decisão judicial que lhe nega tácita ou expressamente o direito, sob pena deste ficar precludido3.
  Depois ainda se diz no citado Arresto do TUI “sem prejuízo de o lesado poder intentar acção cível separada com fundamento nas alíneas b), d) ou f) do nº 1 do artigo 61º do Código de Processo Penal, se for caso disso.”.
  Ou seja, o que ali se diz é que, se se verificarem os pressupostos daquelas 3 alíneas - alíneas b), d) ou f) do nº 1 do artigo 61º do CPP - pode ser deduzida acção cível em separado, mas não se diz que, quando o juiz não fixe a indemnização e houvesse de a ter fixado, as partes podem instaurar acção cível em separado.
  Mais se invoca nas conclusões de recurso 15 a 19 que estão reunidos os pressupostos da alínea a) do nº 1 do artº 61º do CPP.
  Ora, este situação visa permitir que o lesado possa recorrer à acção civil quando o processo penal no prazo que se entendeu ser razoável não satisfaça o ressarcimento do lesado pelos prejuízos sofridos.
  Mas o que aqui se permite é que o lesado pode actuar recorrendo à acção cível se entre a notícia do crime e a acusação decorrerem mais de 8 meses ou depois do processo crime estar parado por mais de 8 meses.
  Ora, a situação em que nos encontramos é que já foi proferida decisão crime, logo a situação não se enquadra nem numa nem noutra, ainda que ambas, eventualmente, se tenham verificado, uma vez que os efeitos da demora – se a houve – estão ultrapassados.
  Tendo sido proferida decisão crime a indemnização haveria de ter sido arbitrada naquele processo.
  Por fim invoca a Recorrente mas conclusões de recurso 20 a 23 que “as despesas de transporte, administrativas e documentais, e a indemnização pelos prejuízos morais devem ser tratadas separadamente.”.
  Não invoca a Recorrente qualquer fundamento legal para o que afirma porque ele não existe.
  E não havendo fundamento legal para o que afirma também, este argumento não leva ao sucesso de recurso, pois sendo danos nada obstava a que houvessem sido fixados na indemnização a arbitrar na sentença criminal.
  
  Destarte, não procedendo nenhum dos argumentos invocados pela Recorrente e concordando-se totalmente com os fundamentos da decisão recorrida, para os quais remetemos e aderimos integralmente nos termos do nº 5 do artº 631º do CPC, impõe-se negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
  
III. DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
  
  Custas a cargo da Recorrente.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 1 de Junho de 2023
  Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
  (Relator)
  Fong Man Chong
  (1° Juiz-Adjunto)
  Ho Wai Neng
  (2° Juiz-Adjunto)
  

1 Vide Manuel Leal Henriques, ANOTAÇÃO E COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL DE MACAU, VOLUME I, 2013, DFJJ, citações de pags. 437 e 438.
2 No caso dos autos foi deduzido pedido de indemnização, mas o mesmo foi considerado intempestivo. Logo, para todos os efeitos, não houve pedido cível deduzido. Efectivamente, não se mostra razoável que o lesado que não deduziu pedido cível, no processo penal, mereça maior protecção que aquele que o deduziu, mas que o tribunal entendeu ter sido intempestivo. Estão os dois lesados na mesma situação.
Ora, quando não existe pedido de indemnização o juiz deve arbitrar oficiosamente indemnização ao lesado, desde que se verifiquem os três pressupostos previstos na norma:
- A indemnização se imponha para uma protecção razoável dos interesses do lesado;
- O lesado a ela se não oponha;
- Do julgamento resulte prova suficiente dos pressupostos e do quantitativo da reparação a arbitrar, segundo os critérios da lei civil.
A falta de dedução de pedido cível de indemnização ou a dedução intempestiva só preclude o direito de acção no processo penal. Mas não preclude o próprio direito à indemnização.
3 Ora, salvo o devido respeito, a previsão da alínea e) nada tem que ver com a situação dos autos, em que o juiz omite pronúncia sobre a fixação de indemnização. Em tal alínea, remetendo para a disposição do n.º 4 do artigo 71.º do Código de Processo Penal, o que está em causa é a situação de o juiz remeter as partes para acção cível separada quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.
Em tal situação justifica-se inteiramente que as partes tenham de recorrer à acção cível separada, já que foi o juiz que as remeteu para tal foro. Já quando o juiz, porventura ilegalmente, não fixa indemnização, o que se justifica é que o lesado impugne a sentença.
Não há aqui, assim, nenhum cerceamento de direito do lesado. Como em tantas outras situações, para que não precluda o seu direito o interessado tem de impugnar a decisão judicial que o nega, tácita ou expressamente.
Por outro lado, não há qualquer analogia entre a previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal e a situação dos autos.
Onde existe analogia é nas situações em que o juiz não fixa qualquer indemnização, (i) quer haja pedido cível deduzido, (ii) quer não haja, como no caso dos autos. Ora, como defende PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE2 “a omissão de pronúncia sobre o pedido de indemnização civil recebido nos autos constitui nulidade da sentença…, salvo se houve reenvio das partes para os tribunais civis”.
Logo, quando o juiz não fixa indemnização, quer haja pedido cível, quer não haja, neste caso, quando o arbitramento oficioso se impusesse, de acordo com o artigo 74.º do Código de Processo Penal, a solução está em impugnar a sentença com fundamento em nulidade por omissão de pronúncia,
(…)
Se a decisão é expressa na negação de indemnização há que recorrer dela para que não ocorra preclusão, também sem prejuízo do que ficou referido no parágrafo anterior.
Quando o juiz remete os interessados para a acção cível separada (artigo 71.º, n.º 4, do Código de Processo Penal), deve o lesado intentar acção no foro cível, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal

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105/2023 CÍVEL 4