Processo nº 911/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 8 de Junho de 2023
ASSUNTO:
- Competência do Tribunal
- Tribunal Arbitral
- Cláusula compromissória
SUMÁRIO:
- Constando de cláusula do contrato que “no caso de litígio ou discordância sobre a coordenação, qualquer uma das partes pode recorrer ao serviço de arbitragem junto das entidades legais da região, cabendo à parte vencida suportar as respectivas despesas de arbitragem”, de acordo com o sentido literal da palavra “pode” e não resultando o contrário do conteúdo do contrato impõe-se concluir que a intenção não pode ser outra senão aquela que aponte o recurso aos Tribunais arbitrais como uma faculdade atribuída às partes, estando o recurso aos Tribunais do Estado ou aos Arbitrais numa relação de alternatividade apenas dependente da vontade daquelas (das partes).
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 911/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 8 de Junho de 2023
Recorrente: Companhia de Construção A Limitada
Recorrida: B Engenharia de Aluminio Cortina Muro Limitada
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
B Engenharia de Aluminio Cortina Muro Limitada, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
Companhia de Construção A Limitada, também com os demais sinais dos autos.
Invocada na contestação a incompetência do Tribunal veio esta excepção no despacho saneador a ser julgada improcedente, não se conformando a Ré com essa decisão, veio esta interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Por despacho de 7 de Fevereiro de 2022, o Tribunal a quo julgou improcedente a excepção dilatória de incompetência dos tribunais, deduzida pela recorrente.
2. Entende a recorrente que a decisão recorrida fez uma errada aplicação da lei.
3. A principal questão suscitada é a de saber se a cláusula compromissória do contrato envolvido exclui a competência dos tribunais, ou confere à instituição de arbitragem a competência concorrente com a dos tribunais.
4. Na fundamentação da decisão recorrida, indicou o Tribunal a quo que, no que respeita ao entendimento do termo “…qualquer uma das partes pode…” usado na cláusula 13ª do contrato envolvido, tanto quanto ao sentido literal como ao teor do contrato, só se pode reconhecer que as partes convencionaram, através dessa cláusula, que uma parte podia submeter o litígio à arbitragem, e a outra parte teria de aceitar a arbitragem, sendo lhes conferida uma faculdade de opção. Quer dizer, qualquer uma das partes pode optar por resolver o litígio por meio de arbitragem, ou por via judicial.
5. A recorrente não concorda com o supracitado entendimento, imputando à decisão recorrida os vícios de erro na interpretação da lei e de erro na interpretação da declaração de vontade das partes.
6. Quanto ao vício de erro na interpretação da lei, a questão a resolver reside em saber se deve ser admitida a possibilidade de concurso das competências do tribunal arbitral e do tribunal, ou seja, se a convenção de arbitragem pode permitir a resolução de litígios tanto por tribunal arbitral, como por tribunal.
7. A introdução da cláusula compromissória visa, por si mesma, excluir a competência dos órgãos judiciais estaduais para conhecer do litígio, sendo isso o efeito negativo da cláusula compromissória. Existe contradição quando os contraentes, por um lado, afastem o recurso aos tribunais para a resolução do litígio, e por outro, permitam o mesmo.
8. E os art.ºs 7.º, n.º 3 e 5.º, n.º 8 da Lei n.º 19/2019 – «Lei de arbitragem», consagram o “princípio da intervenção mínima dos tribunais”, nos termos do qual, em todas as questões reguladas pela «Lei de arbitragem», os tribunais só podem intervir nos casos em que esta o prevê.
9. A «Lei de arbitragem» não prevê que na convenção de arbitragem, pode-se acordar em submeter o litígio tanto à arbitragem como ao tribunal, e face a tal ausência, o Tribunal a quo reconheceu a sua competência para o conhecimento da acção, violando, obviamente, o “princípio da intervenção mínima dos tribunais”.
10. Por outro lado, segundo o art.º 7.º, n.º 2 da mesma Lei, deve ser tida em consideração a «Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional», cuja nota explicativa indica expressamente que, as partes, numa convenção de arbitragem, podem decidir excluir, de uma forma consciente, a jurisdição do tribunal, preferindo o carácter definitivo e expedito do processo de arbitragem, e não podendo intervir os tribunais salvo nos casos previstos pela lei arbitral.
11. Na perspectiva do direito comparado, dispõe-se na primeira parte do art.º 7.º da «Interpretação sobre Algumas Questões na Aplicação da Lei de Arbitragem da República Popular da China», publicada pelo Supremo Tribunal Popular da China, que “é inválida a convenção de arbitragem quando as partes concordem que os litígios podem ser submetidos à instituição de arbitragem, ou resolvidos por meio de acção intentada no tribunal popular.”
12. Conjugando as referidas disposições legais, interpretações e jurisprudências, entende a recorrente que a interpretação da respectiva lei arbitral, feita pelo Tribunal a quo, é obviamente contrária à ideia original do legislador, violando, nomeadamente, o “princípio da intervenção mínima dos tribunais”, pelo que não se pode retirar a conclusão de que a cláusula compromissória permite a competência alternativa.
13. Quanto ao vício de erro na interpretação da declaração de vontade das partes, com base no termo “…qualquer uma das partes pode…” usado na cláusula compromissória do contrato envolvido, a decisão recorrida reconheceu que a mesma cláusula conferiu às partes a faculdade de resolver os litígios por via judicial.
14. Salvo o devido respeito, a recorrente não concorda com o referido entendimento.
15. Na verdade, no contrato envolvido, para além duma série de direitos e deveres, a recorrente e a recorrida também chegaram ao acordo relativo à forma de actuação em caso de litígios, na cláusula 13ª do contrato, titulada de “meios de resolução de litígios”, de que constam apenas dois meios de resolução, ou seja “conciliação” e “arbitragem”, sem mencionar a possibilidade de jurisdição do tribunal.
16. No que concerne à interpretação da cláusula compromissória que não preveja expressamente se é conferida ou não a competência alternativa, ensinou o Prof. Miguel Teixeira de Sousa que: “na falta de disposição legal e contrariamente ao que sucede nos pactos de jurisdição, nas convenções de arbitragem deverá entender-se (em caso de dúvida, obviamente) que a competência do tribunal arbitral é exclusive, por ser a solução que melhor se quadro com a vontade presumível das partes.”
17. E, tendo sido usado o termo “…qualquer uma das partes pode…” na cláusula compromissória em causa, a vontade real das partes não é conferir a qualquer uma das partes a faculdade de opção entre a instituição de arbitragem e o tribunal para resolução dos litígios, mas sim, traduz-se em deixar claro que a resolução dos litígios mediante conciliação ou arbitragem constitui um direito de ambas as partes.
18. E, tendo sido usado o termo “…qualquer uma das partes pode…” na cláusula compromissória em causa, a vontade real das partes não é conferir a qualquer uma das partes a faculdade de opção entre a instituição de arbitragem e o tribunal para resolução dos litígios, mas sim, traduz-se em deixar claro que a resolução dos litígios mediante conciliação ou arbitragem constitui um direito de ambas as partes.
19. De facto, no tratamento das questões semelhantes, o TUI também adoptou a jurisprudência segundo a qual nos pactos de jurisdição, a expressão “poder” deve ser interpretada no sentido de excluir a jurisdição, e neste sentido, pode-se ver o Acórdão do TUI n.º 146/2020: “Por outro lado, a expressão “poder” nem sempre confere a possibilidade de fazer escolha entre várias hipóteses. Cite-se aqui, a título de direito comparado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 20 de Janeiro de 2011, proferido no Processo n.º 2207/09.6TBSTB.E1.S1, embora a propósito de cláusula compromissória (mas não vemos razão para assim não ser também entendida), em que se diz que o vocábulo “podem, inserto na falada cláusula contratual, não se conexiona directamente com a opção pela competência jurisdicional clausulada, mas apenas com a condição (constante do aludido ponto 8.2) de as partes tentarem uma via conciliatória (acordo amigável, como consta do texto) antes de enveredarem pela contenciosa, e só em caso de frustração de tal via, ficarem livres para (poderem) enveredar pela via contenciosa por recurso à arbitragem,…
E no Tribunal da Relação do Porto, decidiu-se que “Quando um artigo estabelece a obrigatoriedade da tentativa de conciliação previamente ao recurso ao tribunal arbitral, o artigo seguinte, ao dizer que, frustrada essa tentativa, as partes podem recorrer ao tribunal arbitral, deve ser interpretada no sentido de estar aberta a fase da arbitragem, e não como estabelecendo a competência alternativa dos tribunais judiciais.”
20. Na questão de como se resolvem os litígios emergentes do contrato, a recorrente e a recorrida chegaram ao acordo na cláusula 13ª “meios de resolução de litígios” do contrato envolvido, que é a única cláusula no contrato que versa sobre a resolução dos litígios. Essa cláusula compromissória, que não estipula expressamente que os tribunais têm competência para conhecer dos litígios emergentes do contrato, foi interpretada no sentido de serem competentes os tribunais para o efeito, o que não corresponde à vontade das partes, violando-se o “princípio da intervenção mínima dos tribunais”
21. Por isso, nos termos dos art.ºs 30.º, 31.º, n.º 2, e 33.º, n.º 2 do CPC, deve a recorrente ser absolvida da instância, por ser a cláusula compromissória envolvida privativa da competência dos tribunais.
Contra alegando veio a Recorrida pugnar para que fosse negado provimento ao recurso mantendo-se a decisão recorrida, não apresentando, contudo, conclusões.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Factos
- Entre a Recorrente e Recorrida foi celebrado o acordo que consta de fls. 57 a 59 traduzido a fls. 241 a 247 do qual a cláusula XIII tem a seguinte redacção:
«XIII. Modo de resolução de litígios
No caso de litígio ou desconformidade de opiniões entre as partes, qualquer parte pode requerer conciliação e arbitragem perante o órgão legal de Macau, a parte vencida é responsável pelas custas de arbitragem.».
b) Do Direito
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Da competência do Tribunal
Invoca-se na contestação a incompetência do Tribunal por existir, no contrato(s) posto(s) em crise, uma cláusula compromissória que defere a Tribunal Arbitral a competência para decidir o objecto do litígio em causa.
Reage a A. referindo que a invocação de tal cláusula não procede uma vez que, em rigor, o que está contemplado (na perspectiva que se apoie na existência de todos os contratos invocados pela R) é apenas uma faculdade ou opção.
Cumpre decidir.
Diz-se na cláusula 13ª do(s) contrato(s) que “no caso de litígio ou discordância sobre a coordenação, qualquer uma das partes pode recorrer ao serviço de arbitragem junto das entidades legais da região, cabendo à parte vencida suportar as respectivas despesas de arbitragem.
A cláusula em causa é, como bem se sabe, susceptível de interpretação. E dessa interpretação, visto o termo «pode» utilizado, não pode ser outro senão aquele que aponte o recurso aos Tribunais arbitrais como uma faculdade atribuída às partes.
Diríamos que o recurso aos Tribunais do Estado ou aos Arbitrais estão numa relação de alternatividade apenas dependente da vontade das partes.
Pelo exposto, e este Tribunal Competente, desta sorte improcede a excepção em apreciação.».
Sobre esta matéria, em contrato idêntico ao destes autos, do qual constava cláusula igual à do contrato dos autos e em que a aqui Recorrente foi também Recorrente, já este Tribunal se pronunciou em Acórdão de 28.10.2021, proferido no processo que correu termos sob o nº 669/2021, o qual também subscrevemos enquanto Juiz Adjunto e cujo teor é o seguinte:
«A decisão a quo tem o seguinte teor:
“…
Da competência
Na petição inicial, a ré deduziu a excepção de incompetência dos tribunais com fundamento na celebração da cláusula compromissória entre as duas partes, entendendo que a acção intentada pela autora violou a convenção de submeter o caso ao tribunal arbitral voluntário. Por isso, entendeu que não podia a autora intentar acção neste Tribunal, que não tinha competência.
O principal fundamento da ré reside na seguinte cláusula do contrato envolvido (os documentos 3, 5, 6 e 7 anexos à petição inicial da autora): “Meios de resolução de litígios: Em caso de litígios surgidos entre as partes ou de impossibilidade de coordenar e unificar as opiniões delas, qualquer uma das partes pode requerer conciliação e arbitragem ao serviço local competente para o efeito, ficando a cargo da parte vencida as despesas de arbitragem”.
Deste modo, entendeu a ré que, em caso de litígios, deviam os mesmos ser resolvidos através de conciliação ou arbitragem, mas não por via judicial, uma vez que os tribunais não tinham competência.
A autora argumentou na réplica que, a referida cláusula compromissória devia ser interpretada no sentido de conferir uma faculdade às partes. Ou seja, em caso de litígios, pode-se optar por meio de arbitragem, ou, se não opte por arbitragem, ainda pode recorrer-se aos meios comuns, isto é, aos tribunais para resolver os litígios.
Cumpre conhecer.
Quanto à questão de competência, é de saber, antes de mais, se as duas partes convencionaram submeter a resolução de litígios surgidos, de forma exclusiva, ou de forma opcional, à arbitragem.
De acordo com o que consta da cláusula 13ª do supracitado contrato (Meios de resolução de litígios: Em caso de litígios surgidos entre as partes ou de impossibilidade de coordenar e unificar as opiniões delas, qualquer uma das partes pode requerer conciliação e arbitragem ao serviço local competente para o efeito, ficando a cargo da parte vencida as despesas de arbitragem), “…qualquer uma das partes pode…”.
Tanto quanto ao sentido literal como ao teor do contrato, só se pode reconhecer que as partes convencionaram, através daquela cláusula, que uma parte podia submeter o litígio à arbitragem, e a outra parte teria de aceitar a arbitragem, sendo lhes conferida uma faculdade de opção. Quer dizer, qualquer uma das partes pode optar por resolver o litígio por meio de arbitragem, ou por via judicial.
As partes não convencionaram excluir a competência dos tribunais, nem acordaram na obrigatoriedade da resolução de litígios por meio de arbitragem, pelo que este Tribunal é competente para conhecer da acção intentada pela autora.
Com base nisso, julga-se improcedente a excepção dilatória de incompetência, deduzida pela ré.
Submete à conclusão o referido despacho após o trânsito em julgado.
Notifique e tome diligências necessárias.
…”.
Estamos de pleno acordo com a fundamentação e decisão do Tribunal a quo relativa à respectiva questão, pelo que, nos termos do art.º 631.º, n.º 5 do CPC, remetemos para a referida decisão e os seus fundamentos, e julgamos improcedente o recurso.».
Destarte, face aos fundamentos já constantes no citado Acórdão e supra reproduzidos aos quais aderimos, acompanhamos a decisão recorrida, a cujos fundamentos nada mais há a acrescentar, para os quais remetemos e aos quais também aderimos integralmente nos termos do nº 5 do artº 631º do CPC, impondo-se negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos negando provimento ao recurso, mantém-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Registe e Notifique.
RAEM, 8 de Junho de 2023
Rui Pereira Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(Primeiro Juiz Adjunto)
Ho Wai Neng
(Segundo Juiz Adjunto)
911/2022 CÍVEL 1