Processo n.º 49/2023
(Autos de recurso cível)
Data: 15/Junho/2023
Descritores:
- Divisão de coisa comum
- Coisa apreendida no âmbito de processo-crime
- Suspensão da instância
SUMÁRIO
Tendo a quota-parte de um bem imóvel sido apreendida no âmbito de processo-crime, o arguido como sendo comproprietário deixou de ter provisoriamente a disponibilidade da coisa até ao trânsito em julgado da decisão que dará destino à coisa apreendida.
Por não se saber por ora a quem deverá ser restituído o apreendido, andou bem o juiz do tribunal recorrido ao ordenar a suspensão da instância por seis meses, ao abrigo do disposto no artigo 223.º n.º 1, segunda parte, do CPC.
O Relator,
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Tong Hio Fong
Processo n.º 49/2023
(Autos de recurso cível)
Data: 15/Junho/2023
Recorrentes:
- A, B, C e D (autores)
Recorrido:
- F (requerido)
Objecto do recurso:
- Despacho que determinou a suspensão da instância
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Corre termos no Tribunal Judicial de Base uma acção especial de divisão de coisa comum, em que são autores A, B, C e D e requerido F.
Oportunamente, foi decidida pelo juiz de primeira instância a suspensão da instância pelo prazo de 6 meses.
Inconformados, recorreram os autores jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
“I. O presente recurso tem por objecto a decisão do Tribunal a quo, contida no despacho de fls. 74 a 78, de suspender a instância pelo prazo de seis meses, ao abrigo do artigo 223, n.º 1 do CPC, com fundamento de que, estando os direitos do Réu sobre as Frações à ordem de um processo criminal, os mesmos se encontram em situação de total indisponibilidade.
II. Resulta dos autos, com relevância para o presente recurso, os factos descritos no ponto II.3. das alegações supra, que aqui se dão por integralmente reproduzidos,
III. Entendem os Recorrentes que a suspensão da instância aqui posta em causa não se enquadra em nenhuma das situações previstas no n.º 1 do artigo 223º do CPC.
IV. Parece evidente que a situação dos autos não se enquadra na primeira parte do n.º 1 do artigo 223º do CPC, pois, jamais o processo crime em curso envolvendo o aqui Réu pode ser considerado causa prejudicial relativamente aos presentes autos.
V. Como tem sistematicamente decidido este Venerando Tribunal em diversos acórdãos, para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 223º do CPC, a decisão de uma causa depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito.
VI. Ou seja, verifica-se uma relação de dependência quando a decisão de uma acção (a dependente) é atacada ou afectada pela decisão emitida noutra (a prejudical) ou ainda, quando na causa prejudicial se discute questão cuja decisão pode destruir o fundamento ou razão de ser da causa dependente/subordinada.
VII. O resultado do processo crime envolvendo do Réu, ou seja, a sua condenação ou absolvição, não é susceptível de destruir o fundamento ou razão de ser dos presentes autos de divisão de coisa comum intentados pelos Recorrentes, cuja finalidade é pôr fim a uma indivisão, nem a decisão destes é atacada ou afectada pela decisão do mesmo processo crime, pelo que não existe entre aquele processo criminal e os presentes autos qualquer relação de dependência ou prejudicialidade que justifique a suspensão destes nos termos da primeira parte do n.º 1 do artigo 223º do CPC.
VIII. O facto de a quota-parte do Réu nas fracções estar aprendida à ordem do referido processo crime não parece ser motivo justificado para a suspensão dos presentes autos, nos termos da segunda parte da mesma norma.
IX. Como decorre claramente do artigo 1311º do Código Civil, o direito de exigir a divisão da compropriedade é um direito potestativo de cada um dos comproprietários, pelo que é um poder jurídico de, por um acto de vontade, só de per si ou integrado por uma decisão judicial, produzir efeitos jurídicos que inelutavelmente se impõe à contraparte.
X. Assim, tratando-se de um direito potestativo, as contrapartes, isto é, os restantes comproprietários limitam-se a sujeitar-se a essa divisão, independente de esta não se revelar fácil, conveniente, ou até causar algum prejuízo a um dos comproprietários.
XI. Por maioria de razão, o direito potestativo que qualquer dos comproprietários têm de requerer a divisão impõe-se também inelutavelmente àqueles que, por qualquer motivo, adquiram ou reclamam algum direito sobre a quota ideal de qualquer dos comproprietários, como no caso presente, a RAEM, representada pelo Ministério Público, por via da apreensão.
XII. Se a existência de uma apreensão sobre a quota-parte que o Réu detém nas Fracções não pode impedir os Recorrentes de exercerem o seu direito de fazer cessar a compropriedade, também a mesma apreensão não pode ser motivo de suspensão dos presentes autos, que visam precisamente o exercício de tal direito.
XIII. Dispõe o artigo 103º, n.º 2 e 4, do CP que a perda de recompensas, coisas, direitos ou vantagens resultantes do crime não pode prejudicar terceiros e, se não puderem ser apropriados em espécie, serão substituídos pela perda do respectivo valor a favor da RAEM.
XIV. A decisão de suspender a instância com base na existência de uma apreensão dos direitos do Réu sobre as Fracções prejudica gravemente os aqui Recorrentes, pois, na prática, implica uma impossibilidade de os mesmos, durante um tempo indeterminado que as prevê longo – dada a complexidade e número de envolvidos no processo crime no âmbito do qual foi ordenada a apreensão, como é facto público -, exercerem o direito potestativo que o artigo 1311º do CC lhes atribui de, a qualquer momento, procederem a divisão da compropriedade das Fracções, obrigando-os a manter numa situação de indivisão que não desejam.
XV. Já o normal andamento do presente processo não envolve qualquer prejuízo relevante para a RAEM, enquanto beneficiária da apreensão, que sempre poderá requerer a substituição da quota-parte do Réu nas Fracções pelo valor que o mesmo terá a receber caso as Fracções venham a ser adjudicadas aos Recorrentes ou vendidas a terceiros, desde que, para o efeito, na fase da venda ou adjudicação, ou até antes disso caso assim se entender, se cite o Ministério Público.
XVI. A decisão de suspensão da instância devido à apreensão não parece ter utilidade relevante para a defesa de quaisquer interesses, designadamente da RAEM, e apenas adia o inevitável, pois mesmo que a quota-parte das Fracções apreendida venha a ser declarada perdida a favor da RAEM no processo criminal, os aqui Recorrentes manterão o seu direito potestativo de requerer a divisão da compropriedade das Fracções nos mesmos termos em que agora o fazem.
XVII. Conclui-se, pois, que a existência de uma apreensão sobre a quota-parte das Fracções pertencente ao Réu não pode ser considerado motivo justificativo da suspensão da instância dos autos de divisão de coisa comum intentada pelos Recorrentes pois, além de essa suspensão não se revelar útil ou necessária à salvaguarda de quaisquer interesses, designadamente da RAEM, dignos de tutela, a mesma suspensão viola, de forma gritante o direito que os Recorrentes têm de, a todo o tempo, fazer cessar a indivisão, que o artigo 1311º do CC de forma clara lhes atribui.
XVIII. Ao contrário do que afirma o tribunal a quo, entendem os Recorrentes que a apreensão não gera uma verdadeira indisponibilidade dos direitos que o Réu detém sobre as Fracções, mas sim uma ineficácia em relação à RAEM de qualquer acto de disposição dos mesmos, à semelhança do que acontece com o arresto ou a penhora, sendo certo ainda que, em tese, o andamento do processo de divisão de coisa comum até ao fim não implica necessariamente a disposição da quota-parte que o Réu detém nas Fracções, mais uma razão para se concluir que a apreensão não constitui motivo para a suspensão do autos de divisão de coisa comum instaurados pelos Recorrentes.
XIX. Pelo que, em face de todo o exposto, não se verifica, no presente caso, fundamento para a suspensão da instância, quer seja por causa prejudicial, quer seja por motivo justificado, pelo que a Decisão Recorrida, ao decidir pela suspensão da instância nos presentes autos, violou, entre outros, o disposto no n.º 1 do artigo 223º do CPC e no artigo 1311º do CC, devendo, por isso, ser revogada e, em consequência, ordenar-se o prosseguimento dos autos de divisão de cosia comum.
Nestes termos, requer a V. Exa. se digne julgar procedente o presente recurso e, em consequência, revogar a Decisão Recorrida e ordenar o prosseguimento da acção.”
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Devidamente notificado, não respondeu o requerido ao recurso.
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Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
Está provada a seguinte factualidade com relevância para a decisão do recurso:
Os autores intentaram a acção especial de divisão de coisa comum contra o requerido, alegando serem todos eles comproprietários de duas fracções autónomas designadas por “D” e “E”, para habitação, ambas do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1****.
Os autores pretendem pôr termo à indivisão em relação às fracções.
Pelo juiz do tribunal a quo foi proferido o seguinte despacho objecto do recurso:
“Em face do teor das peças processuais resulta que as partes não estão em desacordo em relação à indivisibilidade das fracções. Diremos, pois, que, materialmente, não há contestação por existir adesão ao pedido.
A benefício da decisão que se impõe, e na sequência da imposição vertida no artº 949º do C.P.C., dir-se-á que a coisa é indivisível nas seguintes hipóteses: a) por natureza – artº 199º, 1ª parte do CC; b) por detrimento do valor da coisa ou em função do prejuízo para o uso a que a mesma se destina – artº 199, 2ª parte, do CC; 3) por impedimento legal.
Vista a natureza das fracções em causa, duas fracções autónomas num prédio constituído em propriedade horizontal, devidamente caracterizadas a fls. 9 a 23 e cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos, incluindo quanto às áreas, cremos que, sem sequer falar no impedimento legal/administrativo do respectivo fraccionamento, podemos liminarmente concluir que a divisibilidade é por natureza vedada naqueles dois primeiros aspectos.
Por natureza porque isso alteraria a sua substância, outrossim por detrimento do valor da coisa ou em função do prejuízo para o uso a que a mesma se destina (os espaços fraccionados não teriam o mesmo préstimo para o fim a que se destinam e o valor das parcelas fraccionados depreciariam consideravelmente).
Impõe-se concluir pela indivisibilidade das fracções nos termos referidos.
Destarte e por todo o exposto, decide-se serem as fracções supra identificadas indivisíveis por natureza.
Nos termos do artº 949º al. b) do CPC, impunha-se a realização da conferência de interessados a que alude o artº 951 do mesmo diploma.
Todavia, como decorre da última certidão junta, os direitos do r. estão apreendidos à ordem de processo criminal.
Por ser assim, enquanto não for levantada a apreensão, estão tais direitos em situação de total indisponibilidade.
Destarte, ao abrigo do artº 223 nº 1 do CPC, suspende-se a presente instância pelo prazo de 6 meses.
Notifique, incluindo o MP e vista a citada apreensão em processo criminal (fls. 59).
Após decorridos os citados 6 meses, notifique as partes para virem dizer o que tiverem por conveniente.”
Depois de interposto o recurso, pelo juiz do tribunal a quo foi dado o seguinte despacho de sustentação:
“Está apreendido à ordem de processo criminal 25/100 da fracção objecto dos presentes autos, ou seja, a quota-parte do R.
Por isso se suspenderam os presentes autos ao abrigo do artº 223º nº 1, última parte, do CPC.
E se o fizemos não foi porque naquele dia nos apeteceu parar o andamento dos autos. Não é o nosso registo: gostamos de os ver arquivados.
Fizemo-lo porque não vemos como possa o R. dispor dos seus 25/100 na coisa, por exemplo acordando em sede de conferência (artº 951 do CPC) com quem ela fica, quais os valores de «tornas» que lhe serão devidos se não for ele o beneficiário da adjudicação, igualmente acordando, se for o caso, na sua venda … etc.
É que a disponibilidade da sua propriedade, a capacidade de sobre ela exercer direitos, está «sequestrada» pela citada apreensão (a designada indisponibilidade relativa).
Por outro lado também não vemos que possa o MP, naturalmente sempre com a autorização do Tribunal Criminal, intervir nos presentes autos no lugar do Réu uma vez que a «coisa» apenas está apreendida e o que se impõe acordar e decidir aqui pelas partes é algo que ultrapassa a administração ordinária da coisa, pelo contrário, na expressão de Mota Pinto, «afecta o casco do bem», estando-se no âmbito da administração extraordinária.
Temos para nós que só a intervenção do verdadeiro proprietário nos presentes autos, sempre no uso da totalidade dos seus poderes em relação à coisa, ou seja, o réu se a apreensão for levantada, ou, se a coisa for declarada perdida a favor da Região, o MP em representação da RAEM, permite o regular prosseguimento dos autos.
Não vemos, pois, onde possamos ter fugido à legalidade com a decisão posta em crise, e só não laboramos mais na fundamentação da suspensão por nos parecer questão que não suscitaria dúvidas.
Não obstante temos todo o gosto em dar desde já andamento aos autos se assim nos for ordenado, e desde que nos fique igualmente esclarecido o que se fará, por exemplo, caso seja vendida a coisa, e mesmo que não o seja, se for adjudicada a algum ou alguns dos comproprietários, com o exigido e necessário o cancelamento da inscrição da apreensão nos termos do artº 814º ,º 2 do CC e 783º do CPC.
Francamente, enquanto estiver em vigor a ordem de apreensão, salvo se nos for ordenado, nada se cancelará.
Vossas excelências melhor e sapientemente decidirão.
Notifique.
Após subam os autos.”
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Louvamos a acertada e perspicaz decisão que antecede, com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução ao caso, pelo que, considerando a fundamentação aí exposta, cuja explanação sufragamos inteiramente, remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC e, em consequência, negamos provimento ao recurso.
Efectivamente, uma vez ordenada a apreensão, o arguido ora requerido deixou de ter provisoriamente a disponibilidade da coisa até ao trânsito em julgado da decisão que dará destino à coisa apreendida.
E nem se diga que o Ministério Público tenha legitimidade para agir em nome do arguido. Na medida em que a coisa apenas se encontra apreendida, até ao trânsito em julgado da decisão, condenatória ou absolutória, que decida sobre o destino da coisa apreendida, nunca se sabe a quem deverá ser restituído o apreendido, ou seja, ainda não se sabe quem vai ser o seu verdadeiro proprietário.
Posto isto, andou bem a decisão recorrida ao ordenar a suspensão da instância por seis meses e, provavelmente, até ao trânsito em julgado da decisão no processo-crime, ao abrigo do disposto no artigo 223.º n.º 1, segunda parte, do CPC.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, o Colectivo de Juízes deste TSI acorda em negar provimento ao recurso interposto pelos autores A, B, C e D, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Registe e notifique.
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RAEM, aos 15 de Junho de 2023
Tong Hio Fong
(Relator)
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro (Primeiro Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Recurso Cível 49/2023 Página 15