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Processo nº 130/2020
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), propôs no Tribunal Judicial de Base – como preliminar da “acção de divórcio” – “procedimento cautelar especificado de arrolamento” contra o seu marido B (乙), ambos com os sinais dos autos, que nos termos da sentença de 01.03.2014 pela Mma Juiz do dito Tribunal Judicial de Base proferida foi julgado procedente; (cfr., fls. 80 a 83 do Proc. n.° FM1-14-0357-CPE-A que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Na sequência do assim decidido, (e contra o aludido requerido), propôs a (mesma) requerente “acção especial de divórcio litigioso” que, seguindo os seus termos, e, não sendo possível a “(tentativa de) conciliação” – a que diz respeito o art. 953° do C.P.C.M. – veio-se a obter acordo quanto à sua conversão para “divórcio por mútuo consentimento” que foi homologado e decretado nos termos prescritos no art. 1633° do dito C.C.M.; (cfr., fls. 34 do Proc. n.° FM1-14-0068-CDL que, posteriormente, foi registado como Proc. n.° FM1-14-0357-CPE).

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Seguidamente – após trânsito em julgado da aludida sentença que decretou o divórcio, e invocando o art. 1556° do C.C.M. – deduziu a requerente pedido de “partilha de bens”, em sede do qual foi o requerido (B) nomeado “cabeça de casal”, prosseguindo os autos com o seu “juramento”, “declarações” e apresentação da “relação de bens” que foi objecto de tempestiva reclamação pela dita requerente; (cfr., fls. 2 a 3, 7, 12 a 20 e 48 a 51 do Proc. n.° FM1-14-0357-CPE-D).

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Observada a pertinente tramitação processual – e nos termos do art. 986°, n.° 3 do C.P.C.M. – proferiu a Mma Juiz decisão quanto à (reclamada) “existência de bens e pertinência da sua relacionação”; (cfr., fls. 373 a 384).

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Notificados do assim decidido, do mesmo recorreu o requerido B, (cfr., fls. 386), interpondo (também) a requerente A recurso subordinado, (cfr., fls. 393), ambos admitidos para subir em separado e nos termos do art. 975° do C.P.C.M.; (cfr., fls. 390 e 394).

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Oportunamente, remetidos os autos ao Tribunal de Segunda Instância, veio-se a proferir o Acórdão de 05.03.2020, (Proc. n.° 319/2017), com o qual se decidiu conceder parcial provimento ao “recurso principal”, (de B), negando provimento ao “recurso subordinado” (de A); (cfr., fls. 298 a 316-v dos presentes autos).

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Inconformada com o assim decidido, a aludida requerente recorreu para este Tribunal de Última Instância; (cfr., fls. 319 e 319-v).

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Admitido o recurso, (cfr., fls. 325), vieram os autos a esta Instância.

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Adequadamente processados, e nada parecendo obstar, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

2. Como resulta do que se deixou relatado, o presente recurso tem como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância com o qual se emitiu pronúncia sobre os recursos – “principal” e “subordinado” – da decisão da Mma Juiz do Tribunal Judicial de Base que apreciou e conheceu da reclamação (pela ora recorrente) deduzida contra a “relação de bens” pelo cabeça de casal, (recorrido), apresentada em sede de “partilha de bens” (nestes autos de Inventário).

E, feito que nos parece estar o relatório do que com relevo foi (essencialmente) processado, vejamos que solução adoptar relativamente ao “litígio” que entre recorrente e recorrido existe.

Pois bem, como sabido é, nos termos do art. 1555° do C.C.M.:

“As relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução ou anulação do casamento, (…)”, prescrevendo o (seguinte) art. 1556° que:

“1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, assim como nos demais casos em que, por força do n.º 4 do artigo 1578.º, haja lugar à determinação do titular e do montante do crédito na participação ou à partilha do património comum, cada um dos cônjuges, ou os seus herdeiros, recebe:
a) No regime da participação nos adquiridos, os seus bens, sem prejuízo do disposto acerca do crédito na participação, com que seja beneficiado ou onerado;
b) Nos regimes de comunhão, os bens próprios e a sua meação no património comum.
2. Havendo dívidas a liquidar, aplica-se o disposto na Secção seguinte”.

Por sua vez, relevante para a matéria a tratar igualmente se apresenta ser o disposto no art. 1644°, n.° 1 do mesmo C.C.M., onde se prescreve que:

“Os efeitos do divórcio produzem-se a partir da data em que a respectiva sentença transita em julgado ou a decisão se torna definitiva, mas retrotraem-se à data da proposição do processo quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges”.

Por fim, vale também a pena recordar que estatui o art. 963°, n.° 1 do C.P.C.M. que:

“O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária, podendo também servir, nos termos dos artigos 1028.º e seguintes, para a partilha de bens entre os cônjuges”, preceituando-se, neste mesmo art. 1028°, que:

“1. Decretado o divórcio ou a separação judicial de bens, ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens, salvo se o regime de bens do casamento for o de separação.
2. Se o regime de bens do casamento for o da participação nos adquiridos, observa-se o seguinte:
a) Qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para relacionação e avaliação dos patrimónios em participação, tendo em vista a determinação do titular e do montante do crédito na participação;
b) Determinado o titular e o montante do crédito na participação, o juiz convoca os cônjuges para uma conferência e condena o devedor no respectivo pagamento em dinheiro ou na entrega de bens ao outro cônjuge, nos termos dos n.os 1 a 3 do artigo 1598.º do Código Civil.
3. As funções de cabeça-de-casal incumbem ao cônjuge mais velho.
4. O inventário corre por apenso ao processo de divórcio, separação judicial de bens ou anulação do casamento e segue, com as necessárias adaptações, os termos prescritos nos capítulos anteriores.
5. Quando, em virtude de convenção pós-nupcial, haja lugar a inventário nos termos dos n.os 4 e 5 do artigo 1578.º do Código Civil, seguem-se, com as necessárias adaptações, os termos prescritos nos capítulos anteriores e nos n.os 1 a 3 deste artigo”.

In casu, (e como cremos que se viu), na sequência do decretado “divórcio” (por mútuo consentimento entre a ora recorrente e recorrido), e, com o assim decidido, cessando, entre eles, as “relações patrimoniais”, “abriu-se a porta” para a “partilha dos bens” que faziam parte do “acervo do casal”.

Com efeito, sendo o processo de “inventário” – como no caso é o que deu origem à presente lide recursória – o meio próprio e idóneo para por termo à aludida “situação de indivisão”, tendo como escopo fundamental, não só a “partilha dos bens comuns” do extinto casal, mas, também, a “liquidação do passivo” da sociedade conjugal, ao mesmo recorreu a ora recorrente, pedindo, exactamente, a aludida “partilha dos bens do casal”.

Na verdade, o “inventário” subsequente ao divórcio – como no caso sucede – destina-se, precisamente, a pôr termo à comunhão de bens resultante do casamento, a relacionar os bens que integram o património conjugal, e a servir de base à respectiva liquidação, (tendo em vista a data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges).

Nesta partilha, em que se dividem os patrimónios de “cada cônjuge” e os “bens comuns” de acordo com o “regime de bens” que vigorou durante o casamento – no caso, o de “comunhão de adquiridos”, cfr., fls. 6 e a decisão de fls. 80 a 83 dos “Autos de Arrolamento” – tem-se como objetivo essencial obter um “equilíbrio” entre os diversos patrimónios, de modo a que não haja “enriquecimento” de um deles à custa do outro, pois que, como se referiu, não se destinando o processo de inventário em consequência de divórcio a dividir apenas os bens comuns dos cônjuges, mas, também, a liquidar, definitivamente, as “responsabilidades” entre eles e deles para com terceiros, necessária é a relacionação de todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos, sendo pois com a decisão proferida em sede desta “partilha” que os cônjuges recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, que cada um deles confere o que deve ao património comum, e que o crédito de um deles sobre o outro, ou do património comum sobre um deles, e ainda o dos credores do património comum, se tornam exigíveis.

Ora, (sob a epígrafe “Relação de bens”), preceitua o (aqui também aplicável) art. 982° do C.P.C.M. que:

“1. Os bens que integram a herança são especificados na relação por meio de verbas sujeitas a uma só numeração, pela ordem seguinte: direitos de crédito, títulos de crédito, dinheiro, moedas sem curso legal em Macau, objectos de ouro, prata e pedras preciosas e semelhantes, outras coisas móveis e bens imóveis.
2. As dívidas são relacionadas em separado, sujeitas a numeração própria.
3. A menção dos bens é acompanhada dos elementos necessários à sua identificação e ao apuramento da sua situação jurídica.
4. Não havendo inconveniente para a partilha, podem ser agrupadas na mesma verba as coisas móveis, ainda que de natureza diferente, desde que se destinem a um fim unitário e sejam de pequeno valor.
5. As benfeitorias pertencentes à herança são descritas em espécie, quando possam separar-se do prédio em que foram realizadas, ou como simples crédito, no caso contrário; as efectuadas por terceiro em prédio da herança são descritas como dívidas, quando não possam ser levantadas por quem as realizou”.

Por sua vez, estatui também o seguinte art. 983° que:

“1. Além de os relacionar, o cabeça-de-casal deve indicar o valor que atribui a cada um dos bens.
2. O valor dos prédios inscritos na matriz é o respectivo valor matricial, devendo o cabeça-de-casal exibir prova bastante actualizada ou apresentar a respectiva certidão do registo predial.
3. São mencionados como bens ilíquidos:
a) Os direitos de crédito ou de outra natureza, cujo valor não seja ainda possível determinar;
b) As partes sociais em sociedades, comerciais ou civis, cuja dissolução seja determinada pela morte do inventariado, desde que a respectiva liquidação não esteja concluída, mencionando-se, entretanto, o valor que tinham segundo o último balanço”.

Discordando da “relação de bens” pelo ora recorrido apresentada, da mesma reclamou a ora recorrente, dando-se, assim, origem à decisão prolatada pela Mma Juiz do Tribunal Judicial de Base que, (oportunamente) impugnada e submetida à apreciação do Tribunal de Segunda Instância, levou à prolação do Acórdão objecto do presente recurso.

E, percorrendo as – extensas – alegações e conclusões do presente recurso da ora recorrente, constata-se que “quatro” são as questões colocadas, todas elas quanto ao teor da “relação de bens” que, por um ou outro motivo, entende não ter sido objecto de justa decisão.

Concretamente, (e abreviando), em causa está a relação quanto a “4 verbas”, no caso, “4 montantes pecuniários”.

–– Sem mais demoras, comecemos pelo “primeiro”.

Este, diz respeito ao montante de “MOP$26.500.000,00”, que a recorrente, em sede da reclamação que deduziu, pugnou pela sua inclusão na “relação de bens” como bem comum, (verba n.° 42), o que veio a suceder com a decisão da Mma Juiz do Tribunal Judicial de Base, mas que, com o Acórdão ora recorrido se decidiu “remeter as partes para os meios comuns para a resolução da questão”.

Ora, da reflexão que sobre o assim decidido nos foi possível efectuar, cremos que a razão está do lado da ora recorrente, não se apresentando de manter o decidido no Acórdão agora recorrido.

Vejamos.

Antes de mais, e para cabal compreensão dos contornos da “questão” que nos ocupa, útil se apresenta de aqui transcrever os termos da ponderação pela Mma Juiz do Tribunal Judicial de Base efectuada para a decisão que proferiu.

Tem, na parte em que mais releva, o teor seguinte:

“Face aos embargos deduzidos pela requerente e aos esclarecimentos expostos pelo requerido, entende este Juízo:
No item 42 da nova relação de bens:
- Em fls. 215 dos autos de procedimento cautelar (FM1-14-0357-CPE-A), registou-se um saldo de MOP37.585.050,56 até 24 de Março de 2014.
- Na nova relação de bens apenas se registou um saldo de MOP1.085.050,56 até 9 de Abril de 2014.
- Num curto período de meio mês, registou-se uma diferença de MOP36.500.000,00 entre os aludidos dois saldos.
Conforme o esclarecimento dado pelo cabeça-de-casal ao presente Juízo (vide fls. 17 e 348-361), até 24 de Março de 2014, o saldo da conta n.º 210-1-00716-9 do [Banco(1)] era de MOP37.585.050,56 e, depois, no período entre 24 de Março e 9 de Abril de 2014 registaram-se as seguintes alterações no referido saldo: (1) Em 31 de Março de 2014, o cabeça-de-casal emitiu um cheque no montante de MOP10.000.000,00 debitado da conta n.º 210-1-00716-9 (V42) do [Banco(1)], a fim de ser depositado no contabilista C (丙), a título de comandita de fundos, para que se destinasse ao pagamento de impostos ou eventuais dívidas a sustentar pelos então sócios nos próximos cinco anos (vide fls. 348-361 dos autos). (2) O cabeça-de-casal transferiu uma quantia de MOP500.000,00 da conta n.º 210-1-00716-9 (V42) do [Banco(1)] para outras contas abertas pelo mesmo no [Banco(1)]. (3) A restante parte do valor, no montante de MOP26.500.000,00, foi totalmente aplicado aos investimentos comerciais feitos pelo cabeça-de-casal mormente no Camboja, contudo acabou por ter sido perdido o dinheiro investido.
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Na nossa opinião objectiva, face ao saldo da conta n.º 210-1-00716-9 do [Banco(1)] mencionado no item 42, segundo as provas documentais constantes de fls. 348-361 dos autos, um acordo de serviço de custódia (os então sócios da [Empresa(1)] ([公司(1)]) incumbiram ao contabilista C (丙) a custódia do montante de MOP10.000.000,00 para que se destinasse ao pagamento de impostos ou eventuais dívidas a sustentar pelos então sócios nos próximos cinco anos, acordo esse também foi outorgado pela requerente) e um cheque no montante de MOP10.000.000,00 debitado da conta n.º 210-1-00716-9 aberta pelo requerido no [Banco(1)] foram entregues ao contabilista C (丙). No nosso entendimento, as provas documentais acima expostas demonstram suficientemente que a quantia de MOP10.000.000,00 levantada pelo requerido em 31.03.2014 não é o dinheiro próprio do mesmo, não devendo ser incluída na relação de bens nem servir do item para partilha.
De acordo com o esclarecimento dado pelo cabeça-de-casal, da quantia de MOP26.500.000,00, o montante de MOP500.000,00 foi transferido para outras contas do [Banco(1)], mas não foi apresentada prova para demonstrar essa transferência; e o resto da sobredita quantia foi aplicado aos investimentos comerciais feitos pelo cabeça-de-casal mormente no Camboja, contudo acabou por ter sido perdido o dinheiro investido. Na ocasião, o cabeça-de-casal tinha prometido que iria apresentar as provas em falta, porém ainda não apresentou nenhuma prova documental nem outras provas até ao presente momento.
Na nossa opinião objectiva, o cabeça-de-casal não só necessita de invocar a sua pretensão, assim como lhe cabe o ónus da prova, caso contrário, não é admissível o esclarecimento dado pelo mesmo. Com efeito, desde o primeiro esclarecimento dado pelo cabeça-de-casal face ao movimento de valores mencionado em fls. 42 (sic) (fls. 17) até ao esclarecimento dado posteriormente em fls. 352, ele apenas disse que a quantia em causa tinha sido aplicada aos investimentos comerciais feitos pelo mesmo mormente no Camboja, contudo acabou por ter sido perdido o dinheiro investido. Entretanto, o cabeça-de-casal não conseguiu justificar como é que podia desenvolver um negócio no estrangeiro e perdia todo o dinheiro investido num curto período de meio mês (entre a data em que se autorizou o procedimento cautelar (24 de Março de 2014) e a data em que se requereu o divórcio litigioso (9 de Abril de 2014)).
Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 1644º do Código Civil de Macau, “os efeitos do divórcio produzem-se a partir da data em que a respectiva sentença transita em julgado ou a decisão se torna definitiva, mas retrotraem-se à data da proposição do processo quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges”.
Nos termos do disposto no art.º 1555º do Código Civil de Macau, “as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução ou anulação do casamento, sem prejuízo das disposições deste Código relativas a alimentos”.
In casu, o divórcio litigioso foi requerido em 9 de Abril de 2014, pelo que, por força dos preceitos legais supracitados, as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges só cessaram a partir da sobredita data. Isto é, antes de 09.04.2014, as partes ainda tinham relações pessoais e patrimoniais conjugais, mantendo-se os efeitos do regime da comunhão de adquiridos adoptado. Num curto período de meio mês (de 24.03.2014 a 09.04.2014), o requerido disse unilateralmente que tinha efectuado uma transferência bancária do montante de MOP500.000,00 e tinha perdido uma quantia total de MOP26.500.000,00 dos bens comuns do casal nos investimentos, mas isto não foi sustentado por nenhuma prova.
Nesta conformidade, este Juízo não admite o aludido esclarecimento dado pelo cabeça-de-casal, devendo o mesmo incluir a quantia de MOP26.500.000,00 no item 42 dos bens”; (cfr., fls. 260-v a 261-v e 14 a 17 do Apenso).

Por sua vez, vale igualmente a pena aqui atentar que em sede do recurso (principal) que do assim decidido interpôs o ora recorrido, (e sobre a mesma “questão”), assim considerou o Tribunal de Segunda Instância:

“Ora, salvo o melhor respeito, este juízo conclusivo ínsito na decisão acima citada proferida pelo Mmo. Juiz não é muito persuasivo, pois, faltava matéria substantiva para sustentar tal posição.
Em sede do recurso, o Recorrente veio a juntar os seguintes documentos para tentar comprovar a sua versão fáctica, que é a de ter sofrido prejuízo nos negócios explorados na Camboja:
- Estatutos da sociedade comercial denominada [Empresa(2)], com capital social de 1 milhão de USD, em que o ora Recorrente era sócio maioritário, detendo 80% do capital social (fls. 11 a 53);
- Balanço do activo e passivo da referida sociedade nos anos económicos de 2013, 2014 e 2015 (fls. 54 e 55);
São provas pré-constituídas que merecem alguma confiança, só que estes documentos per si só também não são capazes de esclarecer todas as dúvidas surgidas, por exemplo:
- Como correram mal os negócios, onde estão as contas bancárias da sociedade para provar os movimentos dos capitais?
- Quais eram os lucros e os prejuízos da sociedade?
- Quem geria a sociedade?
- Está ainda em fase da liquidação? Qual é o resultado da liquidação?
Tudo isto está ainda de pé para esclarecer.
Pelo que, não há outro meio senão socorrermos ao artigo 971º (Questões definitivamente resolvidas no inventário) do CPC, que manda:
1. Consideram-se definitivamente resolvidas as questões que, no inventário, sejam decididas depois de confrontados o cabeça-de-casal, os interessados directos na partilha e os demais interessados a que alude o artigo 966º, desde que tenham sido regularmente admitidos a intervir no procedimento que precede a decisão e não seja expressamente ressalvado o direito às acções competentes.
2. Só é admissível a resolução provisória, ou a remessa dos interessados para os meios comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a resolver torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes.
Tendo em conta o elevado número de montante em disputa e a ambiguidade de vários aspectos ligados aquele negócio na Camboja, e, também para bem garantir a igualdade dos direitos das partes, é justo e correcto retirar esta verba do activo, revogando-se assim a decisão recorrida nesta parte e remeter as partes para os meios comuns para resolver a questão em discussão”; (cfr., fls. 312-v a 313 do 104 a 105 do Apenso).

Ora, como deixamos adiantado, e sem prejuízo do muito respeito pelas considerações tecidas no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, cremos que mais acertada se nos mostra ser a decisão do Tribunal Judicial de Base.

Na verdade, antes de mais, não se pode olvidar que a decisão ora recorrida apoia-se em “factos”, (ou melhor, “indícios”), que retira de “documentos” pelo então recorrente, (ora recorrido), tão só apresentados em sede das alegações do seu recurso, (cfr., fls. 9 a 55 dos presentes autos), e que, como se nos apresenta evidente, da forma e nos termos em que sucedeu, constitui (claramente) uma “junção de documentos” (em sede de recurso) que colide frontalmente com o que sobre esta matéria se preceitua no art. 616° do C.P.C.M., e que, assim, devia ter dado lugar à decisão da sua não admissão e consequente desentranhamento dos autos.

Porém, e ainda que assim não fosse de entender – o que não cremos – da mesma forma se nos apresenta que a decisão em questão não se pode manter.

Com efeito, não se pode perder de vista que os ditos “documentos” são um conjunto de meras “fotocópias” (de origem totalmente não comprovada e desconhecida), e, de cujo teor, nada – de claro ou concreto – se pode (ou consegue) extrair.

Quanto ao referido “estatuto da sociedade”, (cfr., fls. 9 a 53), cabe dizer que os “documentos” em questão nem tão pouco esclarecem – com o mínimo de precisão – a “data” em que a mesma sociedade foi constituída, (certo sendo porém que no mesmo parece constar a data de “2014”, que como se sabe, foi, exactamente, o “ano” em que iniciaram os “processos judiciais” que opõem recorrente e recorrido), e, quiçá, e com mais relevo (e utilidade) para a situação dos autos, (absolutamente) nada dizem ou explicitam, nomeadamente, sobre a circunstância de a mesma (sociedade) ter sido efectiva e legalmente “constituída”, (e “registada”), e se, alguma vez, (quando e por quanto tempo), esteve “em actividade” (de acordo com o ordenamento jurídico da sua sede, ou seja, no Reino do Camboja).

No que ao também referido “balanço do activo e passivo” diz respeito, (e recordando-se que em causa está, tão só e apenas, um alegado – e súbito – investimento e – rápido – prejuízo (e desaparecimento) de MOP$26.000.000,00), mostra-se de consignar o que segue.

Tal dito “balanço” é constituído por duas (simples) folhas de papel (A4), onde se encontram inscritas supostas “verbas, gastos ou despesas” e os seus respectivos “montantes”, com referência aos anos de 2013 a 2015, com a marca de um carimbo respeitante a uma sociedade comercial, (não estando sequer assinado nem tão pouco datado), e que, até mesmo, face ao (relativamente) considerável “montante” em questão, e ainda, à “disparidade” das “datas dos registos” do depósito bancário e (posteriores) “movimentações” do seu levantamento, da (suposta) “constituição” da referida sociedade, das ditas “despesas”, e, da própria apresentação da “relação de bens”, apenas pode, em nossa opinião, levar à conclusão no sentido de que nenhuma credibilidade merecem, muito especialmente, para efeitos de com base nos mesmos se alterar uma decisão que foi proferida após adequado processamento, com total oportunidade de os seus interessados dizerem o que por bem entendessem, e, assim, em momento oportuno e próprio.

Repare-se, pois, que em causa estando um montante de “MOP$26.500.000,00”, nem tão pouco foram exibidos documentos relativos à sua “transferência bancária”, e, v.g., quanto aos “contratos” de aquisição de bens e serviços, (e de trabalho), e, nem sequer “uma só factura”…

E, desta forma, atento o que se deixou exposto, pouco mais se apresenta de consignar, pois que se nos mostra que justificado e adequado não é o apelo pelo Tribunal de Segunda Instância feito ao preceituado no art. 971°, n.° 2 do C.P.C.M. para efeitos de se decidir “remeter as partes da questão para a sua resolução nos meios comuns”, já que, perante o que se apresenta como o (comprovadamente) “sucedido”, (e perante o referido “súbito e desconhecido investimento” e do seu “rápido desaparecimento”), razoável não é considerar que a “matéria de facto” em – ou sobre a – “questão” continue a relevar (especial) “complexidade” (para o efeito em causa), não sendo de se perder também de vista que o “inventário” que deu origem ao presente recurso teve início no ano de “2014”, e que, com a aludida remessa da questão para os “meios comuns” se estaria a conceder um (injusto) benefício ao ora recorrido para se manter e prolongar por período de tempo que, (neste momento), não se mostra previsível, o “estado de coisas” que os presentes autos, (com bastante clareza), já demonstram.

Compreendem-se – e, obviamente, respeitam-se – as preocupações manifestadas, porém, em face do que se deixou consignado quanto ao “confirmado depósito do montante em questão e o seu súbito levantamento e desaparecimento”, outra se nos apresenta dever ser a solução.

Dest’arte, em conformidade com o exposto, e na “parte” em questão, procede o recurso, sendo pois de se confirmar a decisão que sobre a mesma proferiu a Mma Juiz do Tribunal Judicial de Base.

–– Passemos para a “segunda questão”, que tem a ver com a decisão pelo Tribunal de Segunda Instância proferida em sede do mesmo recurso do ora recorrido, e com a qual desconsiderou o montante de MOP$320.000,00, pela ora recorrente considerado como “despesas gastas em honorários de advogado no processo de divórcio”.

Tem o teor seguinte:

“Outra decisão que o Recorrente discorda tem a ver com as despesas indicadas sob os n.ºs 60 a 63, que se reportam às despesas realizadas pela Recorrida durante as viagens ao EUA para visitar familiares e aos honorários de advogados gastos pela Recorrida no processo de divórcio.
Ora, relativamente aos honorários (MOP320.000,00), achamos que o Recorrente tem razão, tais não devem ser considerados como despesas comuns do casal, pois o quantum que a cliente pagou ao seu advogado resulta de acordo entre eles, e, quem usufruiu dos serviços prestados pelo advogado é a Recorrida, nesta medida, não nos parece certo classificar esta categoria de despesas como despesas comuns.
Pelo que, esta parte deve ser retirada também esta verba por não serem despesas de interesse comum”; (cfr., fls. 313 a 313-v).

Clarificando-se, desde já, que em causa agora não estão as referidas “despesas com as viagens aos E.U.A.”, vejamos.

Vale a pena aqui recordar o que sobre a matéria em questão se estatui no art. 1558° do C.C.M.:

“1. São da responsabilidade de ambos os cônjuges:
a) As dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro;
b) As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges, antes ou depois da celebração do casamento, para ocorrer aos encargos normais da vida familiar;
c) As dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração;
d) As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime da separação de bens ou da participação nos adquiridos;
e) As dívidas consideradas comunicáveis nos termos do n.º 2 do artigo 1560.º
2. No regime da comunhão geral de bens, são ainda comunicáveis as dívidas contraídas antes do casamento por qualquer dos cônjuges, em proveito comum do casal.
3. O proveito comum do casal não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar”.

Pois bem, ponderando, especialmente, no preceituado na alínea b) e c) (do n.° 1 do transcrito comando legal, assim como no estatuído no art. 1559° do mesmo Código quanto às “dívidas da responsabilidade de um dos cônjuges”), também aqui cremos que mais acertada foi a decisão da Mma Juiz do Tribunal Judicial de Base.

Com efeito, (e cremos nós, independentemente do demais), dúvidas não parecem existir que o referido “quantum” – cujo “valor” concreto não foi impugnado nem agora cabe apreciar – está directa e objectivamente relacionado, (assim como unicamente destinado), à “resolução de uma questão do casal”, (enquanto tal), e que tão só ao mesmo diz respeito quanto à sua “origem” e “forma” (que se encontrou) para a sua solução, adequado não nos parecendo assim que em face de tal “circunstancialismo” se possa considerar e eleger quem, relativamente à dita despesa, (mais) beneficiou, até mesmo porque, como se viu, (e sem se olvidar do mérito do Tribunal na questão), o dito “divórcio”, que iniciou como “litigioso”, foi, (com o alcançado acordo entre a ora recorrente e recorrido), objecto de conversão para a modalidade de “divórcio por mútuo consentimento”, no âmbito do qual, não se deixou de acautelar e respeitar os interesses e vontades de “ambas as partes”, afigurando-se-nos, assim, que (para todos os efeitos) se deva considerar as ditas “despesas” como um “gasto comum”.

Dest’arte, e admitindo-se (obviamente) que sobre a questão outro entendimento possa existir, (que se respeita), cremos nós que, também nesta parte, procede o presente recurso, ficando a valer a decisão proferida pela Mma Juiz do Tribunal Judicial de Base.

–– Relativamente à “terceira questão”, em causa está o montante de MOP$10.000.000,00 que o Tribunal de Segunda Instância decidiu (também) remeter a sua resolução para os meios comuns.

Não se conformando com o assim decidido, diz a ora recorrente o que segue:

“XLIV. Quanto à verba de MOP$ 10.000.000,00 prestada pelo marido ao contabilista C em comandita, o TSI entendia que fazia parte do capital social. Na falta de liquidação da sociedade, era difícil determinar as quotas-partes dos respetivos sócios naquele montante. O TSI, portanto, decidiu remeter as partes para meios comuns para resolver a questão sobre a verba.
XLV. A recorrente discorda, considerando que o acórdão enferma dos vícios de erro na apreciação das provas, de convicção errada sobre a matéria de facto e de aplicação errónea da lei. Quanto à verba em comandita, na realidade tratava-se do montante que resultou da alienação das acções sociais em posse pessoal de cada ex-sócio da “[Empersa(1)]”. Em termos de natureza, era bem particular de cada sócio, em vez de bem social.
XLVI. No entanto, tal como referia o acordo de comandita, a verba de MOP$ 10.000.000,00 paga pelo marido ao contabilista era propriedade dos ex-sócios da “[Empersa(1)]” e foi depositada em reserva na conta de comandita junto do contabilista C, para que pudesse servir como meio de pagamento uma vez a DSF viesse a cobrar os impostos ou as eventuais dívidas desde a fundação da empresa.
XLVII. No entanto, antes de se destinar a verba em comandita para pagamento dos impostos ou das dívidas da sociedade, o montante continuava a ser bem particular dos sócios. Só que devido ao acordo, foi confiada ao contabilista que a guardaria por um certo período a título provisório. Findado o contrato de acordo de comandita, o contabilista C restituiria a verba restante em comandita aos sócios em conformidade com as respectivas quotas-partes (B 55%, A 12%, D 3%, E 3%, F 15% e G 12%).
XLVIII. No entanto, o tribunal a quo, ao apreciar cá o acordo, provavelmente terá ignorado o facto de que a verba de MOP$ 10.000.000,00 em comandita continuava a ser, na realidade, bem dos sócios da “[Empersa(1)]”, da qual B detinha 55%, ou seja, MOP$ 5.500.000,00, enquanto a recorrente A detinha 12%, ou seja, MOP$ 1.200.000,00.
XLIX. O escritório de contabilista não fazia outro senão guardar a verba em nome de fiduciário. Para a recorrente e o recorrido, a verba fazia parte do bem comum conjugal (considerando-a, quer como um crédito, quer como fundo em numerário). Portanto, entendemos que é de listar o fundo em comandita acima referido na relação de bens segundo as quotas-partes detidas pela recorrente e pelo recorrido proporcionais às respectivas acções (o remanente, descontadas as despesas fiscais)”; (cfr., fls. 360-v a 361-v e 148 a 150 do Apenso).

Que dizer?

Para a decisão em questão, assim considerou o Tribunal de Segunda Instância:

“- Uma vez que tal verba entrou na conta da sociedade comercial em causa, ela passa a ser integrar o património da mesma, a sua disponibilização passa a ser feita nos termos das regras do Direito Comercial e do regime fixado no próprio estatuto da sociedade em causa;
- Ora, conforme a deliberação social respectiva e o acordado constante do respectivo acordo entre os sócios, tal verba visa satisfazer as dívidas que a sociedade venha a ter durante 5 anos, incluindo dívidas fiscais. Pelo que, tal verba não pode ser objecto de disposição por cada um dos sócios, individualmente, incluindo os interessados destes autos;
- Se, caducado o trust e feita a respectiva liquidação, for positivo o saldo, então o remanescente será distribuído aos seus sócios conforme a percentagem da quota de cada um dos sócios que detém no capital social. É por esta medida, ou seja, no âmbito do direito societário que se asseguram os direitos do Recorrente e da Recorrente, ambos interessados destes autos, e não por este processo de inventário”; (cfr., pág. 33 a 34 do Ac. recorrido).

Cremos que na parte em questão, nenhuma censura merece o decidido.

É que, muito infelizmente, muito se diz, mas pouco ou (quase) nada se alcança sobre o que – concreta e efectivamente – se passou…

Confrontamo-nos, tão só, com “versões” do que, na opinião de cada uma das partes, sucedeu, afigurando-se-nos também que melhor e mais clara deveria e poderia ter sido a apreciação do Tribunal Judicial de Base, nomeadamente, em sede do “esclarecimento”, em sede de “matéria de facto”, do que (efectivamente) se terá passado.

E, assim não tendo sucedido, (totalmente) inviável é, por falta de apuramento, e, consequentemente, de clareza da “situação de facto”, apreciar (e decidir) o quer que seja.

Dest’arte, e sem necessidade de mais alongadas considerações, nega-se provimento ao recurso na parte em questão, confirmando-se o segmento decisório recorrido.

–– Por fim, a “quarta questão” diz respeito ao montante de HKD$6.000.000,00, sendo esta a ponderação do Tribunal de Segunda Instância:

“g) Além disso, no despacho recorrido, o Tribunal a quo concluiu que os documentos comprovativos do reembolso da dívida apresentados pela Recorrente não eram suficientes para demonstrarem que a mesma tivesse reembolsado a dívida comum do casal com a quantia de HKD6.000.000,00. A Recorrente não se conforma com isso.
h) Na verdade, a Recorrente apresentou duas respostas ao Tribunal sobre os embargos deduzidos pelo Requerido contra a relação de bens, aclarando que a quantia de HKD6.000.000,00 do valor levantado pela Requerente da conta bancária antes do divórcio foi usada para reembolsar a dívida contraída comummente pela Recorrente e Requerido junto dos familiares da Recorrente na altura da criação da “[Empresa(1)] ([公司(1)])” (por volta de 2004).
i) Posteriormente, na dedução da reclamação contra a relação de bens apresentada pelo Requerido, a Recorrente invocou novamente que a quantia de HKD6.000.000,00 não deveria ser incluída na relação de bens por ser usada para reembolsar a dívida comum do casal.
j) O Requerido sabia que o dinheiro pedido emprestado era uma dívida comum do casal, pelo que, posteriormente, nas alegações apresentadas contra a reclamação deduzida pela Recorrente, o Requerido não colocou nenhuma questão ou oposição ao esclarecimento supracitado. De facto, o empréstimo foi contraído com o consentimento do Requerido e foi conhecido pelo mesmo, sendo destinado ao bem do interesse comum do casal, nomeadamente à criação e exploração da sociedade comercial do casal.
k) Ademais, segundo os demais elementos constantes dos autos (mormente o documento do acordo de custódia), verifica-se que a “[Empresa(1)] ([公司(1)])” é realmente existente, tem boa situação financeira e é bem desenvolvida quando for administrada pelos ambos os cônjuges.
l) A declaração de reembolso de dívida assinada pelo credor revela claramente que o reembolso da dívida foi efectuado comummente pela Recorrente e pelo Requerido.
m) Por conseguinte, conforme os elementos constantes dos autos, presume-se e demonstra-se a veracidade da existência do empréstimo em questão. Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 1558º do Código Civil, a dívida em causa é uma dívida comum do casal.
n) Isto é, a Recorrente usou a quantia de HKD6.000.000,00 para reembolsar a dívida comum do casal, pelo que não se deve incluir novamente esse valor na relação de bens.
Perante o alegado, o Recorrido veio a replicar da seguinte forma:
g) Além disso, no despacho recorrido, o Tribunal a quo concluiu que os documentos comprovativos do reembolso da dívida apresentados pela requerente não eram suficientes para demonstrarem que a mesma tivesse reembolsado a dívida comum do casal com a quantia de HKD6.000.000,00. O contestante concorda com isso.
h) A requerente apenas apresentou um comprovativo emitido por um indivíduo que se identificava com o apelido Chan para demonstrar a existência e o reembolso da “dívida comum do casal no valor de HKD6.000.000,00” referida na petição de recurso (vide anexo 4). Do aludido comprovativo não constam o nome do credor, o relato de o beneficiário ser o próprio credor ou o beneficiário receber a quantia reembolsada em representação do credor, a forma de reembolso da dívida (por dinheiro em numerário, cheque, outros…), a natureza do empréstimo (dívida pessoal, dívida social ou outras), e a data do reembolso da dívida. Tal comprovativo não demonstra a existência ou o reembolso da “dívida comum do casal no valor de HKD6.000.000,00” referida pela requerente.
i) Para além do sobredito “comprovativo” e sua fotocópia, a requerente não conseguiu apresentar a declaração de dívida ou demais provas para demonstrarem a existência da alegada “dívida comum do casal no valor de HKD6.000.000,00”.
j) Com efeito, a aludida quantia de HKD6.000.000,00 era um financiamento concedido a título gratuito pelo Sr. H à “[Empresa(1)] ([公司(1)])” para que esta tivesse capacidade para prestar serviço de restauração aos empregados do [Hotel(1)].
k) Tal valor era um financiamento gratuito e não empréstimo, pelo que o Sr. H e o contestante não celebraram nenhuma declaração de dívida. O Sr. H nunca exigiu ao contestante que reembolsasse a referida quantia nem reclamou qualquer acção da “[Empresa(1)] ([公司(1)])”.
l) O contestante não concorda com a existência da “dívida” referida pela requerente nem com a existência do “reembolso” efectuado, sem conhecimento dele, pela requerente em representação do mesmo, a favor do terceiro não envolvente.
m) Como acima mencionado, são inexistentes a “dívida comum do casal” referida pela requerente e o facto de “reembolso” da dívida alegado pela mesma.
n) Por motivos acima expostos, o contestante concorda com a decisão do Tribunal a quo que “decretou a inclusão da quantia de HKD6.000.000,00 e dos demais valores na relação de bens”.
Quid Juris?

Ora, parece-nos que o Recorrido nesta parte tem razão, pois, tal verba de seis milhões de patacas era uma contribuição (doação) do Dr. H para a referida sociedade para que esta na altura tivesse capacidade financeira para prestar serviços aos empregados da [Empresa(3)], por isso não existia qualquer dívida para pagar, como tal o montante em causa deve ser mantido no activo do património do ex-casal, tal como o Tribunal recorrido decidiu, razão pela qual se julga improcedente o recurso nesta parte interposto pela Recorrente”; (cfr., pág. 34 a 36 do Ac. recorrido, a fls. 110 a 114 do Apenso).

No presente recurso, diz a recorrente o que segue:

“L. No acórdão recorrido, o TSI confirmou que no despacho recorrido, o tribunal a quo tinha dado por assente que o documento comprovativo da devolução da quantia submetido pela recorrente não bastava para provar que a recorrente uma vez se tinha servido dos HKD$ 6.000.000,00 para pagar a dívida comum do casal.
LI. Ao mesmo tempo, o TSI acreditou que a verba era financiamento gratuito concedido pelo Dr.º H à “[Empersa(1)]”. A recorrente discorda.
LII. Na realidade, a recorrente respondeu duas vezes ao tribunal em relação à reclamação do marido sobre a relação de bens, apontando claramente que a requerente se tinha servido dos HKD$ 6.000.000,00 do fundo que levantou do banco antes do divórcio para devolver o dinheiro pedido emprestado por ambos os cônjuges juntos aos parentes da mulher no momento (por volta do ano 2004) da fundação da “[Empersa(1)]” por ela e seu marido (com anexo o original do documento comprovativo da devolução de dinheiro, documento esse assinado pela credora em pessoa, ou seja, por I (3.ª mulher de H) pessoalmente, que é irmã mais velha da recorrente).
LIII. Mais tarde, com referência à reclamação deduzida pelo marido sobre a relação de bens, mais uma vez a recorrente invocou que os HKD$ 6.000.000,00 tinham sido para pagar a dívida comum do casal, pelo que não se devia incluir o montante na relação de bens.
LIV. O marido sabia perfeitamente que o empréstimo constituía dívida comum. Portanto, nas suas alegações entregues posteriormente referentes à reclamação deduzida pela recorrente, não questionou nem contestou a explicação sobre a parte acima referida. Na realidade, o marido concordou com o empréstimo e estava a par disso. Além disso, o empréstimo era para proveito comum do casal, destinado a instituir e operar a sociedade em sua posse conjunta.
LV. Da declaração da devolução do dinheiro emprestado assinada pela credora e submetida pela recorrente resulta claro que foram a recorrente e o marido juntos que pediram o empréstimo. Portanto, segundo informam os autos acima referidos, é-nos suficiente deduzir e demonstrar a veracidade da existência do empréstimo. Nos termos do art.º 1558.º, n.º 1 do CC, a dívida é da responsabilidade de ambos os cônjuges.
LVI. Por outras palavras, os HKD$ 6.000.000,00 acima referidos de que a recorrente se serviu já foram utilizados para adimplir a dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges. Portanto, não é de voltar a incluí-los na relação de bens.
LVII. No caso, porém, de desacordo, então seguimos o parecer do TSI: o processo de inventário não é adequado para conhecer de matéria de facto e de direito complexa. Visto que a existência e a índole do bem / dívida em questão se pode considerar bastante complexa e que estão em causa o ónus das partes e meios da prova, a resolução é possível apenas através de meios comuns.
LVIII. Então, segundo a recorrente, a mesmo regra aplica-se aos HKD$ 6.000.000,00 acima referidos que a recorrente levantou para pagar a dívida. O tribunal de primeira instância não devia ter listado directamente na relação de bens a verba já não existente / ou já levantada.
LIX. Tal como refere o despacho proferido em primeira instância sobre o montante controvertido de HKD$ 6.000.000,00, mesmo em primeira instância se considerava como complexa a existência da dívida (em conformidade com o art.º 971.º, n.º 2 do CPC), então era de remeter os interessados para meios comuns para resolução.
LX. Na opinião da recorrente, se são controversas a existência e a destinação dos HKD$ 6.000.000,00, então o procedimento correcto seria eliminar, por enquanto, a verba da relação de bens. A resolução da questão no presente processo diminuiria indubitavelmente a garantia da recorrente.
LXI. Se o recorrido deseja defender os seus direitos e interesses respeitantes aos HKD$ 6.000.000,00 acima referidos, então deve recorrer a meios comuns, instaurando acção para que lhe sejam confirmados os direitos.
LXII. O que condiz precisamente com o parecer do TSI – o processo de inventário é apenas para partilhar o bem comum. Cabe ao julgador deixar que a matéria de facto complexa seja resolvida em um outro processo pelas partes.
LXIII. Portanto, para garantir interesses da recorrente, nem o tribunal de primeira instância nem o de segunda instância devia ter incluído os HKD$ 6.000.000,00 na relação de bens; ou ainda, é de pelo menos revogar as decisões proferidas em primeira e em segunda instância. Não é de tratar daquele bem, antes é de deixar que o litígio sobre o bem seja resolvido em um outro processo pelos interessados”; (cfr., fls. 361-v a 362-v e 150 a 153 do Apenso).

Pois bem, ponderando no que se deixou exposto, temos para nós que – muito infelizmente – repete-se a situação de (total) incerteza sobre o que (efectivamente) se passou.

Com efeito, não está nem sequer esclarecido – e devidamente dado como “assente” – se o montante de MOP$6.000.000,00 em causa foi – efectivamente – utilizado para o “reembolso de uma dívida (comum)”, ou, se tal “dívida” não existia, por se ter tratado de um “financiamento gratuito”, verificando-se, uma vez mais, que tão só existem “versões” (contraditórias) apresentadas pelas partes, sem que, no momento próprio, se tenha esclarecido tal “situação fáctica”, apresentando-se, assim, novamente, inviável qualquer decisão sobre a questão, sendo, desta forma, e nesta “parte” (igualmente) inevitável a remessa das partes para os meios comuns nos termos do art. 971°, n.° 2 do C.P.C.M..

Não se olvida que tal “solução” irá (certamente) acarretar um “prolongamento do litígio” entre recorrente e recorrido (já existente há quase 10 anos).

Contudo, e como cremos ter deixado explicitado, em face da “insuficiência da matéria de facto” sobre a “situação” que é invocada para justificar as pretensões apresentadas, outra solução não se nos apresenta possível.

Dest’arte, tudo visto, resta decidir como segue.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, e na parcial procedência do recurso, acordam:
- revogar o Acórdão recorrido no que toca ao aí decidido quanto às quantias pecuniárias de MOP$26.500.000,00, MOP$320.000,00, e MOP$6.000.000,00, (em relação às mesmas ficando a valer a decisão da Mma Juiz do Tribunal Judicial de Base); e
- confirmar a decisão recorrida quanto ao montante de MOP$10.000.000,00, (no sentido da remessa das partes para os meios comuns).

Pelo seu decaimento, pagará a recorrente A a taxa de justiça de 6 UCs, suportando o ora recorrido B a taxa de 12 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 19 de Maio de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

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