Recurso nº 61/2023
Data: 6 de Julho de 2023
Assuntos: - Despacho de pronúncia
- Pedido de indemnização cível
- Prazo da apresentação do pedido
- Caso julgado
Sumário
1. Em geral, a contagem do prazo do pedido de indemnização cível no processo penal segue-se os termos previstos nos artigos 66º e 266º do CPP.
2. Mesmo o MMº Juiz do processo se decidisse contra os previstos nos artigos 66º nº 2 e 266º do CPP, concedeu o assistente um prazo de 20 dias para deduzir o pedido de indemnização cível no despacho das fls. 1913, decisão esta , fosse correcta fosse não, que não sofreu qualquer oposição do MP e do arguido, inclusive, e que devia ser considerada já transitada em julgado, e o MMº Juiz não pode decidir noutra maneira contra o princípio de caso julgado previsto no artigo 580º do CPC, ex.vi. artigo 4º do CPP.
O Relator,
Choi Mou Pan
Recurso nº 61/2023
Recorrente:A Entertainment Corporation
A cordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.:
I - Relatório
O Mmº Do Juízo de Instrução Criminal decidiu, no despacho, ora recorrido, do pedido de indemnização cível apresentado pelo assistente, A Entertainment Corporation, nos seguinte termos:
“Fls. 2262 as 2339 Visto. (Contestação do pedido de indemnização cível)
Na contestação cível a demandada B Gaming Macau, SA, formulou os seguintes pedidos:
a) declarar a caducidade do direito de indemnização da Assistente, por incumprimento do ónus legal previsto no nº 1 do Artigo 66º do CPP, com a consequência e integral absolvição da Demandada;
b) ser julgado o pedido de indemnização cível integralmente improcedente, porque não provado e porque legalmente injustificado e consequentemente a absolvição da Demandada.
Reitera na parte final da contestação, para efeitos de instrução o requerimento de prova apresentado com a Contestação deduzida ao Despacho de Pronúncia.
Fls. 2398: Visto. (Parecer do MP)
O Tribunal vem agora decidir quanto à questão de caducidade de direito de dedução do pedido cível.
São estes os factos pertinentes e considerados relevantes para a decisão, a saber:
1) Em 2019.09.23, a Ofendida requereu a constituição como Assistente nos termos legais (fls. 1186);
2) Em 2019.10.25, foi deferida a constituição do assistente por despacho do MMº Juiz de Instrução Criminal (fls. 1242);
3) Em 2020.05.06 foi deduzida acusação púbica pelo MP contra a Demandada (fls. 1270 a 1273);
4) Em 2020.05.08 foi envidada carta à assistente no sentido de notificá-la da acusação pública, do prazo para o requerimento da instrução e para a mesma formular acusação nos termos do artigo 266 do CPP, do despacho de fls. 1269, bem como outros pormenores a que se refere no ofício de fls. 1274, sendo a destinatária A Entertainment Corporation sediada em Japão (fls. 1274);
5) Em 2020.05.08 foi enviada carta ao mandatário da assistente C no sentido de notificá-la da acusação pública, bem como do despacho de fls. 1269 (fls. 1276);
6) Em 2020.05.21 a assistente, apresentou acusação nos termos do artigo 266º e seguintes do CPP;
7) Em 2022.01.20 o Juiz Criminal do TJB proferiu despacho notificando a assistente para a dedução do pedido de indemnização civil no prazo de 20 dias, em conformidade com os artigos 64º, 66º nº 2 e 100º nº 7 alínea a) do CPP (fls.1913);
8) Em 2022.01.21 foi enviada carta à assistente A Entertainment Corporation para o efeito, sendo a destinaria sediada em Japão (fls.1914);
9) Em 2022.01.21 foi enviada carta ao mandatário da assistente C para o efeito (fls.1917);
10) Em 2022.02.21, a assistente deduziu pedido de indemnização cível nos termos do artigo 66º nº 3 do CPP (fls.2206 a 2213);
11) Dada a possibilidade à assistente para se pronunciar sobre a questão, este nada veio a acrescentar, nem tendo ilidido as datas de presunção da recepção referentes às notificações enviadas em 2020.05.08 pelo MP, bem assim às enviadas pelo TJB em 2022.01.21.
Estatui o artigo 66º do CPP o seguinte:
1. Quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido de indemnização civil é deduzido na acusação ou no prazo em que esta deve ser formulada.
2. Se, fora dos casos previstos no número anterior, o lesado tiver manifestado no processo o propósito de deduzir pedido de indemnização, nos termos do nº 2 do artigo 64º, a secretaria, ao notificar o arguido o despacho de pronúncia ou, se o não houver, do despacho que designa dia para a audiência, notifica igualmente o lesado para, no prazo de 20 dias, deduzir o pedido.
3. Nos restantes casos, o lesado pode deduzir o pedido até 20 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de pronúncia ou, se o não houver, o despacho que designa dia para a audiência.
4. O pedido é deduzido em requerimento articulado e é acompanhado de duplicados para os demandados e para a secretaria. (sublinhado nosso)
Ora, para o caso em apreciação, dúvidas não há que o caso se mostra subsumível à situação a que alude o nº 1 do artigo 66º do CPP, ou seja, o pedido de indemnização civil ser apresentado pelo assistente e que o lesado foi constituído assistente já na fase de inquérito. Nestes termos, em conformidade com a norma que se cita, tal deve ser deduzido na devida acusação ou no prazo em que esta deve ser formulada.
Ou seja, conjugando com o artigo 266º nº 1 do CPP, o assistente deve até 10 dias após a notificação da acusação do MP, deduzir acusação pelos factos acusados pelo MP, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles e ao mesmo tempo concomitantemente apresentar pedido de indemnização civil ou não assim fazendo apresenta-lo em separado mas sempre dentro de prazo de 10 dias que a lei lhe faculta para a dedução da acusação.
Do 4º facto acima indicado, sabe-se que em 2020.05.08 foi enviada notificação à própria assistente acerca da acusação pública e de acordo com o artigo 100º, nº 2 do CPP; “quando efectuadas por via postal, as notificações presumem-se feitas no terceiro dia posterior ao do registo ou no primeiro dia útil seguinte, quando aquele o não for, devendo a cominação constar do acto de notificação”.
E tratando-se de pessoa própria do notificado, a assistente A Entertainment Corporation se encontrar no exterior da RAEM, neste caso em Japão, acresce uma dilação de 30 dias em conformidade com o artigo 199º nº 1 alínea b) do CPC por aplicação remissiva do artigo 4º do CPP. Nestes termos, contando os 3 dias de presunção de recepção da notificação e adicionando ainda a dilação legal, presume-se que o destinatário tinha sido notificado em 2020.06.10, sendo que acrescido o prazo de 10 dias para a dedução da acusação e conjuntamente com o pedido cível, tal prazo terminou em 2020.06.22.
E quanto ao mandatário da assistente C, conforme 5º facto acima indicado, com a presunção a que alude o artigo 100º nº 2, contando os 3 dias de presunção de recepção da notificação, presume-se que o destinatário tinha sido notificado em 2020.05.11 e acrescido o prazo de 10 dias para a acusação e pedido cível, tal prazo terminou em 2020.05.21.
In casu a assistente deduziu em 2020.05.21 a acusação a que alude o nº 1 do artigo 266º do CPP dentro do prazo concedido à própria assistente e ao seu mandatário. Daí que dúvidas não há de que tal acusação foi apresentada tempestivamente.
Entretanto há que realçar que não foi apresentado pedido de indemnização civil nesta mesma data, mas sim muito posterior em 2022.02.21.
E para o presente caso, embora o mandatário tenha apresentado acusação antes da data em que a notificação foi presumida como realizada à própria pessoa da assistente sediada em Japão, entente o Tribunal que tal facto em nada prejudique a própria assistente, devendo-a presumida recebida a notificação em 2020.06.10 e o prazo de 10 dias expirou em 2020.06.22. Com o qual concordamos perfeitamente a posição tomada pelo Acórdão do TSI nº 282/2012 onde acolheu a posição do STJ de Portugal no seu Acórdão de 2012.01.09 que consignou o seguinte:
“Tendo tal notificação ocorrido em data anterior àquela em que se presume efectuada, nenhum efeito se pode extrair de tal ocorrência, não podendo a contraparte invocar, para efeito de encurtamento do prazo, o recebimento ocorrido em data anterior, como decorre do disposto do nº do artigo 254º, segundo o qual as presunções da notificação postal ou electrónica só podem ser ilididas pelo próprio mandatário notificado, provando que não foram efectuadas ou que ocorreram em data posterior à presumida, por razões que lhe não sejam imputáveis”(…) “Dito de outro modo, a presunção de notificação pode ser ilidida, mas sempre para alargamento do prazo e nunca para a redução do mesmo, pelo que a ilisão da presunção da notificação não poderá ser efectuada pelo critério da leitura da peça processual, não se encontrando, aliás, elencado tal desiderato no texto legal”.
Assim, acolhendo a posição acima transcrita, mesmo que a assistente pelo mandatário que constituiu, tenha deduzido acusação antes da data em que deveria considerar presumida a recepção da notificação, entende este Tribunal que o prazo ao pedido de indemnização civil beneficia do prazo máximo para a sua apresentação e contando com a dilação de 30 dias, a presunção de 3 dias e o prazo de 10 dias, o qual expirou em 2020.06.22.
Pese embora que o Tribunal, por indução em erro por parte da assistente mediante requerimento de fls. 1906, proferiu por lapso despacho em 2022.01.20 com aplicação inconveniente dos artigos 64º, 66º nº 2 e 100º nº 7 alínea a) do CPP, concedeu novamente à assistente 20 dias para a dedução do pedido de indemnização civil.
No entanto, não cabe ao juiz conceder à assistente um outro prazo diferente que a lei consagra. Tal posição veja-se o Acórdão do TSI 365/2017 que decidiu no mesmo sentido:
Manuel Lopes Maia Gonçalves在其作品引用過葡萄牙最高法院於2003年7月5日在第2019/03-5ª號上訴案件中所作的裁判,認為《刑事訴訟法典》第77條(相當於本水澳《刑事訴訟法典》第66條)所規定的所有期間均屬行為期間(prazo peremptório),期間一旦完成,作出有關行為的權利亦隨著消滅。參見其著作《Código de Processo Penal-Anotado-Legislação Complementar》,第17版,第237頁。
……
之後法院就有關提出民事請求的問題所作的訴訟行為都是多餘的,因為司法機關不能以此方式額外創設新的訴訟期間,在《刑事訴訟法典》第66條的適用之外創設了一個新的訴訟行為期間的結果,並因此擴大了訴訟當事人的訴訟權利。
Ademais, a título de direito comparado no Tribunal de Relação do Porto no seu processo 368/19.7JAAVR.P1 de igual forma decidiu que: Antes da acusação já a ora recorrente tinha a qualidade de assistente; este devia deduzir o pedido na própria acusação ou no prazo em que esta deve ser deduzida/formulada. O assistente pode deduzir acusação nos momentos constantes dos artigos 284º e 285º do CPP. Tratando-se de crime público ou semi-público (e no caso dos autos estava-se perante crimes públicos) a acuação do assistente deve ser deduzida até 10 dias após a notificação da acusação pelo Ministério Público, conforme decorre do artigo 284º, nº 1.
Pois o prazo para o efeito expirou em 2020.06.22.
Contudo o assistente apenas apresentou o seu pedido cível em 2022.02.21 em data muito posterior ao do prazo legal, daí que é de considerar tal pedido extemporâneo, pelo que, decide-se rejeitar o pedido cível de fls. 2215 a 2239, por caducidade do direito indemnizatório, nos termos dos artigos 66º nº 1, 100º nº 2 e 266º do CPP e artigo 199º nº 1 alínea b) do CPC por aplicação remissiva do artigo 4º do CPP.
Notifique e DN.”
Com esta decisão não concordou, recorreu o Demandante, A Entertainment Corporation, para este Tribunal de Segunda Instância, nos seus precisos termos da peça processual das Fls. 20-34:
A. O Tribunal a quo entendeu que o pedido de indemnização civil (“PIC”) deduzido pela Recorrente é extemporâneo, porquanto, foi apresentado “em data muito posterior ao prazo legal, (…) nos termos dos artigos 66º nº, 100º nº 2 e 266º do CPP”.
B. O caso sub judice não é subsumível ao instituto previsto no nº 1 do artigo 66º do CPP, porquanto devem ser atendidas as alterações das características processuais sofridas na instância penal, em face dos incidentes processuais deduzidos e do conteúdo dos despachos judiciais proferidos.
C. “Em 2022.01.20 o Juíz Criminal do TJB proferiu despacho notificando a assistente para a dedução do pedido de indemnização civil no prazo de 20 dias, em conformidade com os artigos 64º, 66º n.º 2 e 100º alínea a) do CPP (fls. 1913)”.
D. O Tribunal a quo entende, erradamente, que foi concedido, repetidamente, um prazo de 20 dias para dedução do PIC – o que não é verdade – e que foi concedido um prazo distinto do consagrado na lei – o que igualmente não se verificou.
E. Não se concebe que o mesmo Tribunal, sobre a mesma matéria e no âmbito do mesmo processo, produza duas decisões diametralmente opostas e contraditórias, reconhecendo num primeiro momento o direito à prática de um acto, apenas para posteriormente rejeitar (liminarmente) a prática do mesmo acto que antes havia determinado.
F. Tal actuação contraditória é violadora dos mais basilares princípios, direitos e garantias processuais, balizadores do processo penal e de todo o sistema judicial.
G. A decisão em recurso reflecte uma violação do princípio da protecção da confiança, enquanto dimensão subjectiva do princípio da segurança jurídica, na qual se pretende salvaguardar as expectativas legítimas dos intervenientes processuais, os quais confiaram na manutenção de um determinado quadro fáctico e legal.
H. A cooperação e a boa-fé processual são deveres que impendem sobre todas as partes processuais, incluindo magistrados, ao nível da condução e intervenção no processo judicial – o “justo processo” no qual todos devem cooperar entre si, obstando à prática de actos inúteis e contraditórios, nos termos dos artigos 8º e 9º do CPC, ex vi artigo 4º do CPP.
I. A prática de uma infração criminal pode gerar a formulação de um pedido de natureza civil, para ressarcimento do lesado pelas perdas e danos emergentes do crime, o qual, por regra, é deduzido (“enxertado”) no processo penal, conforme dispõe o artigo 66º, do CPP, que consagra o chamado “princípio de adesão” – o Tribunal tem que aplicar este princípio com rigor.
J. Contra a actual Arguida B, só foi deduzida acusação com o despacho de pronúncia, no termo da instrução e não na conclusão do inquérito. Como poderia a Recorrente deduzir PIC contra uma entidade que não estava sequer (ainda que por lapso) acusada?
K. A ratio da norma vertida no nº 1 do artigo 66º do CPP reporta-se às situações em que a causa de pedir, os agentes e a factualidade do pedido de indemnização civil coincidem com os mesmos factos e pressupostos da acusação, pois só assim faz sentido tal norma – nomeadamente, os princípios da economia e celeridade processuais que caracterizam o princípio de adesão do pedido de indemnização civil à acção penal.
L. Por lapso do Tribunal – já relevado nos autos – a acusação deduzida (pelo Ministério Público) a D foi na qualidade de administrador da Arguida e estando a correr inquérito contra a Arguida B, ter-se-ia dado por encerrado com a prolação de despacho de acusação ou arquivamento pelo Ministério Público.
M. Na conclusão do inquérito, os problemas não se colocaram apenas na delimitação subjectiva do processo – mas também na sua delimitação objectiva.
N. Consta do despacho instrutório que (…) “em face dos elementos de prova disponíveis nos Autos, (…) (ii) e dando cumprimento a instancia que V. Exa., lhe dirigiu, ao tratamento da questão de saber se, a existir infracção criminal, se estaria perante uma infracção unitária ou plural.”(tradução livre para língua portuguesa)
O. Encerrado o inquérito, a instância não se encontrava consolidade quanto aos seus intervenientes ou à sua tipificação legal, estando por configurar a natureza dos danos sofridas pela Recorrente.
P. A Arguida B Gaming Macau encontra-se acusada pelos factos vertidos a fls. 1868 a 1872 dos autos, os quais incluem, agora, o relatório do perito designado pelo Tribunal Sr. E, do qual resulta que as características das máquinas apreendidas nos autos são coincidentes com as especificações protegidas pelas patentes 1/810 e 1/823 registas a favor da Recorrente.
Q. Apenas com o despacho de pronúncia foi imputada à Arguida a prática dos factos vertidos nos autos, com as ulteriores consequências processuais. Estando antes a instância – intervenientes, ilícito criminal e danos – completamente indefinida (até à instrução), como seria viável a dedução de um PIC?
R. É ao lesado que compete deduzir o pedido cível (legitimidade activa), entendendo-se aquele como a pessoa que sofreu danos com o crime, mas esse pedido apenas pode ser formulado contra entidades com responsabilidade civil (legitimidade passiva) e com representação nos autos, contra com esteja a correr o procedimento criminal, por força do princípio da adesão obrigatória que caracteriza o pedido de indemnização civil.
S. A instância verificada em 2020 – na data da acusação – revela-se distinta da que se constata hoje (em resultado da instrução), nomeadamente, quanto aos intervenientes processuais, prova e danos apurados.
T. A interpretação literal da norma em questão (artigo 66º, nº 1 do CPP) determina a prática de actos contrários à própria lei, por inúteis e desconformes à realidade do processo.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, alterando-se a sentença em conformidade, mais se determinando o reenvio dos autos para o Tribunal Judicial de Base para apreciação e condenação do arguido nos termos do pedido de indemnização civil formulado, nos termos dos artigos nº 2 do artigo 66º, 400º, nº 2, al. c) e 418º, nº 1 do CPP.
Do recurso respondeu o demandado B Gaming Macau, S.A., alegando nos seus precisos termos da peça processual das fls. 101-119:
I. Introdução: Identificação das pretensões da recorrente; Razão de ordem da presente contra-alegação:
1. Foi com genuína surpresa que a ora Recorrida tomou conhecimento de que Assistente havia interposto o presente recurso tendo a douta sentença do Tribunal Judicial de Base sido proferida na já relativamente longínqua data de 13 de Maio de 2022, sendo os factos em que a mesma assenta – todos os factos em que a mesma assenta – factos do processo (e, por isso, factos sobre que não há qualquer disputa ou necessidade de instrução) e, por outro lado, sendo o regime legal absolutamente claro e de sentido inequívoco, a Recorrida – confessa-o aqui – não contava com esta surpresa.
2. Mas, uma vez notificada da motivação desta recurso da Assistente, logo se lhe tornaram claras as pretensões da Assistente-Recorrente: (i) não podendo disputar os factos processuais em que a decisão recorrida se louvou – são indisputáveis! - e (ii) não podendo atribuir à norma do no 1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal qualquer outro sentido que não o única de que a mesma é susceptível, (iii) pretende que o esse Venerando Tribunal pretira a aplicação da lei, por essa via remediando o descuido da Recorrente em deduzir o pedido cível nos termos e prazo de lei.
3. A norma do no. 1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal é clara, é bem conhecida da jurisprudência dos Tribunais da RAEM, designadamente da das suas Superiores Instâncias, mas justifica-se a sua imediata e integral citação, bem como a do restante teor do dito Artigo:
“1. Quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo Assistente, o pedido de indemnização civil é deduzido na acusação ou no prazo em que esta deve ser formulada.
2. Se, fora dos casos previstos no número anterior, o lesado tiver manifestado no processo o propósito de deduzir o pedido de indemnização, no termos do no. 4 do Artigo 64º, a secretaria, ao notificar o arguido do despacho de pronúncia ou, se o não houver, do despacho que designa dia para a audiência, notifica igualmente o lesado para, no prazo de 20 dias, deduzir o pedido.
3. Nos restantes casos, o lesado pode deduzir o pedido até 20 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de pronúncia ou, se o não houver, o despacho que designa dia para a audiência.
O pedido é deduzido em requerimento articulado e é acompanhado duplicados para os demandados e para a secretaria.”
(Fim de citação; sublinhados da responsabilidade da ora Demandada)
4. Como sem dificuldade se fará óbvio, a Recorrente, pretende, tão só e apenas, que não se lhe apliquem as consequências do seu incumprimento do supra mencionado prazo e do regime que a lei a tal associa.
É isso, e nada mais, o que a Recorrente pretende; e uma tal pretensão, porque ilegal, não pode proceder, como é óbvio.
5. A Recorrente não disputa os factos do processo em que a decisão recorrida assentou - seja, em síntese (mas sem prejuízo da respectiva exposição com maior detalhe no Capítulo II da presente Alegação), o de que (i) a mesma é assistente, (ii) a mesma já o era à data em que o Ministério Público deduziu acusação nos presentes Autos e (iii) o de que a mesma não deduziu o pedido cível até ao limite do prazo imposto por aquela disposição legal.
6. A Recorrente pretende, porém, que Vossas Excelências lhe arbitreis a criação de um direito que se extinguiu, com dois singelos mas legalmente insustentáveis fundamentos. Em síntese:
a) Por um lado, a Recorrente vem sustentar que, não tendo a mesma exercido esse direito no prazo de lei, mas tendo o Tribunal recorrido, por lapso e a pedido da Recorrente, emitido uma decisão em que convidava a Recorrente a exercê-lo, a posterior revogação dessa mesma decisão pelo Tribunal recorrido (quando o mesma apreciou a arguição de caducidade do direito deduzida pela ora Recorrida na sua Contestação) constituiria uma actuação do Tribunal a quo em venire contra factum proprium, lesiva da confiança da Recorrente (em que pudesse exercer um direito que já não tinha…);
b) Por outro lado, vem ainda sustentar que, porque o originário despacho de acusação foi posteriormente substituído por despacho de pronúncia, a norma no no. 1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal deveria merecer uma interpretação contra legem – aquilo a que a Recorrente curiosamente chama (sic) “aplicar este princípio com rigor” – permitindo que o pedido que não havia sido apresentado no prazo previsto naquela mesma disposição, pudesse vir a ser apresentado posteriormente (ainda que a Recorrente não indique quando, ou até quando, tal devesse poder ser feito).
7. Pelas razões que sinteticamente hão-de expor-se, nenhum dos argumentos avançados pela Recorrente pode merecer razão ou acolhimento.
Por um lado, a Recorrente não lograr invocar uma única disposição legal, ou um único princípio interpretativo reconhecível, pelo qual um prazo estrito de caducidade consagrado a favor da contraparte devesse ser preterido por uma decisão judicial destinada a superar a incúria da Recorrente na apresentação tempestiva do pedido.
Mas, por outro lado, é relativamente simples a demonstração de que os argumentos arrolados pela Recorrente não colhem – ou seja, facilmente se alcança que as “preocupações” manifestadas pela Recorrente quanto ao facto de que o despacho de pronúncia tenha alterado, em certos termos, o originário despacho de acusação, não justifica, nem a preterição do prazo legal para a dedução do pedido cível, nem, tão pouco, muito menos, a revivescência de tal prazo.
8. A resposta aos ditos dois argumentos do recurso consignar-se-á, respectivamente, nos Capítulos IV e V da presente Resposta, indo os Capítulo III e IV imediatamente seguintes dedicados, em sequência, à recapitulação dos factos processuais de relevo e ao enunciado do respectivo efeito legal, nos termos do no. 1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal, tal como, de resto, reconhecido e declarado pelo douto aresto recorrido.
II. Os factos processuais com relevo para a apreciação da extemporaneidade da apresentação do pedido cível e para a inevitável conclusão no sentido da sua caducidade:
9. Por requerimento de folhas 1186 e seguintes, datado de 23 de Setembro de 2019, a ofendida veio requerer a respectiva constituição como Assistente, nos termos e para os efeitos do disposto, designadamente, nos Artigos 57º e seguinte do Código de Processo Penal.
10. Pelo douto despacho de folhas 1242, datado de 25 de Outubro de 2019, tal pedido foi deferido, tendo a mesma ficado constituída no estatuto de Assistente desde essa data.
11. Em 06 de Maio de 2020, pelo Despacho de folhas 1270 e seguintes, o Ministério Público deduziu acusação pública contra a ora Demandada.
12. Notificada da dedução da acusação pública, em 21 de Maio de 2020 e a folhas 1302 e seguintes dos Autos, a Assistente deduziu a respectiva acusação.
13. A Assistente não deduziu o pedido de indemnização cível com o requerimento por que deduziu a acusação particular, nem deduziu o pedido de indemnização cível em requerimento autónomo apresentado até ao limite do prazo legal para a dedução dessa mesma acusação particular.
14. Ou seja, conclusivamente, a Recorrente não deduziu o pedido de indemnização cível até ao limite do prazo de 10 dias contado da notificação à mesma do teor da acusação pública, tal como previsto no supra citado no. 1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal. Esta conclusão é indisputável, e a Recorrida congratula-se com o facto de que (nem sequer) a Recorrente procure disputá-la, por qualquer modo ou em qualquer passagem da sua interessante alegação.
III. Da caducidade do direito de deduzir o pedido de indemnização cível no processo penal:
15. A não apresentação tempestiva do pedido de indemnização cível pelo Assistente – ou seja, a sua não apresentação com a acusação particular ou até ao termo do prazo para a respectiva apresentação – tem como consequência imediata, no próprio processo, a caducidade do direito de proceder à respectiva apresentação e sua subsequente tramitação no âmbito do processo penal respectivo.
16. A conclusão antes enunciada não sofre disputa, e encontra-se reflectida na mais autorizada doutrina que sobre a disposição legal imediatamente antes citada se pronunciou.
Assim, e a título meramente exemplificativo:
17. Leal-Henriques indica o que de imediato se cita para facilidade de referência por V. Exas.:
“Com resulta do estatuído no no. 1, sendo o pedido de indemnização cível apresentado pelo M.o P.o ou pelo assistente, o respectivo requerimento pode acudir aos autos em momentos e por vias diferentes:
- integrado na própria acusação;
- em documento autónomo e no prazo em que o libelo acusatório deva ser formulado.
(…)
Deve ter-se em atenção que a estipulação pela lei de prazos para a dedução do pedido cível em processo penal não significa que essa dedução tenha obrigatoriamente de ser feita nesse momento.
Na verdade, o estabelecimento de tais prazos constitui apenas o limite máximo até quando pode o pedido se apresentado e tem a ver com o modelo que o incidente assume no sistema processual penal da RAEM.”
(Fim de citação; in Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau, Anotação ao Artigo 66º, págs. 464 e 465; marcações no texto original e sublinhado da responsabilidade da ora Demandada)
18. Neste mesmo sentido se pronúncia PAULA MARQUES DE CARVALHO, em comentário à norma do no. 1 do Artigo 77º do Código de Processo Penal Português – de conteúdo exactamente igual à do no. 1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal de Macau, em Lição que ora se cita para facilidade de referência por V. Exas.:
“Quando o pedido de indemnização cível é apresentado pelo MP ou pelo assistente, o pedido é deduzido na acusação ou no prazo em que esta deva ser formulada, sob pena de caducidade do direito de exercer a acção cível conjuntamente.
N.30: Havendo acusação do MP ou do assistente (como tal já constituído), o pedido de indemnização civil é deduzido na própria acusação. Se um deles não acusar mas quiser (ou dever) deduzir pedido cível, terá que fazê-lo em requerimento autónomo, dentro do prazo em que a acusação poderia ser deduzida.”
(Fim de citação; in Manual Prático de Processo Penal, págs. 127-128; sublinhado da responsabilidade da ora Demandada)
19. As conclusões e as posições doutrinárias antes enunciadas e transcritas não são postas em causa pelo disposto nos no.s 2 e 3 do mesmo Artigo 66 do Código Processo Penal, pelo simples facto de que estas outras disposições não são aplicáveis às situações em que tenha havido lugar à constituição de Assistente em momento anterior àquele até ao limite do qual deva ser deduzida a acusação.
20. Ou seja, em outros termos, e significativamente, a aplicação, quer do regime do número 2, quer do regime do número 3 do dito Artigo 66º depende de que não esteja verificada a situação prevista no número 1 do mesmo Artigo e de que, portanto, não deva antes ser aplicado o respectivo regime.
Assim, recorda-se:
21. O no. 2 do Artigo 66º determina expressamente que o respectivo regime seja aplicado (sic) “fora dos casos previstos no número anterior” – ou seja, fora dos casos do número 1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal.
Por seu turno, no no. 3 do Artigo 66º configura o seu âmbito de aplicação como pertinente aos (sic) “restantes casos” – ou seja, aos casos que não sejam subsumíveis à hipótese do número 1 e, sucessivamente, à hipótese do no. 2 do Artigo 66º do Código de Processo Penal.
22. Compreende-se que assim seja, ou seja, compreende-se que, na situação em que (i) se ache constituído Assistente nos Autos e em que (ii) o lesado civil e o ofendido que assume a posição de assistente coincidam na mesma pessoa, (iii) o pedido de indemnização cível deva ser deduzido pelo Assistente com a respectiva acusação particular ou, no caso em que o mesmo não pretenda deduzi-la, até ao limite do prazo em que aquela devesse ter sido deduzida.
23. É que, achando-se já constituído Assistente desde momento anterior àquele em que deva ser deduzida a acusação, o lesado cível já está, necessariamente representado por Advogado, tal como expressamente imposto pelo no. 1 do Artigo 59º do Código de Processo Penal. E, estando o Ofendido-Lesado-Assistente já obrigatória e efectivamente representado por Advogado no momento em que o mesmo pode exercer o direito de deduzir acusação particular, o mesmo Ofendido-Lesado-Assistente sabe, e não pode ignorar, que o respectivo estatuto lhe defere o direito de deduzir o pedido cível.
24. Ou seja, em outros termos, na situação em que se ache já constituído Assistente, o ónus do exercício do direito de dedução do pedido de indemnização cível dentro do prazo de lei recai absolutamente sobre o Assistente, sem que, pois, se justifique quanto ao mesmo qualquer das cautelas que os no.s 2 e 3 do Artigo 66º prevêem para os situações em que o Ofendido não tenha podido ser advertido quanto ao exercício do direito legalmente previsto de dedução do pedido de indemnização no contexto do próprio processo crime.
25. Ensina ainda, a este mesmo propósito, GERMANO MARQUES DA SILVA o que de imediato se transcreve para facilidade de referência por V. Exas.:
“O pedido de indemnização civil, quando formulado pelo Ministério Público ou pelo assistente, é deduzido na acusação ou no prazo em que esta deve ser formulada.
Se o lesado não for assistente, há que distinguir duas situações:
(…)
N. 2“Embora a qualidade de lesado seja juridicamente autónoma da de assistente, a lei atribui relevância à dupla qualidade para efeito do prazo para a dedução do pedido cível. É uma questão de ordem prática, pois o assistente é notificado da acusação do MP para poder deduzir também acusação ou, nos crimes particulares é notificado para deduzir a acusação, querendo.”
(Fim de citação, in Curso de Processo Penal, p. 147 e n.2; sublinhado da responsabilidade da ora Demandada)
26. Ante o imediatamente antes exposto, e que se acha de outro modo também acolhido no douto aresto recorrido, resta concluir quanto à total impertinência legal dos argumentos que a Recorrente procura contrapor contra legem.
IV. A ALEGAÇÃO DE VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM E DE VIOLAÇÃO DA TUTELA DEVIDA À CONFIANÇA É FACTUALMENTE INFUNDADA E É JURIDICAMENTE IMPRÓPRIA:
27. Tal como mais acima se deixou escrito, a alegação da Recorrente não põe em disputa os factos acima recordados, nem, em rigor, sequer questiona que a consequência da respectiva subordinação ao regime imposto pelo no. 1 Artigo 66º do Código de Processo Penal seja a caducidade jurídico-substantiva do direito de indemnização de que se arroga ter sido titular.
28. Entende porém a Recorrente que o facto de que o Tribunal a haja notificado parta que, querendo, procedesse à apresentação do pedido cível, teria gerado uma expectativa legitimamente protegida – a Recorrente entende que se trata, em rigor de um direito – de deduzir o pedido cível após o termo do prazo previsto no no. 1 do Artigo 66º.
Ou seja, em outros termos e sob outra perspectiva, a Recorrente pretende que a notificação ordenada a folhas 1917 tenha gerado na esfera da Recorrente o direito de deduzir o pedido cível no prazo de …] dias contado de tal notificação.
29. E, em reforço desse seu pretenso entendimento, a Recorrente não hesita em apontar que foi ela própria quem foi pedir ao Tribunal para que a notificasse para a apresentação ulterior do dito pedido, por um lado e não hesita em apontar também, por outro lado, que a ora Recorrida não deduziu oposição ao dito requerimento da Recorrente e que também não terá deduzido oposição imediata à decisão que despachou favoravelmente tal pretensão.
30. Ora, quanto ao imediatamente antes exposto – seja, quanto aos argumentos em que a Recorrente faz assentar a peregrina tese de que a iniciativa de pedir a concessão de prazo e a sua concessão ao revés da lei houvesse gerado um direito que a lei não granjeia – a ora Recorrente julga que baste apontar três singelas notas:
a) Em primeiro lugar, e tal como, salvo o devido respeito, deverá parecer óbvio, tendo sido a própria Recorrente quem veio instar o Tribunal recorrido a que o mesmo produzisse um despacho que a mesma sabia (ou tinha a obrigatório de saber) estar em contravenção do disposto no. 1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal, a mesma não pode fazer-se prevalecer disso mesmo.
Ou seja, como diz o velho brocardo latino “nemo turpitudinem suam allegare postest” – ninguém pode prevalecer-se da sua própria torpeza, ou seja, ninguém pode pretender avantajar-se indevidamente com a sua própria actuação. A Recorrente, ciente de que não havia cumprido o que a lei lhe impunha pelos termos do no. 1 do Artigo 66º - e de que, portanto, o prazo para a apresentação do pedido se havia esgotado, com a consequente caducidade do direito respectivo – veio procurar fazer revivescer tal faculdade, induzindo o Tribunal em erro.
b) Em segundo lugar, e como também deverá ser óbvio, é absolutamente irrelevante que a ora Recorrida não tenha impugnado o pedido que a Recorrente formulou de que o Tribunal lhe concedesse prazo (novo) para a dedução do pedido cível.
Recordando-se – se necessário fosse – que a ora Recorrida não tinha sequer de ser notificada de tal requerimento – como efectivamente não o foi – Recorrida exerceu o seu direito (que é também um ónus processual) de invocar a caducidade como facto extintivo do direito, no contexto da contestação que deduziu contra o pedido cível.
A pretensão da Recorrente, a este propósito, tem tanto sentido quanto teria – não tem sentido nenhum! – exigir que, em processo comum ordinário, o réu tivesse de deduzir a sua defesa por excepção (arguindo a caducidade) em separado, e antecipadamente no tempo relativamente à apresentação da restante contestação.
Ora, como é sabido, não é isso o que a lei exige ou pretende(!): aquilo que a lei exige é que, na sua contestação, o réu deduza a sua defesa de modo integral – invocando, designadamente, se disso for caso, os fundamentos de modificação ou extinção do direito que o autor pretenda fazer valer com a sua petição.
Em rigor, Excelentíssimos Juízes, o que a Recorrente pretende é remediar a sua própria falha - em não ter apresentado o pedido de indemnização cível no prazo de lei, numa falha da Recorrida, o que é, obviamente inadmissível.
31. Mas, em terceiro lugar, acrescendo aos dois pontos imediatamente antes – e, talvez, com maior importância – a razão determinante pela qual não pode proceder a arguição de violação da tutela da confiança é a de que a actuação do Tribunal a quo não determinou qualquer acto ou omissão por parte da Recorrente de que tenha resultado a preterição de qualquer dos seus direitos.
32. Contrariamente àquilo que, astuciosamente, a Recorrente pretende fazer crer, não se trata, in casu, de uma situação como as que são bem conhecidas da jurisprudência, em que uma notificação em erro ou uma falta de notificação tenham determinado a preterição de qualquer direito ou faculdade (substantivo ou processual).
O que ocorreu, in casu, muito simplesmente, foi que a Recorrente não apresentou o pedido cível no prazo e circunstância de lei – seja o prazo que lhe impunha o disposto no no. 1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal – com a inevitável consequência da caducidade do direito respectivo.
E foi depois disso – bem depois disso! – que a mesma Recorrida foi pedir ao Tribunal a quo que o mesmo lhe propiciasse o exercício de um direito de que a mesma já não era titular – de um direito que, em rigor, se mostrava então já extinto na ordem jurídica.
33. Ora, como é óbvio – e disso mesmo de apercebeu o Tribunal a quo e o fez consignar no douto aresto recorrido – tal faculdade não assistia ao Tribunal: o Tribunal não pode ter recriado (ou seja, criado de novo), por despacho um direito que, nos termos da ordenação jurídico-processual e jurídico-substantiva, se achava já extinto, pelo que, necessariamente, tal despacho não pode fundar quaisquer directos, nem em si mesmo, nem por homenagem à tutela do valor da confiança.
V. A IRRELEVÂNCIA DA SUPERVENIÊNCIA DO DESPACHO DE PRONÚNCIA RELATIVAMENTE AO DESPACHO ORIGINÁRIO DE ACUSAÇAO, PARA A CONTAGEM DO PRAZO E PARA O CUMPRIMENTO DO DISPOSTO NO NO. 1 DO ARTIGO 66º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL:
34. Certamente ciente de que a invocação da tutela da confiança jamais poderia proceder, a Recorrente ensaia depois a tese de que, uma vez que o despacho de acusação veio a ser substituído pelo despacho de pronunciado no termo da instrução, esse facto (e o facto de que o despacho de pronúncia tenha introduzido certas alterações ao libelo) justificariam que o cumprimento do previsto no no. 1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal não devesse ser imposto à Recorrente.
O que dizer sobre isto, Excelentíssimos Juízes.
35. Em primeiro lugar – quiçá com uma importância apenas relativa mas, de todo o modo, demonstrativa da seriedade deste argumento da Recorrente – teremos de fazer notar que a Recorrente, não só não apresentou o pedido cível até ao termo do prazo legal para a dedução da acusação, como tão pouco o apresentou após a notificação do despacho de pronúncia!
De facto, compulsado os Autos, constata-se que a Recorrente esperou três meses contados sobre a notificação do despacho de pronúncia para pedir ao Tribunal que a notificasse para a presentar o pedido cível.
36. Ora, quanto a tal, duas observações têm inevitavelmente de ser suscitadas:
a) Se a Recorrente entendia que não estava subordinada ao prazo do no.1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal – ou seja, se a mesma entendia que não tinha de proceder à dedução do pedido cível até ao limite do prazo para a dedução da acusação – porque razão não veio manifestar ao processo o propósito de deduzir tal pedido, nos termos previstos no no. 2 do Artigo 66º?
b) Por outro lado, e não tendo a Recorrente manifestado anteriormente tal propósito, tendo entretanto sido notificado do despacho de pronúncia, por que razão não deu cumprimento ao previsto no no. 3 do mesmo Artigo 66º - ou seja, por que razão não deduziu o pedido cível sequer até ao limite do prazo de 20 dias contado da notificação do despacho de pronúncia?!
37. A respostas às duas questões imediatamente antes formuladas é uma, é só pode ser uma: a Recorrente optou por não deduzir o pedido, ou optou por ficar à espera de que o Tribunal viesse a notifica-la para tal efeito.
Mas, como Vossas Excelências bem sabeis, o Tribunal a quo não tinha, in casu, qualquer obrigação de notificar a Assistente recorrente para a apresentação de pedido cível, pois que, nos termos da lei, era sobre a mesma que incumbia o ónus da sua dedução no prazo do no. 1 do Artigo 66º (ou, no limite, no prazo do no. 3 do mesmo Artigo o que, como se viu, Recorrente também não cumpriu)!
38. Resta apenas, assim, Excelentíssimos Juízes, lavrar mais duas breves notas sobre as razões por que os demais argumentos da Recorrente quanto à relevância da emissão de despacho de pronúncia não podem proceder.
39. Diz a Recorrente, em síntese, que só estaria obrigada a deduzir o pedido cível algures no tempo após a prolação do despacho de pronúncia, pelo facto de que o despacho de acusação não houvesse, por lapso, sido deduzido contra a ora Recorrida mas, antes e apenas, contra um dos seus administradores.
Trata-se, porém, Excelentíssimos Juízes, de um falso argumento. E trata-se de um argumento que, não só é falso, como é, salvo o devido respeito, enganador.
40. Nos termos do disposto no no. 2 do Artigo 62º do Código de Processo Penal, que ora se cita para facilidade de referência por V. Exa., “O pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoa com responsabilidade meramente civil e esta pode intervir voluntariamente no processo penal.”
41. E uma das situações típicas, características, recorrentes na prática, de chamamento de responsável cível ao processo crime, para responder pelo pedido de indemnização ou compensação por danos nos quadros da implementação do princípio da adesão é, justamente, a da responsabilidade das pessoas colectivas - ou, mais amplamente, de mandantes – pelos danos causados pelos respectivos administradores, representantes ou agentes.
42. Ou seja, para o que importa, nada impedia que a Recorrente – independentemente do resultado que a instrução pudesse vir a merecer quanto à questão de saber se a sociedade e o administrador ou, a final, apenas a sociedade, devessem ser indiciadas criminalmente – deduzisse o pedido de indemnização contra a Recorrida no prazo de lei (ou seja, até ao termo do prazo para a dedução da acusação – coisa que, mais suma vez, quiçá por incúria, a Recorrente não fez.
43. Por outro lado, e finalmente, é absolutamente irrelevante, quer de facto, quer de direito, a alegação de que antes da prolação do despacho de pronúncia, a Recorrente não pudesse ter por fixada a matéria relevante para a dedução do pedido cível.
E assim, por três fundamentais razões:
a) Por um lado, quanto aos factos – e ainda que com importância subordinada – anota-se que não existe qualquer facto-causa articulado no pedido de indemnização cível que não estivesse articulado ou no despacho de acusação pública, ou no requerimento de acusação particular deduzido pela Recorrente;
b) Por outro lado – e ainda que, é preciso nota-lo, tal não haja ocorrido in casu – se, por força de quaisquer alterações introduzidas pelo despacho de pronúncia ao original libelo acusatório, devesse haver lugar a uma alteração do teor do pedido cível, das duas umas: (i) ou bem que tal incidente poeria ainda ser acomodado no âmbito da instância penal ou, no caso em que assim não fosse, (ii) incumbiria ao Tribunal a quo, oficiosamente ou a pedido da Recorrente, actuar a faculdade prevista no no. 4 do Artigo 71º do Código de Processo Penal, remetendo as partes para a jurisdição cível.
44. Em síntese e a final, Excelentíssimos Juízes, a verdade é que a pretensão da Recorrente não pode colher porque a lei não lhe dá acolhimento; e a razão por que a lei não lhe dá acolhimento é, pura e simplesmente, a de que a tutela dos legítimos interesses dos lesados civis não requer que os mesmos seja isentados do prazo previsto no no. 1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal quando, circunstancialmente, possa vir a ocorrer a abertura de instrução e, em sequência, de despacho de pronúncia.
Pela mesma lógica da Recorrente - que, insiste-se, a lei não consagra e que, sob o ponto de vista dos interesses que ao processo penal incumbe tutelar, é intolerável – dir-se-ia que, enquanto não estivesse determinado, em cada processo, se viria ou não a ocorrer a abertura de instrução, a parte assistente não estaria subordinada à apresentação do pedido cível.
Tal, porém, como é óbvio, significaria fazer letra morta do no. 1 do Artigo 66º do Código de Processo Penal. É isso o que a Recorrente pretende e é isso também aquilo que Vossas Excelências deveis, sem qualquer hesitação rejeitar.
VI. INSTRUÇÃO:
45. Para além dos elementos cuja junção foi ordenada oficiosamente e dos demais requeridos pela Recorrente, requer que o presente recurso seja instruído com as seguintes elementos do processo principal:
a. Requerimento de constituição de assistente – fls. 1186
b. Despacho de admissão de constituição da assistente – fls. 1242
c. Acusação Pública e a respectiva notificação à assistente e mandatário – fls. 1270 a 1274, 1276
d. Acusação Particular – fls. 1302 a 1309
e. Acto da debate instrutória e o despacho de pronúncia – fls. 1860 a 1872
f. Requerimento de realização de notificação relativamente à dedução do Pedido de indemnização – Fls. 1907
g. Despacho de notificação à assistente para a decisão do PIC e a respectiva notificação – fls. 1913 a 1914, 1917
h. O PIC – Fls. 2206 a2239
i. Despacho de admissão do PIC – Fls. 2241
j. Contestação ao PIC – Fls. 2262 a 2339
k. A Sentença Recorrida – Fls. 2399 a 2402
Nestes termos, e nos mais em Direito consentidos que Vossas Excelências doutamente suprireis, se requer que o presente recurso seja julgado improcedente, porque não provado e porque legalmente injustificado, devendo o douto aresto recorrido ser por isso confirmado na íntegra
Mais requerendo que Vos digneis ordenar a demais tramitação desta instância de recurso até final para que, pela Vossa douta Palavra, possais dar cumprimento à consueta Justiça.
A MMª Procuradora-Adjunta do Ministério Público não apresentou o parecer por ter entendido que se trata dos assuntos meramente cíveis.
Cumpre conhecer.
Foram colhidos os vistos legais.
II - De Factos
Como consignou no despacho recorrido, consideram-se como assentes os seguintes factos que podem servir da decisão do presente recurso:
1) Em 2019.09.23, a Ofendida requereu a constituição como Assistente nos termos legais (fls. 1186);
2) Em 2019.10.25, foi deferida a constituição do assistente por despacho do MMº Juiz de Instrução Criminal (fls. 1242);
3) Em 2020.05.06 foi deduzida acusação púbica pelo MP contra a Demandada (fls. 1270 a 1273);
4) Em 2020.05.08 foi envidada carta à assistente no sentido de notificá-la da acusação pública, do prazo para o requerimento da instrução e para a mesma formular acusação nos termos do artigo 266 do CPP, do despacho de fls. 1269, bem como outros pormenores a que se refere no ofício de fls. 1274, sendo a destinatária A Entertainment Corporation sediada em Japão (fls. 1274);
5. Em 2020.05.08 foi enviada carta ao mandatário da assistente C no sentido de notificá-la da acusação pública, bem como do despacho de fls. 1269 (fls. 1276);
6. Em 2020.05.21 a assistente, apresentou acusação nos termos do artigo 266º e seguintes do CPP;
7. Em 2022.01.20 o Juiz Criminal do TJB proferiu despacho notificando a assistente para a dedução do pedido de indemnização civil no prazo de 20 dias, em conformidade com os artigos 64º, 66º nº 2 e 100º nº 7 alínea a) do CPP (fls.1913);
8. Em 2022.01.21 foi enviada carta à assistente A Entertainment Corporation para o efeito, sendo a destinaria sediada em Japão (fls.1914);
9. Em 2022.01.21 foi enviada carta ao mandatário da assistente C para o efeito (fls.1917);
10. Em 2022.02.21, a assistente deduziu pedido de indemnização cível nos termos do artigo 66º nº 3 do CPP (fls.2206 a 2213);
11. Dada a possibilidade à assistente para se pronunciar sobre a questão, este nada veio a acrescentar, nem tendo ilidido as datas de presunção da recepção referentes às notificações enviadas em 2020.05.08 pelo MP, bem assim às enviadas pelo TJB em 2022.01.21.
III – De Direito
Trata-se apenas de uma questão de saber se o pedido da indemnização cível fora apresentada fora do prazo legal.
Em geral, a contagem do prazo do pedido de indemnização cível no processo penal segue-se os termos previstos nos artigos 66º e 266º do CPP.
Em primeiro lugar, tendo embora este Tribunal decidido pela decisão sumária junto do processo nº 365/2017, tal como citou no douto despacho recorrido, o tribunal não pode criar um prazo novo fora da disposição legal, decisão aquela que fora tomada nas circunstâncias exactamente contrárias ao presente, é que o MMº Juiz alí do processo novamente distribuído proferiu um despacho que concedeu novamente um prazo para a dedução da indemnização cível, independentemente da existência de uma decisão do mesmo conteúdo, decisão anterior que devia em princípio ser considerada transitada em julgada.
Mas, nos presentes, a história teve lugar noutra maneira.
No presente, o MMº Juiz do processo, decidiu contra os previstos nos artigos 66º nº 2 e 266º do CPP, concedeu o assistente um prazo de 20 dias para deduzir o pedido de indemnização cível no despacho das fls. 1913, decisão esta , fosse correcta fosse não, que não sofreu qualquer oposição do MP e do arguido, inclusive, e que devia ser considerada já transitada em julgado, e o MMº Juiz não pode decidir noutra maneira contra o princípio de caso julgado previsto no artigo 580º do CPC, ex.vi. artigo 4º do CPP.
Em segundo, o Tribunal mandou por carta r/c em 21/01/2022 a notificar do despacho das fls.1913 que concedeu o novo prazo para a dedução do pedido de indemnização cível, assim presumindo-se que o recebimento daquela carta no dia 24 de Janeiro de 2022, nos termos do disposto no artigo 100º nº 2 do CPP.
Sendo férias judiciárias durante dia 31 de Janeiro de 2022 a 6 de Fevereiro de 2022 em que não corria o prazo, e o prazo só terminou no dia 21 de Fevereiro de 2022 e neste dia foi a assistente apresentou o pedido ora em questão. Deve ser considerado como tempestivo o acto processual do pedido praticado pelo assistente.
Procede-se, sem mais delongas, o recurso do assistente, e em consequência revoga-se o acto ora recorrido, com a admissão do pedido, caso outra causa não lhe impeça.
Decidendo.
IV – Decisão
Pelo exposto, acordam o Colectivo do TSI em conceder o provimento do recurso interposto pelo demandante A Entertainment Corporation, revogando o despacho recorrido, devendo ser admitido o pedido deduzido pelo assistente.
Custas pelo recorrido.
RAEM, 6 de Julho de 2023
____________________
Choi Mou Pan
(Relator)
___________________
Chan Kuong Seng
( 1º Juiz-Adjunto)
____________________
Tam Hio Wa
(2ª Juiz-Adjunta)
1
TSI-61/2023 P.1