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Processo n.º 457/2023 Data do acórdão: 2023-7-27 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– art.o 6.o da Lei n.o 10/2012
– interdição de entrada em casinos a pedido do interditando
– limitação voluntária da liberdade de entrada em casinos
– revogabilidade da limitação voluntária da liberdade
– art.o 69.o, n.o 5, primeira parte, do Código Civil
– art.o 72.o, n.o 9, do Código Civil
– incumprimento da interdição voluntária de entrada em casinos
– crime de desobediência
– art.o 12.o, alínea 2), da Lei n.o 10/2012
– autoridade pública como bem jurídico
S U M Á R I O

1. O art.o 6.o da Lei n.o 10/2012, de 27 de Agosto, dispõe que o Director de Inspecção e Coordenação de Jogos pode interditar a entrada em todos os casinos, ou em apenas alguns deles, pelo prazo máximo de dois anos, às pessoas que o requeiram ou que confirmem requerimento apresentado para este efeito por cônjuge, ascendente, descendente ou parente na linha colateral em 2.o grau.
2. A interdição de entrada nos casinos assim requerida e deferida não é uma ordem imposta por alguma decisão judicial ou administrativa interditando a entrada nos casinos nos casos previstos na lei no exercício do direito de punir (por exemplo, no caso de aplicação de pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogos a arguido condenado por prática de crime de usura para jogo, ou no caso de imposição da regra de conduta de não frequência dos casinos no período da suspensão da pena de prisão aplicada – cfr. o art.o 15.o da Lei n.o 8/96/M, de 22 de Julho, ou o art.o 50.o, n.os 1 e 2, alínea b), do Código Penal, respectivamente) ou no exercício do poder de autoridade em assuntos de gestão pública, mas, sim, resulta da própria solicitação da pessoa visada, que procedeu como que à limitação voluntária da sua liberdade de entrada em casinos, limitação esta que é sempre revogável (nos termos do art.o 6.o, n.o 2, da Lei n.o 10/2012, dentro da filosofia do disposto nos art.os 69.o, n.o 5, primeira parte, e 72.o, n.o 9, do Código Civil).
3. Não tendo sido, pois, essa medida de interdição aplicada ao arguido dos autos na sequência de anterior prática de algum acto com relevância penal ou violador de alguma norma jurídica de carácter sancionatório, mas sim correspondendo essa medida ao pedido então confirmado por ele traduzido materialmente numa limitação voluntária da sua liberdade de entrada em casinos, o tipo delitual penal de desobediência, previsto no art.o 12.o, alínea 2), da Lei n.o 10/2012, que pretende tutelar a autoridade pública como seu bem jurídico, não é aplicável à conduta de incumprimento de uma interdição de entrada em casinos inicialmente querida pelo arguido que se retractou dessa interdição vindouramente, ainda que a interdição tenha sido autorizada pelo Director de Inspecção e Coordenação de Jogos ao abrigo do art.o 6.o dessa Lei, compreensivelmente apenas para fins de execução da própria medida de interdição por si querida antes (medida esta que visa ajudar o arguido visado, sem confiança própria na capacidade de se abster de entrar em casinos, a tirar o vício de jogar em casinos).
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 457/2023
(Recurso em processo penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrido (arguido): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 135 a 139 do ora subjacente Processo Comum Singular n.o CR5-22-0283-PCS do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou absolvido o arguido A, aí já melhor identificado, da acusada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de desobediência simples (por incumprimento da decisão administrativa, devidamente notificada, de interdição da entrada nos casinos) p. e p. sobretudo pelo art.o 12.o, alínea 2), da Lei n.o 10/2012, de 27 de Agosto.
Inconformado, veio o Digno Delegado do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) para pedir a condenação directa do arguido pela prática do crime referido, ou o reenvio do processo para novo julgamento desse crime, tendo alegado, no seu essencial, na motivação de fls. 144 a 149 dos presentes autos correspondentes, que o bem jurídico que se procura tutelar na norma da alínea 2) do art.o 12.o da Lei n.o 10/2012 é a força coactiva da decisão tomada por Autoridade Pública para concretizar o fim legiferante do mecanismo de auto-exclusão de acesso aos casinos, pelo que a decisão absolutória penal da Primeira Instância padece do erro de direito.
Ao recurso, respondeu o arguido recorrido a fls. 154 a 157v, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fls. 168 a 170, pugnando pela condenação directa do arguido no crime de desobediência acusado, com aplicação da pena.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Da fundamentação fáctica da sentença recorrida, sabe-se o seguinte:
– em 22 de Fevereiro de 2021, o arguido entregou à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) o pedido de auto-exclusão de acesso, por dois anos, a todos os estabelecimentos de casino de Macau;
– no mesmo dia, por despacho da DICJ, foi deferido o pedido do arguido, com interdição do mesmo de entrada em todos os estabelecimentos de casino de Macau, no período de 25 de Fevereiro de 2021 a 24 de Fevereiro de 2023;
– o arguido foi notificado disso no mesmo dia, e informado de o não cumprimento da interdição de entrada nos casinos incorrer no crime de desobediência, nos termos do n.o 1 do art.o 312.o do Código Penal (CP), por remissão da alínea 2) do art.o 12.o da Lei n.o 10/2012, tendo o arguido assinado na notificação em causa para confirmar a sua compreensão do teor da notificação;
– em 27 de Fevereiro de 2022, cerca das 20 horas e 7 minutos, o arguido entrou num casino;
– o arguido praticou o acto acima de modo livre, voluntário e consciente.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O Ministério Público ora recorrente assacou à decisão judicial absolutória, em primeira instância, do crime de desobediência simples o vício de erro de direito: a questão prende-se com a indagação sobre se o não acatamento, pelo arguido, da medida de exclusão de acesso aos casinos de Macau acarretou para ele os efeitos legais de prática do crime de desobediência simples, como tal cominados na notificação da decisão administrativa de autorização do pedido de exclusão de acesso aos casinos, então apresentado por ele à DICJ.
Entretanto, nos acórdãos de recurso de 12 de Julho de 2018 do Processo n.o 437/2016, de 29 de Abril de 2020 do Processo n.o 176/2020 e de 30 de Julho de 2020 do Processo n.o 536/2020 deste TSI, já se pronunciou sobre a não ilicitude da conduta congénere de entrada em casino de Macau por pessoa particular que antes tinha pedido à DICJ a sua auto-exclusão de acesso aos casinos e depois veio entrar em casino, dentro do período de interdição da sua entrada, decidida pela DICJ.
Assim sendo, sobre o caso dos autos, não deixa de ser também aplicável, mutatis mutandis, o seguinte entendimento jurídico das coisas já veiculado nomeadamente nos referidos arestos de recurso:
O art.o 6.o da Lei n.o 10/2012, de 27 de Agosto, dispõe que o Director de Inspecção e Coordenação de Jogos pode interditar a entrada em todos os casinos, ou em apenas alguns deles, pelo prazo máximo de dois anos, às pessoas que o requeiram ou que confirmem requerimento apresentado para este efeito por cônjuge, ascendente, descendente ou parente na linha colateral em 2.o grau.
No caso, tratou-se de um pedido voluntariamente apresentado pelo próprio arguido à DICJ, de exclusão de acesso dele aos casinos de Macau. Portanto, é de entender que a medida da interdição de entrada dele nos casinos de Macau, referida na matéria de facto provada, não foi uma ordem imposta por alguma decisão judicial ou administrativa interditando a entrada nos casinos, nos casos previstos na lei no exercício do direito de punir (por exemplo, no caso de aplicação de pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogos a arguido condenado por prática de crime de usura para jogo, ou no caso de imposição da regra de conduta de não frequência dos casinos de Macau no período da suspensão da pena de prisão aplicada – cfr. o art.o 15.o da Lei n.o 8/96/M, de 22 de Julho, ou o art.o 50.o, n.os 1 e 2, alínea b), do CP, respectivamente) ou no exercício do poder de autoridade em assuntos de gestão pública, mas, sim, resulta da própria solicitação voluntária do arguido, que procedeu como que à limitação voluntária da sua liberdade de entrada em determinados casinos, limitação essa que é sempre revogável (nos termos do art.o 6.o, n.o 2, da Lei n.o 10/2012, dentro da filosofia do disposto nos art.os 69.o, n.o 5, primeira parte, e 72.o, n.o 9, do Código Civil), de maneira que o tipo delitual penal de desobediência, que pretende tutelar a autoridade pública como seu bem jurídico, não é aplicável à conduta de incumprimento de uma interdição de entrada em casinos inicialmente querida pelo arguido que se retractou dela vindouramente.
Ou seja, entende-se, em prol da unidade do sistema jurídico como critério orientador na interpretação da lei, que a retractação, pelo arguido, da interdição voluntária da entrada em casinos não fere nunca o bem jurídico de autoridade pública em mira no tipo-de-ilícito de desobediência (porque a medida de interdição de entrada em casinos não lhe foi aplicada na sequência de anterior prática de algum acto com relevância penal ou violador de alguma norma jurídica de carácter sancionatório, mas sim correspondeu ao pedido então apresentado por ele, traduzido materialmente numa limitação voluntária da sua liberdade de entrada em casinos), pelo que a ele não se deve imputar a ilicitude do facto de desobediência (cfr. o art.o 30.o, n.o 1, do CP), ainda que tal interdição voluntária da entrada em casinos tenha sido autorizada pela DICJ, compreensivelmente apenas para fins de execução da medida de interdição voluntária em causa (medida esta que visa ajudar a própria pessoa do arguido, naturalmente sem confiança própria na capacidade de se abster de entrar em casinos, a tirar o vício de jogar em casinos).
E cabe ainda tecer as seguintes considerações, então já materialmente vertidas no referido acórdão do Processo n.o 176/2020:
– na exposição jurídica acima feita, está-se a interpretar a lei em prol da unidade do sistema jurídico, porquanto a unidade do sistema jurídico é o factor primado na interpretação da lei, a ser feita a partir do texto da lei, nos termos ditados da norma do n.o 1 do art.o 8.o do Código Civil (e neste sentido, cfr. JOÃO BAPTISTA MACHADO, in INTRODUÇÃO AO DIREITO E AO DISCURSO LEGITIMADOR, Livraria Almedina, Coimbra, 1995, 8.a reimpressão, sobretudo página 191, penúltimo parágrafo: “A sua consideração como factor decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica”);
– a “interdição de entrada nos casinos a pedido”, determinada nos termos do n.o 1 do art.o 6.o da Lei n.o 10/2012, é exclusivamente a pedido, apresentado ou confirmado, pela pessoa particular visada, e, como tal, naturalmente sob e em sintonia total com a vontade pessoal desta (sendo, assim, uma decisão administrativa tomada ex voluntate da pessoa particular visada e com produção de efeitos legais também ex voluntate da pessoa particular visada), o que é diferente do caso da emissão, somente ex lege (por efeito de alguma norma jurídica emanada do Órgão Legislativo), da ordem administrativa limitativa da liberdade de alguma pessoa particular (com produção de efeitos legais ex lege, e como tal, naturalmente contra a vontade da pessoa visada e assim limitada na sua liberdade, por ninguém gostar de ver limitada a sua liberdade, sem sua concordância própria, mesmo que em concreto não queira ainda exercer a liberdade em questão);
– como ilustrativo do papel da vontade da própria pessoa visada para o condicionamento necessário da medida da “interdição de entrada nos casinos a pedido”, é a própria regra contida na primeira parte do n.o 2 desse art.o 6.o que dispõe que “O visado pode pedir em qualquer momento a revogação da interdição prevista no número anterior” (regra esta que condiz com o espírito do art.o 69.o, n.o 5, primeira parte, do Código Civil), sendo certo que é também por força do mecanismo da primeira parte do n.o 5 do art.o 69.o do Código Civil que o prazo de 30 dias referido na segunda e última parte do n.o 2 desse art.o 6.o deve ser razoavelmente entendido como um prazo meramente procedimental para a Administração “deferir” necessariamente o pedido de revogação da interdição e fazer comunicações necessárias às entidades públicas e privadas fiscalizadoras e/ou executadoras da medida de interdição, para efeitos de actualização da situação da pessoa visada em matéria de entrada em casino;
– em suma, não há “interdição de entrada nos casinos a pedido” sem a vontade, neste sentido, da pessoa visada; a vontade da pessoa visada é que dá vida e sentido útil à “interdição de entrada nos casinos a pedido”;
– do acto concreto e efectivo da pessoa visada de entrada em casino, praticado sem ter ela feito o pedido expresso de revogação da “interdição de entrada nos casinos a pedido” à DICJ, deduz-se, com toda a probabilidade, que ela tenha querido, no momento desta entrada, já fazer revogar a mesma medida (art.o 209.o, n.o 1, do Código Civil).
Não se pode satisfazer, assim, o pedido formulado na motivação do recurso vertente, de condenação directa do arguido pelo acusado crime de desobediência simples, ou de reenvio do processo para novo julgamento.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o pedido formulado no recurso do Ministério Público.
Sem custas, atenta a isenção do Ministério Público.
Fixam em mil patacas os honorários da Ex.ma Defensora Oficiosa do arguido recorrido, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Comunique a presente decisão ao Senhor Director de Inspecção e Coordenação de Jogos.
Macau, 27 de Julho de 2023.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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