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Processo nº 138/2020
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Nos Autos de Recurso Civil e Laboral no Tribunal de Segunda Instância registados com o n.° 149/2020 proferiu-se o seguinte Acórdão (que se passa a transcrever na sua íntegra):

“I - RELATÓRIO
A (甲), Recorrente, devidamente identificado nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 18/07/2019, dela veio, em 29/10/2019, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 155 a 186, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objecto a sentença proferida nos presentes autos, que julgou improcedente o pedido do autor, e com a qual este não se conforma, por entender existir contradição entre a fundamentação e a decisão e erro na apreciação dos factos e do direito.
2. Através da pressente acção, o autor veio peticionar que fosse declarado, para todos os efeitos legais, designadamente para efeitos de registo na Conservatória do Registo Predial de Macau, como único e legítimo proprietário da fracção autónoma designada por "BR/C", do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau, com os nºs 5 a 9 da [Rua(1)], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, por usucapião.
3. Após citação edital dos réus, foi proferido despacho saneador pelo qual foi dispensada a selecção de matéria de facto e considerados controvertidos os factos alegados na petição inicial.
4. Entende o recorrente, salvo melhor opinião, que a sentença recorrida é nula por conter oposição entre os factos considerados como provados e a decisão, conforme adiante se demonstrará - art. 571º, n° 1, al. a), do CPC.
5. A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, que está dependente do exercício da posse - sctricto sensu e não a posse precária ou detenção -, durante um certo período de tempo - art. 1212° do CC.
6. Ora, o tribunal a quo decidiu que não estavam reunidos os pressupostos legalmente exigidos da posse, para declarar a aquisição por usucapião sobre o imóvel a favor do recorrente.
7. No entanto, deu como provado que o recorrente ocupa o dito imóvel e nele reside com a sua família, pelo menos desde 1985. Ora, este facto, por si mesmo, significa que ficou demonstrada a posse.
8. A posse que interessa para efeitos da usucapião não é a posse causal, mas sim a posse formal, cujos elementos caracterizadores integram o corpus (elemento material) e o animus (intenção de exercer um determinado direito real como se fora seu titular).
9. O corpus coincide com o elemento material e identifica-se com os actos materiais praticados sobre a coisa. Conforme referem os autores Álvaro Moreira e Carlos Fraga1, o corpus traduz-se no exercício de poderes de detenção, guardando e conservando a coisa em seu poder ou ocupando-a, no caso dos imóveis. Por outras palavras, o corpus traduz-se num poder de facto sobre a coisa, que no caso dos imóveis será o de ocupar, manter, dispor e fruir dos mesmos.
10. Tendo ficado provado que o recorrente reside, com a sua família, no imóvel em causa, pelo menos desde 1985, até 2015, altura em que passou a estar internado numa casa de repouso, em virtude da sua idade - factos 5 e 7-, bem como os factos 6, 9 e 10, significa que ficou demonstrado que o recorrente tem o poder de facto sobre o imóvel em causa, ocupando-o, mantendo-o, dispondo e fruindo do mesmo, donde resulta de forma incontroversa que tem o corpus.
11. Acresce que, para além do exercício material de um poder de facto sobre a coisa é necessário também existir uma vontade de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados, ou seja, além do corpus, que representa o elemento físico, a posse carece de ser acompanhada do animus, que se trata de um elemento de natureza psicológica e se traduz na intenção.
12. Como ilustração do animus é comum fazer-se a distinção da intensão entre um arrendatário ou comodatário e um proprietário. Essa distinção não se encontra no elemento material, já que todos têm a ligação física com o bem, mas sim no elemento psicológico, visto que a intenção de exercer o direito de propriedade recai somente no proprietário.
13. Por esse motivo torna-se evidente que um arrendatário ou comodatário, apesar de terem o corpus, não têm animus e, como tal, não poderão ter a posse sobre o imóvel que ocupam.
14. Contudo, se o elemento físico - o corpus - é relativamente fácil de provar, já o elemento psicológico - o animus - pode assim não ser.
15. Conforme flui do acórdão do Tribunal de Segunda Instância (TSI), de 9 de Fevereiro de 2012, proferido no Proc. n.º 985/2010, e doutrina nele transcritos, da mera detenção / ocupação do bem - o corpus - infere-se o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados - o animus - quando estes são precisamente actos da vida quotidiana coincidentes aos de qualquer proprietário.
16. Como é evidente, sendo o animus resultante da vontade e, portanto, um elemento psicológico e totalmente subjectivo, torna-se difícil ou mesmo impossível demonstrar a sua materialização a partir da utilização/ocupação de um imóvel, apesar de sobre ele serem praticados actos susceptíveis de se considerem inerentes aos de um proprietário.
17. Acresce que, a manifestação da vontade de possuir o bem não tem necessariamente de ser de forma expressa, bastando que resulte da prática de actos correntes que são percepcionados exteriormente como aqueles que se atribuem a um efectivo proprietário.
18. Por outro lado, verifica-se que o legislador teve o cuidado de estabelecer no art. 1176°, nº 2, do CC. uma presunção legal, segundo a qual presume-se que detém a posse aquele que exerce o poder de facto sobre a coisa, o que acentua a correspondência entre o corpus e o animus.
19. Naturalmente que, conforme é salientado pelo TSI, ao representar uma inversão do ónus da prova a presunção da verificação da posse poderá ser ilidida, mediante a invocação de factos contrários à pretensão do autor-art. 337, n° 1, do CC.
20. É nesse contexto que se entende que cabe à contraparte demonstrar que a ocupação do imóvel não é feita com a intenção de o possuir - art. 343° do CC. Sucede que, não foram nestes autos alegados e muito menos provados quaisquer factos que afastassem tal presunção, designadamente que o autor e ora recorrente estivesse a exercer o poder de facto sobre o imóvel por outros motivos, como sendo por arrendamento ou comodato ou até no interesse de outrem - art. 407°, n° 2, al. b), do CPC.
21. Sendo assim, estando demonstrado nos autos que o recorrente ocupa e exerce o poder de facto sobre o imóvel em causa, decorre dos factos provados que, além do corpus (os actos materiais praticados sobre a coisa) o recorrente tem o animus (o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados), estando, assim, verificados, em simultâneo, os elementos caracterizadores da posse.
22. Assim, e na esteira do acima citado acórdão, havendo corpus, não é necessário deslindar se há animus, porque não ficou demonstrado o contrário.
23. Em suma, exercendo a posse há mais de 15 anos, resultam verificados os pressupostos necessários para declarar a aquisição por usucapião a favor do recorrente.
24. Nestes termos, e salvo melhor opinião, atentos os factos considerados como provados, deveria o tribunal recorrido considerar verificada a posse e assim os pressupostos necessários para declarar a aquisição por usucapião a favor do recorrente
25. Sem prescindir, considera o recorrente que, salvo o devido respeito, o tribunal a quo apreciou incorrectamente a prova produzida em sede de audiência e julgamento.
26. Entendeu, o tribunal a quo que, apesar de ter ficado provada a ocupação do imóvel, não pode considerar que o autor tenha o corpus, em virtude de este não ter demonstrado que era sobrinho do titular inscrito do imóvel em questão, B ou B1, e que este lho doou em 1990, data a partir da qual passou a actuar com a convicção de ser proprietário do mesmo, apontando que essa ocupação poderia decorrer da tolerância do proprietário como um contrato de arrendamento ou comodato.
27. Ora, salvo o devido respeito, o recorrente não pode concordar com tal asserção, por duas razões essenciais:
28. A primeira, porque parece ser entendimento do tribunal que cabia ao recorrente demonstrar que a ocupação do imóvel não decorria da tolerância do proprietário, designadamente em virtude de um arrendamento ou comodato.
29. Sucede que, esse ónus não cabe ao autor e ora recorrente, mas sim aos réus, conforme acima já foi referido, visto que, além de se tratarem de factos negativos, no caso impedem, extinguem ou modificam o direito invocado - art. 412°, nº 3, 2ª parte, do CPC.
30. Ora, uma vez que essa constitui matéria de facto e não de direito, a qual não foi invocada e muito menos provada por quem caberia - aos réus -, o tribunal a quo não poderia nela se sustentar para considerar a não verificação do corpus (quando, certamente por lapso, quereria referir-se ao animus).
31. Assim, e salvo melhor opinião, entende o recorrente que deveria ter sido considerada provados os factos demonstrativos dos pressupostos da posse.
32. A segunda razão deve-se a que, não obstante o acima exposto, entende o recorrente que, salvo melhor opinião, a relação de parentesco com o B ou B1 e a doação do imóvel deveria ter ficado demonstrada através dos depoimentos prestados por todas as testemunhas.
33. Conforme decorre dos depoimentos, as duas primeiras testemunhas confirmaram, desde logo e sem qualquer dúvida ou hesitação, que o B ou B1 era tio do A. e aqui recorrente, o que por si só atesta a referida situação de parentesco.
34. Aliás, a primeira testemunha esclareceu ainda o tribunal que o B ou B1 residia em Hong Kong e não era casado nem tinha filhos, tendo deixado como únicos descendentes os seus sobrinhos, A e C, respectivamente aqui A. e R.
35. Subsequentemente, as testemunhas, que conhecem o A. e a sua família e frequentam a sua casa há mais de 20 anos, afirmaram que o B ou B1 doou o imóvel sito na [Rua(1)], n° 9, R/c-B ao A. e ora recorrente.
36. Mais, a primeira testemunha esclareceu ainda o tribunal que o B ou B1 doou os seus imóveis sitos em Hong Kong ao seu sobrinho C, e os situados em Macau ao seu outro sobrinho A e ora A.
37. De resto, todas as testemunhas inquiridas foram peremptórias ao afirmarem que o A. sempre manifestou a convicção e agiu como se fosse o proprietário do imóvel, assumindo-se perante familiares, vizinhos e conhecidos como tal e tratando de todos os assuntos conexos com a propriedade do mesmo.
38. Sucede que, não obstante estes depoimentos colhidos em audiência terem demonstrado que as testemunhas os prestaram de forma espontânea e com conhecimento directo e abrangente sobre os factos, o tribunal a quo entendeu não os acolher totalmente, justificando com a sua relação - supostamente familiar - com o recorrente, bem como a faltas de documentos legais de suporte.
39. Ora, apelando ao princípio da livre apreciação da prova - art. 558°, n° 1, do CPC -, o tribunal deve apreciar livremente as provas segundo a sua prudente convicção, de acordo com um critério de probabilidade lógica.
40. Com efeito, orientado pela descoberta da verdade material, o tribunal aprecia livremente a prova de acordo com a sua convicção, a qual, sendo pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável, ou seja, dependem da credibilidade que merecem ao julgador os meios de prova, tendo em conta juízos de valor, e, num segundo plano, as deduções e induções a partir dos factos probatórios, que se baseiam na correcção do raciocínio, de acordo com as regras da lógica, do princípio da experiência e conhecimentos científicos.
41. No caso em apreço, o TJB entendeu nem sequer conferir credibilidade aos depoimentos das testemunhas, pela relação que têm com o recorrente, não tendo, portanto, retirado qualquer alcance aos próprios depoimentos.
42. Porém, desde logo a lei não exige formalidade especial para prova da relação de parentesco entre o B ou B1 e o A., pelo que nada obsta a que a mesma seja testemunhal- art. 558°, n° 2, do CPC.
43. Por outro lado, salvo o devido respeito, contrariamente ao entendimento do tribunal, a relação próxima que as primeiras duas testemunhas têm com o A. é precisamente o que lhes permite ter um acesso privilegiado ao seio familiar e confere um conhecimento directo sobre os assuntos mais pessoais e reservados.
44. Seria, aliás, estranho que não fossem os membros da família mais chegada quem tivesse conhecimento de assuntos que, atenta a sua natureza privada e familiar, apenas são discutidos no seu seio e intimidade, tais como as relações com os demais membros da família e as doações e outros arranjos entre entes.
45. Pelo que, e sempre ressalvando o devido respeito, entende o recorrente que é precisamente pela sua relação com as primeiras testemunhas que estas deveriam ter merecido toda a credibilidade e os seus depoimentos acolhidos sem qualquer reserva, pelo tribunal a quo.
46. Por outro lado, salvo melhor entendimento, os depoimentos colhidos no julgamento foram suficientemente lúcidos e esclarecedores, deles permitindo fazer uma demonstração de acordo com as regras da lógica, do princípio da experiência, dos factos que se propunham provar.
47. Assim, deveriam ter-se considerados como provados os factos vertidos nos artigos 3º, 4º, 12º, 13º e 14º.
48. Finalmente, considera o recorrente que, ressalvando sempre o devido respeito, o tribunal não aplicou convenientemente o direito, porquanto, tendo em conta o que resulta do já acima exposto, os pressupostos necessários para a verificação da posse já se encontram provados nestes autos, sendo indiferente para a decisão sobre o mérito da causa demonstrar a relação de parentesco entre o B ou B1 e o Autor, assim como a doação do primeiro para o segundo.
49. Efectivamente, conforme já foi acima exposto, ambos os elementos caracterizadores da posse - o corpus e o animus - já resultam provados nestes autos, o que decorre da prova da ocupação do imóvel.
50. A posse, por seu turno, pode ser titulada ou não titulada, de boa fé ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, caracteres que influenciam o prazo necessário à verificação da usucapião ou o inicio da respectiva contagem - art. 1219° e ss., do CC.
51. Ora, como se verifica no caso sub judice, o Tribunal deu como provado, que o A. pratica actos materiais e exerce o poder de facto sobre o prédio a partir de data não apurada, mas não posterior a 1984 ou 1985, e ninguém alegou ou sequer invocou que a posse fosse violente ou oculta - aliás, o que se demonstra pelos depoimentos prestados nos autos é precisamente o inverso, i.e., que a posse era pública e pacífica.
52. Desde 1985 já passaram mais de 35 anos, período que ultrapassa largamente o de 20 anos previsto para a posse de má fé.
53. Pelo que, salvo melhor opinião, deveriam ter sido considerados, desde logo, atentos os factos considerados provados, reunidos os pressupostos para declarar o Autor como legítimo proprietário do imóvel em apreço, por usucapião, pelo que, não o fazendo, foi a lei erradamente aplicada.

*
Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.

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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* * *
III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
- Através de escritura pública outorgada em 23 de Dezembro de 1964, B ou B1 adquiriu a fracção autónoma designada por “BR/C” do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau, com os nºs 5 a 9 da [Rua(1)], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, registo na matriz predial sob o n.º XXXXX, com o valor matricial de MOP28.080,00, encontrando-se a aquisição registada em nome de B ou B1 na Conservatória do Registo Predial sob a inscrição n.º XXXXX.
- Em data não apurada, mas não posterior a 1984 ou 1985, o Autor passou a viver no imóvel como sua residência e da sua família.
- De Setembro de 1991 a Agosto de 2001, parte do imóvel foi utilizado como instalações da empresa do filho do Autor, denominada “[Empresa(1)]”.
- O referido imóvel serviu como residência do Autor até, pelo menos, 2015, passando o Autor a estar internado numa casa de repouso, em virtude da sua idade.
- O Autor chegou a fazer a obras de desentupimento das canalizações da fracção autónoma.
- Procedeu ao pagamento dos consumos de electricidade, água e de telefone para o imóvel.

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IV – FUNDAMENTAÇÃO
Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
I – Relatório:
A (甲), viúvo, de nacionalidade chinesa, residente em Macau na [Rua(1)], nºs 5 a 9, BR/C;
vieram intentar a presente
Acção Ordinária
contra
丙, residente em Hong Kong, em parte incerta; e
Herdeiros desconhecidos de B ou B1, e;
Interessados Incertos;
com os fundamentos apresentados constantes da petição inicial de fls.2 a 6,
concluiu pedindo que fosse julgada procedente por provada a presente acção e o Autor fosse declarado, para todos os efeitos legais designadamente, registar o direito de propriedade a seu favor na referida Conservatória, como único e legítimo proprietário da fracção autónoma designada por BR/C do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau com os nºs 5 a 9 da [Rua(1)], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX por o ter adquirido por usucapião.
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Citado pessoalmente o 1º Réu, C, este não veio contestar.
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Procedeu-se à citação edital dos Réus, herdeiros desconhecidos de B ou B1 e os interessados incertos os quais não vieram contestar.
Procedeu-se à citação do Ministério Público em representação dos Réus e dos interessados incertos nos termos do artigo 51º do CPC, não tendo sido apresentada qualquer contestação.
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Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária.
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Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
***
II – Factos:
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
(…)
***
III – Fundamentos:
Cumpre analisar a matéria que vem alegada, os factos provados e aplicar o direito.
*
Legitimidade processual dos interessados incertos
Nos termos do artigo 58º do CPC, “Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurado pelo autor.”
Pede o Autor que seja declarado proprietário da fracção autónoma designada por BR/C do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau com os nºs 5 a 9 da [Rua(1)], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, objecto da presente acção, inscrito em nome de B ou B1.
Assim, a relação material controvertida só pode estabelecer-se entre o Autor e B ou B1 ou entre o Autor e os herdeiros de B ou B1, se este tiver já falecido.
É, portanto, manifesto que os Interessados Incertos não são partes legítimas porque nada consta dos autos que permita qualificá-los como sujeitos da relação material controvertida.
Assim, é de julgar os Interessados Incertos partes ilegítimas.
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As restantes partes são dotadas de legitimidade "ad causam". O processo é o próprio. Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação "de meritis".
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Usucapião
Pede o Autor que lhe seja reconhecido a aquisição originária da fracção autónoma designada por “BR/C”, objecto da presente acção, por meio de usucapião.
Para fundamentar a sua pretensão, alega o Autor e o 1º Réu eram sobrinhos de B ou B1, proprietário inscrito do imóvel, que faleceu em 10 de Janeiro de 1991; que, em 1990, B ou B1 lhe doou verbalmente a fracção autónoma entregando-lha; que a partir daí, o Autor passou a actuar como se fosse proprietário do imóvel tendo o Autor passado a utilizar o imóvel como sua residência e da sua família; que de Setembro de 1991 a Agosto de 2001, permitiu que parte do imóvel foi utilizado como instalações da empresa do seu filho; que o imóvel serviu como sua residência do Autor até 2015, altura em que passou a estar internado numa casa de repouso; que o Autor suportou as despesas das obras de conservação e reparação do mesmo pagou as despesas relativas ao consume de electricidade e água e ao serviço de telefone bem como as contribuições prediais que entretanto se venceram; que esses actos têm sido praticados à vista de toda a gentes, sem recurso a violência e coacção moral ou física.
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“Posse é o poder que se manifesta quando alguém actual por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.” – artigo 1175º do CC.
Conforme Álvaro Moreira e Carlos Fraga, in Direitos Reais, Livraria Almedina, Coimbra, pgs 181, 189 a 190, “Dos artºs 1251º e 1253º do CC (a que correspondem aos artigos 1175º e 1177º do CC de Macau), verifica-se que a posse exige o “corpus” e o “animus” identificando-se o corpus “... como os actos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa” e traduzindo o animus “... na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.”.
*
Dos factos provados, vê-se que, em data não apurada, mas não posterior a 1984 ou 1985, o Autor passou a viver no imóvel com sua residência e da sua família tendo deixado de aí viver, pelo menos, a partir de 2015 e que chegou a fazer obras de desentupimento das canalizações da fracção autónoma e pagar as despesas de electricidade, água e telefone do imóvel.
Portanto, o Autor não logrou demonstrar que era sobrinho do proprietário inscrito, que o imóvel lhe tinha sido doado em 1990, que, a partir, de então, passara a actuar como proprietário do imóvel com a convicção de o ser pagando a respectiva contribuição predial e autorizando o seu filho a instalar uma empresa no imóvel.
Perspectivando a situação a partir dos factos provados indicados no penúltimo parágrafo, nada permite concluir pela verificação do corpus possidendi acima referido. Pois, os actos praticados pelo Autor sobre o imóvel podem ser praticados por qualquer pessoa que esteja a residir no imóvel designadamente por tolerância do seu proprietário em virtude de um contrato de arrendamento ou de comodato.
O mesmo se diz em relação ao animus possidendi porque não existe nenhum facto em que o Autor se pode basear para se auto-intitular proprietário do imóvel. É que, o facto por si alegado para fundamentar essa atitude, o de lhe ter sido doado pelo proprietário, seu tio, não foi dado como demonstrado.
Assim, nem o corpus possidendi nem o animus possidendi está verificado para permitir ao Autor aceder à qualidade de possuidor.
Ora, não estando demonstrada a posse, nada permite concluir pela verificação dos demais requisitos para a aquisição do imóvel por via da usucapião, pois estes requisitos tem a ver com as características e a duração da posse.
Pelo que, sem necessidade de se debruçar sobre os demais requisitos, o pedido do Autor não pode deixar de improceder.
***
IV – Decisão (裁決):
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção por não provada e, em consequência, decide:
1. Absolver os Interessados Incertos da presente instância; e
2. Absolver os Réus, 丙 e Herdeiros desconhecidos de B ou B1, do pedido formulado pelo Autor, A.
Custas pelo Autor.
Notifique e Registe.
*
據上論結,本法庭裁定訴訟理由不成立,判決如下:
1. 駁回原告甲針對不確定利害關係人提出之起訴;
2. 駁回原告針對被告丙及B或B1之不知明繼承人提出之請求,開釋此等被告。
訴訟費用由原告承擔。
依法作出通知及登錄本判決。

*
Quid Juris?
O Recorrente veio a imputar à sentença recorrida os seguintes vícios:
- Nulidade da sentença – artigo 571º/1-a) (sic, cremos que o Autor quer referir-se à alínea c)) do CPC (fls. 159);
- Incorrecta apreciação da prova (fls. 167);
- Erro na aplicação do Direito (fls. 174).

Ora, o argumento que a Exma. Juiza do Tribunal recorrido invocou para negar a pretensão do Autor é justamente a falta de factos para fundamentar o pedido da usucapião.
Os factos que o Tribunal recorrido considerou relevantes para a decisão da causa constam do despacho de fls. 95 a 96, em que se pronunciou POSITIVAMENTE sobre os factos constantes dos artigos 1º, 5º, 6º, 7º, 9º e 10º, e sobre outra matéria alegada, o Tribunal pronunciou-se no sentido de que, ou porque a matéria alegada ficou não provada, ou porque são matérias de natureza jurídica ou conclusiva.
Ao decidir a matéria de facto, a Exma. Juiz teceu as seguintes considerações:
“(…)
Em especial, no que toca à relação que o Autor alega manter com o 1º Réu e B ou B1 e à morte deste apenas a 1ª testemunha, genro do Autor, fez referência às mesmas e a 2ª testemunha, irmão do genro do Autor, declarou que B ou B1 era tio paterno do Autor. Nenhum documento foi junto para demonstrar tal relação apesar de o Autor, B ou B1 e o 1º Réu terem o mesmo apelido.
Apesar de o tribunal, com base nas declarações das testemunhas e dos documentos juntos, ter considerado demonstrado que o Autor vivia na fracção autónoma desde, pelo menos, o ano em que a 1ª testemunha declarou ter conhecido a filha do Autor e ter assistido o regresso de B ou B1 a Macau, pouco antes de morrer em 1990 ou 1991, para tentar proceder à transmissão da fracção autónoma ao Autor, tentativa esta falhada por causa de problemas relacionados com o atraso na constituição em propriedade horizontal do prédio onde está localizada a fracção autónoma, este facto não é o suficiente para comprovar a alegada relação de parentesco. E isso tendo em conta a relação que essas duas testemunhas mantêm com o Autor que fez com que as suas declarações não fossem acolhidas sem reserva quando não estão acompanhadas de outras provas.
Também não foi dado como provada a doação do imóvel alegada pelo Autor porque apenas a 1ª testemunha deu conta da pretensão de transmissão referida no parágrafo anterior a par da transmissão ao 1º Réu de outros bens sitos em Hong Kong pertencentes a B ou B1. É que, apesar dessas declarações, nenhuma outra prova foi apresentada para demonstrar nem as doações nem a relação de parentesco que tornariam plausíveis estes actos de liberalidade. Novamente, dada a relação que a 1ª testemunha mantém com o Autor, as declarações da mesma sem apoio noutra prova não foram acolhidas sem reservas.
A ocupação do imóvel está demonstrada por alguns dos documentos juntos, pelas declarações das testemunhas bem como a inspecção judicial. Contudo, por não ter considerado demonstrada a doação, o tribunal não deu como provado o pagamento da contribuição predial apesar da junção dos documentos de fls 24 a 28 e o pagamento de despesas com obras de conservação e de reparação do imóvel. É que, sendo B ou B1 o proprietário registado e não estando demonstrada a doação, não se pode excluir que essas despesas tenham sido suportadas por este ou por alguém em sua representação.
Os demais factos relacionados com a ocupação demonstrativos da posse, novamente, por o imóvel estar registado em nome de B ou B1 e por não estar demonstrada a doação, o tribunal não conseguiu concluir que a ocupação correspondia ao alegado.” (sublinhado nosso)
O Autor, quando foi notificado desta decisão sobre os factos, não chegou a reclamá-la. Nem neste recurso veio a impugnar a decisão de matéria de facto.
Lido com atenção o teor da PI, é fácil concluir que os seguintes factos são importantes para proceder a pretensão do Autor:

4.º
A partir de então, o Autor passou a praticar sobre o imóvel todos os actos correspondentes ao exercício dos direitos de propriedade com a convicção de que era proprietário do mesmo.
8.º
Os actos de posse sobre o imóvel são praticados à vista de toda a gente e sem oposição de terceiros.
12.º
Ao exercer os actos de posse sobre o imóvel, a Autor esteve sempre convicto de ser o legítimo proprietário do mesmo.
13.º
Posse que foi adquirida sem recurso à violência e coacção, moral ou física, e sem oposição de terceiros.
14.º
Tendo a Autor, durante todos os anos em que exerce a posse sobre o imóvel, actuado convencido de que a mesma não lesava - nem lesa - direitos de terceiros.
15.º
A posse sobre os referidos imoveis é, por isso, titulada, pública, pacífica e de boa fé, correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre a fracção autónoma em causa por um período contínuo de tempo superior a quinze anos
16.º
Factos que se mantêm inalterados até hoje.

Só que a convição do Tribunal recorrido vai no sentido de que careciam de provas suficientes para considerar assentes tais factos. Ou seja:
- Desconhecem-se as circunstâncias concretas que determinaram o acesso ao imóvel por parte do Autor e com que “espírito” (intenção) é que ele agiu sobre o mesmo, sendo certo que foi alegada a docação verbal, mas este ponto não ficou provado. Eis a dúvida subsistente de animus.
- Faltam também elementos comprovativos de que o Autor se comportava como “dono” do imóvel em causa (titular do direito real), não obstante ele chegar a realizar despesas ligadas ao mesmo, mas tal tanto pode ser uma pessoa qualquer, como pode ser por arrendatário ou usufrutuário.
Pelo que, como a matéria fixada não foi questionada, não se verifica erro na apreciação de provas, nem erro na aplicação de Direito, muito menos vício da nulidade da sentença prevista no artigo 571º/1-c) do CPC, o que verdadeiramente está em causa é a falta de elementos fácticos para fundamentar a pretensão do Autor.
Nestes termos, é do nosso entendimento que, em face das considerações e impugnações do ora Recorrente, a argumentação produzida pelo MMo. Juíz do Tribunal a quo continua a ser válida, a qual não foi contrariada mediante elementos probatórios concretos, trazidos por quem tem o ónus de prova, razão pela qual é de manter a posição assumida na sentença recorrida.

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Síntese conclusiva:
I – A usucapião pressupõe a posse que, se adquire pelo facto e pela intenção, definindo-se pelos elementos essencias que são corpus na aquisição unilateral, ou a traditio na aquisição derivada, e o animus.
II – Faltando elementos fácticos necessários à comprovação do elemento animus, é razão bastante para julgar improcedente o pedido da usucapião formulado pelo Autor.
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Tudo visto e analisado, resta decidir.
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V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pelo Autor.
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Registe e Notifique.
(…)”; (cfr., fls. 202 a 211 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado com o assim decidido, do mesmo vem o A. A (甲) recorrer para este Tribunal de Última Instância, alegando para, a final, produzir as conclusões seguintes:

“a. O presente recurso tem por objecto o acórdão proferido nos presentes autos, que julgou improcedente o recurso interposto pelo recorrente, e com o qual este não se conforma, por entender ocorrer omissão de pronuncia e erro na apreciação dos factos e na aplicação do direito.
ii. O tribunal de primeira instância proferiu sentença onde julgou improcedente, por não provado o pedido do autor e recorrente.
iii. Não se conformando com a decisão, o autor recorreu para o tribunal a quo, com base em contradição entre a fundamentação e a decisão, bem como erro na apreciação dos factos e do direito, tendo o mesmo não merecido provimento.
iv. Analisando o douto acórdão recorrido, verifica-se que o tribunal a quo considerou válida a fundamentação vertida na sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, segundo a qual não ficaram provados os factos determinantes para o provimento do pedido do autor, acrescentando que, uma vez que a matéria de facto não foi impugnada, a decisão era de manter.
v. Um dos fundamentos do recurso junto do TSI foi a nulidade da sentença proferida pelo TJB, por conter oposição entre os factos considerados como provados e a decisão proferida – art. 571º, nº 1, al. c), do CPC –, tendo em conta que os factos considerados como provados não poderiam deixar de conduzir a uma decisão oposta à que foi sustentada – cfr. artigos 1 a 24 das conclusões do recurso.
vi. Efectivamente, dando como provados os factos descritos nos artigos 5, 6 e 7 da pi, o TJB reconheceu na sentença que: A ocupação do imóvel está demonstrada por alguns documentos juntos, pelas declarações das testemunhas, bem como a inspecção judicial (sublinhado nosso).
vii. Uma vez demonstrada a ocupação do imóvel, o TJB teria necessariamente de declarar reunidos os pressupostos da posse e julgado procedente o pedido de usucapião, o que, no entanto, não sucedeu, ocorrendo a contradição entre fundamentação e a decisão.
viii. Todavia, salvo melhor opinião, o tribunal a quo não apreciou nem se pronunciou sobre a alegada nulidade da sentença do TJB, não obstante ter concluído no final da fundamentação do douto acórdão, que não se verifica o vício de nulidade.
ix. Por outro lado, o recorrente impugnou a prova, invocando incorrecta apreciação da mesma, com base nos elementos de prova produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento – artigos 25 a 47 das conclusões do recurso –, devendo os factos descritos nos artigos 3º, 4º, 12º, 13º e 14º da pi, ter sido considerados como provados – artigo 47 das conclusões de recurso.
x. Porém, parece ao ora recorrente que o tribunal a quo ignorou o referido objecto de recurso, sob a justificação de que o recorrente não impugnou a matéria de facto e que esta não foi questionada, o que, como se disse, não corresponde à realidade.
xi. Assim, salvo melhor opinião, o acórdão recorrido é nulo por falta de pronuncia quer da nulidade invocada da sentença do TJB quer da impugnação da matéria de facto, nos termos do art. 571º, nº 1, al. d), do CPC, pelo que deve o objecto do recurso ser apreciado e decidido, nos termos invocados.
xii. Sem prescindir, os pressupostos necessários para a verificação da posse já se encontram provados nestes autos, sendo indiferente para a decisão sobre o mérito da causa demonstrar a relação de parentesco entre o B ou B1 e o recorrente, assim como a doação do primeiro para o segundo.
xiii. A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, que está dependente do exercício da posse – sctricto sensu e não a posse precária ou detenção –, durante um certo período de tempo – art. 1212º do CC.
xiv. A posse que interessa para efeitos da usucapião não é a posse causal, mas sim a posse formal, cujos elementos caracterizadores integram o corpus (elemento material) e o animus (intenção de exercer um determinado direito real como se fora seu titular).
xv. O corpus traduz-se num poder de facto sobre a coisa, que no caso dos imóveis será o de ocupar, manter, dispor e fruir dos mesmos.
xvi. Ficou demonstrado que o recorrente tem a ocupação do imóvel, pelo que tem o poder de facto sobre o imóvel em causa, ocupando-o, mantendo-o, dispondo e fruindo do mesmo, donde resulta de forma incontroversa que tem o corpus.
xvii. Para além do exercício material e um poder de facto sobre a coisa é necessário também existir uma vontade de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados – o animus, que se trata de um elemento de natureza psicológica e se traduz na intenção.
xviii. Se o elemento físico – o corpus – é relativamente fácil de provar, porque é visível ou perceptível, já o elemento psicológico – o animus – pode assim não ser.
xix. Da mera detenção / ocupação do bem – o corpus – infere-se o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados – o animus – quando estes são precisamente actos da vida quotidiana coincidentes aos de qualquer proprietário.
xx. Como é evidente, sendo o animus resultante da vontade e, portanto, um elemento psicológico e totalmente subjectivo, torna-se difícil ou mesmo impossível demonstrar a sua materialização a partir da utilização / ocupação de um imóvel, apesar de sobre ele serem praticados actos susceptíveis de se considerem inerentes aos de um proprietário.
xxi. A presunção da verificação da posse poderá ser ilidida, mediante a invocação de factos contrários à pretensão do autor – art. 337, nº 1, do CC. – cabendo à contraparte demonstrar que a ocupação do imóvel não é feita com a intenção de o possuir – art. 343º do CC.
xxii. Não foram nestes autos alegados e muito menos provados quaisquer factos que afastassem tal presunção, designadamente que o autor e ora recorrente estivesse a exercer o poder de facto sobre o imóvel por outros motivos, como sendo por arrendamento ou comodato ou até no interesse de outrem – art. 407º, nº 2, al. b), do CPC.
xxiii. Portanto, estando demonstrado nos autos que o recorrente ocupa e exerce o poder de facto sobre o imóvel em causa, decorre dos factos provados que, além do corpus (os actos materiais praticados sobre a coisa) o recorrente tem o animus (o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados), estando, assim, verificados, em simultâneo, os elementos caracterizadores da posse.
xxiv. A posse pode ser titulada ou não titulada, de boa fé ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, caracteres que influenciam o prazo necessário à verificação da usucapião ou o início da respectiva contagem – art. 1219º e ss., do CC.
xxv. Ora, como se verifica no caso sub judice, o Tribunal deu como provado, que o recorrente pratica actos materiais e exerce o poder de facto sobre o prédio a partir de data não apurada, mas não posterior a 1984 ou 1985,
xxvi. Ninguém alegou ou sequer invocou que a posse fosse violente ou oculta – aliás, o que se demonstra pelos depoimentos prestados nos autos é precisamente o inverso, i.e., que a posse era pública e pacífica.
xxvii. Desde 1985 já passaram mais de 35 anos, período que ultrapassa largamente o de 20 anos previsto para a posse de má fé.
xviii. Nestes termos, e salvo melhor opinião, atentos os factos considerados como provados, deveria o tribunal recorrido considerar verificada a posse e dessa forma declarar estarem reunidos os pressupostos necessários para declarar a aquisição por usucapião a favor do recorrente, e que desde já e para os efeitos legais se requer”; (cfr., fls. 219 a 240).

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Adequadamente processados os autos, passa-se a decidir.

Fundamentação

2. Como resulta do até aqui relatado, o presente recurso trazido a este Tribunal de Última Instância tem como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância datado de 23.04.2020 que – como se deixou integralmente transcrito – confirmou a sentença do Tribunal Judicial de Base que julgou improcedente a acção pelo ora recorrente aí proposta; (cfr., fls. 107 a 110).

Percorrendo as alegações e conclusões pelo dito recorrente apresentadas – que, como sabido é, delimitam o thema decidendum do recurso – colhe-se que três são as questões sobre as quais se pede a apreciação e decisão deste Tribunal de Última Instância.

Com efeito, ao atrás transcrito Acórdão recorrido vem assacadas “duas nulidades por omissão de pronúncia”, assim como o vício de “errada aplicação do direito”.

Adequado se mostrando de se começar pelas aludidas “nulidades”, vale a pena recordar que sobre as mesmas afirma, (essencialmente), o ora recorrente que:

“v. Um dos fundamentos do recurso junto do TSI foi a nulidade da sentença proferida pelo TJB, por conter oposição entre os factos considerados como provados e a decisão proferida – art. 571º, nº 1, al. c), do CPC –, tendo em conta que os factos considerados como provados não poderiam deixar de conduzir a uma decisão oposta à que foi sustentada – cfr. artigos 1 a 24 das conclusões do recurso.
(…)
viii. Todavia, salvo melhor opinião, o tribunal a quo não apreciou nem se pronunciou sobre a alegada nulidade da sentença do TBJ, não obstante ter concluído no final da fundamentação do douto acórdão, que não se verifica o vício de nulidade.
ix. Por outro lado, o recorrente impugnou a prova, invocando incorrecta apreciação da mesma, com base nos elementos de prova produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento – artigos 25 a 47 das conclusões do recurso –, devendo os factos descritos nos artigos 3º, 4º, 12º, 13º e 14º da pi, ter sido considerados como provados – artigo 47 das conclusões de recurso.
x. Porém, parece ao ora recorrente que o tribunal a quo ignorou o referido objecto de recurso, sob a justificação de que o recorrente não impugnou a matéria de facto e que esta não foi questionada, o que, como se disse, não corresponde à realidade”.

Ponderando no assim alegado, vejamos.

Como é sabido, o vício de “omissão de pronúncia” apenas ocorre quando “a sentença não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer, por força do artº 660º, nº 2 [em Macau, o art. 563°, n.° 2 do C.P.C.M.]”, (cfr., v.g., Antunes Varela in, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 690), cumprindo notar, no entanto, que “A obrigatoriedade de o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não significa que o juiz tenha, necessariamente, de apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para fundamentarem a resolução de uma questão”; (cfr., v.g., Viriato de Lima in, “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., pág. 536).

Este tem também sido o entendimento deste Tribunal de Última Instância que considera igualmente que: “só a omissão de pronúncia sobre questões, e não sobre os fundamentos, considerações ou razões deduzidas pelas partes, que o juiz tem a obrigação de conhecer determina a nulidade da sentença”; (cfr., v.g., o Ac. de 20.02.2019, Proc. n.° 102/2018, podendo-se sobre a questão ver também os Acs. de 31.07.2020, Proc. n.° 51/2020, de 09.09.2020, Procs. n°s 62/2020, 63/2020 e 147/2020, de 16.09.2020, Proc. n.° 65/2020, de 12.05.2021, Proc. n.° 39/2021, de 15.10.2021, Proc. n.° 111/2021, de 28.01.2022, Proc. n.° 137/2021, de 27.05.2022, Proc. n.° 41/2022, de 04.11.2022, Proc. n.° 79/2022 e de 09.11.2022, Proc. n.° 98/2022).

Isto dito, cremos que lógico e natural se nos apresenta de se começar por apreciar da “nulidade” que se imputa ao Acórdão do Tribunal de Segunda Instância por omissão de pronúncia sobre a impugnação pelo recorrente efectuada à “apreciação da prova” e consequente “decisão da matéria de facto”; (cfr., concl. ix a xi).

Porém, considerando o que pelo recorrente vem afirmado, colocando esta referida “omissão de pronúncia” como “questão subsidiária”, e elegendo a outra assacada omissão sobre uma alegada “oposição entre os factos provados e a decisão proferida”, (que entende que devia ser oposta, ou seja, no sentido da procedência da acção proposta), tem-se desde já por adequado consignar-se que, nesta parte, censura não merece o Acórdão recorrido, pois que (como sem esforço se apresenta de concluir), com o mesmo emitiu o Tribunal de Segunda Instância – expressa – pronúncia sobre tal “questão”, considerando a referida matéria de facto dada como provada como insuficiente, não permitindo determinar as “circunstâncias concretas que determinaram o acesso ao imóvel”, consignando, igualmente, (e também expressamente), que não se verificava “o vício da nulidade da sentença previsto no art. 571°, n.° 1, al. c) do C.P.C.M.”.

E, nesta conformidade, evidente se nos mostra que inexiste a imputada “omissão de pronúncia”, imperativa sendo a decisão de improcedência do recurso nesta parte.

Quanto à segunda nulidade pelo recorrente imputada ao Acórdão recorrido, (e sem prejuízo do respeito por melhor entendimento), mostra-se de dizer que, aqui, tem o mesmo razão.

Na verdade, não obstante no Acórdão recorrido se ter transcrito as conclusões pelo ora recorrente então apresentadas no (anterior) recurso, (de onde se pode ver que o mesmo impugnou, efectivamente, a “decisão da matéria de facto”; cfr., concl. xxv e segs.), e ainda que em sede de identificação das questões colocadas se tenha feito expressa referência à (questão da) “incorrecta apreciação da prova”, afirmou-se, porém, (e certamente por lapso), que “neste recurso não veio impugnar a decisão da matéria de facto” e que a “matéria fixada não foi questionada”.

Dest’arte, e certo sendo que na sequência do assim afirmado não se procedeu à apreciação e pronúncia relativamente ao imputado “erro na apreciação da prova em sede de decisão da matéria de facto”, outra solução não se vislumbra que não seja a constatação da imputada “nulidade”, havendo assim que se decretar a devolução dos autos ao Tribunal de Segunda Instância para, nada obstando, proceder-se à sua reforma, com a prolação de decisão em conformidade, (prejudicada ficando a apreciação da restante questão pelo recorrente colocada).

Decisão

3. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, ordenando-se a devolução dos autos ao Tribunal de Segunda Instância para os exactos termos e efeitos consignados.

Custas pelos recorridos com a taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 30 de Junho de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 ln Direitos Reais - Almedina, Coimbra - pago 181
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Proc. 138/2020 Pág. 28

Proc. 138/2020 Pág. 27