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Processo nº 194/2020
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), A., propôs no Tribunal Judicial de Base acção declarativa de condenação em processo comum ordinário contra B (乙), R., ambos com os restantes sinais dos autos, alegando o que consta da sua petição inicial e pedindo, a final, que se:

“1. Condene o Réu nos termos da lei a restituir ao Autor as fichas de jogo próprias do "[Club(1)]" no valor de HKD1.900.000,00 (equivalente a MOP$1.957.000,00) por nulidade do contrato de autorização de concessão de crédito para jogo e por nulidade do acto de crédito;
2. Caso assim não se entenda, condene o Réu a restituir ao Autor as fichas de jogo próprias do "[Club(1)]" no valor deHKD1.900.000,00 (equivalente a MOP$1.957.000,00) por enriquecimento sem causa do Réu;
3. Em qualquer dos casos acima referidos, se a restituição em espécie não for possível, condene o Réu a restituir o valor correspondente em numerário, isto é, MOP$1.957.000,00.
4. Condene o Réu a pagar ao Autor o juro de mora à taxa legal contado a partir da data da citação até ao integral e efectivo pagamento; e
5. Condene o Réu a pagar ao Autor todas as custas processuais do presente processo, incluindo a procuradoria do advogado do Autor”; (cfr., fls. 49 a 58 e 23 a 39 do Apenso que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, por sentença de 23.05.2019 da Mma Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base julgou-se “parcialmente procedentes os fundamentos e:
1. Condena o Réu B a restituir ao Autor A as fichas mortas próprias do [Club(1)] no valor equivalente a HKD1.900.000,00;
2. Rejeita o pedido de pagamento do juro invocado pelo autor e absolve o Réu.
(…)”; (cfr., fls. 68 a 72-v e 44 a 59 do Apenso).

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Em sede do recurso que do assim decidido interpôs o R., (cfr., fls. 86 a 94), proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 09.07.2020, (Proc. n.° 1239/2019), com o qual concedeu provimento ao aludido recurso, revogando a sentença do Tribunal Judicial de Base e, julgando improcedente a acção pelo A. proposta, absolveu o R., (recorrente), dos pedidos deduzidos; (cfr., fls. 186 a 196).

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Inconformado, traz agora o A. o presente recurso, onde, nas suas alegações, formula as seguintes conclusões:

“1. Na presente acção declarativa, o recorrente exige a restituição das fichas, invocando a nulidade do negócio de crédito ou o enriquecimento sem causa do recorrido. O recorrido, enquanto réu, nunca levantou tempestivamente a excepção de que o crédito do autor/recorrente era obrigação natural, nem na contestação nem na motivação do recurso.
2. No entanto, ao decidir sobre o presente processo, o douto TSI começou por julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente; porém, a seguir indicou oficiosamente que a relação de crédito em questão era mera fonte de obrigações naturais, para enfim julgar procedente o recurso e absolver o réu/recorrido de todos os pedidos.
3. Então nos termos da primeira parte do art.º 563.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, “o juiz ocupa-se apenas das questões suscitadas pelas partes”, segundo o recorrente, o tribunal recorrido pronunciou-se excessivamente ao considerar como obrigação natural a quantia em questão e ao indeferir o pedido do recorrente, pois que a questão de “obrigações naturais” não se encontrava dentro do âmbito delimitado pela segunda parte do art.º 563.º, n.º 3 do CPC.
4. Pode-se citar como exemplo “obrigações extinguíveis por prescrição que são também naturais”. Nos termos do art.º 296.º, n.º 1 do CC, a prescrição necessita de ser invocada por aquele a quem aproveita para que a obrigação se torne natural.
5. Supondo que a sentença recorrida a qualificou bem juridicamente (meramente uma hipótese para argumentação, pois o recorrente impugnará mais adiante tal qualificação jurídica), a dívida para jogos e a obrigação prescrita, que são ambas naturais, que são ambas deveres éticos ou sociais de relevância jurídica cujo cumprimento espontâneo conduzirá à equidade e justiça social, por nenhuma razão particular se podem distinguem em direito – a primeira conhecível oficiosamente, enquanto a segunda apreciável só a pedido do interessado.
6. Por outro lado, interpretando os termos literalmente, nem o CC nem o CPC prescreve explicitamente que se deva conhecer oficiosamente da obrigação natural.
7. Com base em quanto exposto, segundo o recorrente, a sentença recorrida pronunciou-se excessivamente na decisão sobre a obrigação natural e pela ofensa dos art.º 563.º, n.º 3, art.º 564.º, n.º 1 e art.º 571.º, n.º 1, alínea d) do CPC, enferma do vício de nulidade.
8. Discordando-se do acima referido, o recorrente entende ainda que ao presente negócio de empréstimo não é aplicável o art.º 1171.º do CC.
9. Salvo melhor entendimento, o recorrente pensa que o artigo acima citado regula somente o jogo e aposta, mas não o contrato de mútuo no presente caso, ou seja, pensa que se trate de um empréstimo praticado para jogo.
10. Aqui não se trata da exigência do pagamento de “quantia de jogo” porque há entre o recorrente e o recorrido um “acto de jogo”. Existe, antes sim, um “acordo de empréstimo” entre o recorrente e o recorrido, acordo esse que foi depois julgado pelo tribunal como nulo. Então sustenta-se que no caso do recorrido, devia ter surgido o correspondente dever de restituição segundo o regime de nulidade.
11. Além disso, segundo a segunda parte do art.º 1171.º, n.º 1 do CC, é o jogo e aposta “quando lícitos” que são fonte de obrigações naturais. Então, quer em primeira instância quer o tribunal recorrido entenderam que o empréstimo em discussão violaram o previsto pela Lei n.º 5/2004. Segue daqui que naturalmente não está satisfeito o pressuposto de aplicação daquela parte de “quando lícitos”.
12. Logo, salvo devido respeito, segundo o recorrente, a sentença recorrida enferma do vício de ilegalidade pela interpretação e aplicação errada do art.º 1171.º, n.º 1 do CC.
13. Num outro caso independente do presente, ou seja no processo de embargos n.º CV2-15-0133-CEO-A, já se decidiu que o empréstimo em causa era nulo. Ninguém recorreu da decisão, que já transitou em julgado.
14. Segundo como o recorrente interpreta o art.º 574.º, n.º 1 do CPC conjugado com o art.º 416.º e seguintes do CPC, mesmo em processos diferentes, se os sujeitos, as causas de pedir e os pedidos dum caso transitado em julgado são os mesmos que os em processos futuros, então o caso julgado tem força obrigatória sobre esses processos futuros.
15. De acordo com o recorrente, se bem que a presente acção declarativa e o processo de execução e de embargos acima mencionado sejam dois processos diferentes, os “sujeitos”, as “causas de pedir” e os “pedidos” são praticamente idênticos. Em ambos os casos é o recorrente que se dirige ao recorrido e exige o pagamento da dívida com base nas duas relações de empréstimo em causa.
16. Tal como indicou o Mm.º ex-Juiz do TUI Dr. Viriato Manuel Pinheiro de Lima numa das suas obras sobre o “caso julgado”: “o caso julgado material tem força obrigatória dentro e fora do processo, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada.”
17. No que diz respeito ao recorrente, aquando da recepção da decisão proferida no processo de embargos acima referida, tomou conhecimento de que o tribunal tinha julgado nulo o invocado acto de empréstimo. Então juridicamente surgiria necessariamente o dever de restituição previsto pelo art.º 282.º do CC. Pela confiança na sentença, não recorreu e conformemente instaurou a presente acção declarativa, pretendendo que o recorrido cumpra o dever de restituição nascido da nulidade do negócio jurídico.
18. Só que agora o douto TSI julga de repente que não é aplicável o regime de restituição por nulidade, e que se aplica antes sim o regime de obrigação natural. Logo não se pode exigir o cumprimento coercivo através do tribunal. Trata-se de uma injustiça relativa, que ofende o intuito legislativo original do art.º 574.º do CC pelo contraste com a essência do caso julgado.
19. Caso o douto TUI tenha uma outra opinião diferente da nossa exposta na parte II da presente petição de recurso, entendendo que o art.º 1171.º do CC regula também os negócios de empréstimo para jogo, então o recorrente considerará que a obrigação em causa não é como qualificada pela sentença recorrida, ou seja, “obrigação natural”.
20. Sabe-se que em termos de validade de negócio jurídico, o “negócio jurídico válido” distingue-se do “negócio jurídico inválido”. O crédito e a dívida instituídos através dum “negócio jurídico válido”, no que se refere à eficácia, conforme a sua exigibilidade por via judicial por parte do credor, subdividem-se entre “obrigação civil” e “obrigação natural”.
21. Ora no caso de “negócio jurídico inválido”, dada a inconformidade com os requisitos legais de forma ou de substância do negócio de fonte, no negócio original não se institui qualquer relação de obrigação. No entanto, nos termos do art.º 282.º, n.º 1 do CC, uma vez declarado nulo ou anulado o negócio, o interessado deve restituir tudo o que tiver sido prestado ou o valor correspondente.
22. Resulta da teoria acima referida sobre a validade e a eficácia do negócio jurídico em conjugação com o art.º 1171.º, n.º 1 do CC e com o art.º 4.º da Lei n.º 5/2004, sensu contrario, no caso de crédito para jogo instituído não na conformidade com a Lei n.º 5/2004, a eficácia, para além de “ser válido o negócio” e de ser “obrigação natural”, tal como entende o douto tribunal recorrido, pode dar-se também que “sendo o negócio inválido, se restitua a prestação recebida nos termos legais”.
23. Na realidade, a expressão do artigo 1245.º do CC de Portugal de 1966 (o precursor do art.º 1171.º, n.º 1 do actual CC da RAEM) mostra mais claramente que nos negócios jurídicos de jogo e a aposta podia surgir nulidade; que o regime de restituição por nulidade do negócio jurídico até prevalecia sobre o regime de obrigação natural.
24. Mesmo do ponto de vista de intuito legislativo, o legislador da Lei n.º 5/2004 tinha como intenção apenas procurar não dificultar a cobrança de dívidas resultantes da concessão de crédito, nomeadamente quando tais cobranças ocorram fora da RAEM. Então se inseriu o normativo constante do artigo 4.º da Lei n.º 5/2004, o qual estabelece expressamente não apenas a descriminalização da actividade de concessão de crédito para jogo e para aposta, mas também que a concessão de crédito para jogo ou para aposta constitui fonte de obrigações civis, favorável assim à cobrança judicial do crédito concedido com base na lei.
25. Portanto, nem a Lei n.º 5/2004 (em particular o seu art.º 4.º) nem o art.º 1171.º, n.º 1 do CC prescreve expressamente a inaplicabilidade do regime de nulidade do negócio jurídico e a do correspondente regime de restituição. Mesmo se excluímos a obrigação civil pela inconformidade com a Lei n.º 5/2004 da prestação do crédito para jogo, há ainda duas possibilidades: “o empréstimo é inválido” ou “é valido o empréstimo que é mera fonte de obrigações naturais”. Precisamos de analisar qual eficácia tem o presente caso.
26. O art.º 1171, n.º 1 do CC distingue três tipos de obrigações de jogo. O primeiro é o de “obrigações de jogo que constituem fonte de obrigações civis”. Trata-se de casos de obrigações permitidos pela lei especial. O segundo é o de “obrigações de jogo ilícitas”, ou seja, jogos ilícitos e as obrigações aí originadas. É inválido o jogo. O terceiro e último é o de “obrigações de jogo que constituem fonte de obrigações naturais”. Trata-se de casos intermédios entre obrigações de jogo lícitas e obrigações de jogo ilícitas. Refere-se ao jogo não regulado pela lei especial, nem, contudo, proibido por normas injuntivas ou proibitivas.
27. Então, salvo devido respeito, o recorrente opina que o negócio de crédito para jogo acima referido não foi instituído com “provisão pela lei especial” ou com “permissão pela lei”. Por isso, exclui-se o caso de “obrigações civis” ou “obrigações naturais” previsto pelo art.º 1171.º, n.º 1 do CC. O negócio deve ser inválido. É de ser tratado conforme o regime de restituição por invalidade.
28. Portanto, segundo o recorrente, a sentença recorrida enferma do vício de aplicação errónea do art.º 4.º da Lei n.º 5/2004, do art.º 1171.º, n.º 1 do CC e do art.º 282.º do CC.
29. Nem o recorrente, nem o recorrido, nem mesmo o tribunal de primeira instância aludiu à questão de “se se deve qualificar como natural a obrigação originada no negócio de empréstimo instituído entre o recorrente e o recorrido”.
30. Mais tarde, ao conhecer do recurso, o douto TSI qualificou directamente como natural a obrigação originada no negócio de empréstimo instituído entre o recorrente e o recorrido e mudou a decisão no sentido de julgar improcedente o pedido de restituição do recorrente.
31. Por isso, ao mudar a decisão, o douto TSI conheceu indirectamente da questão não apreciada pelo TJB de “ser natural a obrigação originada no negócio de empréstimo instituído entre o recorrente e o recorrido”.
32. Obviamente se trata do caso previsto pelo art.º 630.º, n.º 2 do CPC. No entanto, antes de decidir, o TSI não cumpriu quanto prescrito pelo art.º 630.º, n.º 3 do CPC, não convidando as partes a pronunciarem-se.
33. Aliás, tal como nos ensina a doutrina, “A lei não esclarece quando é que se deve entender que a irregularidade cometida influiu no exame (instrução e discussão) ou na decisão (julgamento da causa). ANSELMO DE CASTRO considera que a fórmula legal ‘abrange todas as irregularidades ou desvios ao formalismo processual que atinjam o próprio contraditório (v.g., a falta, na citação, quer da indicação do dia até ao qual pode ser oferecida a contestação, quer da cominação em que o réu incorre se a não apresentar). Mas para além disso, só caso por a prudência e a ponderação dos juízes poderão resolver.’”
34. A finalidade de convidar as partes a pronunciar-se consiste em dar plena concretização ao princípio do contraditório durante todo o processo. O incumprimento do disposto no art.º 630.º, n.º 3 do CPC equivale à violação do previsto pelo art.º 3.º, n.º 3 do mesmo Código.
35. Tal acto desobediente à norma jurídica influi necessariamente nas decisões judiciais futuras, pois o relator da sentença não ouviu suficientemente qualquer alegação feita pelas partes sobre o objecto do processo.
36. Portanto, segundo o recorrente, o tribunal recorrido não respeitou o art.º 630.º, n.º 3 do CPC e proferiu o acórdão. Evidentemente o acto é nulo nos termos do art.º 147.º, n.º 1 do mesmo Código que prevê sobre a nulidade dos actos processuais.
37. Caso o Mm.º Juiz discorde dos fundamentos acima referidos, o recorrente gostaria então de invocar a omissão do conhecimento verificada na sentença recorrida do pedido subsidiário sobre “enriquecimento sem causa” apresentado na petição.
38. Em primeira instância julgou-se nulo o negócio de empréstimo celebrado entre o recorrente e o recorrido. Decidiu-se que o recorrido devesse restituir as fichas ou a quantia equivalente. Então, não se conheceu do segundo fundamento do pedido de restituição sobre “enriquecimento sem causa”.
39. Mais tarde, o tribunal recorrido avaliou somente a qualificação jurídica da dívida em causa ao pronunciar-se. Logo julgou improcedentes todos os pedidos de restituição do recorrido. Não conheceu da questão de se o recorrido ter-se enriquecido sem causa, nem se pronunciou sobre a questão.
40. Portanto, segundo o recorrente, pela violação do disposto na primeira parte do art.º 563.º, n.º 2 do CPC, a sentença recorrida enferma do vício de nulidade previsto pelo art.º 571.º, n.º 1, alínea d) do mesmo Código.”; (cfr., fls. 203 a 222 e 4 a 34 do Apenso).

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Admitido o recurso com o efeito e modo de subida correctamente fixados, vieram os autos a este Tribunal de Última Instância.

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Após adequada tramitação processual, e nada obstando, cumpre decidir.

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A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como provados os seguintes factos (que foram igualmente confirmados pelo Tribunal de Segunda Instância, constituindo, assim, por motivos não haver para a sua alteração, matéria de facto definitivamente adquirida):

“- Em 27 de Março de 2002, por despacho do Chefe do Executivo n.º 76/2002 e nos termos dos dispostos na Lei n.º 16/2001 e no Regulamento Administrativo n.º 26/2001, o Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Macau adjudicou à “[Empresa(1)]” uma das três concessões para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino postas a concurso.
- Em 19 de Abril de 2005, a [Empresa(1)] e a [Empresa(2)] celebraram um contrato de subconcessão, o que faz com que esta última possa exercer a actividade de exploração de jogos de fortuna ou azar em casino em Macau na qualidade de subconcessionária.
- O Autor é um empresário comercial, pessoa singular, legalmente constituído em 27 de Janeiro de 2011, com a firma “A Empresário Individual”, registado sob o n.º XXXXX(CO), cujo objecto social é a promoção de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino em Macau.
- O Autor era titular da licença de promotor de jogos, pessoa singular, n.º XXXX, emitida pela Direcção de Inspecção de Coordenação de Jogos em 10 de Janeiro de 2011, com o prazo de validade até 31 de Dezembro de 2011, e por causa disso o Autor foi autorizado a exercer a actividade de promoção de jogos na subconcessionária.
- Em 12 de Novembro de 2010, a subconcessionária celebrou um contrato de promotor de jogo (Gaming Promoter Agreement) com o Autor, com vista a permitir ao Autor explorar a sala de VIP e exercer a actividade de promoção de jogo no seu casino.
- No mesmo dia, através de um contrato, a subconcessionária delegou poderes no Autor para que este pudesse exercer a actividade de concessão de crédito para jogo no seu casino, sendo o referido contrato renovável automaticamente.
- A administradora da [Empresa(2)], C, assinou os aludidos dois contratos na qualidade de representante legal da empresa, cujas assinaturas foram reconhecidas por semelhança com menção especial pelo notário.
- O nome do estabelecimento empresarial onde o Autor explorava as aludidas actividades de promoção de jogo e concessão de crédito para jogo é “[Empresa(2)] [Club(1)]”, em inglês “[Club(1)]”.
- Durante a exploração do “[Empresa(2)] [Club(1)]”, o Autor concedeu várias vezes créditos aos apostadores de jogo, a título de concessão de crédito para jogo.
- O Réu é um jogador. Em 30 de Agosto de 2011, o Réu pediu ao “[Empresa(2)] [Club(1)]” para lhe emprestar, do “[Empresa(2)] [Club(1)]”, as fichas mortas de jogo no valor equivalente a HKD5.000.000,00 para jogos de fortuna ou azar.
- Às 22h09 do mesmo dia, o Autor entregou ao Réu as fichas mortas próprias do “[Empresa(2)] [Club(1)]” no valor equivalente a HKD5.000.000,00 e o Réu recebeu tais fichas mortas.
- Para comprovar a aludida relação de crédito, o Réu assinou ao Autor uma “declaração de dívida”, com o n.º 25136, da qual constavam o nome do Réu, a quantia da dívida a liquidar e as assinaturas da testemunha e do responsável do “[Empresa(2)] [Club(1)]”, e o Réu assinou no campo de “creditado”.
- O Réu concordou que iria devolver, em numerário, o valor correspondente às aludidas fichas mortas ao Autor, isto é, HKD5.000.000,00, dentro dos 14 dias após o empréstimo, ou seja, antes do dia 13 de Setembro de 2011.
- Em 16 de Setembro de 2011, o Réu pediu ao “[Empresa(2)] [Club(1)]” para lhe emprestar as fichas mortas de jogo no valor equivalente a HKD1.000.000,00 para jogos de fortuna ou azar.
- Às 19h35 do mesmo dia, o Autor entregou ao Réu as fichas mortas próprias do “[Empresa(2)] [Club(1)]”, no valor equivalente a HKD1.000.000,00, e o Réu recebeu tais fichas mortas.
- Para comprovar a aludida relação de crédito, o Réu assinou ao Autor uma “declaração de dívida”, com o n.º 25380, da qual constavam o nome do Réu, a quantia da dívida a liquidar e as assinaturas da testemunha e do responsável do “[Empresa(2)] [Club(1)]”, e o Réu assinou no campo de “creditado”.
- O Réu concordou que iria devolver, em numerário, o valor correspondente às aludidas fichas mortas ao autor, isto é, HKD1.000.000,00, dentro dos 14 dias após o empréstimo, ou seja, antes do dia 30 de Setembro de 2011.
- Até 18 de Janeiro de 2013, o Réu devolveu, pessoalmente ou mediante outrem, ao “[Empresa(2)] [Club(1)]” a quantia total de HKD4.100.000,00.
- Desde então, o Réu não devolveu mais.
- Para exigir ao Réu a liquidação da aludida dívida, o Autor tentou, por várias vezes, contactar com o Réu mediante diferentes vias, porém, tudo foi em vão.
- Em 8 de Setembro de 2015, o Autor intentou no Tribunal Judicial de Base uma acção executiva com processo ordinário n.º CV2-15-0133-CEO para reclamar a aludida dívida.
- Citado para intervir na referida causa, o Réu deduziu embargos ao aludido processo de execução, cujo número é CV2-15-0133-CEO-A. O acórdão do referido processo foi proferido em 2 de Maio de 2018, no qual foi julgado que o contrato de autorização de concessão de crédito para jogo assinado pela representante legal da subconcessionária enfermou de vício na forma por não preencher o artigo 8.º n.º 1 da Lei n.º 5/2004, e em consequência, nos termos do artigo 212.º do Código Civil, tal contrato não pode produzir os efeitos para autorizar o Autor a conceder crédito para jogo no estabelecimento da subconcessionária, e ao abrigo do artigo 287.º do Código Civil, o crédito concedido pelo Autor ao Réu não produziu os seus efeitos por nulidade, não podendo o Autor exigir com fundamento no referido acto que o Réu cumpra a obrigação de restituição do capital nem podendo instaurar a acção executiva com base nos documentos assinados pelo Réu como fundamento da execução, razões pelas quais foi declarada extinta a acção executiva”; (cfr., fls. 68-v a 70 e 190 a 191-v).

Do direito

3. Com o presente recurso insurge-se o A. contra a decisão ínsita no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que revogou a sentença proferida pela Mma Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base que julgou a acção que propôs parcialmente procedente e condenou o R. a lhe restituir “fichas mortas” no valor equivalente a HKD$1.900.000,00; (cfr., fls. 68 a 72-v da sentença).

Sendo que com o Acórdão ora recorrido se revogou a dita sentença, julgando improcedente a acção pelo A. proposta com a total absolvição do R. dos pedidos deduzidos, comecemos por ver das razões do assim decidido, passando-se a transcrever a fundamentação exposta para tal decisão.

Pois bem, no seu Acórdão proferido e ora recorrido assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:

“Veio o Réu e agora Recorrente invocar que a decisão sob recurso enferma de erro de julgamento no que concerne à subsunção jurídica da factualidade apurada, alegando que, pese embora a nulidade do contrato de mútuo, estando o devedor (aqui Réu/Recorrente) de boa-fé e na ignorância da nulidade do contrato quando recebeu as fichas, as quais só podem ser usadas para jogo cujo resultado depende da sorte, não foi por culpa do Réu/Recorrente que as perdeu (as fichas) pelo que, nos termos do artº 282º nº 1 e 3º conjugado com o artº 1194º nº 1 do C.Civ., não tendo sido por culpa sua que perdeu a coisa (as fichas) não lhe é exigido a restituição da mesma (das fichas).
Quanto ao argumento invocado pelo Recorrente este nunca poderia proceder, uma vez que, o artº 1194º nº 1 do C.Civ. se refere a culpa, sendo que, por culpa se entende a negligência e o dolo.
Ora, tal como o próprio Recorrente invoca nos jogos de fortuna e azar, ganhar ou perder depende essencialmente da sorte, pelo que, a ser assim, quem joga – especialmente quem joga valores como Réu/recorrente – tem consciência que o resultado da aposta pode ser ganhar ou perder tudo, logo no que respeita à perda da coisa (fichas de jogo), há sempre negligência consciente uma vez que admitindo-se tal resultado (perder) como provável e ainda assim aceitar jogar, se a solução jurídica da questão sub judice passasse pelas normas indicadas sempre ao Réu seria imputável a título de culpa a perda das fichas, por ter actuado com negligência consciente quanto à eventual perda da coisa que lhe havia sido entregue (as fichas) quando fez as apostas na sequência das quais, como diz, as perdeu.
Porém, pese embora não seja por essa construção jurídica que passa a solução do caso em apreço, não deixa de se concordar com o Recorrente quanto ao erro de julgamento por errada interpretação do direito.

Não estando o tribunal vinculado à argumentação jurídica invocada pelas partes, vejamos então.

Da factualidade apurada resulta que na acção “sub judicie” entre o Autor e Réu foi celebrado um empréstimo para jogo, cuja disciplina se encontra regulada na Lei nº 5/2004 e cujo artº 4º estabelece que:
Artigo 4.º
Eficácia
Da concessão de crédito exercida ao abrigo da presente lei emergem obrigações civis.
Também em sentido idêntico estabelece o Código Civil no seu artº 1171º:
Artigo 1171.º
(Eficácia)
1. O jogo e a aposta constituem fonte de obrigações civis sempre que lei especial o preceitue, bem como nas competições desportivas, em relação às pessoas que nelas tomem parte; de contrário, o jogo e aposta, quando lícitos, são mera fonte de obrigações naturais.
2. Se houver fraude na sua execução, o contrato não produz qualquer efeito em benefício de quem a praticou.
3. Fica ressalvada a legislação especial sobre a matéria de que trata este capítulo.
A respeito de obrigações naturais estabelece o mesmo diploma legal no seu artº 396º:
Artigo 396.º
(Noção)
A obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça.
Ou seja, no nosso sistema jurídico as obrigações decorrentes de jogos de fortuna e azar, sejam elas o pagamento da aposta que perdeu ou o empréstimo contraído em fichas de jogo que permitem jogar (vulgo fichas mortas) não são fonte de obrigações civis (salvo se houver lei especial que o diga) dando origem apenas a obrigações naturais (e estas apenas se for lícito).
A diferença entre a obrigação civil e a obrigação natural reside precisamente na “exequibilidade”.
Enquanto a obrigação civil pode ser judicialmente exequível, isto é, o credor pode em sede de execução obter o cumprimento coercivo da obrigação do devedor, nas obrigações naturais o cumprimento nunca pode ser exigido judicialmente (artº 398º do C.Civ. “a contrário”).
Como resulta dos artº 397º do C.Civ. o devedor que queira cumprir a obrigação deve fazê-lo – poderemos até dizer que terá o dever “moral” de cumprir, de pagar – e se o fizer em regra não pode pedir a devolução do que prestou.
No entanto, nas obrigações naturais para além do cumprimento voluntário nunca há cumprimento coercivo da obrigação.
Ora, no caso em apreço houve um empréstimo feito em fichas de jogo, que também se pode dizer uma dívida decorrente da compra de fichas para jogo.
Por razões alheias aos contraentes veio a apurar-se que o mutuante não estava legalmente autorizado a fazer empréstimos para jogo, o mesmo é dizer, nem a ceder fichas sem que fossem imediatamente pagas.
Na sentença do processo de embargos que correu no TJB sob o nº CV2-15-0133-CEO-A conclui-se pela inexigibilidade da dívida com base no título executivo face ao disposto no artº 4º da Lei nº 5/2004 sem prejuízo da nulidade do mútuo com base no artº 287º do C.Civ..
A sentença sob recurso vem posteriormente a acompanhar a solução da nulidade do mútuo.
Estabelece o artº 287º do C.Civ. que «os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de caracter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei».
Sobre esta matéria e o fundamento teleológico desta invalidade remete-se para as anotações ao artigo em questão no Código Civil Anotado de João Gil de Oliveira e José Cândido de Pinho, Livro I, Tomo IV, pág. 395 e seguintes.
A questão que se coloca é a de saber se o empréstimo para jogo feito por quem não está habilitado para tal enferma de nulidade seja por violação do disposto no artº 273º ou do artº 287º ambos do C.Civ..
Ora, a realização de mútuos não é legalmente impossível ou contrária à lei, nem viola disposição legal de carácter imperativo.
O que sucede é que em determinadas circunstâncias o legislador entendeu condicionar a realização de mútuos à pré-existência de determinados requisitos.
Tal é o que acontece com o mútuo para jogo em determinadas circunstâncias.
O empréstimo para jogo ou aposta em casino, feito através da transmissão da titularidade de fichas de jogo de fortuna ou azar está regulado, como já referimos na Lei nº 5/2004.
Da conjugação do artº 4º da Lei nº 5/2004 com o artº 1171º do C.Civ., pode-se retirar que este empréstimo tendo sido para jogo e não obedecendo ao disposto no indicado diploma (por não ter sido feito por quem estava autorizado para tal) não gera obrigações civis, isto é, não pode ser coactivamente exigido.
Tal foi o que se decidiu no processo de embargos à execução que o aqui Recorrente (e Réu) deduziu contra a execução em que era exequente o aqui Recorrido (Autor).
Não sendo objecto desta decisão, mas bem se andou nos embargos à acção executiva quando se decidiu pela extinção daquela por não ser a obrigação exigível, mas já não tanto quanto à referência à nulidade que irremediavelmente arrastou a este processo1.
E a conclusão a que ali se chegou não poderia estar mais correcta na asserção de que o empréstimo feito em fichas de jogo por quem não está habilitado para tal não é exigível (porque não gera obrigações civis).
Porém, já não se concorda que seria um caso de nulidade.
Na esteira deste entendimento – de que o empréstimo seria nulo -, vem também a decisão sob recurso a concluir pela nulidade, havendo que repetir tudo o que foi prestado.
Porém, como referimos não é esta a solução jurídica.
Em momento algum o legislador quis cominar estes contratos (empréstimos para jogo) com a nulidade.
Tal solução equivaleria a que o mutuante não autorizado não correria praticamente risco algum com estes empréstimos para além de poder perder os juros, uma vez que da nulidade decorre sempre a repetição do que se prestou, o que pode ser judicialmente exigível.
Se fosse essa a intenção do legislador, não faria qualquer sentido o citado artº 4º da Lei 5/2004, bastando dizer que os contratos feito em desobediência do estipulado nesta lei seriam nulos.
No entanto não foi essa a solução do legislador.
Decorrendo do já estabelecido no Código Civil no artº 1171º para o jogo e aposta, o legislador vem dizer que os mútuos realizados nos termos da Lei 5/2004 geram “obrigações civis”, donde, aqueles (mútuos para jogo) que não forem celebrados nos termos desta lei, não geram obrigações civis.
São obrigações naturais quando lícitos. Ou seja, se o devedor quiser pagar, paga, e paga bem no cumprimento de uma obrigação natural (e que assumiu), não são é exigíveis coercivamente.
Mas não são nulos.
No entanto, como já vimos não podendo ser coactivamente exigido, ele (o empréstimo) não deixa de poder ser pago voluntariamente, sem que o devedor possa pedir a devolução do que prestou.
Assim sendo, tendo havido um empréstimo para jogo por quem não estava legalmente autorizado a fazê-lo, não estando o mesmo abrangido pela Lei nº 5/2004, não pode gerar obrigações civis nos termos da indicada lei, pelo que, a acção terá de improceder, embora por fundamentos jurídicos diversos dos invocados nas conclusões de recurso.
(…)”; (cfr., fls. 191-v a 196 e pág. 12 a 21 do Ac. recorrido).

Exposta que ficou a “fundamentação – de facto e – de direito” da decisão de revogação da sentença do Tribunal Judicial de Base (com a absolvição do R. dos pedidos pelo A. deduzidos), vejamos se tem o A., ora recorrente razão.

Ora, percorrendo as “conclusões” apresentadas em sede do presente recurso, e delas se extraindo as (verdadeiras) “questões” sobre as quais nos é pedida uma pronúncia, adequado se mostra de considerar que entende o ora recorrente que o Acórdão recorrido padece de:
- “excesso de pronúncia”;
- “erro de direito”; e,
- “omissão de pronúncia”.

Apreciemos, então, cada uma destas “questões”.

–– No que toca ao aludido “excesso de pronúncia”, diz o ora recorrente que “ao decidir sobre o presente processo, o douto TSI começou por julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente; porém, a seguir indicou oficiosamente que a relação de crédito em questão era mera fonte de obrigações naturais, para enfim julgar procedente o recurso e absolver o réu/recorrido de todos os pedidos”, concluindo assim que “o tribunal recorrido pronunciou-se excessivamente ao considerar como obrigação natural a quantia em questão e ao indeferir o pedido do recorrente, pois que a questão de “obrigações naturais” não se encontrava dentro do âmbito delimitado pela segunda parte do art.º 563.º, n.º 3 do CPC”; (cfr., concl. 2ª e 3ª).

Ora, é evidente o equívoco do recorrente, pois que uma coisa é não se reconhecer razão quanto a “um (ou mais) argumento(s)” apresentados em sede de um recurso, e, outra, bem diferente, é a “procedência ou improcedência do (próprio) recurso”.

Porém, seja como for, e debruçando-nos sobre o que efectivamente se apresenta relevante (em sede do presente recurso), importa não perder de vista que, como expressamente preceitua o art. 567° do C.P.C.M.:

“O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 5.º”.

In casu, foi o que sucedeu, sendo, aliás, de notar que, nesta conformidade – e antes de iniciar a sua apreciação e decisão no que toca aos “efeitos (jurídicos) do empréstimo” pelo A. invocado como (causa de pedir) – não deixou o Tribunal de Segunda Instância de consignar no Acórdão agora recorrido que não estava “vinculado à argumentação jurídica invocada pelas partes”; (cfr., fls. 192-v).

Assim, e sem necessidade de mais alongadas considerações, vista está a solução para o imputado “excesso de pronúncia”.

–– Quanto ao “erro de direito”, vejamos.

Como (em apertada síntese) resulta da atrás transcrita fundamentação do Acórdão ora recorrido, entendeu o Tribunal de Segunda Instância que do “empréstimo” pelo A. ao R. concedido não resultava uma “obrigação civil”, e, como tal, do mesmo emergindo tão só uma “obrigação natural”, (ao R.), “não podia ser – coactivamente – exigido o seu pagamento”.

E, relativamente ao assim entendido e decidido, duas são (essencialmente) as razões de discordância do ora recorrente.

A primeira, afirmando que o decidido em sede da “acção executiva n.° CV2-15-0133-CEO”, (cfr., matéria de facto), constituía “caso julgado”, e, a segunda, insistindo na exigibilidade do pagamento do alegado empréstimo que concedeu ao R., ora recorrido, considerando não se tratar de uma “obrigação natural”.

Ora, antes de mais, e tanto quanto nos foi possível reflectir sobre a questão, não nos parece que haja qualquer “ofensa de caso julgado”.

Como se sabe, (e dito de forma muito sumária), no que toca às “Formas de Processo”, prevê o C.P.C.M. o “Processo comum e processos especiais”, (cfr., art. 369°), integrando o “Processo de declaração” e o “Processo de execução” a forma “comum”; (cfr., art°s 371° e 374°).

E, enquanto a “acção declarativa” é o meio processual destinado a obter o reconhecimento ou constituição de um direito (do autor), a “acção executiva” destina-se à realização coerciva de um direito (já) pré-reconhecido, (através de sentença judicial ou outro título executivo), ao seu autor, ou seja, o exequente.

Porém, em causa estando o que o ora recorrente alega constituir uma decisão proferida em sede de “embargos” deduzidos em oposição a uma execução, admite-se que a distinta “finalidade” (processual) das ditas “acções declarativa” e “executiva” não constitua o motivo mais adequado – ou próprio – para se não reconhecer razão ao ora recorrente no que sobre o invocado “caso julgado” alega.

E, então, quid iuris?

Ora, importa atentar que sob a epígrafe “Alcance do caso julgado” prescreve o art. 576°, n.° 1 do C.P.C.M. que:

“A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”.

E, nesta conformidade, atento o teor da sentença proferida em sede dos “embargos” à execução (pelo ora recorrente instaurada ao ora recorrido; CV2-15-0133-CEO, cfr., fls. 2 a 14 do Apenso), não nos parece que na mesma se chegou a declarar a “nulidade” do negócio em questão, (o dito “empréstimo”), mostrando-se-nos de acompanhar inteiramente o que se expôs na “nota” do Acórdão recorrido no sentido que a referência a tal nulidade se limitava a um “juízo sugestivo” para se instaurar a competente acção, (repare-se até que, na dita sentença se diz mesmo que “não podia o A. instaurar a acção executiva com base nos documentos assinados pelo R.”).

Aliás, não se pode também olvidar que a referida “declaração de nulidade” constante da sentença proferida em sede dos embargos à execução foi pelo A. alegada como uma “realidade factual”, (cfr., art. 25° e 26° da p.i.), e como da própria “decisão da matéria de facto” se pode ver, da mesma tão só consta que o “crédito concedido pelo A. ao R. não produziu os seus efeitos por nulidade …”.

Dest’arte, claro nos parecendo que “obstáculo” processual não existia à pronúncia pelo Tribunal de Segunda Instância efectuada no sentido de em causa estar um “negócio” que – não sendo “nulo” – dava apenas lugar a uma “obrigação natural”, e, valendo (então), integralmente, (para a situação dos presentes autos) o que se decidiu e consignou no Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 26.05.2021, Proc. n.° 19/2020, que aqui se tem por reproduzido – em cujo sumário se considerou que: “Com a aprovação da Lei n.° 5/2004 regulamentou-se a “concessão de crédito para jogo ou para aposta em casino na R.A.E.M.”, (passando-se a disciplinar esta “actividade” que antes não se encontrava “legalizada”)”, e que, “Com a sua entrada em vigor, e em conformidade com o estatuído no seu art. 4° – onde se prescreve que “Da concessão de crédito exercida ao abrigo da presente lei emergem obrigações civis” – mostra-se de concluir que (todo) o “crédito para jogo em casino” concedido ao arrepio do novo diploma legal, dá apenas lugar a uma “obrigação natural”, à qual se aplica o regime que lhe é próprio, (cfr., art. 396° do C.C.M.), não sendo assim o seu pagamento judicialmente exigível”) – dúvidas não há que acertada foi a decisão proferida no Acórdão ora recorrido quando (igualmente) se considerou que não era judicialmente exigível o pagamento do referido “empréstimo” pelo A. concedido.

–– Por fim, vejamos agora da também assacada “omissão de pronúncia”.

Aqui, diz o recorrente que se incorreu na dita “omissão” dado que o Tribunal de Segunda Instância “Não conheceu da questão de se o recorrido ter-se enriquecido sem causa, nem se pronunciou sobre a questão”; (cfr., concl. 39).

Vejamos.

Preceitua o art. 630° do C.P.C.M. que:

“1. O Tribunal de Segunda Instância conhece do objecto do recurso, mesmo que a sentença proferida na primeira instância seja declarada nula ou contrária a jurisprudência obrigatória.
2. Se o tribunal recorrido não tiver conhecido de certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, o Tribunal de Segunda Instância, se entender que o recurso procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
3. O relator, antes de ser proferida decisão, ouve cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias”.

Tratando do tema do “objecto do recurso”, e, mais precisamente sobre questão da “extensão do conhecimento a questões prejudicadas”, assim considera Viriato de Lima:

“Por outro lado, na sentença o juiz não tem que resolver as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigo 563.°, n.° 2). Por exemplo, se o juiz decidiu que o pedido principal era procedente, que pressupunha a validade do contrato, não conhece do pedido subsidiário no qual se pedia a anulação do contrato. Ou o juiz julga prescrito o direito e absolve o réu do pedido, sem analisar se o autor a ele teria direito, por estar prejudicada a pretensão.
Ora, se o tribunal recorrido não tiver conhecido de certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, o TSI, se entender que o recurso procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários (artigo 630.°, n.° 2). Nesta situação o poder o tribunal de recurso não depende de requerimento do interessado, como sucede no caso do artigo 590.°, adiante mencionado.
Nos exemplos indicados, o TSI teria de conhecer do pedido subsidiário (1.° exemplo) ou do pedido único do autor (2.° exemplo), desde que os factos o permitissem. Não poderia devolver o processo à 1.ª instância para apreciação”; (in “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., pág. 711 e 712).

No caso dos presentes autos, é verdade que o A. deduziu um “pedido subsidiário” de condenação do R. por “enriquecimento sem causa”, (cfr., ponto 2° do pedido a fls. 2 deste aresto), e que o Tribunal Judicial de Base o considerou “prejudicado” pela solução dada ao pedido principal; (cfr., fls. 68 a 72-v).

Porém, (e valha-nos o pragmatismo), considerando que o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância não só declarou “prejudicado” tal pedido subsidiário, como revogou a sentença do Tribunal Judicial de Base, julgando (expressamente) “improcedente a acção pelo A. proposta, absolvendo o R. dos pedidos deduzidos”, (cfr., dispositivo a fls. 196), cremos que não se justifica a censura que o ora recorrente lhe dirige.

Com efeito, não se pode olvidar que a “razão” da decisão recorrida é (precisamente) a “natureza da obrigação” resultante do empréstimo e a sua “inexigibilidade judicial”, e que em relação ao instituto do “Enriquecimento sem causa”, (previsto no Livro do “Direito das Obrigações” do C.C.M., respeitante às “Fontes das Obrigações”), se prescreve que “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”, (cfr., art. 467°, n.° 1 do C.C.M. com sub. nosso), adequado nos parecendo assim de considerar que com o decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância se não deixou de ponderar e emitir pronúncia sobre tal “matéria”.

Dest’arte, e outra questão não havendo a apreciar, resta decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 12 UCs.

Registe e notifique.

Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 21 de Julho de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 Estamos a referir-nos quando se diz, na decisão dos embargos «que o Embargado carece de título executivo para fundamentar a obrigação eventualmente emergente do aludido negócio nulo» – fls. 12 da versão traduzida (a fls. 2 a 14 do apenso de traduções) da sentença a fls. 38 a 41 -. Diga-se ainda que no caso em apreço é por esta passagem, que independentemente da posição que se tenha sobre ela faz parte dos fundamentos da decisão e nessa medida também é abrangida pelo “caso julgado” que, entendemos que no caso em apreço a segunda decisão (e aqui objecto deste recurso) não viola o caso julgado formado pela anterior, que no fundo já se tinha pronunciado sobre a exigência/validade da obrigação subjacente ao título executivo, porque esta passagem contém um comando/sugestão de que haveria que instaurar uma acção declarativa para obter a declaração de nulidade.
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Proc. 194/2020 Pág. 12

Proc. 194/2020 Pág. 13