Processo nº 351/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 07 de Setembro de 2023
ASSUNTO:
- Posse
- Corpus e Animus
- Presunção
SUMÁRIO:
- Da conjugação do nº 2 do artº 1176º e nº 2 do artº 1181º do C.Civ. resulta que entre a presunção decorrente do exercício do poder de facto e a presunção de que a posse continua em nome de quem a começou, esta prevalece sobre aquela;
- Havendo aquele que exerce o poder de facto sobre a coisa passado a fazê-lo por tolerância do possuidor, actuando como mero detentor, para que passe a ter a posse da coisa há que demonstrar a inversão do título;
- Tomar refeições, dormir, viver, receber amigos, familiares e correspondência, fazer obras, etc., são actuações materiais possíveis sobre determinado prédio, mas que podem ser comuns ao mero detentor como ao possuidor, pelo que, sem saber a intenção, o “animus” com que o faz, não podemos concluir só por isso que tem a posse;
- Para que se possa concluir que alguém tem a posse de determinada coisa é necessária a prova do “corpus” expressa nos actos materiais em que se traduz a apreensão material da coisa ou a possibilidade de a continuar a todo o tempo e do “animus” elementos subjectivo, ou intenção, com base na qual se possui por referência a um determinado direito real.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 351/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 07 de Setembro de 2023
Recorrentes: A com outros e B
Recorridos: Os mesmos, Herdeiros desconhecidos de C e Interessados incertos
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, D, E, F e G, todos com os demais sinais dos autos,
vieram instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra,
Herdeiros desconhecidos de C,
B, com os demais sinais dos autos, e
Interessados incertos.
Pedindo para serem declarados titulares do domínio útil do prédio melhor identificado nos autos por o haverem adquirido por usucapião.
B, deduziu reconvenção pedindo para ser ele reconhecido como titular do domínio útil sobre o prédio a que se reportam os autos por o haver adquirido por usucapião.
Foi proferida sentença julgando acção e reconvenção improcedentes sendo Autores e Réus absolvidos dos pedidos.
Não se conformando com a sentença proferida, vieram os Autores interpor recurso da mesma, apresentando as seguintes conclusões de recurso:
O Objecto do Presente Recurso
A. O presente recurso tem por objecto:
a. O Acórdão proferido pelo Tribunal a quo sobre a matéria de facto, concretamente no que se refere. aos factos (adiante transcritos) 9.º e 10.º dados como parcialmente provados e 12.º a 14.º-A, 16.º-A e 25.º dados como não provados no aludido Acórdão;
b. A douta Sentença, na parte em que decaíram os Recorrentes, com a qual não se conformam.
O Recurso sobre a Matéria de Facto
B. Ao abrigo do disposto no artigo 599.º do CPC, os Recorrentes impugnam a decisão de facto sobre a resposta dada pelo Tribunal a quo aos quesitos 9.º, 10.º, 12.º a 14.º-A, 16.º-A e 25.º, que foram julgados como parcialmente provados (no caso dos quesitos 9.º e 10.º) e como não provados (no caso dos quesitos 12.º a 14.º-A, 16.º-A e 25.º), omitindo elementos provados documental ou testemunhalmente, que são essenciais a uma decisão justa do caso sub judice.
C. Esses factos, se provados, determinariam por si só o sucesso da causa. Porém, contrariando o depoimento das testemunhas, bem como os documentos juntos aos autos, foram dados como não provados os quesitos em causa.
D. Ora, do depoimento das testemunhas H e I resulta, cristalinamente as seguintes ideias chave:
a. J e os Recorrentes utilizavam também os 1.º e 2.º andares do Prédio e que acediam ao 1.º andar do Prédio livremente;
b. J se arrogou como proprietário do Prédio, como seu verdadeiro dono, ali reunindo a sua família, tendo usado, fruído e disposto do Prédio, como se do seu proprietário se tratasse, tratando-o como case de morada da família nuclear, tendo recusado devolver o Prédio quando lhe foi solicitado por ordem de C cerca de 1970.
E. Sempre se dirá que a credibilidade das testemunhas nunca foi posta em causa, até porque é natural que as testemunhas arroladas pelos Recorrentes sejam pessoas com que os mesmos se relacionavam ou tenham laços familiares.
F. Acresce que, entendem os Recorrentes que os quesitos em causa deveriam ter sido dados como integralmente provados, com base nos documentos juntos aos autos:
a. Os autos contêm fotografias que demonstram a utilização de vários cantos do Prédio por J e pelos Recorrentes, incluindo os 1.º e 2.º andares (cf. fls. 684, 700, 1002 a 1006, 1066 e 1067);
b. Quanto ao quesito 12.º, os comprovativos de pagamento das despesas relativas ao fornecimento de água e de electricidade demonstram a relação de K com C (cf. Doc. n.º 6 junto com o requerimento dos Recorrentes de 27 de Outubro de 2021);
c. As fotografias juntas aos autos a fls. 683 a 776 e 1004 a 1067 demonstram claramente a ocupação do Prédio por J e pelos Recorrentes após 1970, o que evidencia sem margem para dúvidas a permanência e ocupação de J e a sua família no Prédio após a recusa de restituição do Prédio.
G. Contrariamente ao que se consigna no Acórdão recorrido, o facto de J e os Recorrentes utilizarem mais o rés-do-chão não quer dizer que não ocupassem a totalidade do Imóvel.
H. É o que resulta das regras da experiência comum que é totalmente normal não utilizar ou ocupar todo o espaço do prédio de uma forma uniforme, tanto mais quando o espaço do prédio era mais do que suficiente para a família de J e o rés-do-chão era mais utilizado por ter a cozinha e a casa de banho, conforme referido pela testemunha H.
I. Por outro lado, contrariamente ao que se consigna no Acórdão recorrido, o facto de J recusar restituir o imóvel não é um facto contra as regras da experiência só por o mesmo continuar a trabalhar para a mesma entidade que lhe forneceu o alojamento.
J. Desconhecendo-se o paradeiro do titular do Prédio, não é de estranhar que J continuasse a trabalhar na Tabaqueria X apesar de ter recusado restituir o Prédio, até porque o alojamento no Prédio não lhe foi atribuído pela entidade empregadora.
K. Não é igualmente razoável concluir que alguém durante mais de 27 anos suporta exclusivamente despesas de impostos, água, luz e reparações, sem o menor reparo, pedido ou reivindicação de outrem, não tenha o animus de ser o seu exclusivo proprietário.
L. Trata-se de um facto de especial relevo, até porque pagar contribuições e impostos do Prédio não seria um acto lógico para um empregado que vivia lá enquanto alojamento da empresa. É justamente um acto demonstrativo da intenção de ser proprietário.
M. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 599.º do CPC, deve entender-se que os quesitos 9.º, 10.º, 12.º a 14.º-A, 16.º-A e 25.º se mostram incorrectamente julgados, face ao teor do depoimento das testemunhas e dos documentos juntos aos autos, encontrando-se o douto Tribunal ad quem na posse de todos os elementos necessários para alterar a decisão de facto, por se mostrarem reunidos os requisitos previstos no artigo 629.º do CPC, o que se requer.
O Recurso sobre a Sentença
N. Ainda que não se sufragasse o entendimento propalado pelos Recorrentes a respeito da apreciação da prova, isto é, mesmo que não se provassem os factos relativos à interpelação de J para sair do prédio dos autos - o que se admite por mera hipótese de raciocínio, sem nunca conceder -, a verdade é que sempre deveria concluir-se pela existência do animus da posse de J e dos Recorrentes.
O. Isto porque, mesmo não provando os factos relativos à interpelação de J para sair do Prédio, existem outros factos provados que demonstram o animus da posse de J e dos Recorrentes.
P. Com efeito, o Tribunal a quo olvida factos - que foram dados como provados no Acórdão - que são suficientes para demonstrar que J e, consequentemente, os Recorrentes dispunham do rés-do-chão do Prédio na intenção de agir como donos do mesmo.
Q. A este propósito, é importante recordar o que foi decidido pelo Tribunal de Última Instância (“TUI”) no Acórdão de 15 de Outubro de 2021 no processo n.º 12/2021, no âmbito do procedimento cautelar de restituição provisória de posse do Prédio requerido pelos Recorrentes, em que o TUI foi chamado a pronunciar-se sobre a questão de saber se J tinha ou não a intenção de agir como proprietário do Prédio (i. e., animus da posse).
R. Sobre a questão do animus da posse, o TUI chegou a seguintes duas conclusões:
a. A conduta de J, e consequentemente dos Recorrentes, de pagar as contribuições e impostos e, ao invés, de não pagar as rendas, é susceptível de demonstrar a intenção de agir como proprietário do rés-do-chão do Prédio (cf. p. 28 do Acórdão do TUI);
b. A não provação dos factos relativos à interpelação de J para sair do prédio não põe em causa nem está em contradição com os factos provados que demonstram o animus da posse de J e dos Recorrentes (cf. p. 32 do Acórdão do TUI).
S. Segundo o ensinamento do TUI no Acórdão acima citado, para aferir da existência do animus da posse, se é verdade que não são relevantes os factos quanto à vida quotidiana da família no prédio, já têm pertinência significativa os restantes factos, tais como os respeitantes (i) ao pagamento das contribuições e Impostos inerentes à propriedade do prédio, (ii) ao não pagamento das rendas e (iii) à não solicitação das rendas por qualquer pessoa.
T. Foi justamente por isso que o TUI considera que existem nos autos factos demonstrativos da intenção ou animus de domínio por parte de J e dos Recorrentes.
U. No âmbito do procedimento de providência cautelar que correu termos por apenso a presentes autos, o TUI também se pronunciou sobre a consequência da não provação dos factos relativos à interpelação de J para sair do Prédio.
V. Considerou o TUI que os artigos em causa “são factos relativos à interpelação de J para sair do prédio e factos subsequentes, cuja não provação não põe em causa nem está em contradição com os factos provados que demonstram o animus da posse de J e dos recorrentes”.
W. Nos presentes autos, pode concluir-se que o Tribunal a quo deu como provados factos que demonstram o animus da posse de J e dos Recorrentes.
X. A matéria de facto acima transcrita revela não só que desde 1970, J começou a viver, com a sua família, no rés-do-chão do Prédio, tendo sempre disposto do rés-do-chão do Prédio como melhor entendeu, mas também que procedeu ao pagamento das contribuições e impostos inerentes à sua propriedade, nunca tendo pagado rendas por tal utilização do Prédio, nem tais rendas lhes tendo sido solicitadas por quem quer que fosse.
Y. Esses factos provados têm uma pertinência significativa para aferir da existência do animus da posse, porque demonstram, por um lado, uma prática reiterada de actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade relativamente ao Prédio, e, por outro, a convicção que J tinha de ser titular do Prédio.
Z. In casu, resulta da matéria de facto provada que J e os Recorrentes pagaram o imposto de contribuição predial do Prédio pelo menos durante 27 anos (i. e., de 1978 a 2000 e de 2015 a 2020).
AA. Com efeito, a experiência comum ditaria que só quem estivesse a comportar-se como proprietário é que pagaria as contribuições e impostos prediais.
BB. Isto é, um mero detentor não estaria disposto a suportar todas as despesas, contribuições e impostos inerentes ao prédio durante mais de 20 anos na suposta esperança de um dia exerceria o seu direito de regresso.
CC. Assim, resultante da matéria de facto provada, a conduta de J, e subsequentemente, dos Recorrentes, de pagar o imposto de contribuição predial e de não pagar as rendas, bem como a não solicitação das rendas por qualquer pessoa, consistem nos actos materiais concretos demonstrativos da intenção de domínio de J e dos Recorrentes.
DD. E, consequentemente, não resta qualquer margem de dúvida de que ficaram preenchidos todos os requisitos legais da usucapião do domínio útil do Prédio dos autos, pelo que deve julgar-se procedente o presente recurso, ficando imediatamente comprovada a posse de J e dos Recorrentes e a necessidade de substituir a decisão ora em crise por uma decisão que reponha a legalidade e a justiça, declarando os Recorrentes como legítimos proprietários do domínio útil do Prédio.
Contra alegando veio o Réu/Reconvinte B contra-alegar pugnando pela improcedência do recurso interposto pelos Autores, não apresentando, contudo, conclusões.
Também não se conformando com a sentença veio o Réu/Reconvinte B interpor recurso da mesma apresentando as seguintes conclusões e pedidos de recurso:
1. Vem o presente recurso da douta sentença explicitada em 26 de Outubro de 2022, que julgou improcedente a reconvenção e, em consequência, absolveu os autores e os réus não reconvintes do pedido reconvencional.
2. Imputa o Recorrente, ao douto Acórdão de facto, o vício da nulidade por haver contradição, obscuridade e deficiência nas respostas aos quesitos, vício este decorrente, no seu humilde entendimento, quer da formulação dos quesitos, quer das suas respostas, quer, ainda, na fundamentação do douto Acórdão de facto, tal como tentou demonstrar no texto das presentes Alegações.
3. Imputa o Recorrente à decisão recorrida um vício de violação da lei substantiva consistente em erro de interpretação, na medida em que o douto Tribunal a quo, para decidir, interpretou a norma do art.º 1176.º, n.º 2, do Código Civil com um sentido que o respectivo texto não comporta por não ter correspondência com o pensamento legislativo.
4. Imputa, ainda, à douta decisão recorrida contradição na fundamentação de Direito, por se ter socorrido de matéria de facto alegada pelo Réu/Reconvinte, ora Recorrente, na sua Contestação, matéria essa que não consta da factualidade apurada.
5. O prédio urbano sito na Rua de ..., em Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau, sob o n.º ..., a fls ... do Livro ..., edificado em terreno pertencente à RAEM, originariamente foi construído com dois pisos (piso térreo e 1.º andar) e um terraço, certo sendo que no terraço, manteve-se uma zona aberta, uma casa de banho e uma divisão feita posteriormente como. se fosse uma barraca informal, isto é, foram feitas algumas “benfeitorias” no sentido de dar alguma utilidade a essa parte do imóvel.
6. Enquanto os acessos à parte correspondente ao piso térreo (nos autos referido como rés-do-chão) e ao 1.º andar são independentes, porque foi construída uma escada exterior para o efeito, a verdade é que a ligação entre o 1.º andar e o 2.º andar (terraço) só pode ser feita através de uma escada interior existente entre esses dois pisos.
7. Originariamente, a ligação entre o rés-do-chão e o 1.º andar era feita através de uma escada interior, que não foi destruída, estando fechada com uma porta dotada com fechos de ambos os lados que só podem ser abertos por quem está do mesmo lado do fecho respectivo, não havendo acessos directos à via pública a partir de cada um destes pisos, porque o imóvel tem um jardim, certo sendo que só após a entrada nesse espaço (jardim), se pode ter acesso aos três pisos do imóvel.
8. Consta do registo predial que o titular inscrito do domínio útil do mencionado prédio, C, adquiriu, primeiro, a quota-parte 1/2, em 2 de Junho de 1949 e a outra quota-parte 1/2, em 12 de Janeiro de 1950, pelo que, (ficcionando), caso aos AA e ao Réu/Reconvinte tivesse sido reconhecido o direito a usucapir, no modesto entendimento do ora Recorrente, não podia o douto Tribunal recorrido declarar os Autores proprietários do rés-do-chão do imóvel e o Réu/Reconvinte proprietário do 1.º andar, ficando o 2.º andar por atribuir a quem quer que seja. Teria que ser atribuído às Partes o imóvel em compropriedade, uma vez que a quota-parte ou quota ideal de um prédio é usucapível.
9. No que se refere ao Recorrente, pese o facto de ter co-habitado o imóvel com J, entre 1980 e 2002, tendo ficado instalado nos pisos a que correspondem o 1.º e 2.º andares, pretende demonstrar que exerce a posse desde 1980 até ao presente momento, posse essa que reúne os requisitos para usucapir o imóvel, objecto mediato do presente processo, considerand-o que o Venerando Tribunal ad quem pode revogar a decisão de considerar improcedente a sua reconvenção,
10. Dada a configuração do imóvel, não faz sentido que em todas as respostas sobre a posse (corpus e animus) detida pelo 2.º Réu/Reconvinte e ora Recorrente, tenha havido a preocupação de afastar o designado 2.º andar (terraço com algumas benfeitorias), quando está provado que o 1.º e o 2.º andar estavam interligados por uma escada interior, conforme se pode constatar das transcrições dos respectivos quesitos e respostas dadas no texto das presentes Alegações.
11. Não está claramente fundamentada a resposta dada ao quesito 39.º, tal como se deixa demonstrado no texto das presentes Alegações.
12. Havendo elementos probatórios da configuração do imóvel no processo o Venerando Tribunal ad quem pode modificar tais respostas.
13. No que se refere ao quesito 36.ºE, considera o Recorrente que se trata de matéria de Direito pelo que deve ter-se como não escrito, certo sendo que o Recorrente considera que o animus não pode ser provado a não ser a partir dos actos praticados, pois há a presunção legal no que a esse requisito da posse se refere.
14. Também, não é muito clara a razão de ser das respostas dadas aos quesitos 41.º. 42.º e 43.º, certo sendo que contêm matéria que demonstra a prática de actos que integram o requisito “animus” da posse, estando devidamente transcritos no texto das presentes Alegações a formulação de tais quesitos e as respectivas respostas.
15. Um dos actos que mais fazem presumir que o possuidor cuida de um imóvel considerando-se seu proprietário é a realização de obras para a sua manutenção e conservação, decorrendo das regras de experiência e da lógica que um imóvel que foi construído nos idos anos de 1930, adquirido por C em 1949 (1/2) e 1950 (1/2), teria que conhecer obras de manutenção e conservação.
16. Decorre das regras de experiência e da lógica que J pudesse ter realizado, entre 1970 e 2002, tais obras no piso térreo (rés-do-chão) porque o habitava; porém, não pode manter-se a resposta “PROVADO”, ao quesito 33.º, porque está em contradição com toda a matéria dada por provada, referente à parte do imóvel que o marido e pai dos AA, J, habitava e, portanto, nunca é referido que J tenha feito despesas de manutenção de todo o imóvel.
17. Decorre, também, das regras de experiência e da lógica que, tendo ficado provado que os autores, após 2003, se deslocaram “algumas vezes” ao interior do rés-da-chão do imóvel (respostas aos quesitos 37.º e 38.º), não podiam os mesmos continuar a fazer obras de manutenção e reparação do rés-da-chão do prédio conforme resposta “PROVADO” ao quesito 44.º.
18. As respostas aos quesitos 45.º e 46.º contêm uma obscuridade, devidamente identificada no texto das Alegações bem como a proposta da nova redacção, que se requer respeitosamente ao Venerando Tribunal ad quem, venha a ser dada, por se tratar de uma matéria de extrema importância.
19. Quanto a resposta ao quesito 46.º, feito um raciocínio lógico, identifica-se, também, uma contradição entre factos provados: o que se encontra vertido no quesito 37.º e o que se encontra vertido no quesito 46.º devidamente, transcritos no texto das presentes Alegações.
20. O douto Tribunal a quo, na fundamentação de Direito e a propósito do pedido reconvencional, começa por afirmar que “O reconvinte não logrou demonstrar a sua alegada posse em relação ao rés do chão nem em relação ao segundo andar do prédio cujo domínio útil pretende ter adquirido por usucapião. Com efeito, não logrou provar a prática dos actos materiais que constituem o corpus da posse. Não pode proceder, pois, a reconvenção quanto a estas partes do prédio”, prosseguindo no entendimento de que, por o pai e o marido dos AA, J, ter habitado o rés-do-chão do imóvel (como mero detentor pois fê-lo por lhe ter sido atribuído alojamento na qualidade de trabalhador da Tabaqueria X), o 2.º Réu/Reconvinte, ora Recorrente, não podia ser possuidor dessa parte do imóvel, por um lado, e, por outro, por o 2.º andar não ter sido por si habitado (quando, na verdade é uma parte do imóvel que está e só tem interligado ao 1.º andar, pois trata-se de um terraço onde foram feitas algumas benfeitorias, com uma casa de banho de uso exclusivo dos habitantes dos 1º e 2º andares), O douto Tribunal recorrido, debruçou-se, apenas, sobre o 1.º andar para analisar se o Recorrente tem exercido a posse sobre essa parte do imóvel em moldes de a poder usucapir.
21. O douto Tribunal a quo violou a norma contida no n.º 2 do art.º 1176.º do Código Civil, ao não considerar que se presume a posse do 2.º Réu/Reconvinte que exerceu e ainda exerce o poder de facto sobre todo o imóvel.
22. O 2.º Réu/Reconvinte, ora Recorrente exerce a posse desde 1980 e continua a exercê-la até ao presente momento e, embora não tenha título formal da doação que lhe foi feita por C, titular inscrito do imóvel dos autos, ela ocorreu em 1980.
23. Não pode o Recorrente entender por que razão deviam ser os AA a ilidir essa presunção se eles não são (nem nunca foram) possuidores, mas meros detentores de uma parte do imóvel.
24. O douto Tribunal a quo não podia ter-se socorrido do que foi alegado por si nos artigos 90.º e 91.º da contestação, ao dizer que antes de J, K habitara o rés-da-chão, enquanto trabalhador da Tabaqueria X, portanto, como mero detentor e que C, quando comprara o imóvel chegou a habitar os 1.º e 2.º andar do imóvel, considerando que foi o próprio Reconvinte a alegar a causa da inexistência da presunção de animus.
25. Levados tais factos à base instrutória, veio em audiência de discussão da matéria de facto a dar-se como provado um dos factos e não provado outro.
26. Ao 2.º Réu/Reconvinte e ora Recorrente, ao contrário do que aconteceu com J e L, embora tivesse trabalhado na Tabaqueria X, não lhe foi atribuído alojamento enquanto trabalhador; o Recorrente trabalhou entre 1980 e 1990 e quando deixou de trabalhar na Tabaqueria X, manteve-se no imóvel que considera seu, tendo constituído uma sociedade comercial Unipessoal cuja sede é no imóvel (2.º andar).
27. Quando J mudou a sua morada para Hong Kong, o 2.º Réu/Reconvinte, ora Recorrente, continuou a exercer a posse do rés-do-chão não tendo ninguém habitado essa parte do imóvel; não entende o recorrente a razão pela qual a posse se afere pelo facto de se habitar ou não um imóvel ou parte dele.
28. E quando se reformou em 2004, passou temporadas em Shanghai, mas manteve a posse do imóvel até aos dias de hoje, sempre fazendo obras de conservação e de manutenção e, sempre, mantendo o imóvel limpo, certo sendo que não tinha meios financeiros para tomar um imóvel moderno.
29. Tal como o Ilustre Colectivo se socorreu das regras da experiência para concluir que não houve recusa de restituir o imóvel por parte de J, porque continuou a trabalhar para a mesma entidade que lhe forneceu o alojamento recebendo bónus nos anos posteriores, não sendo facilmente entendível que a recusa de restituição não conduzisse a conflito que levasse à cessação da relação laboral nem ao recebimento de bônus, também, o Venerando Tribunal ad quem se pode socorrer das regras da experiência para concluir que o imóvel foi doado por C ao 2.º Réu/Reconvinte e ora Recorrente, a partir dos factos dados por provados, designadamente: (i) havia uma ligação entre C e B; (ii) ao contrário do que se provou relativamente a K, primeiro, e a J, depois, ambos trabalhadores da Tabaqueria X e moradores do rés-da-chão do imóvel, quanto a B, apenas trabalhou, entre 1980 e 1990, na Tabaqueria X e não lhe foi atribuído alojamento no rés-da-chão do imóvel; (iii) após ter terminado a sua relação laboral com a Tabaqueria X, em 1990, manteve-se na posse do imóvel, tendo constituído uma sociedade comercial, publicamente, indicando como sede a morada do imóvel que, desde 1980 considerava seu; (iv) depois de se ter reformado em 2004, passando largas temporadas em Shanghai, não descurou o estado de conservação e manutenção do imóvel e, até à presente data, paga a uma pessoa para manter o espaço jardim cuidado e para recolher a correspondência.
30. Não tendo sido dado por provado que B foi habitar uma parte do imóvel por lhe ter sido atribuído alojamento enquanto trabalhador da Tabequeria Filipina, a que título é que B detinha a posse do imóvel, mesmo depois de ter deixado de trabalhar para esse estabelecimento comercial (em 1990) e porque mantém a posse até à presente data?
31. Uma doação não formal feita nos idos anos de 1980 (portanto, há 42 anos) pode nunca alcançar prova directa, que é a prova que o juiz obtém, sem qualquer mediação, de um facto principal e presente, percepcionando tal facto directamente; tem que se servir, apenas, da prova indirecta, e ainda aí, não histórica ou representativa, em que o objecto da prova é directamente o facto principal, tratando-se de uma prova que não é obtida pela percepção directa do juiz mas por outros meios de prova.
32. Neste tipo de prova, o facto a provar não é directamente o facto principal e por isso os meios de prova não incidem logo sobre o facto a provar, mas sobre outros, chegando o juiz ao facto cuja prova pretende, através de cadeias maiores ou menores de presunções.
33. É a prova indiciária, que se serve dos factos instrumentais; nos termos do art.º 342.º do Código Civil, “presunções” são as ilações que a lei ou o julgador tiram de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido; consoante intervenha nessa ilação a lei ou o julgador, assim a presunção se diz legal - podendo ser ilidível ou inílidível -, ou judicial.
34. Conforme decorre da lei, a presunção do animus requisito da posse é legal, mas para um facto ocorrido há tantos anos (o corpus do requisito da posse), apenas, podem interferir presunções judiciais e não legais; trata-se de uma opção do legislador que se quisesse a interferência destas últimas para a prova de qualquer facto, tê-lo-ia referido, cumprindo ao julgador, quando se encontre no estrito campo dos factos tidos como provados, não ignorar as regras da experiência, a normalidade dos factos, as regras da vida, para, de factos conhecidos - base da presunção -, chegar a factos desconhecidos, na medida em que de outro modo não poderá alcançar a conclusão de que houve doação do imóvel e, portanto, o 2.º Réu/Reconvinte, B, iniciou a posse do imóvel com um título inválido formalmente, mas com consequências jurídicas. No caso, o elemento “corpus” da posse.
35. Está o Recorrente convicto de que, tendo em conta os factos dados por provados e sem ignorar as regras da experiência, a normalidade dos factos e as regras da vida, poderá chegar-se à conclusão de que o Réu/Reconvinte não mantém a posse do imóvel desde 1980 até à presente data aleatoriamente e não é um mero detentor do imóvel há 42 anos.
36. O douto Tribunal a quo, ao referir-se à posse que pode determinar o direito a usucapir, faz uma correcta interpretação da lei, pois considera que a posse é integrada por dois elementos: o corpus, que consiste no domínio de facto sobre a coisa, e o animus, que é a intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente aquele domínio de facto. Subscreve o entendimento unânime de que o corpus traduz-se no exercício de poderes de facto que supõe uma vontade de domínio, de poder jurídico-real e o animus mais não é que essa intenção jurídico-real.
37. O douto Tribunal a quo, depois de ter afirmado que a posse do imóvel é do proprietário C, porque o RéulReconvinte alegou que este chegara a morar nos 1.º e 2.º andar do imóvel ou eventualmente dos seus sucessores, afirma, textualmente, que se presume a continuação da alegada posse de C em relação ao primeiro andar e não se presume o animus do reconvinte, pois que nunca se arrogou como tendo começado a posse, mas como tendo sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte, conclui-se, pois, que, por falta de animus provado ou presumido, também em relação ao primeiro andar do prédio não está demonstrada a posse do reconvinte, devendo improceder a totalidade da sua pretensão de ser reconhecido que adquiriu o domínio útil por usucapião.
38. No humilde entendimento do ReconvintelRecorrente não é muito perceptível que o douto Tribunal a quo considere que o proprietário C mantém a posse do 1.º andar, pois o imóvel dos autos não está constituído em propriedade horizontal e, portanto, é visto como um só imóvel embora podendo ser usucapível uma quota parte do mesmo. Não constam dos autos elementos suficientes que possam determinar o quantum de cada um dos pisos, ou seja, qual a quota-parte de cada um dos pisos relativamente ao imóvel no seu todo.
39. Ao considerar-se o imóvel dos autos como sendo composto por unidades autónomas) crê-se que se toma difícil descrever a situação real do imóvel, não fazendo sentido afirmar-se que se uma determinada parte de um imóvel estiver a ser habitada por um terceiro, o dono do imóvel ou o seu possuidor não pode considerar que detém essa parte do imóvel. Aqui identifica a contradição da fundamentação e a interpretação não conforme com a lei aplicável.
Termos em que, e contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, Venerando Juízes, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada, parcialmente, a douta sentença recorrida, mantendo-se a improcedência da acção e considerando-se procedente a reconvenção e, a final, ser o Reconvinte declarado proprietário do domínio útil do prédio sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º ..., a fls. … do Livro …, por o ter adquirido por usucapião.
Contra-alegando apresentaram os Autores as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso a que ora se responde interposto da Sentença proferida pelo Tribunal a quo de 26 de Outubro de 2022 (adiante designado por “Prédio”), na parte em que julgou improcedente o pedido reconvencional do Recorrente;
Do alegado vício da nulidade por contradição, obscuridade e deficiência nas respostas aos quesitos
B. Para o Recorrente existe o vício de nulidade por se verificarem os vícios processuais da contradição, obscuridade e deficiência nas respostas aos quesitos;
C. Desde logo, as nulidades da sentença estão circunscritas aos casos previstos no nº 1 do artigo 571º do CPC, pelo que não se verificando nenhuma das situações aí contempladas não haverá nulidade da decisão;
D. De todo o modo, sempre se dirá que não existem os vícios processuais da contradição, obscuridade e deficiência nas respostas aos quesitos nos termos alegados pelo Recorrente;
E. O Recorrente alega que a resposta dada ao quesito 32.º está em contradição com toda a matéria dada por provada;
F. Sucede, porém, que não se detecta o vício da contradição alegado pelo Recorrente, na medida em que o facto de J fazer despesas de manutenção do prédio não é incompatível com o outro facto dado provado pelo Tribunal a quo de que J e a sua família habitavam no rés-do-chão do prédio dos autos;
G. Com efeitos, existem provas cabais nos autos de que J fez despesas com obras de reparação e manutenção do Prédio, obras essas que não se confinam apenas ao rés-do-chão do prédio;
H. Segundo o Recorrente, também existe a contradição entre a resposta aos quesitos 37.º e 38.º com a resposta dada aos quesitos 44.º e 46.º, com a alegação de que se está provado que os Autores, após 2003, se deslocaram apenas algumas vezes ao prédio, então não podiam os mesmos continuar a fazer obras de manutenção e reparação;
I. Sucede que, contrariamente à posição do Recorrente, não se verifica também aqui o vício da contradição, visto que, por um lado, a deslocação menos frequente ao prédio dos autos pelos Autores nada impede a continuação de fazer obras de manutenção e reparação; por outro lado, os Autores podem sempre encarregar a outrem para a realização de tais obras;
J. Entende o Recorrente que as respostas aos quesitos 45.º e 46.º contêm uma obscuridade, por não referirem a data em que foram iniciadas as obras.
K. O vício da obscuridade pressupõe que não se possa determinar o sentido exacto da resposta, o que claramente não se verifica em relação às respostas dadas aos quesitos em causa.
L. De resto, a ideia de que os Autores só fizeram as obras em 2019 para que “pudessem ser consideradas como um acto próprio de proprietários do imóvel” é falsa e, além do mais, suportada num raciocínio desprovido de qualquer mérito jurídico.
M. Bem vistas as coisas, a lógica subjacente às afirmações do Recorrente não só é falsa, como é absurda, na medida em que a causa de pedir só pode ser ampliada nos termos estritos dos artigos 216.º e 217.º do CPC, não podendo “o acto próprio de proprietário do imóvel” após a instauração da acção ser contado para os efeitos da aquisição do imóvel por usucapião.
N. Em relação às respostas dadas aos quesitos 36.º-A, 36.º-B, 36.º-C, 39.º, 36.º-E, 41-º, 42.º e 43.º, cabe observar que o Recorrente não apontou qual o vício Imputado, não sendo possível compreender se para o Recorrente existe o vício da contradição, obscuridade ou deficiência nas respostas dadas aos quesitos em causa.
Do alegado vício de violação da lei por erro de interpretação
O. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo violou a norma contida no n.º 2 do artigo 1176.º do Código Civil, “ao não considerar que se presume a posse do 2.º Réu/Reconvinte que exerceu e ainda exerce o poder de facto sobre todo o imóvel”.
P. Perante esta disposição, fica claro que a posse pode ser exercida, não só pessoalmente, como também por meio de intermediário.
Q. Ora, não existindo, no caso vertente, uma situação de dúvida quanto ao modo como se iniciou o poder de facto sobre a coisa ou a questão de saber se a posse é exercida pessoalmente ou por intermédio de outrem, não funciona a aludida presunção.
R. De resto, para os ora Recorridos, é evidente que não assiste qualquer razão ao Recorrente quanto ao entendimento de que o “Tribunal ad quem se pode socorrer das regras da experiência para concluir que o imóvel foi doado por C ao 2.º Réu/Reconvinte e ora Recorrente”.
S. A tese do Recorrente é a de que o prédio dos autos foi-lhe doado por C em 1980, “entregando-lhe as chaves do mesmo”, e que, a doação foi feita por C, “por ordem dos avôs paternos e maternos (do Recorrente), sendo estes os verdadeiros indivíduos que pagaram a aquisição do referido prédio”.
T. Sucede que o Recorrente não logrou produzir qualquer prova relativamente à suposta doação verbal.
U. A verdade é que é impossível fazer tal prova, visto que é manifesta a falta de sustentação fáctica da alegada doação invocada pelo Recorrente.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos Factos
Vêm os Recorrentes impugnar a matéria de facto.
A fundamentação relevante do tribunal “a quo” relativamente às respostas dadas à Base Instrutória é a seguinte:
«(…)
O quadro probatório dos autos é composto essencialmente por:
- Testemunhas com pouco conhecimento directo dos factos da base instrutória sobre que depuseram;
- Documentos meramente indiciários dos factos controvertidos e alguns deles com parte do conteúdo inacessível;
- Presunções legais em matéria de posse;
- Ausência de qualquer efeito cominatório devido à circunstância de haver réus não contestantes citados editalmente;
- Escasso valor de eventuais confissões de factos feitas nos articulados, devido à existência de litisconsórcio (art. 346º, nº 2 do CC);
- Inspecção ao prédio controvertido que permitiu ao tribunal, entre o mais, melhor analisar as diversas fotografias juntas aos autos e melhor apreender os depoimentos das testemunhas e a configuração do imóvel, nomeadamente quanto aos acessos ao rés-do-chão e aos 1º e 2º andares, quanto à ligação interna, por escadas, entre os três pisos e quanto à existência de vetustos contadores de água, electricidade e caixas de correio retratados nas fotografias de fls. 341.
- A circunstância de em Macau o primeiro piso dos prédios se designar quer por rés-do-chão, quer por primeiro andar, o que impede conclusões seguras quanto à referência ao primeiro andar em certas facturas de fornecimento juntas aos autos, como as de fls. 130 a 140.
Muitos dos factos datam de há muitos anos, não havendo relativamente a eles testemunhas de conhecimento claro e de memória fresca.
O tribunal não foi colocado pelas partes em dúvida severa quanto ao facto de a família dos autores e a familia do réu B terem residido durante vários anos no prédio sub judice devido à relação laboral de J e B com a Tabaqueria X, que tinha ligação não concretamente apurada a M, tiular inscrito no registo do prédio, tendo a família dos autores residido no rés-do-chão desde 1968 e tendo a família de B residido no primeiro andar desde 1980/1981 (quesitos 7º a 11º). Acresce que a prova testemunhal e documental suporta tal factualidade de forma coerente e quase unânime, pelo que o tribunal considerou-a provada.
Assim, reconduzem-se a quatro núcleos principais os factos controvertidos:
- Se J e os autores utilizaram a totalidade do prédio ou só o rés-do-chão;
- Se J recusou devolver o prédio quando lhe foi solicitado por ordem de M cerca de 1970, assim invertendo o título da posse e depois autorizando a residência do réu B em 1980;
- Se o prédio foi doado ao réu B;
- Se o réu B utilizou a totalidade do prédio, directamente os 1º e 2º andares e autorizando a utilização do rés-do-chão a J e respectiva família.
Com efeito, está em causa a aquisição por usucapião de um prédio alheio dizendo os autores que o seu antecessor, J, foi morar para o prédio enquanto trabalhador de um estabelecimento comercial ligado ao dono do prédio e que passou a ser possuidor por ter invertido o título da posse ao recusar restituir o prédio quando lhe foi pedido por volta de 1970 e dizendo o réu/reconvinte B que o prédio lhe foi doado e o passou a ocupar em 1980 tolerando a presença dos autores e do antecessor destes, J.
Nenhuma prova foi produzida que pudesse levar o tribunal a alcançar a segurança necessária às decisões judiciais no sentido de ter havido a referida doação do domínio útil do prédio nem que tivesse havido a referida recusa de restituição ou inversão no título da posse. Apenas testemunhos lacunosos, conclusivos e “de ouvir dizer”, o que é manifestamente insuficiente para o tribunal poder ficar seguro, designadamente o depoimento das testemunhas H e I, netas do referido J, que apenas de forma algo imprecisa relataram conversas que tiveram com familiares sobre o pedido desocupação da casa a J e sobre a recusa deste.
Ainda no que tange à recusa de restituir o imóvel, trata-se de um facto que vai contra as regras da experiência, considerando que o alegado recusante, J, continuou a trabalhar para a mesma entidade que lhe forneceu o alojamento, recebendo bónus nos anos posteriores a 1971 (fls. 989 a 999), não sendo facilmente entendível que a recusa de restituição não conduzisse a conflito que levasse à cessação da relação laboral nem ao não recebimento de bónus.
Quanto à aquisição do prédio por C juntamente com os avós do Réu B; quanto às relações empresariais de tais pessoas; quanto ao destino que acordaram para o prédio (designadamente a doação e a afectação a residência de trabalhadores) e à utilização que efectivamente lhe deram (quesitos 1º a 6º, 12º, 13º, 16º, 16º-A, 17º, 2ª parte, 19º, 21º, 28º, 34º e 36º), é a prova documental inexistente e a prova testemunhal meramente opinativa e sem conhecimento directo, razão por que não foi considerada provada a factualidade respectiva.
Quanto à ocupação da totalidade do imóvel por parte dos autores e do seu antecessor (J) e quanto à ocupação integral por parte do réu B também a prova é escassa. Da análise global da prova testemunhal e documental fotográfica convenceu-se o tribunal que havia bom relacionamento entre a família dos autores e a do réu B, que a família deste habitava o primeiro andar e a família dos autores habitava o rés-do-chão e que os elementos de uma família frequentavam o espaço habitado pela outra, embora a escada interior que liga o rés-do-chão ao primeiro andar fosse fechada e tivesse uma porta dotada com fechos de ambos os lados que só podem ser abertos por quem está do mesmo lado do fecho respectivo, o que foi visível na inspecção que o tribunal fez ao prédio e é retratado nas fotografias juntas ao auto de inspecção (fotos de fls. 1433 a 1436).
Quanto ao quesito 33º deixa-se consignado que o documento de fls. 127 e 128 não respeita ao imóvel em controvérsia nos autos, mas a outro de que J foi proprietário na mesma rua, no segundo andar do número 31.
Quanto aos quesitos 14ºA e 36ºE, foi na ausência de prova que se formou a convicção do tribunal, sem prejuízo da presunção legal do art. 1176º, nº 2 do CC.
Quanto ao quesito 39º foram determinantes os documentos de fls. 612 a 622 e 995 a 999.
Quanto aos demais factos não provados a convicção do tribunal resultou da ausência ou da insuficiência de prova produzida, que não foi esclarecedora.».
Do recurso interposto por A e outros.
Vêm estes Recorrentes impugnar as repostas dadas aos quesitos 9º, 10º e 25º, a saber:
«9.º
J começou a viver no Prédio referido nos autos com a sua família em 1968?
Provado apenas que J começou a viver com a sua família no rés-do-chão do Prédio referido nos autos em 1968.
10.º
Passou desde então o prédio a constituir a sua casa morada de família?
Provado apenas que passou desde então o rés-do-chão do prédio a constituir a sua casa morada de família.
25.º
J e a família usavam o 1º andar para convívio dos familiares?
Não provado.».
Alegam os Recorrentes que tinham o controlo efectivo da totalidade do prédio, contudo, o que resulta das declarações da testemunha H e I que se transcrevem é que no primeiro andar do prédio vivia o Sr. B e que por vezes quando estava sol a avó punha roupa a secar ou a arejar no terraço do edifício.
De notar que estas testemunhas - H e I – são netos da 1ª Autora e filhos da 2ª e 5ª Autora, respectivamente, que segundo os elementos que constam dos autos nasceram em Dezembro de 1946 e Outubro de 1954 – cf. fls. 922 e 942, respectivamente -, logo as mães destas testemunhas em 1970 teriam 24 e 16 anos. Pelo que, invocando as testemunhas que o que sabem foi porque lhes foi contado pela família – leia-se aqui Autores -, confiarmos no seu depoimento à míngua de outra prova, seria o mesmo que aceitar o depoimento dos Autores como prova, pois caso já fossem nascidos, impossível seria terem memórias desse tempo.
Se atentarmos aos documentos de fls. 711, 717 e 727 datadas pelos Autores de 1981, 1982 e 1983, caso estas testemunhas sejam as crianças ali fotografadas melhor esclarecido está o que se disse quanto ao conhecimento que possam ter dos factos, ocorridos em 1970 e antes.
Bem andou o tribunal “a quo” considerando estes depoimentos como lacunosos e sem conhecimento directo dos factos.
Como resulta dos autos o edifício em causa é composto de Rés-do-chão, primeiro andar e um terraço no segundo andar.
Existe uma escada interior que liga o Rés-do-chão ao primeiro andar e apenas a partir do primeiro andar se pode aceder ao terraço do edifício.
Considerando os usos e costumes Chineses que ainda hoje se practicam de colocar a roupa a arejar e a secar ao sol – especialmente a roupa de cama -, não estranha que ambas as famílias que viviam no prédio usassem o terraço do mesmo para esse efeito.
Considerando a composição do prédio e a cultura local, bem como a forma comunitária como se vivia ao tempo a que se reportam os depoimentos, também não é de estranhar que vivendo apenas duas famílias no mesmo prédio o relacionamento e a intimidade permitissem que os que habitam o Rés-do-chão pudessem passar pelo primeiro andar para aceder ao terraço, da mesma forma, como provavelmente os do primeiro andar passariam pelo Rés-do-chão para aceder ao piso térreo, para além de poder haver ocasiões em que até frequentassem a casa uns dos outros em dias festivos e tirassem fotografias.
O que resulta inquestionável da factualidade apurada é que no primeiro andar vivia o Sr. B e no Rés-do-chão a família do Sr. J.
Estando assente que o Sr. B vivia no primeiro andar, não se invocando em momento algum que o fazia porque tivesse arrendado o espaço a J ou por qualquer outro modo este lhe tivesse cedido o uso de espaço – o primeiro andar – a responder-se aos indicados quesitos como os Recorrentes pretendem só poderia redundar em contradição nas respostas à matéria de facto, sendo certo que não são impugnadas as respostas dadas aos quesitos 18º, 20º, 34º, 36ºA, 36ºB, 36ºC, 39º e 43º de onde resulta que relativamente ao primeiro andar do prédio quem tinha o uso do mesmo era B.
Logo apenas, as passagens dos depoimentos indicadas e os demais elementos que se pretendem de prova que os Recorrentes invocam, não são de molde a concluir pelo erro na apreciação da prova pelo tribunal “a quo” e a alterar as respostas dadas a estes quesitos.
Mais impugnam os Recorrentes as respostas dadas aos quesitos 12º a 14º-A e 16º-A, que a seguir se transcrevem:
«12.º
No ano 1969 K era gerente daN香煙公司e actuava em representação de Chou Chiu Chun?
Não provado.
13.º
Na altura K solicitou a J que desocupasse o prédio o mais tardar até ao seguinte ano de 1970, já que a sociedadeN香煙公司 necessitava do prédio para alojar outros trabalhadores?
Não provado.
14.º
J recusou-se a cumprir as mesmas instruções e continuou a viver no prédio, contra a vontade expressa de C?
Não provado.
14º-A
J tinha intenção de agir como proprietário, motivo por que recusou restituir o prédio de forma peremptória com fundamento de que o prédio era seu?
Não provado.
16.º-A
Após a recusa de J em restituir o prédio em 1970, C e K nunca mais formularam qualquer pedido ou praticaram quaisquer actos em relação ao prédio?
Não provado.».
Pretendem os Recorrentes convencer o tribunal da veracidade destes factos que segundo alegam ocorreram em 1970 e contrariar os fundamentos da convicção do tribunal com os depoimentos das duas testemunhas H e I, cujas mães à data tinham 24 e 16 anos.
Desnecessário se torna repetir o que já foi referido anteriormente, bem andando o tribunal “a quo” por não se convencer com base nos depoimentos destas testemunhas pelos motivos que indica na sua fundamentação.
Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012, no Processo n.º 551/2012: “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção, atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599.º, n.º 1 e 2 do CPC.”.
Também se decidiu no Acórdão deste TSI, de 28.5.2015, no Processo n.º 332/2015 que:“A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629.º do CPC. E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”.
A convicção do Tribunal alicerça-se no conjunto de provas produzidas em audiência, sendo mais comuns as provas testemunhal e documental, competindo ao julgador valorar os elementos que melhor entender, nada impedindo que se confira maior relevância ou valor a determinadas provas em detrimento de outras, salvo excepções previstas na lei.
Não raras vezes, pode acontecer que determinada versão factual seja sustentada pelo depoimento de algumas testemunhas, mas contrariada pelo depoimento de outras. Neste caso, cabe ao Tribunal valorá-las segundo a sua íntima convicção.
Ademais, não estando em causa prova plena, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração e decidir segundo a sua prudente convicção acerca dos factos controvertidos, em função das regras da lógica e da experiência comum.
Assim, estando no âmbito da livre valoração e convicção do julgador, a alteração das respostas dadas pelo tribunal recorrido à matéria de facto só será viável se conseguir lograr de que houve erro grosseiro e manifesto na apreciação da prova.
Analisada a prova produzida na primeira instância, a saber, a prova documental junta aos autos e o depoimento das testemunhas, entendemos não assistir razão aos Autores.
Destarte, não resultando da fundamentação do tribunal “a quo” quanto às respostas dadas à Base Instrutória, erro grosseiro e manifesto, de acordo com o disposto na al. b) do nº 1 e nº 2 do artº 599º do CPC, impõe que se negue provimento ao recurso interposto pelos Autores quanto à matéria de facto.
Do recurso interposto pelo Réu/Reconvinte B.
Alegadamente impugnando a decisão da matéria de facto vem o Réu/Reconvinte suscitar que sempre faltaria decidir sobre a usucapião do 2º andar do edifício, segundo a nomenclatura de Macau/Portuguesa considerando o piso térreo como piso zero ou Rés-do-Chão ou terceiro piso segundo a nomenclatura chinesa sobre esta matéria cabe apenas dizer que, o que consta dos autos quanto à descrição do prédio é que o mesmo é composto por dois andares, leia-se dois pisos, pelo que, o dito segundo ou terceiro andar segundo a nomenclatura de Macau ou Chinesa mais não é do que o terraço do mesmo – não cabendo aqui apurar de construções ilegais que hajam sido realizadas -, o qual por força da alínea d) do nº 1 do artº 1324º do C.Civ. seria sempre parte comum caso o prédio foi titulado em regime de propriedade horizontal ou parte do todo caso o prédio seja titulado segundo o regime de compropriedade, pelo que, a observação feita é perfeitamente inútil e ao arrepio do que consta da lei, dado que não há nenhum segundo/terceiro andar autónomo, uma vez que o prédio é constituído apenas por dois pisos.
Mais parece que se impugna as respostas dadas aos quesitos 33º, 36-A, 36º-B, 36º-C, 36º-E, 37º, 38º, 39º, 41º, 42º, 43º, 44º, 45º e 46º.
Para o efeito alegam argumentos tais como: “não está claramente fundamentada essa resposta”, “Havendo elementos probatórios da configuração do imóvel no processo o Venerando Tribunal ad quem pode modificar tais respostas”, “não sabe, porém, como se pode provar o animus a não ser a partir dos actos praticados, pois há presunção legal no que a esse requisito da posse se refere”, “Também não é muito clara a razão de ser das respostas dadas aos quesitos …”, e depois invoca regras da experiência e da lógica para concluir no sentido que lhe apraz, bem como contradição entre os factos apurados.
Ora, da leitura da factualidade apurada não resulta contradição alguma.
Quanto à impugnação da matéria de facto dispõem os nº 1 e 2 do artº 599º do CPC o seguinte:
«1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.».
Nada alegando ou invocando o Recorrente quanto a quais seriam os elementos de prova que demandavam um decisão diferente sobre a matéria de facto, de acordo com o disposto na disposição legal citada não pode este recurso quanto à impugnação da matéria de facto ter outra sorte que não seja a de improceder.
Em sentido idêntico vejam-se Acórdãos deste tribunal:
- De 09.05.2019, processo nº 240/2019
«Assunto
- Impugnação da matéria de facto
- Prova documental e negócio simulado
Sumário
I – Em matéria de impugnação de matéria de facto, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
II - para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal”, se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.».
- De 24.10.2019, processo nº 587/2019:
«Assunto
- Negócios simulados e elementos probatórios
Sumário
I – Em sede de impugnação de matéria de facto no recurso, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. É em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC.».
Nestes termos, não se invocando os concretos meios de prova que impunham decisão diferente de acordo com o disposto na al. b) do nº 1 e nº 2 do artº 599º do CPC, impõe que se negue provimento ao recurso interposto pelo Réu/Reconvinte quanto à matéria de facto.
Na decisão recorrida foi dada por assente a seguinte matéria de facto:
1. Na Rua de ..., em Macau, situa-se um prédio urbano composto por dois andares, o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º ..., a fls. … do Livro ….
2. O Prédio foi desanexado do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º ..., a fls. … do Livro ….
3. Por sua vez, o prédio descrito sob o n.º ... foi desanexado do prédio descrito na mesma Conservatória sob o n.º ..., a fls. … do Livro ….
4. O domínio directo sobre o referido prédio encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Macau a favor do Território de Macau, conforme inscrição n.º …, a fls. … do Livro ….
5. O domínio útil sobre o referido prédio encontrava-se inscrito a favor do O, conforme inscrição n.º …, a fls. … do Livro ….
6. O titular inscrito do domínio útil do prédio dos autos é C, conforme inscrição n.º …, a fls. … do Livro …, e inscrição n.º …, a fls. … do Livro ….
7. O titular inscrito do domínio útil do Prédio, C, era administrador da sociedadeN香煙公司, com sede em Guangzhou.
8. C era também sócio da sociedade Tabaqueria X (Hong Kong) Limited.
9. A sociedade comercial sediada em Hong Kong, constituída em 1 de Fevereiro de 1951, com a designação social “Tabaqueria X, Limited”, actualmente, ainda em actividade, tendo alterado a sua designação social para “香港XX煙公司Tabaqueria X, Limited”, em 19 de Agosto de 1988, era proprietária do estabelecimento comercial “Tabaqueria X”, instalado na Avenida…, em Macau.
10. J era marido da 1º autora e pai dos restantes autores e trabalhava para “Tabaqueria X”, em Macau.
11. B também trabalhava na loja da “Tabaqueria X”, em Macau.
12. Por razões médicas, J e a autora A mudaram-se para Hong Kong em 2003.
13. J faleceu em 2 de Dezembro de 2013, no estado de casado com a autora A.
14. K residiu no R/C do prédio e foi trabalhador da Tabaqueria X (Hong Kong) Limited. (Q.5º)
15. J, marido e pai dos autores, era, em 1968, gerente da loja da Tabaqueria X em Macau, sita na Avenida…, a qual era propriedade da Tabaqueria X (Hong Kong) Limited. (Q.7º)
16. E foi atribuído ao J alojamento e instalou a sua casa de morada de família em Macau, no rés-do-chão do prédio n.º … da Rua ..., em Macau, onde passou a viver com a sua mulher A, ora 1º autora. (Q.8º)
17. J começou a viver com a sua família no rés-do-chão do Prédio referido nos autos em 1968. (Q.9º)
18. Passou desde então o rés-do-chão do prédio a constituir a sua casa morada de família. (Q.10º)
19. J e sua mulher A residiam no rés-do-chão do prédio n.º … da Rua ... enquanto trabalhador da empresa “Tabaqueria X”. (Q.11º)
20. J, marido e pai dos autores, trabalhou para a “Tabaqueria X”, em Macau, entre os dias 1/1/1997 e 27/12/2002,. (Q.15º, respondido com esclarecimento que “além do período situado entre os dias 1/1/1997 e 27/12/2002, J ainda trabalhou noutros períodos de tempo para a “Tabaqueria X”, em Macau)
21. Em finais de 1980, o 2º réu B foi trabalhar para o estabelecimento comercial Tabaqueria X situado em Macau. (Q.17º)
22. A partir de 1 de Novembro de 1980, B ocupava o 1º andar do prédio e pagava as despesas de água e electricidade a sua expensas. (Q.18º)
23. Na altura em que o réu B foi trabalhar para o estabelecimento Tabaqueria X o prédio já contava com dois contadores de electricidade; dois contadores de água e duas caixas postais. (Q.20º)
24. Desde 1970, J preparava e tomava as refeições no R/C do prédio. (Q. 23º)
25. Desde 1970, J e a família pernoitavam no R/C do prédio. (Q. 24º)
26. J e a família chegaram a deslocar-se ao 2º andar do prédio e a colocar aí roupas a secar. (Q. 26º)
27. J procedeu ao pagamento do imposto de contribuição predial do prédio respeitante aos anos de1978 a 2000 e 2015 a 2020. (Q. 27º)
28. B pagou a contribuição predial respeitante aos anos de 2012 e 2013. (Q. 29º)
29. Nos anos de 2001 a 2011, ambos inclusive, houve isenção do pagamento da contribuição predial do prédio. (Q. 30º)
30. O réu B pagou pessoalmente as contribuições prediais do prédio relativas aos anos de 2012 e 2013. (Q.31º)
31. J faz despesas de manutenção do prédio, nomeadamente com obras de reparação e manutenção. (Q. 32º)
32. J pagava todas as despesas relativas ao fornecimento de água e energia ao rés-do-chão do prédio. (Q. 33º)
33. B ocupava o 1º andar do prédio. (Q. 34º)
34. Desde Novembro de 1980, B ocupava o primeiro andar do imóvel sem oposição de quem que seja. (Q. 36ºA)
35. B ocupava o primeiro andar do imóvel com consciência de que não estar a violar o direito de quem quer que seja. (Q.36ºB)
36. B fez reparações e obras necessárias à conservação do primeiro andar do imóvel. (Q. 36ºC)
37. Depois de 2003, altura em que J e a autora A se mudaram para Hong Kong, os mesmos e os autores deslocaram-se algumas vezes ao interior do rés-do-chão do prédio, onde, por vezes J e a autora A chegaram a pernoitar. (Q. 37º)
38. Após o falecimento de J, os autores continuaram a deslocar-se algumas vezes ao interior do rés-do-chão do prédio. (Q. 38º)
39. Cerca de 1990, o 2º réu B deixou de trabalhar para a sociedade Tabaqueria X, designadamente, no estabelecimento instalado em Macau, manteve a sua morada no 1.º andar do prédio e constituiu uma sociedade comercial unipessoal com a designação Companhia XX Trading Co., constando como endereço nos documentos de contribuição industrial e imposto complementar o 2º andar do prédio. (Q. 39º)
40. Em 2003 J e a sua mulher, A, foram morar para Hong Kong. (Q. 40º)
41. Após a reforma do réu B em 2004, o mesmo passou grandes temporadas em Shanghai. (Q. 41º)
42. Desde data não apurada, mas após 2004, B contratou os serviços de pessoa cuja identidade não se apurou para limpeza do exterior do prédio e para a recolha de correspondência, até à presente data. (Q. 43º)
43. Os autores, após 2003, continuaram a fazer obras de manutenção e reparação do rés-do-chão do prédio. (Q. 44º)
44. Após a restituição provisória do rés-do-chão do prédio, melhor id nos autos, os autores, iniciaram obras de reparação do mesmo rés-do-chão. (Q. 45º)
45. Os autores iniciaram obras de reparação do prédio por parcialmente estar dilapidado e começar a representar uma ameaça para quem se desloca ao rés-do-chão. (Q. 46º)
b) Do Direito
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Os autores pretendem que se declare que adquiriram o domínio útil de um imóvel. Como causa aquisitiva do referido domínio útil invocaram a usucapião.
O domínio útil, como direito real de gozo que é, é susceptível de ser adquirido por usucapião, nos termos do disposto no art. 1212º do CC.
Usucapião “pode ser definida como a constituição, facultada ao possuidor, do direito real correspondente à sua posse, desde que esta assuma determinadas características e se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei”1. Esta forma de aquisição do direito de propriedade e de outros direitos reais de gozo vem regulada nos arts. 1212º e segs. do Código Civil. Trata-se da aquisição de um direito usucapível através de uma posse correspondente a tal direito, uma posse com determinadas qualidades e tempo.
Em face do direito real de gozo susceptível de ser adquirido por usucapião, os requisitos desta forma de aquisição são a posse e o tempo da posse.
Com efeito, dispõe o referido artigo 1212º do CC que “a posse do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário. A aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.
Vejamos então primeiramente se os autores têm posse do prédio.
A posse é um instituto jurídico configurado a partir de uma relação entre uma pessoa e uma coisa, mas uma relação de base essencialmente material ou de actuação material da pessoa sobre a coisa.
A posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa com intenção de agir como titular do direito real a que aquele exercício do poder de facto se refere (cfr. arts. 1175º e 1177º, al. a) do actual Código Civil e artº 1251º do anterior português de 1966, tornado aplicável em Macau pela Portaria nº ... de 4 de Setembro de 1967).
A posse, tem, assim, dois elementos: o “corpus” e o “animus”. O corpus ou elemento material da posse consiste nos concretos actos materiais exercidos sobre a coisa, utilizando-a, modificando-a fisicamente, etc. O “animus” ou elemento psicológico reside na intenção daquele que exerce poderes de facto sobre a coisa de se comportar como titular do direito real de gozo correspondente aos actos praticados sobre a coisa, independentemente do facto de ser legítima tal intenção2.
A posse é uma situação jurídica consubstanciada numa actuação sobre uma coisa, mas nem toda a actuação sobre coisas constitui posse. É necessário que a actuação seja acompanhada de determinada intenção do agente, a intenção de ser titular do direito correspondente à actuação. Se alguém actua sobre coisas sem intenção de ser titular do direito correspondente à sua actuação não tem posse, não é possuidor, mas apenas detentor (art. 1177º do CC). A referida intenção presume-se a partir da actuação sobre coisas (art. 1176º, nº 2 do CC). Porém, se a actuação de alguém sobre uma coisa começa sem que o agente tenha a intenção de ser titular do correspondente direito, a simples mudança de intenção do agente não o transforma de detentor em possuidor. Continua a actuar a título de detentor. Para passar a actuar a título de possuidor, ou seja, para adquirir a posse, tem o mero detentor de exteriorizar a sua intenção num acto seu ou de terceiro. É a inversão no título da posse. A posse é, entre outos aspectos, uma situação de facto, material, pelo que, quando não se presume a intenção do agente, carece da exteriorização dessa intenção do agente para que a posse se constitua e para ter certos efeitos jurídicos, nomeadamente no que tange aos seus caracteres (posse oculta e posse pública – art. 1186º e 1225º) e no que tange à aquisição do direito real correspondente por parte do detentor (inversão do título sob o qual se exercem poderes de facto – arts. 1190º e 1215º do CC)3.
Presume-se a intenção daquele que pratica actos materiais sobre uma coisa, mas se os pratica em nome de outrém, já essa intenção não se presume e, para se verificar posse, tem a referida intenção de ser revelada por acto do detentor ou de terceiro de forma a terminar a mera detenção e se constituir a posse.
A posse adquire-se quando se constituem ambos os seus respectivos elementos, o corpus e o animus. Estes podem ser adquiridos em simultâneo ou em momentos separados no tempo. No acto de esbulho, o esbulhador, com intenção de se ser o titular de um direito real de gozo, coloca sob o seu domínio de facto a coisa esbulhada, constituindo o corpus e o animus em simultâneo. Mas quando um inquilino deixa de pagar a renda e se arroga proprietário constituiu o corpus da posse no início do arrendamento e só constitui o animus no momento da recusa do pagamento da renda com o referido fundamento.
Os autores alegaram que eram meros detentores e que passaram a possuidores por inversão do título da posse por parte de J. Disseram que J detinha o prédio em nome do seu proprietário porque este o autorizou a residir no referido prédio e isso mesmo está provado nos números 15. a 20. supra mencionados. Portanto, nesta altura, J não tinha “animus” de ser titular do direito correspondente à utilização que fazia do prédio. E, por isso, não tinha posse. Na verdade, dispõe o art. 1177º do CC que “são havidos como detentores os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito … e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem”. E disseram ainda os autores que J recusou restituir o prédio quando lhe foi solicitada a respectiva restituição, tendo recusado restituir com intenção de passar a agir como proprietário do prédio em causa.
Porém, não se provou a alegada recusa de J nem a alegada intenção de agir como dono, como resulta da resposta negativa dada pelo tribunal colectivo aos quesitos 13º, 14º e 14º-A da base instrutória. Não está, pois, demonstrado que os autores ou seu antecessor J alguma vez tiveram a posse do prédio. Com efeito, a forma de aquisição da posse que invocaram, inversão do título (inversão de mera detenção para posse), não logrou provar-se. Efectivamente, a inversão do título da posse é uma das formas de aquisição da posse (art. 1187º, al. e) do CC) e “pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro …” (art. 1190º do CC). Não está, pois, verificada a forma de aquisição da posse alegada pelos autores, a inversão do título da posse, ou seja a transformação da posse em nome de outrem, ou mera detenção, em posse em nome próprio. Na verdade, não se tendo provado a alegada recusa de restituir o prédio, o facto de J ter pago a contribuição predial, ter feito obras e ter pago despesas com consumo de água, electricidade e gás no rés do chão do prédio não configura acto de oposição do detentor J contra o titular inscrito C ou contra quem quer que seja e, por isso, aquela factualidade provada (números 27., 31. e 32. supra) não configura inversão do título da posse, nos termos do disposto no art. 1190º do CC.
Não tendo os autores demonstrado ser possuidores, não pode proceder a sua pretensão de serem declarados como adquirentes do domínio útil por usucapião. É que dispõe o art. 1215º do CC que “os detentores não podem adquirir para si, por usucapião, o direito nos termos do qual possuem” (em nome de outrem) “, excepto achando-se invertido o título da posse”.
Improcede, pois a pretensão dos autores, sendo desnecessário tecer outras considerações relativas às características e ao tempo da posse boa para a usucapião.
No entanto, relativamente ao 2º andar do prédio, ainda se dirá que os comprovados actos materiais de utilização praticados pelos autores e pelo seu antecessor J são de duração desconhecida, não podendo saber-se se duraram o tempo que seria necessário à aquisição por usucapião (pontos 26. e 37. da factualidade provada). E relativamente ao 1º andar do prédio dir-se-à ainda que não se provou a prática de qualquer acto material por parte dos autores e do seu antecessor J.
Do pedido em reconvenção.
O réu reconvinte pretende ser ele declarado como titular do domínio útil do prédio e também invoca a usucapião como forma de aquisição daquele direito. Alegou ser ele o possuidor do prédio. Disse que o prédio pertencia a familiares seus e que estes lho doaram para nele habitar quando em 1980 veio para Macau trabalhar para a Tabaqueria X, um estabelecimento comercial de uma sociedade comercial que pertencia àqueles seus familiares e a C, pessoa inscrita no registo predial como sendo o titular do domínio útil daquele prédio. Disse ainda que a doação lhe foi feita com a condição de permitir a utilização do rés do chão para habitação de outros trabalhadores da Tabaqueria X. Disse por fim que sempre habitou no primeiro e no segundo andares do prédio e que sempre permitiu que J habitasse no rés-do-chão até que este se aposentou e foi residir para Hong Kong.
Não se provou que o réu reconvinte habitou no 2º andar do prédio e não se provou que o prédio lhe foi doado nem que foi por consentimento seu que J utilizou o rés-do-chão do prédio (resposta negativa ou restritiva dada aos quesitos 19º, 21º, 36º, 36º-A a 36º-C e 39º) . Provou-se apenas que habitou o primeiro andar.
O reconvinte não logrou, pois, demonstrar a sua alegada posse em relação ao rés do chão nem em relação ao segundo andar do prédio cujo domínio útil pretende ter adquirido por usucapião. Com efeito, não logrou provar a prática dos actos materiais que constituem o corpus da posse. Não pode proceder, pois, a reconvenção quanto a estas partes do prédio.
O caso do primeiro andar.
Resta saber se a reconvenção procede em relação ao primeiro andar. Porém, se se provou o corpus da posse em relação a esta parte do prédio (nºs 22., 33. a 36. da factualidade provada), não se provou o animus (resposta negativa dada pelo tribunal colectivo ao quesito 36ºE, onde se questionava se o reconvinte se considerava proprietário do prédio).
O tribunal colectivo fundamentou a sua decisão de considerar “não provado” o animus dizendo que nenhuma prova foi feita da existência de tal animus de posse. E disse ainda que assim decidia sem prejuízo da presunção de animus a partir da prova do corpus, a qual consta do art. 1176º, nº 2 do CC (fls. 1704).
As presunções legais fundam-se na normalidade da vida e não em qualquer arbítrio do legislador. Ao ver alguém utilizar um telemóvel e guardá-lo depois em local apropriado, o mais comum será presumir que o utilizador o considera seu.
Efectivamente, o corpus faz presumir o animus em relação àquele que pratica os actos materiais sobre a coisa (art. 1176º, nº 2 do CC). Por outro lado, quem beneficia de presunção legal não tem que provar o facto presumido, o animus, in casu, pois que o ónus da prova se inverte em caso de presunção legal4.
Há então que apurar se o reconvinte beneficia de tal presunção, questão que o tribunal colectivo da decisão de facto deixou para esta sede da decisão de Direito.
Dispõe o referido nº 2 do art. 1176º que “em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto” salvo se não foi ele que iniciou a posse (isto é, sem prejuízo do disposto no nº 2 do art. 1181º do CC).
Presume-se que aquele que exerce poderes de facto sobre a coisa é o possuidor, mas também se presume que aquele que um dia exerceu esses poderes continua a ser possuidor, mesmo que não os exerça actualmente e em permanência (art. 1181º do CC). O normal não é o abandono das coisas sobre as quais se exerceu poderes de facto. Há duas presunções legais: a presunção de animus a partir do corpus e a presunção de continuação da posse a partir da posse anterior. Quando estas duas presunções estão em colisão vence a presunção da continuação da posse. Isto é, quem prova o corpus está dispensado de provar o animus, mas quem prova a posse anterior está dispensado de provar a posse posterior e o animus já só se presume em relação a quem começou a posse e não em relação ao posterior “ocupante”.
É a parte contrária que tem de ilidir a presunção provando o facto contrário ao facto presumido5. No caso sub jucide, a existir presunção de animus, seriam os autores que teriam de provar que o reconvinte não tem animus possidendi em relação ao primiero andar que utilizou. Teriam de provar a ausência de animus. Mas quem exerce os poderes de facto (corpus) só está dispensado de provar o animus se se provar que foi ele que começou a posse e que esta não continua no anterior possuidor. Seriam então os autores que teriam de demonstrar que o reconvinte não teve animus possidendi ou que outrem possuiu antes do reconvinte. Neste último caso já seria o reconvinte que teria de provar a perda ou cessação da posse do anterior possuidor para fazer renascer a seu favor a presunção de animus a partir da prova do corpus.
Pois bem, foi o próprio reconvinte que nos arts. 90º e 91º da contestação invocou a existência de uma posse anterior à sua. Fê-lo para dizer que essa posse não foi de J nem dos autores seus sucessores, mas do titular inscrito do domínio útil (C) e do gerente da Tabaqueria X (K). Ora, se o próprio reconvinte alega a causa da inexistência da presunção de animus (a posse anterior que se presume que continua em nome de quem a começou), terá de ser ele, reconvinte, a provar esse mesmo animus, de cuja presunção a partir do corpus já não beneficia devido à invocação que fez de uma posse alheia anterior que não demonstrou ter cessado. Isto é, se o reconvinte alega, mas não prova, que o imóvel lhe foi doado pelo proprietário C e que este utilizou o imóvel, não se pode presumir o seu animus nem a perda da posse do anterior possuidor. Pelo contrário, presume-se que a posse continua no anterior possuidor ou nos sucessores deste.
É certo que o reconvinte ainda alegou factos capazes de consubstanciar outro modo de aquisição da posse: a tradição simbólica da coisa. Com efeito alegou que C lhe entregou as chaves do prédio (art. 1187º, al. d) do CC – art. 19º da contestação). Porém, não se provou tal factualidade (resposta negativa dada ao quesito 19º).
Presume-se, pois, a continuação da alegada posse de C6 em relação ao primeiro andar e não se presume o animus do reconvinte, pois que nunca se arrogou como tendo começado a posse, mas como tendo sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte (art. 1180º do CC).
Conclui-se, pois, que, por falta de animus provado ou presumido, também em relação ao primeiro andar do prédio não está demonstrada a posse do reconvinte, devendo improceder a totalidade da sua pretensão de ser reconhecido que adquiriu o domínio útil por usucapião.».
Vejamos então
Da factualidade apurada resulta demonstrado que relativamente ao prédio dos autos está inscrito que o domínio directo pertence à RAEM e o domínio útil a C. C era sócio da Tabaqueira X Limited onde J e B trabalharam, razão pela qual foi atribuído ao primeiro o Rés-do-chão do prédio a que se reportam os autos para ali viver com a sua família a partir de 1968, sendo que em finais de 1980 foi atribuído a B o 1º andar do prédio. Nesta altura o prédio já tinha dois contadores de água e de electricidade. J e B fizeram obras de reparação e manutenção do prédio. Ambos em anos diferentes pagaram a contribuição predial referente ao prédio. J trabalhou para a referida sociedade até praticamente o final de 2002, sendo que em 2003 se mudou para Hong Kong sem prejuízo de após ter regressado algumas vezes ao prédio em causa ali pernoitando, assim como os Autores após a sua morte, e B reformou-se deixando de trabalhar naquela companhia antes ou em 2004, data em que passou a estar grandes temporadas em Shanghai, sendo que desde então contratou alguém para fazer a limpeza exterior do prédio e recolher a correspondência.
Em momento algum se deu como provado que Autores e/ou Réu reconvinte usaram e fruíram do prédio ou da parte que usavam – rés-do-chão ou primeiro andar – como sendo coisa sua.
Contrariamente ao que se alega a determinado passo o “animus”, o elemento subjectivo da posse, a “intenção com que se possui” não é um facto conclusivo nem de direito.
É certo que se pode perguntar – e por vezes até dar como provado que “o que fazia – os factos materiais que supostamente foram antes referidos – como se fosse o proprietário do prédio” o que no rigor não será a formulação mais correcta por a expressão “proprietário” encerrar um conceito de direito.
Contudo, tem-se vindo a entender que determinados conceitos de direito são também eles do domínio comum, sendo a “propriedade” e a qualidade de “proprietário” os exemplos mais correntes pois está inerente a actividade económica e ao modo de vida da sociedade moderna sendo que actualmente as pessoas são sempre proprietárias de alguma coisa, basta atentarmos nos bens móveis de que qualquer ser humano é dono, isto é, proprietário.
No entanto seguro é afirmar-se que se a formulação for feita como “o que fazia – os factos materiais que supostamente foram antes referidos – como se fosse o dono do prédio” seguramente não encerra conclusão alguma de direito.
Certo é que, tal como em matéria criminal não há crime sem o elemento subjectivo e embora este se infira do modo como o criminoso actuou, tem de constar dos factos subjacentes à decisão o elemento subjectivo – se o fez a título de negligencia ou de dolo – sendo este descrito em termos factuais obviamente, também em matéria de posse e de usucapião o elemento subjectivo tem de ser dado por assente, provando-se a determinado passo que a partir de determinado momento se actua nos termos descritos – ali tomando refeições, dormindo, vivendo, recebendo amigos, familiares e correspondência, fazendo obras, etc – “como se o objecto em causa fosse seu” ou “como sendo o dono do objecto em causa” e para alguns até “como se fosse o proprietário do objecto em causa”.
O que não se pode é concluir pela existência do animus sem ele estar provado.
O inquilino/arrendatário, o comodatário, o titular do direito de uso, o hóspede, entre muitos outros também, na casa onde estejam “tomam refeições, dormem, vivem, recebem amigos, familiares e correspondência, fazem obras, etc”, o que não o fazem “é como donos do objecto em causa”.
O que não se pode é confundir “corpus” com “animus”.
“Tomam refeições, dormem, vivem, recebem amigos, familiares e correspondência, fazem obras, etc.” isto são factos materiais que demonstram o “corpus” a actuação material sobre a coisa.
Sem corpus não pode haver posse!
A intenção com que se praticam esses actos é “o animus”. Se o faz porque é hospede da casa, porque a arrendou, porque lhe foi emprestada, porque lhe foi concedido o direito a usar e habitar7, porque sente ser o dono da coisa, isto é o “animus”.
Se é hospede, se arrendou, se é comodatário, se é titular do direito de uso e habitação, é um mero detentor da coisa, não tem posse embora pratique materialmente os mesmos actos.
Se tudo faz porque sente ser o dono da coisa, tem a posse inerente ao respectivo direito que poderá ser de propriedade, ou no caso de Macau do “direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção”, ou do domínio útil nos prédios sujeitos ao regime da enfiteuse.
Ora, não consta dos autos, NÃO SE PROVA o elemento subjectivo. Não se sabe a que título Autores e Réu/Reconvinte praticam os actos que se diz praticarem.
E a única coisa que é possível presumir em face do quadro fáctico que se deu por assente é que o façam por tolerância do titular inscrito do domínio útil do prédio que foi a pessoa que os autorizou a ali passarem a viver, mas que nunca se provou terem invertido o respectivo título.
Tanto é o que se diz na decisão recorrida e o bastante para julgar a acção improcedente, mas que se entendeu reiterar de outro modo porque, das alegações de recurso, grande resulta ser a confusão do que é o animus e o corpus.
Mais, quando no nº 2 do artº 1176º do C.Civ. se diz que em caso de dúvida se presume a posse naquele que tem o poder de facto, não quer dizer que porque tem o poder de facto já tem a posse boa para usucapir.
“Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” – artº 1175º C.Civ. –
“Tomam refeições, dormem, vivem, recebem amigos, familiares e correspondência, fazem obras, etc.” isto é actuação material referente a que direito real?
Permitem a prova destes factos ou daqueles que foram dados como assentes nestes autos saber a que direito real corresponde esta actuação?
A arrendamento não será porque ninguém fala de pagar rendas. Mas e usufruto? Uso e habitação? Titular do domínio útil?
Não podemos responder, porque não se provou qual a intenção com que o fazem logo, nem tão pouco sabemos se praticam estes factos por forma correspondente a actuação de um direito real.
A presunção do nº 2 do artº 1176º do C.Civ. não é para ser interpretada desse modo.
Atente-se à parte final do nº 2 do artº 1176º: “sem prejuízo do nº 2 do artº 1181º”.
Diz o nº 2 do artº 1181º que se “presume que a posse continua em nome de quem a começou”.
Ora, no caso dos autos quem tinha a posse do imóvel é C titular do domínio útil e pessoa que autorizou o marido e pai dos Autores e Réu/Reconvinte a ali viver.
O marido e pai dos Autores e Réu/Reconvinte quando começaram a viver no prédio faziam-no como meros detentores, por autorização e tolerância daquele que os autorizou a ali viverem e não inverteram o título a que o faziam, pelo que, se presume que a posse continua em C.
Se a posse de J e B era precária no início ou mera detenção, assim se presume que ela continua nos termos do nº 2 do artº 1176º do C.Civ..
Quando o nº 2 do artº 1176º diz que se presume que tem a posse quem tem o poder de facto, presume-se que essa posse é de acordo com o título – a razão, o motivo, o direito – de acordo com o qual começou a possuir, o que pressupõe que exercem o poder de facto por forma correspondente a um direito real.
Por exemplo, se começou a exercer o poder de facto porque lhe emprestaram ou porque arrendaram, não tem posse é mero detentor ou possuidor precário. Se começou a exercer o poder de facto porque autorizaram que usasse e habitasse então tem a posse correspondente ao direito de uso e habitação, mas o direito não é usucapível (artº 1218º nº 1, b) C.Civ.). Se começou a exercer o poder de facto porque comprou, recebeu em doação, herdou, concederam-lhe o usufruto então tem posse, correspondente a esse direito.
Concluindo, o exercício do poder de facto permite presumir que tem posse ou não consoante o fundamento com base no qual começou a exercer o poder de facto.
No mesmo sentido veja-se Anotação nº 4 ao artº 1252º do Código Civil (Português) Anotado de Abílio Neto, 20ª Ed., pág.1153.
Não é por presumivelmente C ter falecido e não aparecer quem reclame a sua herança que a “posse” inerente ao direito sobre o domínio útil do prédio se transfere para os que exercem o poder de facto por tolerância daquele.
À míngua de herdeiros de C a herança haverá que vir a ser declarada vaga a favor da RAEM – artº 1973º e 1974º do C.Civ. – e a posse inerente ao direito transfere-se para os sucessíveis.
Destarte, não assiste razão quando se invoca a presunção do “animus” quanto ao poder de facto exercido por Autores e Réu/Reconvinte, uma vez que esse poder de facto exercido corresponde a mera detenção ou posse precária por autorização do verdadeiro possuidor e titular do direito.
Assim sendo, não se tendo provado que houve inversão do título bem se andou na decisão recorrida ao julgar a acção improcedente.
Mas ainda que assim não fosse, nunca a acção poderia proceder por outra razão.
O imóvel em causa é um prédio único que podendo eventualmente vir a estar, não está constituído em regime de propriedade horizontal.
Nada obstava que se tivesse invocado a posse de vários compossuidores e o prédio fosse usucapido por todos nos termos do artº 1216º do C.Civ. no regime de co-titularidade do respectivo direito real, neste caso do domínio útil.
Contudo, não foi isso que se fez.
Ainda que se tivesse provado que o exercício do poder de facto era correspondente ao exercício de um direito real e que havia posse – animus e corpus -, no caso em apreço essa posse seria referente a parte do prédio – Rés-do-chão para uns e primeiro andar para outros -.
Ora este prédio – construção em altura – não é divisível em dois prédios autónomos, sendo que a única forma de destacar os direitos de propriedade de cada um seria pela constituição da propriedade horizontal, o que nem sequer foi pedido, mas ainda que o fosse, não poderia ser autorizado.
Sobre esta matéria já nos debruçámos na sentença de 16.04.2018 proferida no processo que correu termos no TJB sob o nº CV1-12-0059-CAO, onde dizíamos:
«Porém o prédio em causa é um todo, constituído por dois andares, pelo que, vêm os Oponentes pedir a constituição do prédio em propriedade horizontal, de modo a que a usucapião possa ser reconhecida apenas quanto à parte que possuem.
Nos termos do nº 1 do artº 1315º do C.Civ. “podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do condomínio ou para a via pública”.
Relativamente a esta matéria dúvidas não há que o prédio a que se reportam os autos é composto por dois andares com a mesma área, independentes e distintos entre si e com saídas próprias para a via pública, pelo que, reúnem os requisitos substantivos para que cada um possa ser objecto de propriedade horizontal constituindo fracções autónomas distintas.
De acordo com o nº 1 do artº 1317º do C.Civ. a propriedade horizontal pode ser constituída por usucapião.
Para que se constitua o regime de propriedade horizontal por usucapião é necessário que a posse exercida sobre as unidades independentes, distintas entre si e com entradas próprias, tenha as características próprias da usucapião.
Entende, contudo alguma jurisprudência, nomeadamente a Portuguesa, que não se provando que para além daqueles requisitos – no caso de Macau os do artº 1315º C.Civ - o prédio respeita também, todos os requisitos administrativos necessários para que possa ser constituída a propriedade horizontal, aquela não pode ser declarada – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de Portugal, 23.12.2012 Proc. 16/11.1TBVZL.C2 e 07.04.2016 Proc. 421/13.9TBOHP.C1 -.
Encontra aquele entendimento acolhimento no nº 3 do artº 1418º do C.Civ. Português.
O Código Civil de Macau não tem norma correspondente ao nº 3 do artº 1418º do C.Civ. Português.
Porém, o artº 1320º do C.Civ. exige ainda que no título de constituição da propriedade horizontal se faça constar o fim a que se destina cada fracção e cada parte comum que seja afecta a fins específicos.
Ora, a simples prova de que as fracções cumprem os requisitos do artº 1315º não nos permite concluir qual o fim a que se destinam e/ou se têm as condições legais exigidas para o efeito nos termos da Lei nº 6/99/M.
Por outro lado, se no caso dos autos o prédio relativamente ao qual é pedida a constituição de propriedade horizontal é pequeno e constituído apenas por 2 pisos correspondendo a cada um, uma fracção autónoma, o certo é que a realidade de Macau é muito diversa disso, prevendo inclusivamente a lei a existência de subcondominios, sendo fácil que um condomínio seja constituído por um milhar de fracções de composições, áreas e fins distintos.
Ora esta realidade não é compatível com a simples prova de que cada uma das fracções obedece aos requistos do artº 1315º do C.Civ. para que possa ser reconhecida a propriedade horizontal por usucapião, exigindo apreciações técnicas que estão para além da função jurisdicional.
Os fundamentos para o reconhecimento judicial da propriedade horizontal por usucapião não podem variar em função da dimensão do prédio, pelo que, não se pode aceitar de modo algum que se possa vir a reconhecer a constituição de um prédio sob o regime de propriedade horizontal sem que se faça também a prova de que a entidade competente para o efeito reconhece que o mesmo obedece aos requisitos necessários para o efeito, sob pena da decisão judicial vir a colidir com o disposto no nº 3 do artº 1316º do C.Civ.
Destarte, uma vez que no caso dos autos não foi feita a prova de que a entidade pública a quem cabe a aprovação e fiscalização das construções reconheceu e autorizou a possibilidade do prédio em causa ser constituído em propriedade horizontal e em que termos, não estão verificados os requisitos necessários para que se possa reconhecer a constituição da propriedade horizontal por usucapião.
(…)
Subsidiariamente pedem os Oponentes que se reconheça terem adquirido o prédio dos autos em compropriedade o que seria possível face ao disposto no artº 1216º do C.Civ., contudo, havia que ter sido demonstrado que estes oponentes e os demais compossuidores haviam exercido a posse “sobre a totalidade do prédio” e não, apenas sobre uma parte dele.
Tal como também se refere num dos Acórdãos citados supra, - o do Tribunal da Relação de Coimbra de Portugal de 07.04.2016 -, “em face do regime geral do direito de propriedade sobre imóveis, qualquer edifício incorporado no solo só pode ser objecto de um único direito de domínio, o qual abrangerá toda a construção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe servem de logradouro, como se infere das regras sobre acessão industrial imobiliária e do disposto no artº 1344º do C.Civil, numa manifestação do principio da vertente segundo a qual, incidindo o direito de propriedade sobre a totalidade das coisas que constituem o seu objecto, não podem as suas partes integrantes ou componentes serem objecto de direito de propriedade de titular diferente, sendo o destino jurídico da coisa unitário”.
Assim sendo, pese embora se prove a posse boa para usucapir dos Oponentes (…), não incidindo esta sobre a totalidade do prédio, não podem estes com base naquela usucapir o direito de propriedade do mesmo, improcedendo a sua pretensão.».
Pelas mesmas razões, no caso dos autos, ainda que se houvesse provado a posse do direito real cuja aquisição por usucapião se pedia, provando-se que a exerceram sobre partes distintas do prédio e na impossibilidade de constituir a propriedade horizontal, também a acção haveria de improceder.
Destarte, bem se andou na decisão recorrida ao julgar a acção improcedente.
III. DECISÃO
Termos em que, pelos fundamentos expostos se nega provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo dos Recorrentes.
Registe e Notifique.
Comunique remetendo cópia desta decisão ao Ministério Público para os efeitos que tiver por convenientes uma vez que há indícios do domínio útil sobre o prédio em causa pertencer a uma herança jacente em situação de ser declarada vaga a favor da RAEM por não se terem identificado herdeiros alguns do titular inscrito.
RAEM, 07 de Setembro de 2023
Rui Pereira Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(Primeiro Juiz Adjunto)
Ho Wai Neng
(Segundo Juiz Adjunto)
1 Meneses Cordeiro, A Posse – Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª edição, Almedina, 2000, p. 129.
2 Cfr. Prof. Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 4ª edição, Coimbra 1987, p. 91.
3 “A publicidade é um elemento integrante do facto possessório, porque é por ela que ele adquire um valor social” – Manuel Rodrigues, A Posse, Edições Almedina, Coimbra 1981, pág. 187.
4 Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz – art. 343º, nº 1 do CC. Inverte-se o ónus da prova “quando haja presunção legal” – art. 337º, nº 1 do CC.
5 “As presunções legais podem … ser ilididas mediante prova em contrário…” – art. 343º, nº 2 do CC.
6 Ou, eventualmente, dos seus eventuais sucessores – art. 1179º do CC.
7 Note-se que o direito de uso expressamente não permite usucapir – al. b) do nº 1 do artº 1218º do C.Civ. -.
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351/2023 CÍVEL 15