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Processo nº 227/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data do Acórdão: 14 de Setembro de 2023

ASSUNTO:
- Posse
- Propriedade horizontal
- Partes comuns

SUMÁRIO:
- Num prédio constituído em propriedade horizontal os condóminos são proprietários da sua fracção e comproprietários das partes comuns, direitos estes que são incindíveis, assim como a posse inerente aos mesmos;
- Adquirindo os condóminos aquando da aquisição das fracções autónomas a posse das mesmas por constituto possessório, adquirem igualmente, nos mesmos termos e ao mesmo tempo a posse sobre as partes comuns uma vez que os direitos e respectiva posse não podem ser separados.


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Rui Pereira Ribeiro

rocesso nº 227/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 14 de Setembro de 2023
Recorrente: Companhia de Construção e Investimento Predial A Limitada
Recorrido: Condomínio do Edifício Residencial B
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  Condomínio do Edifício Residencial B, com os demais sinais dos autos,
  vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
  Companhia de Construção e Investimento Predial A Limitada, também, com os demais sinais dos autos,
  Pedindo o Autor/Recorrido que seja a Ré/Recorrente condenada a:
  - Restituir a posse dos lugares de estacionamento situados no 1º e 2º andares do Condomínio do Edifício Residencial B;
  - Entregar à administração do condomínio todas as chaves e comandos do portão de acesso aos referidos parques de estacionamento;
  - Abster-se de perturbar a posse do condomínio autor.
  Proferida sentença, foi a acção julgada parcialmente procedente e em consequência:
a) Condena-se a ré, Companhia de Construção e Investimento Predial A Limitada, a restituir ao autor, Condomínio do Edifício Residencial B, a posse dos lugares de estacionamento do 1º e 2º andares do Edifício Residencial B sito na Rua do Comandante João Belo, Bairro Fai Chi Kei, nºs 156 a 256, Avenida da Concórdia, nºs 9 a 91 e Rua Norte do Patane, nºs 10 a 36, registado na Conservatória do Registo Predial de Macau sob a descrição n.º 22320;
b) Condena-se a ré a abster-se de, por si ou por intermédio de terceiros, perturbar a posse do autor;
c) Absolve-se a ré do demais peticionado pelo autor, absolvição que não releva quanto a custas;
d) Condena-se a ré no pagamento das custas do processo.
  Não se conformando com a decisão proferida vem a Ré e agora Recorrente interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões e pedidos:
I. Objecto
i. Por sentença do Tribunal a quo, foi julgada parcialmente procedente a acção do recorrido e foi condenada a recorrente a restituir ao recorrido a posse dos lugares de estacionamento situados nos 1º e 2º andares do Parque B e a recorrente foi proibida de praticar em seu nome próprio ou por terceiros acto de perturbação da posse do recorrido.
ii. Por não se conformar com a sentença recorrida, em que há vários erros no julgamento e aplicação do direito, vem a recorrente interpor o presente recurso.
II. Na parte da selecção da matéria de facto no despacho saneador não se abrangem todos os factos relevantes para a solução do caso
i. A recorrente defendeu na sua contestação que o recorrido não tem a posse do Parque B, é a recorrente que tem gozado e aproveitado exclusivamente os lugares de estacionamento do Parque B desde a construção do Edf. B.
ii. Para tal, na contestação, a recorrente alegou uma série de factos para defender que a recorrente é a possuidora dos lugares de estacionamento do Parque B.
iii. Todavia, na contestação, a recorrente qualificou erradamente o respectivo teor como impugnação, em vez de excepção peremptória.
iv. O recorrido considerou esse teor da contestação da recorrente como excepção peremptória e, por conseguinte, apresentou a réplica do autor e ampliou o pedido no respecitvo articulado, pedindo subsidiariamente que a recorrente restitua a propriedade dos lugares de estacionamento do Parque B.
v. O Tribunal a quo também considerou a impugnação deduzida na contestação da recorrente como excepção peremptória e, em consequência, admitiu o pedido subsidiário do recorrido.
vi. No proc. n.º 106/2022, o TSI também julgou que a recorrente deduziu na contestação uma excepção peremptória, ela alegou, na verdade, factos que extinguem a posse do Parque B pretendida pelo recorrido.
vii. O Tribunal a quo teve como excepção peremptória os factos alegados na contestação da recorrente sobre a sua qualidade da possuidora do Parque B, contudo, não os deu como factos assentes ou factum probandum na base instrutória, resultando em que os factos não foram investigados na audiência de julgamento, nem serviram para proferir sentença.
viii. Os referidos factos são relevantes e indispensáveis para apreciar a posse da recorrente.
ix. Salvo o devido respeito, a recorrente entende que a referida decisão viola o art.º 430.º do CPC.
x. Quanto à questão sobre as funções e efeitos processuais da decisão selecionadora da matéria de facto, tomada pelo juiz no despacho saneador, no aspecto do direito comparado, de acordo com o acórdão do proc. n.º 3811/13.3TBPRD.P1.S1 do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal e o acórdão do proc. n.º 29808/97.0TVLSB-D.L1-1 do Tribunal da Relação de Lisboa, fazendo comparação com o art.º 511.º do Código de Processo Civil de 1961 de Portugal, a selecção da matéria de facto consiste numa tramitação de escolher dos articulados das partes os factos relevantes para dirimir o litígio jurídico entre elas, de forma a proporcionar nos ulteriores procedimentos de julgamento e audiência retirar por diligências diferentes de produção de prova os factos provados para a aplicação do direito e a solução do conflito.
xi. Isto é, a decisão final da selecção da matéria de facto não tem o efeito do caso julgado, nem vincula o tribunal superior.
xii. A recorrente deduziu na contestação a excepção peremptória sobre a sua posse dos lugares de estacionamento do Parque B, porém, o Juiz não deu os respectivos factos por provados ou por factum probandum na base instrutória, tal decisão viola o art.º 430.º n.º 1 do CPC.
xiii. A referida decisão não constitui caso julgado e demonstra-se deficiente sobre os factos relativos à posse da recorrente, pede-se que, ao abrigo do art.º 629.º n.º 4 do CPC, seja anulada a sentença em causa, ordenadas ao Tribunal a quo a ampliação da matéria de facto a seleccionar e a realização duma nova audiência de julgamento, para investigar os factos relevantes para o caso.
III. O recorrido não tem a posse do Parque B
i. Constituto possessório
a. O Tribunal a quo entende que o recorrido adquiriu por constituto possessório a posse dos lugares de estacionamento do Parque B, entretanto, a recorrente não concorda com esse reconhecimento.
b. Exige-se um juízo dos factos, mas não do direito, para confirmar se o recorrido tem a posse dos lugares de estacionamento do Parque B.
c. Ao abrigo do art.º 1175.º do Código Civil, posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
d. De acordo com o sentido literário da lei, a doutrina e as sentenças judiciais proferidas ao longo do tempo, o corpus refere-se à apreensão material ou controlo sobre o objecto; o animus refere-se a que o autor actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, os estudiosos portugueses Dr. Orlando de Carvalho e o Dr. José de Oliveira Ascensão também apoiam o entendimento igual.
e. O Tribunal a quo reconheceu que o recorrido adquiriu por constituto possessório a posse dos lugares de estacionamento do Parque B.
f. De acordo com os estudiosos portugueses Dr. Pires de Lima, Dr. Antunes Varela, Dr. António Lima Aráujo e Dr. Fernando Reboredo Seara, bem como o acórdão do proc. n.º 0725035 do Tribunal da Relação do Porto, o constituto possessório exige os seguintes requisitos: existe um acordo entre o possuidor e o detentor, o qual compreende duas declarações de vontade diferentes, a primeira no sentido de transmissão do direito real do objecto pelo anterior possuidor ao novo possuidor, enquanto que a segunda no sentido de prestação da declaração de vontade pelo novo possuidor de manter a detenção do objecto pelo anterior possuidor.
g. No caso, o Tribunal a quo reconheceu o constituto possessório por motivo de que, na compra e venda das fracções autónomas do Edf. B, a recorrente já transmitiu ao recorrido a posse dos lugares de estacionamento do Parque B.
h. Entretanto, de acordo com os factos provados, o recorrido nunca disse, nem foi dado provado que, ao realizar o negócio da compra e venda das fracções autónomas, ele prestou a declaração de vontade de proporcionar à recorrente manter a sua detenção dos lugares de estacionamento do Parque B.
i. A posse não é um direito real, mas sim uma situação de facto que merece a tutela jurídica, deste modo, a transferência do direito de propriedade não resulta necessariamente na transferência e perda da posse.
j. No caso, os actos da venda e entrega pela recorrente aos compradores das fracções autónomas habitacionais do Edf. B só implicam a perda da sua posse sobre as fracções; não há qualquer prova de que a recorrente proporciona aos compradores usar os lugares de estacionamento do Edf. B com base nas escrituras públicas de compra e venda celebradas com os compradores, mas sim continua a usar e gerir exclusivamente os lugares de estacionamento do Parque B, nunca manifestou o intuito da perda/abandono/cedência da posse, pelo que, a celebração das escrituras públicas de compra e venda das fracções autónomas pela recorrente com os compradores não origina a transferência da posse ao recorrido.
k. A prestação da declaração de vontade pelo recorrido de proporcionar à recorrente continuar a deter os lugares de estacionamento do Parque B não constitui facto notório ou facto conhecido por virtude do exercício das funções, nem foi alegada e provada pelo recorrido, pelo que, tal facto não deve ser aceite pelo Tribunal a quo.
l. Pelas razões acima expostas, o Tribunal a quo cometeu erro na qualificação jurídica quando reconheceu que o recorrido adquiriu por constituto possessório a posse dos lugares de estacionamento do Parque B.
ii. O animus e o corpus do recorrido sobre os lugares de estacionamento
a. Se o recorrido não adquiriu por constituto possessório a posse dos lugares de estacionamento do Parque B, devemos analisar se tem o animus e o corpus para julgar se o recorrido tem a posse.
b. Antes de mais, a “posse” e o “direito de propriedade” são dois conceitos jurídicos diferentes que visam proteger interesses distintos. A posse não é um direito real de gozo, mas sim uma situação jurídica.
c. A existência da posse e do direito de propriedade não é necessariamente simultânea, são diferentes os requisitos exigidos pela tutela da posse e pela tutela do direito real de gozo. Se for um bem imóvel, pode-se verificar o titular do direito real de gozo através de indagar o registo e, por conseguinte, obter a garantia legal da restituição do direito real de gozo.
d. Todavia, a posse é uma situação de facto protegida pela lei, a parte tem que provar simultaneamente o seu corpus e o animus sobre a coisa para reconhecer a posse, que não pode ser verificada por qualquer presunção legal.
e. Deste modo, do direito de propriedade não se pode presumir a posse, ou seja, puramente com base em que o recorrido é comproprietário dos lugares de estacionamento do Parque B não se pode verificar a sua posse sobre aqueles lugares.
f. Na petição inicial, o recorrido alegou que exercia através da Companhia de Administração de Propriedades C o poder de apreensão material sobre os lugares de estacionamento do Parque B. Ao contrário, a recorrente indicou que, no que diz respeito à administração dos lugares de estacionamento do Parque B, C actuava em harmonia com os interesses e contagem da recorrente, mas não do recorrido (sic.).
g. Conforme os factos provados, só se verifica que prestou os serviços de administração das partes comuns do Edf. B, porém, não se menciona se C actuava em harmonia com os interesses e contagem da recorrente ao proceder à administração dos lugares de estacionamento do Parque B.
h. A recorrente e o recorrido impugnaram a posse sobre os lugares de estacionamento do Parque B no proc. n.º CV1-20-0075-CAO-A (procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse), do qual o TUI já proferiu a decisão final (n.º 140/2021).
i. Segundo o acórdão n.º 140/2021, foi dado provado que até 30 de Abril de 2020, a Companhia de Administração de Propriedades C era responsável pela administração das partes comuns do Condomínio e do Parque. Também era responsável pela manutenção e administração do Parque.
j. No referido acórdão, o TUI nem julgou que o recorrido adquiriu por constituto possessório a posse dos lugares de estacionamento.
k. Pelas razões expostas, obviamente, o recorrido não consegue provar o seu exercício da apreensão material sobre os lugares de estacionamento do Parque B, faltando o corpus, portanto, não tem a posse.
iii. A recorrente tem a posse sobre os lugares de estacionamento do Parque B
a. Com o fim de defesa prudente, a recorrente entende verificada dos factos a situação da inversão do título da posse, prevista pelo art.º 1190.º do Código Civil.
b. Conforme a doutrina dos estudiosos portugueses Dr. Miguel Ricardo Machado Oliveira e Dr. José Alberto C. Vieira, a oposição, prevista pelo art.º 1190.º do Código Civil, refere-se à prática de actos materiais ou jurídicos pelo detentor, para manifestar ao possuidor que é ele que exerce o direito próprio sobre a coisa.
c. No caso, o Tribunal a quo indicou que, a recorrente intentou em 2015 a acção de usucapião (proc. n.º CV1-15-0109-CAO), a inversão do título da posse só teria lugar desde que o réu fosse citado, no entanto, a recorrente não provou que o recorrido recebeu a citação, por isso, não ocorreu a inversão do título da posse.
d. Sempre que o recorrido conheceu a proposição da referida acção, mesmo não sendo citado, já aconteceu a inversão do título da posse.
e. De facto, no art.º 86.º da contestação, a recorrente já assinalou que, o recorrido intentou a presente acção através da administração do condomínio, cujos poderes foram emergentes da deliberação de 16 de Junho de 2018 da Assembleia Geral do Condomínio do Edf. B (vide as fls. 231 a 235 do proc. n.º CV1-20-0075-CAO-A).
f. Também apontou expressamente na contestação que, foi por motivo de saber que a recorrente intentou a referida acção de usucapião que a Assembleia Geral do Condomínio do Edf. B, por conseguinte, realizou a reunião de 16 de Junho de 2018 e delegou a administração do condomínio para intentar acção e fazer contestação, em representação de todos os proprietários, sobre as questões da posse e da propriedade das partes comuns.
g. Quer o art.º 1358.º n.º 3 do Código Civil (agora revogado) quer o art.º 45.º n.º 3 da Lei n.º 14/2017 dispõem que, a administração do condomínio só tem a legitimidade de intervir nas acções relativas a questões de propriedade ou posse de bens comuns quando a assembleia geral do condomínio lhe tenha atribuído poderes.
h. Por outro lado, o Tribunal a quo deu assentes vários factos que podem verificar a posse da recorrente (nomeadamente no tocante ao seu poder material de controlo sobre o sistema de vigilância e de todo o Parque), todavia, o Tribunal a quo entendeu que, a recorrente não alegou na contestação os factos provados supracitados, portanto, o Tribunal a quo não podia considerar esses factos, nem apoiava que esses factos constituem a inversão do título da posse.
i. Na verdade, as alegações da contestação já compreendem os factos dados provados pelo Tribunal a quo, não há qualquer facto que a recorrente não alegou nos articulados e, portanto, o Tribunal não podia considerar.
j. Por outro lado, pelo menos desde 2018 a recorrente tem exercido a apreensão material sobre o Parque B, fiscalizando e controlando através dos trabalhadores e sistema de vigilância. A recorrente não entende que os referidos actos são de pura gestão.
k. Ao proceder à fiscalização e controlo do Parque B através dos trabalhadores (guardas), a recorrente comportava-se como proprietária do Parque, podia controlar (sic.) os indivíduos que tinham acesso aos lugares de estacionamento, inibir a entrada dos indivíduos não permitidos e impedir qualquer conduta obstante ao uso dos lugares.
l. Quando qualquer pessoa (incluindo o recorrido) queria usar lugar de estacionamento, sabia com certeza que os trabalhadores estavam a fiscalizar e controlar o uso do Parque.
m. Os referidos actos constituem a oposição material, são conhecíveis para o interessado (recorrido), pelo que, em 2018, a recorrente já efectuou a inversão do título da posse.
n. Ao abrigo do art.º 1207.º n.º 1 do Código Civil, a acção de manutenção, bem como as de restituição da posse, caducam, se não forem intentadas dentro do ano subsequente ao facto da turbação ou do esbulho.
o. Termos em que, a recorrente intentou a acção de usucapião em 2015, tem exercido pelo menos desde 2018 o domínio total e permanente sobre o Parque B, cujo sistema de vigilância tem estado sujeito ao controlo directo da recorrente também pelo menos desde 2018.
p. Reconhecendo a inversão do título da posse, os respectivos actos devem ser considerados praticados desde 2015 ou 2018.
q. No entanto, o recorrido só intentou a presente acção até 2020, ou seja, fora do ano subsequente ao facto da inversão do título da posse ou do esbulho, por isso, a acção já caducou.
r. Pelo que, o recorrido não tem direito a intentar a presente acção de restituição da posse e, por este meio, demandar que a recorrente lhe restitua a posse do Parque B, a sentença do Tribunal a quo deve ser revogada, os pedidos do recorrido julgados improcedentes e reenviado o processo ao Tribunal a quo para conhecer o pedido subsidiário (sic.).
  Pelo exposto, pede-se que
- Seja revogada a sentença do Tribunal a quo e, ao abrigo do art.º 629.º n.º 4 do CPC, sejam ordenadas ao Tribunal a quo a ampliação da matéria de facto a seleccionar e a realização duma nova audiência de julgamento, para investigar os factos relevantes para o caso;
- Seja revogada a sentença do Tribunal a quo, julgados improcedentes os pedidos do recorrido e reenviado o processo ao Tribunal a quo para conhecer o pedido subsidiário (sic.).
  
  Contra-alegando, vem o Autor apresentar as seguintes conclusões:
i. Vem a ré e ora recorrente interpor recurso da sentença proferida em primeira instância, na qual foi condenada, em síntese, a restituir ao autor e ora recorrido a posse dos lugares de estacionamento do 1º e 2º pisos do edifício B, bem como a abster-se, por si ou por intermédio de terceiros de perturbar a posse do A., apontando ao tribunal a quo, fundamentalmente, quatro vicissitudes, recorrendo a representações destituídas de qualquer aderência aos factos e ao direito, se poderá considerar como lide temerária.
ii. Antes de mais, a recorrente invoca na conclusão xiii da sua motivação de recurso a anulação da sentença recorrida ao abrigo do disposto no art. 629º, nº 4, do CPC, com vista à ampliação da matéria de facto. No entanto, nunca refere que o recurso tem como objecto a decisão da matéria de facto nem especifica quais os pontos que considera incorrectamente julgados, ou os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, pelo que deve o mesmo ser rejeitado, nesta parte - art. 599º, nº 1, do CPC.
iii. Em relação à suposta insuficiência de factos seleccionados, relevantes para determinação da posse dos lugares de estacionamento, e à pretensão de ampliação da selecção da matéria de facto, estamos perante uma tese construída à base de omissões e inexactidões factuais; segundo, toda a matéria relevante trazida aos autos foi efectivamente seleccionada, conforme a própria recorrente o demonstra, ao não conseguir. apontar um único facto relevante que tenha sido omitido.
iv. A recorrente começa, então, por salientar que alegou vários factos na sua contestação sem identificar em concreto quais - e que os qualificou erradamente como defesa por impugnação, mas que agora vem qualificar como defesa por excepção peremptória. Conclui que, tendo qualificado tal matéria como defesa por excepção, o tribunal a quo deveria ter seleccionado “os factos” - factos esses que a recorrente nunca chega a apontar - para a matéria de facto, por serem relevantes para a decisão da causa, o que não o fez.
v. Ora, basta a mera consulta dos autos para verificar que a realidade é que nem o TJB nem o TSI, no seu acórdão de recurso sob processo nº 106/2022, consideraram todos os factos alegados na contestação como defesa por excepção, contrariamente aquilo que a recorrente parece fazer crer. Efectivamente, a única matéria de excepção invocada pela recorrente nestes autos está relacionada com o fundamento na sua suposta qualidade de proprietária plena dos lugares de estacionamento, adquirida por usucapião, como fundamento do exercício da posse, conforme quer o TJB como o TSI tão bem apontaram nas respectivas decisões.
vi. Portanto, tendo alegado o direito de propriedade sobre os lugares de estacionamento em causa por via da usucapião, e sendo os seus pressupostos a posse por certo lapso de tempo - art. 1212º do CC - sobre lugares de estacionamento, foi precisamente essa a matéria sobre a qual incidem os factos seleccionados, pelo que obviamente não se pode afirmar que tenham sido excluídos da matéria de facto. E nem se compreende que matéria adicional a recorrente entende que fosse necessária para a demonstração que teria a posse por determinado tempo.
vii. A isto tudo acresce, como já se disse, que a recorrente não se digna a apontar qual ou quais os factos em concreto que na sua perspectiva deveriam ter sido seleccionados para a matéria de facto, tornando assim impossível identificar a que matéria se refere, o que por si só deve conduzir à improcedência do recurso nesta matéria, o que desde já se invoca. Em todo o caso, resulta bastante evidente da apreciação dos presentes autos que os factos essenciais relativos quer à pretensão do autor e ora recorrido quer à excepção invocada pela ora recorrente foram seleccionados para a matéria de facto.
viii. De acordo com o Princípio dispositivo, cabe ao réu alegar na contestação, e provar em sede de audiência e julgamento, os factos em que se baseiam as excepções invocadas na defesa - art. 5º, nº 1, do CPC, art. 335º, nº 2, do CC. e art. 409º do CPC. A recorrida tinha a faculdade de reclamar contra o despacho saneador e a selecção da matéria de facto, com fundamento em deficiência da mesma e do despacho proferido sobre as mesmas reclamações só poderia impugnar no recurso interposto da decisão final - art. 430º, nº 2 e nº 3, do CPC. Em última instância, a recorrente tinha ainda a possibilidade durante a fase de audiência de julgamento de requerer que o juiz ampliasse oficiosamente a base instrutória - art. 553º, nº 2, al, f), do CPC. Esta concentração dos meios de defesa e a obrigatoriedade de os alegar e provar resulta do dever de lealdade e de litigar de boa fé, sob pena de perda do direito de invocação, tem como corolário o Princípio da preclusão.
ix. Sucede que, não obstante ter a obrigação de iniciativa quanto aos factos atinentes à sua defesa, a recorrente mostrou-se inerte e despreocupada em relação aos ditos factos que pretende agora ver incluídos, pelo que a sua pretensão nesta fase seria contornar o efeito preclusivo da invocação factual, desconsiderar o princípio da concentração da defesa e violar a estabilidade do caso julgado, além de uma conduta ilegítima que configura abuso de direito na modalidade de lide temerária e supressio - art. 326º do CC. - em violação dos princípios da boa-fé, pelo que deve esta matéria improceder.
x. No que respeita à posse sobre os lugares de estacionamento em causa, vem a recorrente insurgir-se contra a decisão do tribunal a quo de ter considerado que foi adquirida pelo recorrido por via do constituto possessório.
xi. Conforme é sabido, a posse é definida como um poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade - conforme estabelecido no art. 1175º do CC -, donde resulta que a posse não só é autónoma, como subsiste mesmo dissociada da situação de facto.
xii. A transmissibilidade dos direitos reais por negócio entre vivos assenta no princípio da consensualidade, que decorre do mero efeito do contrato, e do princípio da causalidade, que implica que a transmissão do direito real só pode resultar de um negócio jurídico válido.
xiii. No contexto da aquisição derivada da posse - em contraposição com a aquisição originária - a lei estabelece o constituto possessório, que se trata de uma forma de aquisição solo consensu de posse, portanto, uma aquisição sem necessidade de um acto material ou simbólico que a revele, na medida em que a entrega da coisa objecto de um contrato de compra e venda ou a investidura do comprador na sua posse efectiva não ocorre somente pela tradição material ou simbólica da mesma, pois que esta investidura pode fazer-se através do constituto possessório1.
xiv. O constituto possessório consiste, assim, na conversão de uma posse em detenção, em consequência da realização de dois actos jurídicos simultâneos - o principal, que resulta de um acto de transmissão do direito real que tenha como consequência a transferência de posse daquele que até ali era o seu titular e outro acessório, mediante o qual o até aí possuidor seja considerado como simples detentor ou possuidor precário.
xv. Ora, no caso em apreço nestes autos, a recorrente alienou as fracções autónomas juntamente com os lugares de estacionamento do edifício, bem sabendo que a realização do contrato de compra e venda tinha como consequência jurídica a transmissão da posse para os condóminos.
xvi. Por outro lado, é um facto público e notório e decorre das regras da experiência comum que, desde há décadas a esta parte, os promotores imobiliários no território têm ficado a garantir a gestão das partes comuns dos edifícios, por si próprios ou através de empresas que nomeiam, enquanto não é constituído o condomínio e eleita uma administração, o que em certos casos nunca chegou a acontecer.
xvii. E de facto, tudo o acima exposto foi implicitamente reconhecido e admitido pela recorrida, não só nestes autos, como na acção de usucapião por esta intentada contra os proprietários do edifício B, uma vez que sempre alegou ter adquirido o direito de propriedade sobre os lugares de estacionamento por via da usucapião. A usucapião é uma aquisição originária do direito de propriedade, que decorre da posse mantida por determinado período de tempo. Se a recorrente foi a construtora e promotora da venda do edifício B, e era inicialmente a proprietária da totalidade do mesmo, incluindo dos lugares de estacionamento, não teria motivo para recorrer ao instituto jurídico da usucapião para ver reconhecido esse mesmo direito de propriedade do qual já era proprietária.
xviii. Daí resulta que a recorrente reconheceu e aceitou que perdeu a posse sobre os lugares de estacionamento quando celebrou os contratos de compra e venda com os condóminos, ficando apenas a praticar os actos materiais sobre os mesmos na qualidade de mera detentora, Caso a recorrente estivesse de facto convicta que nunca tinha vendido os lugares de estacionamento e que assim se mantinha como proprietária dos mesmos, teria feito uso do instituto da reivindicação da posse, e nunca da usucapião. Ao vir posteriormente alegar que adquiriu a posse por usucapião, a recorrente vem para todos os efeitos reconhecer que a perdeu quando comercializou o edifício, alienando as fracções autónomas e as partes comuns, incluindo os lugares de estacionamento.
xix. Ou seja, através dos contratos de compra e venda (por cada fracção autónoma) resultou a transmissão do direito real, tendo como consequência a transferência de posse da recorrente para cada proprietário de cada fracção, sem necessidade de entrega da coisa, e onde a recorrente passou a ser simples detentora ou possuidora precária, estando assim reunidos os pressupostos do constituto possessório.
xx. Tendo o recorrido provado que a recorrente transmitiu o direito de propriedade sobre as partes comuns do edifício cuja posse detinha, designadamente dos lugares de estacionamento, e não tendo esta provado e nem sequer alegado qualquer facto jurídico do qual pudesse resultar o elemento intencional da posse (solo animo), ficando claramente demonstrado que perdeu a posse e se converteu em mero detentor, no âmbito da figura do constituto possessório.
xxi. A isto tudo acresce que os lugares de estacionamento do edifício B são insusceptíveis de sobre eles ser exercida a posse pela recorrente em virtude da sua qualificação jurídica de parte comum, e incindível do direito de propriedade das fracções autónomas, das quais a recorrente não é proprietária, nos termos do regime da propriedade horizontal que tem expressão no art. 1313º do CC, que o caracteriza como um direito misto donde resulta que cada condómino é proprietário exclusivo da sua fracção e comproprietário das partes comuns, conforme decorre do art. 1323º, nº 1, do CC.
xxii. Esse conjunto de direitos de propriedade são incindíveis entre si, sem possibilidade de nenhum deles ser alienado separadamente, nem renunciado, conforme imposto pelo art, 1323º, nº 1, do CC; por isso, os condóminos são proprietários normais das suas respectivas fracções, mas têm em relação às partes comuns uma longa série de obrigações reais, nas quais se acham encabeçados somente porque e enquanto proprietários das fracções. Da qualidade de proprietários das fracções resulta-lhes uma série de obrigações respeitantes às partes comuns, de que não podem desonerar-se senão abandonando as fracções.
xxiii. Portanto, tendo a natureza de partes comuns do Condomínio do Edifício Residencial B, os lugares de estacionamento em apreço incorporam-se no direito de propriedade das fracções autónomas, que são, por disposição legal, direitos incindíveis.
xxiv. Tratando-se os presentes autos de acção de restituição provisória da posse, o acima referido tem toda a relevância no contexto da verificação dos seus pressupostos legais: a posse - art.º 338º do CPC. Isto porque importa estabelecer se os parques de estacionamento podem ou não sequer ser objecto de posse pela requerida, o que, desde já se diz que não.
xxv. Recaindo o objecto da posse sobre direitos que tenham como objecto coisas, e não tendo os parques de estacionamento uma autonomia própria e separada das fracções, torna-se evidente que não podem ter o estatuto de “coisa” para efeitos de posse.
xxvi. Efectivamente, o próprio TSl já considerou, em acórdão de Janeiro de 2017, no processo nº 780/2016 que “em propriedade horizontal há fracções autónomas e partes comuns. O que não constituir, pelo referido título, fracção autónoma, inexiste como coisa corpórea capaz de ser objecto de apropriação individual”. Tendo concluído o mesmo acórdão que “os lugares de estacionamento, por serem partes comuns, natureza estabelecida no próprio projecto de construção do prédio sub judice, não são passiveis de apropriação individual” (sublinhados nossos). Este mesmo entendimento foi posteriormente ainda confirmado pelo TSI, por ocasião de acórdão de Junho de 2018, no processo nº 446/2017.
xxvii. Assim, na esteira da douta jurisprudência acima citada conclui-se que não podendo ser objecto de direito de propriedade autónomo, os lugares de estacionamento em apreço não podem também ser objecto de posse em termos individuais e autónomos pela recorrente, na medida em que não é concomitantemente sequer proprietária das fracções autónomas, termos em que não deve o seu recurso merecer provimento.
xxviii. Para rematar, importa só recordar que se encontra vedada a constituição de figuras parcelares de direito de propriedade, pelo que sempre seria nulo qualquer tipo de desmembramento do direito de propriedade dos condóminos em relação às partes comuns, ou a criação de qualquer outra forma jurídica, por falta de previsão legal - art. 1230º do CC.
xxix. Por fim, a recorrente vem defender que não ficou demonstrado que o recorrido tivesse o corpus nem o animus dos parques de estacionamento, e seguidamente vem invocar que já teria ocorrido inversão do título da posse a favor da recorrente, antes do referido esbulho, em 2020.
xxx. Desde logo, a recorrente vem-se fundamentar em matéria apreciada em jurisdição provisória, nos autos procedimento cautelar nº CV1-20-0075-A, o que constitui advogar contra a lei, por ser uma afronta directa ao disposto no art. 328º, nº 5, do CPC, que estabelece categoricamente que o julgamento da matéria de facto e a decisão final proferida no procedimento cautelar não têm qualquer influência no julgamento da acção final, pelo que não se compreende o seu alcance e nem deve ser apreciada na presente instância de justiça definitiva.
xxxi. Não obstante, o corpus acarreta a prática de actos que traduzem o exercício de um direito real, que pressupõe o domínio da coisa. Porém, não requer uma ligação física constante do possuidor à coisa.
xxxii. A recorrida foi a entidade responsável pela construção, constituição em regime de propriedade horizontal e comercialização do edifício B, motivo pelo qual também ficou provado que a recorrente sabe que os lugares de estacionamento constituem partes comuns do condonúnio e que pertencem aos condóminos. O direito de propriedade dos condóminos inclui, corno se sabe, o direito pleno e exclusivo de uso, fruição e disposição, incluindo o direito defesa, restituição e alienação, conforme decorre do art. 1229º do CC, o qual se estende desde as fracções autónomas às partes comuns do edifício.
xxxiii. Nunca tendo alegado nem feito prova de ter reservado para si o direito de propriedade ou a posse sobre os lugares de estacionamento, no momento da celebração de cada escritura pública de compra e venda, torna-se factual que a recorrente transferiu esses direitos de gozo plenos aos condóminos. Aliás, note-se que a recorrente nem demonstrou a existência de qualquer resistência ou impedimento à transferência da posse sobre lugares de estacionamento quando os condóminos vendem as respectivas fracções autónomas, contrariamente à própria recorrente, que admitiu nos autos que não pode vender legalmente os lugares de estacionamento, mesmo que assim o pretenda.
xxxiv. Portanto, a partir do momento em que a recorrente iniciou o processo de comercialização do edifício e foi realizando as sucessivas escrituras de compra e venda, foi perdendo a posse dos lugares de estacionamento, proporcionalmente à permilagem de cada fracção transaccionada, tornando-se mera detentora em relação às mesmas. Isto porque o corpus possessório pode existir mesmo havendo outras posses sobre a mesma coisa. É o que sucede, desde logo, com a composse, em que várias pessoas controlam materialmente a coisa nos termos do mesmo direito.
xxxv. Além disso, como se referiu acima foi a própria recorrente que reconheceu ter perdido a posse dos lugares de estacionamento para os condóminos quando comercializou o edifício, vendo-se “obrigada” a intentar acção de usucapião contra os mesmos, reivindicando que detém a posse não por ser a proprietária - que o foi - mas porque a terá readquirido ao exercê-la por determinado período de tempo. Se a recorrente reivindica a posse de um bem do qual foi proprietária, é porque obviamente a perdeu ao longo do processo de venda, pelo que é mais do que óbvio que os condóminos provaram que tinham o corpus e o animus.
xxxvi. Por outro lado, ficou demonstrado nestes autos que foi objecto de deliberação em assembleia geral de condóminos a contração da empresa D para auxiliar na manutenção e gestão dos lugares de estacionamento e restantes partes comuns, o que prova que sempre exerceram os direitos correspondentes ao seu direito de propriedade.
xxxvii. Assim, mesmo que cada condómino não exercesse directamente actos materiais sobre os lugares de estacionamento, exista uma ligação aos mesmos em função da situação jurídica, donde resulta que têm quer o corpus como o animus, o que ficou amplamente demonstrado.
xxxviii. Relativamente à inversão do título da posse, a recorrente entende que por o recorrido ter supostamente tomado conhecimento na assembleia geral de condóminos de 16 de Junho de 2018, da referida acção de usucapião intentada pela recorrente, sob o proc. Nº CV1-15-0109-CAO, é o suficiente para que tenha ocorrido inversão do titulo da posse dos lugares de estacionamento.
xxxix. Desde logo, a matéria na qual a recorrente se apoia e que consta no art. 86º da contestação além de ter sido impugnada pelo ora recorrido na sua réplica, não foi sequer seleccionada para a matéria de facto nestes autos. Aliás, nem se sabe as circunstâncias específicas da matéria em causa e o que se tornou efectivo conhecimento do recorrido, pelo que a mesma não foi provada e não pode ser objecto de motivação nestes autos.
xl. De resto, é altamente improvável que os condóminos presentes na assembleia tivessem lido a petição inicial ou que a compreendessem nos seus fundamentos de facto e direito, e acresce que nem todos os condóminos do edifício se encontravam presentes na referida assembleia, pelo que nem todos “sabiam” ou “conheciam” a referida acção judicial intentada pela ora recorrente. E sublinha-se ainda que o recorrido nestes autos é o condomínio representado pela administração do edifício B. Quer o condomínio como a sua administração não têm competência e neste caso mandato para representar os condóminos em juízo, pelo que obviamente não é ao ora recorrido que devem ser manifestados os actos materiais necessários para que ocorra a inversão do título da posse, mas sim a cada um dos condóminos, motivo, de resto, são eles os réus na referida acção.
xli. Importa ainda destacar que em momento algum a recorrida alegou ou provou - porque nunca aconteceu - ter manifestado publicamente ser a proprietária e possuidora dos lugares de estacionamento, ou sequer actuado de forma a demonstrar essa pretensão.
xlii. Assim, o conhecimento em concreto e efectivo da referida acção intentada pela ora recorrida só poderia dar-se com a citação. Porém, como a própria recorrida admite, a fase de citação dos condóminos está longe de ser concluída, pelo que não se pode considerar que tenha decorrido oposição à posse dos condóminos, contrariamente ao defendido pela recorrente.
xliii. Conforme acima referido, ficou provado por confissão da recorrente que esta, ao constituir o edifício B sob o regime de propriedade horizontal, integrou os parques de estacionamento nas partes comuns, e que comercializou as fracções autónomas bem sabendo que em consequência desse negócio jurídico estava a transmitir o direito de propriedade sobre os mesmos parques de estacionamento.
xliv. Ficou igualmente demonstrado que a recorrente encarregou a C (que pertence ao mesmo sócio da recorrente) para prestar os serviços de administração de todo o edifício, o que demonstra que sabia e queria que os seus proprietários beneficiassem desse serviço em exclusivo. Não pode, por isso, a recorrente invocar que tinha a posse dos lugares de estacionamento porque beneficiou dos serviços prestados pela C, aproveitando-se de uma situação sobre o edifício proporcionada pela sua posição de promotora do mesmo e da inexistência de comissão de moradores ou mesmo do condomínio.
xlv. Aliás, estes factos demonstram de forma incontroversa que ao ter construído e comercializado o edifício Residencial B, a recorrente não tinha intenção ser titular do direito de propriedade ou outro qualquer direito real sobre os lugares de estacionamento, pois caso contrário teria constituído o regime de propriedade horizontal de forma diversa.
xlvi. A recorrida tenta caracterizar uma situação jurídica e factual que não existe e que nem sequer considerou, até se aperceber do retomo financeiro que os lugares de estacionamento lhe poderiam proporcionar, começando a explora-los a fim obter proveitos ilegítimos, num claro abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium e de tu quoque - art. 326º do CC - e violação dos princípios da boa-fé - art. 752º, nº 2, do CC.
xlvii. Assim, devem todos os fundamentos do recurso improceder, mantendo-se a decisão recorrida nos termos proferidos.
xlviii. Por mera cautela - da aplicação do recurso - da reivindicação - na eventualidade de não se entender assim - o que não se concede - vem o recorrido requerer a ampliação do recurso, a título subsidiário, ao abrigo do art. 590º, nº 1, do CPC, com os seguintes fundamentos.
xlix. O autor e ora recorrido intentou o presentes autos pedindo a restituição da posse dos lugares de estacionamento do edifício B, alegando que estes constituem partes comuns do condomínio e são incindíveis dos direitos de propriedade das fracções autónomas, e que a sua posse foi esbulhada pela ré e ora recorrente, a qual veio contestar negando que o autor tivesse a posse dos lugares de estacionamento, porquanto a posse era exercida pela recorrente com fundamento na sua qualidade de proprietária plena dos mesmos, por usucapião.
l. Na sequência da alegada aquisição do direito de propriedade sobre os lugares de estacionamento do edifício B invocada pela recorrente, veio o recorrido ampliar o pedido a título subsidiário, pedindo o reconhecimento do. direito de propriedade sobre os mesmos, através do direito de revindicação, prevista no art.1235ºdo CC.
li. Na ação de reivindicação importa simplesmente saber se os condóminos são proprietários dos lugares de estacionamento, e se a ocupação dos lugares de estacionamento pela recorrente se caracteriza como sendo uma ocupação desconforme com o direito dos condóminos.
lii. No caso em concreto dos autos, nem sequer é contestado que os lugares de estacionamento em causa constituem partes comuns de condomínio e que a recorrente sabe que pertencem aos proprietários das fracções autónomas. Efetivamente, não só a recorrente não contestou, como até admitiu que os lugares de estacionamento constituem partes comuns do condomínio e que os condóminos são proprietários das facções autónomas e das partes comuns do edifício, incluindo dos parques de estacionamento; não obstante, veio invocar que em determinado momento, que não especificou como nem qual, passou a considerar-se proprietária dos mesmos, como forma de legitimação da sua ocupação.
liii. Importa sublinhar que a recorrente não alegou outro fundamento de facto ou de direito para legitimar a ocupação dos lugares de estacionamento, para além do referido direito de propriedade sobre os mesmos, e se limitou a alegar nestes autos uma acção de usucapião que intentou em 2015, e que à data se encontra pendente a aguardar citação dos réus.
liv. Ora, a usucapião é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, proporcionada pelo exercício da posse - stricto sensu e não a posse precária ou detenção -, durante um certo período de tempo (art. 1212ºdo CC), e sendo originária, faz ceder o registo anterior ao início da respectiva posse, ainda que o mesmo exista.
lv. Não obstante os efeitos da usucapíão retroagirem ao momento do início da posse, esta tem de ser apreciada e declarada por um tribunal, pelo que a recorrente só o poderia invocar caso tivesse caso julgado ou tivesse efectuado pedido reconvendonal nestes autos, o que não sucedeu.
lvi. Acresce que, não foi alegado e muito menos demonstrado os autos factos que apontem que a recorrente tenha reservado para si a propriedade, o uso ou qualquer outro direito sobre as partes comuns alienadas ou que tenha obtido o assentimento ou autorização dos condóminos para usar ou usufruir os parques de estacionamento, ie. nunca se inverteu o título da posse - art, 1190º do CC.
lvii. Assim, não só o direito de propriedade dos condóminos foi expressamente admitido pela recorrente, como o mesmo decorre do registo predial do edifício junto aos autos e da aplicação do art. 1323º, nº 1, do CC, conforme acima referido e até decorre da sua legitimidade processual, como e direito de propriedade invocado pela recorrente não se encontra pedido nem demonstrado.
lviii. E, por outro lado, ficou sobejamente demonstrado nos autos que a recorrente se encontra a ocupar lugares de estacionamento sem qualquer título ou legitimidade para tal, o que motiva e fundamenta o pedido de reivindicação por parte do recorrido.
lix. Assim, todos os argumentos ora invocados pela recorrente terão necessariamente de improceder, e em caso de assim não se entender, deve o pedido subsidiário ser considerado procedente por provado e condenar a recorrente a reconhecer o direito de propriedade dos condóminos e entregar devolutos de pessoas e bens os lugares de estacionamento do edifício B.

Foram colhidos os vistos.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

a) Factos
  
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
a) O condomínio do edifício Residencial B é constituído pelo prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua do Comandante João Belo, Bairro Fai Chi Kei, nºs 156 a 256, Avenida da Concórdia, nºs 9 a 91 e Rua Norte do Patane, nºs 10 a 36, denominado Edifício Residencial B, registado na Conservatória do Registo predial sob o nº 22320.
b) O Edifício Residencial B é formado por 9 blocos, compostos por rés-do-chão e 16 andares, cada, sendo o 1º e o 2º andar destinados a parque de estacionamento automóvel, comum a todos os blocos.
c) As entradas para cada bloco do edifício dão acesso directo ao respectivo lanço de escadas de serviço e aos elevadores, que servem tanto o parque de estacionamento como os restantes pisos.
d) A entrada de automóveis no parque de estacionamento é feita directamente a partir da via pública, através de uma rampa de acesso, a qual se encontra devidamente vedada com portão em gradeamento metálico.
e) O edifício Residencial B foi constituído em regime de propriedade horizontal através da aprovação da Memória Descritiva das fracções, tendo sido levado a registo pela apresentação nº 17 de 04/06/1993, ao abrigo do regime especial previsto no Decreto-Lei nº 31/85/M.
f) De acordo com a memória descritiva das fracções e nos termos do art. 1324º, nº 1 al. I), do Código Civil, os lugares de estacionamento automóvel localizados no 1º e 2º andar constituem partes comuns do condomínio, e contam ao todo com 276 lugares de estacionamento individuais, devidamente numerados e assinalados no pavimento.
g) Em 20 de Março de 2019 a administração do condomínio dispensou os serviços da C, na sequência da deliberação da assembleia de condóminos de 16 de Junho de 2018 – não obstante a resistência desta, acabando o TSI por confirmar a cessação contratual através do acórdão de 13.02.2020, proferido no processo nº 1240/2019.
h) Nem o condomínio nem os seus administradores ou a actual empresa de gestão foram previamente informados da intenção da ré, de construir a dita cabine e muito menos em ocupar e em explorar os parques de estacionamento.
i) O condomínio não concedeu, e nem a ré solicitou, por nenhuma forma, qualquer permissão para ocupar, explorar, utilizar ou construir o que quer que fosse nos parques de estacionamento do edifício.
j) A ré foi a empresa promotora da construção e comercialização do edifício Residencial B, e a responsável e interessada pela sua constituição em propriedade horizontal.
k) A ré sabe que os lugares de estacionamento do edifício constituem partes comuns do condomínio e que pertencem aos proprietários das fracções autónomas, por força do disposto no art. 1323º, nº2, do CPC.
l) A ré é uma companhia limitada constituída nos termos da lei de Macau, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º 1681 (SO), cuja actividade consiste essencialmente no desenvolvimento de imóveis e construção de edifícios.
m) Conforme a licença de utilização n.º 72/88, emitida ao Edifício B, consta: “(…) o 1º andar com 137 lugares e o 3º andar 159 lugares para estacionamento são partes comuns do prédio”.
n) De acordo com a licença de utilização n.º 141/92, emitida em 1992, voltou a constar: “(…) Edifício B (Edifício I) … do 1º ao 2º andar são pisos destinadas ao estacionamento automóvel sendo zonas comuns do Edifício”.
o) A administração de Propriedades C presta também aos proprietários os serviços de administração das partes comuns do edifício B.
p) Até 30 de Abril de 2020, a empresa Administração de Propriedades C prestou serviços de administração e manutenção das partes comuns do condomínio, serviços que relativamente aos lugares de estacionamento deixou de prestar em finais de 2017 (Q. 1º)
q) A partir de 30 de Abril de 2020, todos os serviços de administração e manutenção do condomínio, incluindo dos lugares de estacionamento foram contratados à D清潔物業管理有限公司. (Q. 2º)
r) Na manhã do dia 10 de Junho de 2020, um grupo com cerca de 7 indivíduos, incluindo 2 funcionários da ré, entraram nos parques de estacionamento do condomínio, munidos de diversos materiais e equipamentos de construção. (Q. 3º)
s) De imediato, os referidos indivíduos deram início a trabalhos de construção de uma cabine, no topo da rampa e de frente ao portão de acesso à via pública, na zona de passagem dos veículos. (Q. 4º)
t) Alertados acerca do sucedido pelos funcionários da actual empresa de gestão de condomínio, D, que se encontravam de serviço, alguns dos membros da administração da autora deslocaram-se prontamente ao local, a fim de se inteirarem da situação. (Q. 5º)
u) Os referidos membros da administração do condomínio dirigiram-se ao referido grupo de indivíduos e ordenaram que cessassem de imediato toda a sua actividade e exigiram explicações para a sua presença nas garagens. (Q. 6º)
v) Os referidos representantes da ré e os seus seguranças privados recusaram suspender as obras e abandonar o local, gerando-se acesa discussão (Q. 7º)
w) Cerca de 4 ou 5 dias depois, o mesmo grupo de pessoas regressou às garagens e rapidamente concluiu os trabalhos de construção da dita cabine, que antes tinham iniciado. (Q. 9º)
x) Novamente alertados pelos funcionários da empresa de gestão de condomínio, os membros da administração da autora deslocaram-se às garagens para tentar impedir que o grupo prosseguisse com aqueles trabalhos e exigir que abandonassem o local imediatamente. (Q.10º)
y) Desde a conclusão da referida cabine esta passou a acomodar um dos elementos de segurança privada contratados pela ré, o qual, durante 24h por dia, regista as entradas e saídas de viaturas e vigia o funcionamento do portão de acesso ao interior da garagem. (Q. 12º)
z) Além da presença física, a ré também manteve o controlo do sistema de videovigilância que já tinha desde pelo menos o início de 2018, com dezenas de câmaras espalhadas em locais estratégicos dos parques de estacionamento, para vigilância e controlo sobre as garagens. (Q. 14º)
aa) Além de ter os parques de estacionamento controlados e vigiados, a ré tem, desde pelo menos o início de 2018, colocado blocos de cimento a ocupar diversos lugares de estacionamento, o que impede o parqueamento das viaturas. (Q. 16º)
bb) A ré colocou e afixou em diversos locais, nomeadamente junto à cabine dos seguranças, na entrada no portão de acesso aos parques de estacionamento e à porta da loja acima referida, avisos a anunciar que quem quiser utilizar os parques de estacionamento deverá contactar a ré. (Q. 17º)
cc) Com excepção dos lugares de estacionamento que a ré considera que vendeu a terceiros, a ré, pelo menos desde o início de 2018, continuou a exercer o domínio total e permanente sobre os parques de estacionamento dos 9 blocos que integram o condomínio do edifício B e a utilizá-los e explorá-los em proveito próprio, como se estes lhes pertencessem. (Q.18º)
dd) Impedindo, activa e fisicamente, que os condóminos utilizem e exerçam todos os demais actos de posse sobre os lugares de estacionamento do prédio, contra a vontade destes. (Q. 19º)
ee) A ré não é proprietária de qualquer fracção autónoma do edifício residencial B. (Q. 20º)
ff) A ré não pediu autorização para a realização de obras nem para ocupação de partes comuns do condomínio. (Q. 21º)
gg) Devido à ocupação levada a cabo pela ré, a autora está impedida de explorar os parques de estacionamento e proceder aos mais diversos actos de conservação e reparação nos mesmos. (Q. 22º)

b) Do Direito

É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«1. Da defesa da posse: quem tem a posse e quem tem a melhor posse?
  O proprietário que também é possuidor pode defender apenas a sua posse ou apenas o seu direito de propriedade. Não parece haver lugar para dúvidas. Foi o que fez o autor: veio defender a posse e só na réplica, a título subsidiário vem defender a propriedade.
  Como se disse, o autor vem, a título principal, defender a posse que diz ter sobre parques de estacionamento, ou melhor, a posse dos condóminos que “representa”. O autor quer ser restituído à posse. A ré diz que o autor nunca teve posse dos parques que são parte comum da propriedade horizontal e que sempre foi ela, ré, que teve essa posse desde que construiu o imóvel em causa e que a exerceu através de uma sociedade denominada “C”. Mas o autor ripostou que a C actuava em nome dos condóminos e não em nome da ré. E nas alegações de Direito ripostou ainda dizendo que não é possível a posse sobre uma parte comum de um prédio constituído em propriedade horizontal. Assim, antes de mais, para sabermos se a ré é possuidora, teríamos de apreciar e decidir se o objecto em causa é susceptível de posse. Se não for susceptível de posse, a ré está afastada da posse e só haverá que pesquisar a posse do autor (ou dos condóminos).
  Pois bem, mas se concluirmos que, mesmo que a ré tenha posse, o autor tem melhor posse que a hipotética posse da ré, já prevalecerá a posse do autor e não releva apurar se a ré tem efectivamente posse, designadamente se o objecto é susceptível de posse por parte da ré. Averiguaremos por isso, primeiro se o autor tem melhor posse que a posse alegada pela ré. Se concluirmos que a melhor posse é a do autor, então este vencerá o conflito de posses e não será necessário averiguar se a posse invocada pela ré existe ou se não existe.
  Vejamos então.
  A posse é uma situação jurídica em que uma ou mais pessoas exercem sobre uma coisa poderes de facto correspondentes a um ou mais direitos reais (art. 1175º do CC). Mas não é necessário que os poderes se exerçam em permanência para que a situação jurídica se mantenha2, pois mesmo que outrem passe a exercer em exclusividade aqueles poderes de facto, mesmo contra a vontade do anterior possuidor, a posse do esbulhado só se extingue depois de decorrido um ano (art. 1192º, nº 2, al d) do CC). Pode, pois, haver em conflito mais que uma posse em simultâneo. Enquanto a posse anterior não se extinguir pela nova “posse de ano e dia”, vence o conflito aquele que tiver a melhor posse (art. 1203º do CC).
  Dos factos provados afigura-se evidente que os condóminos tiveram posse. Mas melhor se dirá mais à frente.
  Para se saber se existe a posse alegada pelo autor há que averiguar se ocorreu algum facto com efeitos aquisitivos da posse e se não ocorreu nenhum facto com efeitos extintivos, determinando a perda dessa mesma posse.
  Os factos que temos são estes3:
  - A ré construiu um prédio, constituiu-o em propriedade horizontal e vendeu todas as fracções autónomas, não conservando nenhuma para si;
  - A ré também nomeou uma sociedade comercial denominada “C” para “cuidar” das partes comuns do prédio, designadamente aquela parte comum onde se encontram os parques da controvérsia destes autos;
  - Em 2015, quando a “C” ainda “cuidava” das referidas partes comuns, a ré intentou contra todos os condóminos e desconhecidos uma acção pretendendo ser reconhecida como proprietária dos parques da controvérsia com fundamento em usucapião.
  - Em 31 de Dezembro de 2017 a “C” deixou de cuidar dos parques de estacionamento e passou a cuidar deles a ré em 01/01/2018;
  - Em 2020 a ré instalou uma cabine na entrada dos parques e o autor opôs-se;
  - Por causa disso, o autor intentou procedimento cautelar de restituição provisória da posse e conseguiu a pretendida providência, a qual mais tarde foi revogada voltando os parques a ser entregues à ré.
a. A aquisição da posse por constituto possessório e a perda da mesma posse pela constituição da posse de outrem através da inversão do título levada a cabo pelo detentor.
  A posse adquire-se, entre outras situações, com a aquisição do direito real correspondente, caso o transmitente deste direito real também seja possuidor. Ou seja, o possuidor que transmite o direito real correspondente à sua posse também transmite a posse que lhe corresponde, ainda que continue a exercer poderes de facto sobre a coisa cujo direito real transmitiu. É o que se chama constituto possessório. Foi o que aconteceu no caso dos autos, a ré era possuidora e proprietária dos parques da discórdia, pois construiu o prédio onde aqueles parques se situam. Ao vender todas as fracções autónomas também transmitiu a posse que tinha sobre os parques que são parte comum do edifício. Mesmo que a ré tivesse continuado a exercer poderes de facto sobre os parques, após a venda deixou de ser possuidora e passou a ser apenas mera detentora ou possuidora precária, também designada possuidora em nome de outrem. Quem passou a ser possuidor foram os compradores. Com efeito, dispõe o art. 1188º, nº 1 do CC que “se o possuidor transmitir a outrem o direito nos termos do qual possui, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa”. E coerentemente dispõe o art.1187º, al, c) do CC que a posse se adquire por constituto possessório.
  Assim, os condóminos que adquiriram as fracções à ré passaram a ser compossuidores das partes comuns do prédio, designadamente dos parques de estacionamento, e a ré deixou de ser possuidora e passou a ser mera detentora. Se a ré, por si ou através da C, continuou na posse material dos parques, não era possuidora, mas mera detentora.
  Aqui chegados, há que considerar uma outra norma: - presume-se que a posse não se perde. Presume-se a conservação e a continuação da posse. Aquele que se arrogar de posse posterior tem necessidade de ilidir esta presunção e provar que a posse anterior se perdeu e que a nova se constituiu. Com efeito, dispõe o art. 1181º, nº 2 do CC que “presume-se que a posse continua em nome de quem a começou”.
  A posse perde-se, entre outras situações, pela constituição posterior da posse de outrem sobre a mesma coisa. Com efeito, dispõe o art. 1192º do CC que “o possuidor perde a posse… pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de 1 ano”.
  Se o novo possuidor era detentor, a sua posse só se pode ter constituído por cedência voluntária do anterior possuidor, a “traditio brevi manu”, ou por cedência involuntária ou inversão do título da posse4. Ou o possuidor cede voluntariamente a posse ao detentor cedendo-lhe o direito real correspondente (“traditio brevi manu”), ou o detentor se opõe ao possuidor e rompe a relação que os liga para passar a possuir (inversão no título da posse)5. Por exemplo, se o inquilino diz ao senhorio que deixa de pagar a renda porque já é ele próprio o dono do locado, inverteu o título da posse e passou de mero detentor ou possuidor em nome de outrem a possuidor em nome próprio6. Não basta ao mero detentor passar a exercer os poderes de facto sobre a coisa, já não em nome de outrem, mas com intenção de adquirir o direito real correspondente (animus possidendi). Tem de se “empertigar” contra o possuidor para marcar solenemente a inversão da posição em que actua sobre a coisa. Tem de se manifestar para que o possuidor possa reagir contra o esbulho da sua posse7.
  Ora, a ré, mera detentora, se quiser passar a possuidora só tem uma forma de o fazer: tem de inverter o título da sua posse precária (posse em nome de outrem ou mera detenção). De outra forma, continuará sempre a ser mera detentora, ainda que o possuidor perca a posse por abandono ou por outra forma, embora presumindo-se que a conserva. Com efeito, dispõe o art. 1187º, al. d) do CC que a posse se adquire por inversão no título da posse. A inversão do título da posse é uma “rebelião” do mero detentor (ou de alguém a favor dele) contra aquele em nome de quem possui. Com efeito, dispõe o art. 1190º do CC que “a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro abstractamente idóneo para atribuir ao detentor o direito real nos termos do qual, e em virtude do qual, passe a possuir”.
  Pois bem, já concluímos que os condóminos adquiriram a posse e relegaram a ré para mera detentora. Vejamos então se a ré voltou a ser possuidora por inversão do título da posse, único caminho que tinha ao seu dispor, uma vez que os condóminos não abandonaram nem cederam voluntariamente a posse que adquiriram por constituto possessório. Mas não se pode esquecer que é a ré que tem o ónus de provar a sua posse, designadamente ilidindo a presunção de conservação da posse que favorece os condóminos.
  Vamos ao ano de 2015.
  Neste ano a ré intentou uma acção judicial deduzindo a pretensão de ser proprietária. É um acto de oposição do detentor ao possuidor que pode configurar inversão do título da posse. Mas só com a citação a oposição do detentor chega ao possuidor e só aí pode dar-se a inversão do título, pois antes é um acto de oposição perante terceiros, ineficaz para inverter o título da posse. Se o arrendatário disser a terceiros que não paga mais a renda porque já é proprietário, mas, contrariamente ao que disse, continuar a pagar, não inverte o título da posse. Ora, não se alegou nem se provou que a citação tivesse ocorrido na acção que a ré interpôs. Pelo contrário, autor e ré dizem que a citação está demorada. Não está, pois, demonstrado que o acto da ré do ano de 2015 configura inversão do título da posse. E, repita-se, é à ré que cabe alegar e provar a inversão no título da posse.
  Cabe então concluir que a ré não inverteu o título da posse com a sua actuação de 2015, pois não demonstrou que nessa altura se opôs aos condóminos ou ao condomínio.
  Vamos agora ao ano de 2018.
  Provou-se que a ré, desde pelo menos o início de 2018, manteve o controlo do sistema de videovigilância dos parques com dezenas de câmaras, tem colocado blocos de cimento a ocupar diversos lugares de estacionamento, continuou a exercer o domínio total e permanente sobre os parques de estacionamento e a utilizá-los e explorá-los em proveito próprio, como se estes lhes pertencessem, impedindo, activa e fisicamente, que os condóminos utilizem os lugares de estacionamento do prédio, contra a vontade destes.
  Porém, para considerar estes factos como provados, o tribunal excedeu os seus poderes de cognição. Com efeito foi para lá da alegação das partes, para lá dos factos notórios, dos factos de conhecimento oficioso, dos factos sobre uso anormal do processo, dos factos instrumentais e dos factos essenciais complementares ou concretizadores que, após contraditório, poderia conhecer nos termos do disposto no art. 5º, nºs 2 e 3 do CPC8. Na verdade, o autor alegou que ocorreram em 2020 aqueles factos que o tribunal considerou terem ocorrido pelo menos desde 2018 e a ré limitou-se a alegar que a “C” deixou de prestar serviços de gestão do condomínio em 2017, não tendo alegado que ela própria, ré, alguma vez se opôs à utilização dos condóminos9. O tribunal ao considerar provado que tais factos ocorreram pelo menos desde 2018 extravasou a alegação das partes e os factos que, além desta alegação, poderia conhecer. Não devem, pois, estes factos fundar a presente sentença, pois que o referido art. 5º do CPC impede.
  Assim, os factos provados onde o tribunal pode fundar a decisão não configuram inversão no título da posse por parte da ré no ano de 2018, pois que se resumem à gestão do parque de estacionamento e não a qualquer oposição perante os condóminos ou perante o condomínio e os seus órgãos de administração. Com efeito, a alegação da ré resume-se nesta parte a dizer que continuou a fazer o que vinha fazendo a “C”, pelo que se esta não inverteu o título com que geria os parques, a ré também não o inverteu.
  Atentemos agora no ano de 2020.
  Neste ano, sim, a ré inverteu o título da posse. Com efeito, vencendo a oposição que o condomínio lhe fez, construiu e instalou uma cabine para guardas de segurança na entrada dos parques de estacionamento, o que configura oposição do detentor do direito sobre os parques contra aquele em cujo nome possuía os mesmos parques – os condóminos. Assim, nessa data, a ré adquiriu a posse por via da inversão do respectivo título e deixou de ser mera detentora (1187º, al. e) do CC). Esta inversão no título não se quedou por mera perturbação na posse que os condóminos (autor) vinham exercendo por intermédio de outrem como se permite na parte final do art. 1176º, nº 1 do CC. Tal inversão no título configura completo esbulho.
  O autor apresentou-se a defender a sua posse ainda no ano de 2020. Assim, o autor ainda não tinha perdido a sua posse porquanto a posse da ré ainda não tinha sido constituída um ano antes e só depois de decorrido um ano é que a nova posse extingue a anterior (art. 1192º, nº 1, al. d) do CC)10.
  Mantendo-se em simultâneo e conflituantes entre si a posse do autor e da ré, há que ver qual a que deve prevalecer e ser mantida ou restituída até que seja resolvida a questão da titularidade do direito na base do qual autor e ré alegam possuir11 – o direito de propriedade sobre a coisa onde a posse é exercida (parques de estacionamento).
  A Posse da ré tinha menos de um ano na data da interposição da presente acção, que deu entrada na secretaria do tribunal em 28/09/2020. E é esta data que conta (art. 1203º, nº 1 do CC).
  “Se a posse não tiver mais de um ano”, como acontece com a posse da ré, “o possuidor só pode ser mantido ou restituído contra quem não tiver melhor posse” (art. 1203º, nº 2 do CC). A melhor posse é a titulada, aquela que se funda em qualquer modo abstractamente idóneo para adquirir o direito nos termos do qual se possui, independentemente do direito do transmitente e da validade do negócio (arts. 1203º, nº 3 e 1183º, nº 1 do CC).
  A posse do autor (dos condóminos) é titulada por se basear em título capaz de fazer adquirir o direito real correspondente a tal posse – o contrato de compra e venda eficaz para transmissão da propriedade nos termos do disposto nos arts. 865º, 869º e 1241º do CC. Mas a posse da ré é não titulada por se basear na inversão do título da posse que não é modo legítimo de adquirir os direitos que conferem posse.
  É, pois, melhor posse a posse do autor, pelo que deve prevalecer sobre a posse da ré. De facto, a posse do autor é titulada, pois baseia-se na compra da correspondente propriedade e no consequente constituto possessório.
  A posse da ré, não sendo “posse de ano e dia” nem sendo titulada, não pode, pois, ser mantida contra a posse do autor, que é titulada.
  Procede, pois a pretensão possessória do autor, devendo o mesmo ser restituído à sua posse até que se decida a questão da titularidade do direito de propriedade que corresponde à posse em litígio.
b. Da entrega das chaves e comandos do portão de acesso aos parques.
  O autor não invoca qualquer causa de pedir que suporte o seu pedido de entrega das chaves e comandos do portão de acesso aos parques de estacionamento. Com efeito, não diz que não pertencem à ré e que lhe pertencem a ele, autor; não diz que a ré contratou entregar e não cumpriu o acordado; nem alega qualquer outra fonte desta obrigação de entrega que atribui à ré. Assim, por não estar demonstrada qualquer obrigação da ré de entregar as chaves e comandos, tem esta de ser absolvida desta parte do pedido, cuja improcedência não tem relevância quanto a custas.
2. Da defesa do direito de propriedade.
  Procedendo a pretensão principal do autor, não há que apreciar a sua pretensão subsidiária, a qual foi formulada para o caso de improceder a principal. E também não há que averiguar se quanto a tal pretensão subsidiária ocorre litispendência, hipótese que já atrás ficou aventada no capítulo do saneamento.
  É, pois, no processo onde a ré reclama ter adquirido a propriedade dos parques por usucapião (CV1-15-0109-CAO) que se há-de decidir a questão da propriedade que está na base da posse. Até lá deve o autor ser restituído à posse de que foi perturbado ou esbulhado em 2020.».
  
  Vem a Ré/Recorrente nas suas alegações e ponto II. das suas conclusões de recurso sustentar a nulidade da sentença recorrida com base no disposto no nº 4 do artº 629º do CPC porque entendeu que os factos que invocou na contestação em sede de excepção peremptória que não identificou e que não foram levados nem aos factos assentes nem à base instrutória são essenciais para a decisão da causa e havia que ser ampliada a matéria de facto a selecionar e proceder-se a novo julgamento.
  Esquece a Recorrente nas suas alegações o disposto no artº 599º do CPC o qual impõe que qualquer impugnação quanto à decisão de facto pressupõe a identificação dos factos concretos que considera incorrectamente julgados, neste caso, os factos concretos que entende que haveriam de ter sido levados à Base Instrutória e não foram.
  Não o fazendo é manifesta a improcedência do recurso no que concerne à impugnação da matéria de facto.
  
  No ponto III. i. das suas conclusões de recurso vem a Recorrente sustentar que o Autor/Recorrido não adquiriu a posse por constituto possessório.
  No caso em apreço o objecto desta acção são os parques de estacionamento que são parte comum do edifício e que nos termos do artº 1323º do C.Civ. cabem em compropriedade a todos os condóminos e fazem parte do conjunto incindível constituído por aquele direito de compropriedade e do direito de propriedade sobre a fracção.
  Ou seja, em sede de alegações de recurso ignora-se e despreza-se a letra da lei e escrevem-se páginas partindo do pressuposto de que o direito de compropriedade sobre as partes comuns pudesse ser separado do direito de propriedade das fracções, com base no argumento de que “não há prova de que proporciona aos compradores também os lugares de garagem” !?!
  Isto é, de acordo com a teoria peregrina do Recorrente seria possível sustentar que os proprietários das fracções aquando da aquisição das mesmas, adquirindo a respectiva posse através do constituto possessório tinham adquirido a posse das fracções mas não os alicerces, as colunas, pilares etc. até porque normalmente não se fala dessas coisas que a maioria das pessoas só têm uma vaga ideia de existir.
  A transferência da posse aquando da transferência do direito através do constituto possessório – artº 1188º do C.Civ. – não permite que se transmita a posse quanto a parte do direito e não se transmita quanto a outra, sendo juridicamente absurdo sustentar o contrário.
  Pese embora não seja o objecto deste autos, mas estando relacionado com o que aqui se discute, no que respeita à possibilidade de posse e usucapião sobre partes comuns de edifícios em propriedade horizontal é conhecida a jurisprudência em sentido negativo deste tribunal precisamente porque a posse exercida sobre as partes comuns do edifício em compropriedade está “incidivelmente” ligada à posse sobre a fracção autónoma de que se é titular, pelo que, não se perdendo a posse sobre a fracção autónoma não se perde a posse sobre as partes comuns.
  Em tudo o mais a excelência da fundamentação jurídica constante da Douta decisão recorrida dispensa qualquer outra argumentação, sendo o bastante para demonstrar a falta de razão dos argumentos usados em sede de conclusões de recurso os quais assentam em fundamentos de direito errados.
  
  Assim sendo, aderindo integralmente aos fundamentos constantes da decisão recorrida para os quais remetemos nos termos do nº 5 do artº 631º do CPC, impõe-se negar provimento ao recurso, mantendo aquela.
  
III. DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
  
  Custas a cargo da Recorrente.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 14 de Setembro de 2023
  
  Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
  (Relator)
  
  
  Fong Man Chong
  (1º Adjunto)
  
  Ho Wai Neng
  (2º Adjunto)
  

1 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo nº 1485/14.3TBLRA.C1
2 “A posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar” – art. 1181º, nº 1 do CC.
3 Note-se que os factos que devem ser considerados na sentença e aos quais deve ser aplicado o Direito não são delimitados pelo despacho saneador e de condensação, mas, nos termos do disposto no art. 562º, nº 3 do CPC, pelos que foram “admitidos por acordo ou não impugnados, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer”.

4 Ressalva-se o caso de abandono, que aqui não releva.
5 Neste sentido, Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância de 31/07/2018, proferido no processo nº 52/2018, Relator: Dr. Viriato Lima: “I – Se o proprietário e possuidor de um imóvel o vende validamente a uma sociedade comercial..., não obstante continuar a praticar os mesmos actos que consubstanciam o corpus da posse, esta transmitiu-se à sociedade por força do constituto possessório, passando aquele a ser um mero detentor.
II – Para que o detentor do imóvel mencionado na conclusão anterior volte a ser possuidor é necessário ocorrer a inversão do título da posse”.
6 Exemplo de Manuel Rodrigues, A Posse, pág. 302 e segs.
7 Menezes Leitão, Direitos Reais, pág. 142.
8 Artigo 5.º - (Princípio dispositivo)
1. Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções.
2. O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 434.º e 568.º e da consideração oficiosa dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
3. São ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes tenham oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que seja dada à parte interessada a possibilidade de sobre eles se pronunciar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.
9 Essencialmente artigos 93º a 96º da contestação.
10 A acção possessória caduca
11 “No caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado é mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito” – Art. 1203º, nº 1 do CC.
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227/2023 CÍVEL 4