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Processo nº 420/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data do Acórdão: 19 de Outubro de 2023

ASSUNTO:
- Embargos
- Mandato sem representação
- Obrigações assumidas pelo mandatário
- Documento
- Prova plena – prova testemunhal

SUMÁRIO:
- Há mandato quando alguém encarrega outro de praticar actos jurídicos por sua conta, dizendo-se sem representação quando não forem conferidos poderes ao mandatário para o efeito (artº 1083º, 1104º e 1106º do C.Civ.);
- O mandatário sem poderes de representação age em nome próprio assumindo as obrigações dos actos que celebra ainda que o mandato seja do conhecimento dos terceiros com quem pratica os actos jurídicos no âmbito do mandato – artº 1106º do C.Civ. -;
- Sem prejuízo dos direitos e das obrigações decorrentes para o mandante da execução do mandato e do direito do mandatário de ser reembolsado do que tiver despendido na execução do mandato, não deixa de ser o mandatário o responsável pelo cumprimento das obrigações assumidas perante os terceiros com quem contratou (artº 1106º a 1108º do C.Civ.);
- Não sendo impugnada a assinatura aposta em documento particular no qual se reconhece uma dívida e se assume o respectivo pagamento, o mesmo faz prova plena das declarações atribuídas ao seu autor, não podendo o que dele consta ser infirmado através de prova testemunhal (artº 368º nº 1, 370º nº 1, 387º nº 1 e 2, 388º do C.Civ.);
- A prova testemunhal da relação e eventuais acordos quanto à responsabilidade pelo pagamento de determinada dívida entre dois co-devedores/executados não é bastante para afastar a responsabilidade que para os mesmos decorre de terem assinado o documento em que reconhecem a dívida e se comprometem a pagá-la;
- Beneficiando o exequente, ora embargado do disposto no nº 1 do artº 452º do C.Civ. caberia ao executado, ora embargante ter demonstrado que era inexistente ou não era devida qualquer obrigação relativamente aos documentos que servem de título executivo.


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Rui Pereira Ribeiro

Processo nº 420/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 19 de Outubro de 2023
Recorrente: A Macau Limitada
Recorridos: B e C
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO

B e C, ambos, com os demais sinais dos autos,
vieram deduzir embargos à execução contra si instaurada pela Exequente
A Macau Limitada, também, com os demais sinais dos autos.

Proferida decisão foram julgados parcialmente procedentes os embargos julgando extinta a execução quanto ao 2º Embargante e prosseguindo quanto ao 1º Embargante.
Não se conformando com a decisão veio a Embargada e Exequente interpor recurso da mesma, apresentando as seguintes conclusões:
1. Os fundamentos dos embargos da recorrida podem ser resumidos nos seguintes cinco pontos: 1. A recorrida e o 1º embargante não respondem solidariamente pelas obrigações; 2. Não existe relação jurídica de crédito entre a recorrente e os dois executados; 3. As obrigações em causa foram totalmente liquidadas; 4. A recorrida não é a verdadeira devedora; 6. Os juros de mora não devem ser calculados à taxa comercial.
2. Quanto à questão de saber se a recorrida é a verdadeira devedora, a mesma defende que assinou os títulos executivos em causa apenas na qualidade de comissária do 1º embargante B, mas não em seu próprio nome. Argumenta, logo, que não é a mutuária, ou seja, não é a devedora das dívidas, pelo que não precisa de pagá-las.
3. No entanto, considerando os factos apurados no julgamento, designadamente o contexto e circunstâncias em que os factos se desenrolaram, não é de concluir que a recorrida tenha assinado os respectivos títulos executivos apenas na qualidade de comissária do 1º embargante.
4. De acordo com a alínea 11) do facto assente, a partir de, pelo menos, 2016, o 1º embargante B atingiu o limite da linha de crédito, o que significava que deixou de poder continuar a pedir emprestadas fichas mortas através de conta M95. Daí resulta que os créditos para jogo concedidos à recorrida, respectivamente em 3 de Setembro, 30 de Setembro e 2 de Outubro de 2016, contra a sua assinatura nos títulos executivos, eram novas dívidas.
5. As alíneas 22) a 26), 37), 39) e 40) dos factos assentes indicam que a recorrida depositou na conta M95, nos mesmos dias em que pediu os empréstimos, quantias no valor global de HKD$3.000.000,00 (com o fim de permitir à conta obter novos empréstimos do igual valor), e depois assinou os títulos executivos para “levantar” fichas mortas de valor equivalente. No entanto, a partir do ponto de vista da sala VIP, a conta M95 já não era elegível para novos empréstimos. Além disso, foi a recorrida quem apareceu na tesouraria nas mencionadas datas, depositou as faladas quantias (de valor equivalente aos empréstimos), assinou os recibos de empréstimo, reconhecendo as dívidas e comprometendo-se a pagá-las, e acabou por levantar as respectivas fichas.
6. Resulta provado do teor dos títulos executivos constantes das alíneas 3) a 5) dos factos provados que a recorrida assinou, respectivamente em 3 de Setembro, 30 de Setembro e 2 de Outubro de 2016, os “recibos de empréstimo”, onde declarou ter “pedido emprestadas” à recorrente, na qualidade de “mutuário”, as fichas mortas no valor indicado nos respectivos recibos, e “comprometeu-se a restituir os empréstimos dentro de 4 dias”.
7. É claro que todos esses documentos contêm uma declaração de reconhecimento de dívida (artigo 452.º do Código Civil (CC)) feita pela recorrida, onde ela emitiu declaração negocial inequívoca no sentido de reconhecer as dívidas contraídas para com a recorrente, no valor global de HKD$3.000.000,00.
8. Tendo em conta o disposto no artigo 452.º do CC, conjugado com os artigos 370.º, 387.º e 388.º do mesmo livro de leis, sabe-se que, porquanto a recorrida assinou pessoalmente os títulos executivos em causa, tais documentos fazem prova plena quanto às suas declarações no sentido de reconhecer as dívidas para com outrem, não sendo admitida prova testemunhal.
9. Dos supra mencionados títulos executivos não conta qualquer palavra ou frase que indique que a recorrida agiu na qualidade de comissária do 1º embargante ou em nome de outrem.
10. Do teor do documento de fls. 31 a 33 dos autos resulta que o dono da conta M95, ou seja, o 1º embargante B, nunca atribuiu poderes à recorrida para contrair empréstimos em seu nome.
11. Fica demonstrado, pela alínea 44) dos factos provados e teor do “formulário dos dados actualizados de membro e da procuração”, de fls. 31 a 33 dos autos, que o dono da conta M95, ou seja, o 1º embargante B, nunca atribuiu poderes à recorrida para contrair empréstimo em seu nome. (sic)
12. De acordo com o artigo 452.º, n.º 2 do CC, a supra referida declaração de reconhecimento de dívida deve constar de documento escrito.
13. À luz dos n.ºs 1 e 2 do artigo 255.º do mesmo livro de leis, se se atribuir poderes a outrem para realizar negócio, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar.
14. In casu, se a recorrida quiser provar que não tenha assinado tais documentos em nome próprio, quer dizer que tenha actuado com poderes de representação (emitir as faladas declarações em nome do 1º embargante), tem de apresentar ou exibir a procuração escrita feita pelo constituinte B. No entanto, ficou demonstrado, quer pelos factos provados e quer pelos dados dos autos, que inexiste tal documento escrito de procuração.
15. No que tange aos actos de mútuo ora em causa, tendo-se violado a supramencionada exigência de forma legalmente imposta, nunca foi estabelecida entre o 1º embargante e a recorrida (pelo menos a recorrida na qualidade de mutuário) uma relação de procuração juridicamente válida.
16. No entender da recorrente, quanto à relação de mútuo aqui em causa, o que releva é que quando a recorrida assinou os títulos executivos para pedir empréstimos à recorrente, não constava dos referidos documentos de empréstimo qualquer menção no sentido de ela pedir os empréstimos em nome de outrem.
17. No supra invocado processo cível cujos factos são semelhantes aos do presente processo, apesar de a agente ter exibido a procuração e fornecido duplicados, o Tribunal não deu como provado que ela agiu na qualidade de procuradora.
18. Voltemos ao nosso caso, não constando dos títulos executivos que a recorrida os assinou como representante do 1º embargante, nem tendo a mesma exibido qualquer documento que permita provar a sua qualidade como procuradora do 1º embargante, impõe-se considerar, nos termos do artigo 388.º, n.º 1 do CPC, que a recorrida assinou os títulos executivos não na qualidade de representante do 1º embargante, mas sim em seu próprio nome.
19. Além disso, de fls. 34 e 412 dos presentes autos consta uma garantia, em que o 1º embargante declara garantir os empréstimos da recorrida contraídos através da conta M95. Tal documento também demonstra a existência, entre os dois embargantes, de “relação de garantia”, mas não “relação de procuração”.
20. Face ao exposto, e com devido respeito pela opinião diversa, a recorrente entende que, tendo em conta o conteúdo dos três recibos de empréstimo, que servem aqui de títulos executivos, os dados contidos na tabela de abertura de conta de fls. 31 a 33 dos autos, e a falada garantia de fls. 34 e 412, ponderando sobretudo a falta de qualquer menção de representação voluntária nos títulos executivos, nenhuma outra conclusão há a retirar que não seja a de que a recorrida ao assinar os títulos executivos não agiu na qualidade de comissária (ou procuradora) do 1º embargante.
21. Caso assim se não entenda e considere que a recorrida realmente agiu como comissária do 1º embargante ao pedir emprestadas as fichas à sala VIP em questão, entendemos que tal não desobriga a recorrida de responder pelas dívidas para com a recorrente.
22. Nos termos do artigo 1083.º e seguintes do CC, se a recorrida tivesse sido encarregada pelo 1º embargante de ir pedir fichas emprestadas à sala VIP em causa, existia entre os dois uma relação de mandato, em que era mandante o 1º embargante e mandatária a recorrida.
23. A lei distingue entre mandato com representação e mandato sem representação (cfr. artigo 1104.º e seguintes e artigo 1106.º e seguintes do CC).
24. De acordo com o artigo 1104.º do CC, o mandatário (neste caso concreto, a recorrida) só pode agir em nome do mandante (o 1º embargante) quando lhe hajam sido conferidos poderes de representação válidos.
25. Devido à falta de procuração escrita válida, à relação de mandato entre a recorrida e o 1º embargante é apenas aplicável o regime de “mandato sem representação” previsto no artigo 1106.º e seguintes do CC.
26. A recorrida agiu em nome próprio ao estabelecer com a recorrente a relação de crédito e declarar o reconhecimento das dívidas, embora haja entre a recorrida e outrem um mandato ou relação laboral.
27. À luz do artigo 1106.º, tendo a recorrida agido em nome próprio, adquiriu os direitos e devia assumir as obrigações decorrentes dos actos de contracção de empréstimos. Fica, portanto, legalmente obrigada a pagar à recorrente as obrigações em questão.
28. Face ao exposto, e salvo devido respeito, a recorrente é da opinião de que o Tribunal a quo ao conhecer da questão acerca da “qualidade da recorrida aquando da assinatura dos títulos executivos” tirou uma conclusão fáctica errada e incorreu em errada aplicação da lei, violando o disposto no artigo 452.º do CC, conjugado com os artigos 370.º, 387.º, 388.º, 255.º, n.ºs 1 e 2, 1104.º e 1106.º, todos do mesmo livro de leis. Logo, os embargos da recorrida deveriam ser julgados improcedentes neste segmento.
29. Na hipótese de procedência do recurso, entendemos, por cautela de patrocínio, que é necessário impugnar as outras questões invocadas pela recorrida nos embargos, para evitar omissão de pronúncia.
30. Quanto à solidariedade entre a recorrida e o 1º embargante B, das alíneas 7) a 10) dos factos provados resulta que a recorrente é uma empresária comercial que estabeleceu, no exercício da sua empresa (sala VIP em causa), relações de crédito para jogo com os dois executados.
31. Além disso, atentas as alíneas C), D) e E) dos factos assentes e a circunstância de o 1º embargante ter acrescentado a sua assinatura nos três títulos executivos em causa, constata-se que a recorrida reconheceu todas as dívidas perante a recorrente nos dias dos factos, e depois, em 11 de Dezembro de 2018, o 1º embargante também confirmou à recorrente assumir o valor total das mesmas obrigações. Tanto o 1º embargante como a recorrida emitiram a declaração de vontade no sentido de assumir os créditos no seu valor integral.
32. Concluindo, e salvo o devido respeito, a recorrente entende que, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 1, al. b), artigo 563.º e artigo 567.º do Código Comercial, e artigos 505.º e 506.º do CC, os dois executados devem responder solidariamente pelas dívidas em causa, por a recorrente ser empresária comercial, as obrigações ter nascido do exercício de uma empresa e haver a declaração de vontade das partes no sentido de responderem pela prestação integral.
33. No que tange à questão de saber se existe ou não no caso concreto relação jurídica de crédito para jogo, realizado o julgamento, não ficaram provados os factos invocados pelos 1º embargante e recorrida a esse respeito.
34. Considerando que existem nas respostas aos quesitos diferentes expressões, i.e., “levantar as fichas mortas” e “pedir emprestadas as fichas mortas”. Em geral, a palavra “levantar” é interpretada como “levantar dinheiro”, e o termo “pedir emprestadas…” como “pedir empréstimos”. Portanto, afigura-se-nos necessário esclarecer a V. Exas. as diferenças entre “levantar dinheiro” e “pedir empréstimos” na respectiva sala VIP.
35. “Levantar dinheiro” significa que o titular da conta de jogo (no nosso caso, o 1º embargante), ou outra pessoa que aja sob instruções deste, levanta o saldo, quando exista, da respectiva conta, podendo este saldo ser em dinheiro ou fichas de dinheiro (vulgarmente conhecidas por “fichas vivas”).
36. No caso de “pedir empréstimos”, os empréstimos são contabilizados separadamente (tal como no caso em apreço, os depósitos não eram automaticamente destinados ao pagamento das dívidas, devendo o titular da conta especificar qual dívida a liquidar), independentemente de a respectiva conta de jogo (neste caso, a conta M95 do 1º embargante B) ter ou não saldo. Em causa está uma relação de crédito para jogo, em que o mutuário pede emprestadas “fichas mortas” para jogo (fichas que só podem ser convertidas em dinheiro através de fazer apostas nos jogos), podendo o credor exigir-lhe o reembolso do valor equivalente em dinheiro.
37. Qualquer pessoa que tenha obtido fichas mortas da tesouraria de sala VIP ou casino só pode usá-las nos jogos. Só desta forma podem as fichas mortas ser convertidas em dinheiro ou fichas de dinheiro
38. Mais importante, a tesouraria de casino ou sala VIP não aceita o depósito de fichas mortas nas contas de jogo. Caso contrário, tais “depósitos” (de fichas mortas) farão aumentar o saldo da conta e o titular poderá exigir ao casino ou sala VIP que lhe pague dinheiro ou fichas de dinheiro do mesmo valor. Isso permitirá aos clientes converter as fichas mortas em dinheiro ou fichas de dinheiro contornando as faladas regras (de apostar nos jogos). O que viola as práticas habituais dos casinos e mesmo as leis do jogo.
39. Claro, outra prática comum é que, se um cliente jogar com dinheiro, pode trocar o dinheiro por fichas mortas (prática vulgarmente conhecida como “compra de fichas”). Deste modo, quando use as fichas mortas para jogar pode também ganhar a “comissão de fichas” decorrente da conversão das fichas mortas em fichas de dinheiro.
40. No entanto, o acordo que os 1º embargante e recorrida alcançaram com a recorrente não é o de “compra de fichas”, visto que as alíneas 32) e 37) a 43) dos factos provados demonstram que o dinheiro depositado pelo 1º embargante nas datas dos factos destinava-se ao pagamento das anteriores dívidas da conta M95.
41. Portanto, quanto aos referidos montantes depositados, é mais correcto chamá-los de “pagamentos” em vez de “depósitos”, uma vez que os fundos não podiam ser livremente levantados como depósitos em geral, mas antes deviam ficar na conta para pagamento das antigas dívidas.
42. Reparamos que o facto da alínea 14) dos factos assentes é susceptível de ser interpretado como uma prática de “compra de fichas” acima referida, mas há distinção.
43. Em caso de “compra de fichas”, o dinheiro pago à sala VIP não é reembolsável, e o cliente deve usar todas as fichas nos jogos de forma a receber a comissão de fichas da sala VIP.
44. Olhemos para o presente caso. No caso de as fichas mortas terem sido perdidas ao jogo, o dinheiro depositado pela recorrida não seria reembolsável (e, em vez de ser usado para liquidar a nova dívida contraída no mesmo dia, devia destinar-se ao pagamento das antigas dívidas); em caso de ganho no jogo, podia retirar os respectivos fundos depositados (claro que o novo empréstimo deve ser liquidado imediatamente), como se neste dia nunca tivesse sido contraído novo empréstimo nem efectuado qualquer pagamento das anteriores dívidas na conta.
45. Assim sendo, os fundos depositados deveriam ser considerados “garantia” dos novos empréstimos (posto que a conta M95 já tinha grandes dívidas, e os 1º embargante e recorrida deixaram de poder pedir emprestadas fichas mortas através desta conta, cfr. factos provados n.º 12), em vez de ser considerados como destinados à “compra de fichas”.
46. Ora, tendo-se afastado a possibilidade de os fundos em causa destinar-se à “compra de fichas”, devemos chegar à seguinte conclusão fáctica: a partir de 2016, a recorrente perdeu a confiança que tinha nos 1º embargante e recorrida (a relação entre estes dois será analisada infra) para poderem pedir-lhe emprestadas fichas mortas para jogo; portanto, para pedir emprestadas fichas mortas, tinham de depositar na conta M95 fundos de valor equivalente; e os fundos depositados só podiam destinar-se ao pagamento das antigas dívidas, para que o valor total das dívidas da respectiva conta não aumentasse mesmo que o novo crédito não fosse reembolsado, assim reduzindo o risco assumido pela recorrente.
47. Importa salientar que não foi a pedido da recorrente que a recorrida depositou tais montantes na conta M95. A recorrida fez isso porque pretendia pedir empréstimos através da referida conta que, na altura e a ver da recorrente, já não estava em condições de aguentar mais risco de crédito.
48. Isto quer dizer que a supra referida prática (de depositar fundos para poder levantar fichas mortas) visava garantir o risco de crédito da conta em questão, mas não permitir aos dois executados ganharem “comissão de fichas”.
49. Além disso, ficou demonstrado, pelos elementos dos autos e factos provados, que todas as fichas mortas envolvidas nos três empréstimos em causa foram entregues directamente à recorrida pelos funcionários da sala VIP em causa. Tratando-se de fichas mortas exclusivamente para jogo, é claro que se destinavam aos jogos.
50. A nosso ver, a relação jurídica de mútuo para jogo em causa começou a constituir-se quando os 1º embargante e recorrida começaram a negociar com os funcionários da embargada, e a constituição concluiu-se no momento em que um acordo foi alcançado e a recorrida obteve as fichas do balcão da tesouraria da sala VIP.
51. Quanto à questão de saber se a recorrida entregou ou não as fichas a outros “clientes”, trata-se meramente de outras relações jurídicas estabelecidas entre os 1º embargante e recorrida e os seus “clientes” (considerando que não há nenhum facto provado que revele qualquer nexo directo entre tais chamados “clientes” seus e a recorrente).
52. Na perspectiva da recorrente, o facto de a recorrida ir pedir emprestadas fichas mortas (em vez de “comprar fichas” com dinheiro) à sua sala VIP significa que esta veio estabelecer com consigo uma relação de mútuo para jogo na qualidade de apostadora ou jogadora.
53. Na verdade, o 1º embargante e a recorrida podiam decidir livremente quem foi pedir empréstimo, seja a própria recorrida seja os alegados “clientes” seus. Não dispunha a recorrente de poder de interferência a esse respeito.
54. Convém realçar novamente que, não há nenhum facto provado ou elementos dos autos que revele qualquer conexão directa entre os chamados “clientes” dos dois embargantes e a recorrente. Se todos os clientes que tenham pedido emprestadas fichas mortas à sala VIP acabassem por declarar que as fichas não se destinam ao uso pessoal, mas sim ao jogo dos outros “clientes”, e assim negar a existência da relação jurídica de crédito para jogo, os direitos e interesses de quem empreste as fichas – a recorrente neste caso concreto – seriam deixados sem protecção jurídica, sendo ainda violados os princípios da honestidade nos negócios e da protecção da segurança do comércio seguidos pelas leis em matéria civil e comercial.
55. Face ao exposto, por as fichas mortas emprestadas pela recorrente à recorrida destinar-se ao jogo desta, tais actos de crédito preenchem o disposto no artigo 3.º da Lei n.º 5/2004 e as outras disposições pertinentes, e constituem obrigações civis.
56. No que toca à questão de saber se as obrigações foram pagas, realizado o julgamento, fica claro que a versão fáctica invocada pela recorrida não foi provada.
57. A sentença a quo julgou improcedentes os embargos nesta parte, quer dizer que considerou que a recorrida ainda não pagou à recorrente os empréstimos descritos nos três títulos executivos em causa.
58. Quanto à taxa dos juros moratórios, os embargos foram julgados improcedentes também neste segmento. Ou seja, aos créditos em causa pode acrescer, no caso de mora da recorrida, uma sobretaxa de 2% sobre a taxa comercial (taxa legal).

Contra-alegando vieram os Embargantes e Executados, ora Recorridos, apresentar as seguintes conclusões:
I. Na opinião da recorrente, é de revogar ou anular a sentença recorrida e de mudar a decisão no sentido de julgar improcedentes todos os embargos dos recorridos. Os recorridos discordam completamente.
II. Em primeiro lugar, os títulos executivos, os “recibos de depósito de fichas pelo cliente” a fls. 39 a 41 dos autos e os registos de depósito e de levantamento da conta n.º M95 a fls. 42 a 50 são todos princípios da prova por escrito, capazes de corroborar convincentemente que os recorridos assinaram os títulos executivos enquanto mandatários.
III. Primeiro, apensar de ser o 2.º recorrido que assinou as notas de empréstimo que constituem os títulos executivos, no documento está escrito “M95 B” e marcado sobre a linha horizontal para o “número de cliente”. Então, segundo o significado literal do documento, a recorrente considerava o proprietário da conta n.º M95 que é o 1.º recorrido como cliente que pediu o empréstimo, em vez da própria pessoa do 2.º recorrido.
IV. Segundo o art.º 370.º do CC, as notas de empréstimo acima referidas, que são documentos particulares, foram impressas e elaboradas pela recorrente, e assinadas pelo pessoal da recorrente, fazem prova plena quanto às declarações de vontade da recorrente. Pode-se ver que quem pediu os empréstimos foi o 1.º recorrido, em vez do 2.º recorrido.
V. Mais tarde o 1.º recorrido também assinou os títulos executivos. Também daqui segue que quem pediu os empréstimos foi o 1.º recorrido. Pois segundo o senso comum, o 1.º recorrido, não sendo o creditado e logo não responsabilizando-se pela liquidação das dívidas, não teria tido a obrigação de assinar os títulos executivos; e na qualidade do garante, o 1.º recorrido teria especificado nos títulos executivos que os assinou enquanto garante. Mas na realidade não o especificou.
VI. Segundo os recorridos, o que os títulos executivos demonstram é que o creditado foi o proprietário da conta M95, que era o 1.º recorrido e que o 2.º recorrido pediu emprestado o dinheiro mas apensas em nome do 1.º recorrido.
VII. Segundo, os “recibos de depósito de fichas pelo cliente” providenciados pela recorrente a fls. 39 a 41 dos autos e os registos de depósito e de levantamento da conta n.º M95 a fls. 44, 45 e 46 demonstram todos que os depósitos foram feitos na conta n.º M95 do 1.º recorrido
VIII. Nos “recibos de depósito de fichas pelo cliente” a fls. 39 a 41, onde está “acusa a recepção” lê-se “M95 B”. Logo, o 2.º recorrido considera os depósitos como dinheiro depositado pelo 1.º recorrido. Tal factos constam, de resto, da base instrutória números 14, 17, 19, 30, 31 e 32 e estão provados.
IX. Quanto à força probatória, os “recibos de depósito de fichas pelo cliente” e os registos de depósito e de levantamento da conta n.º M95 acima referidos foram todos submetidos pela recorrente. Trata-se de registos de depósito de fichas da recorrente e os correntes do proprietário da conta. Nos termos do art.º 374.º do CC, os registos constituem provas contra a recorrente. E segundo o art.º 370.º do CC, os registos fazem prova plena da vontade declarada pela recorrente.
X. Além disso, apesar do facto de que foi o 2.º recorrido que depositou o dinheiro no montante equivalente aos empréstimos, logicamente falando, se o dinheiro pertencesse ao 2.º recorrido que não era o proprietário da contra M95, como seria possível que o 2.º recorrido não depositasse as suas fichas numa conta não sua? Além disso, não há provas capazes de demonstrar que o 2.º recorrido pudesse levantar dinheiro da contra M95 de livre arbítrio. Portanto, do ponto de vista lógico e segundo a lei de experiência comum, os depósitos no montante total de HKD$3.000.000,00 não pertencia ao 2.º recorrido.
XI. Portanto, dos documentos submetidos pela recorrente acima referidos resulta que mesmo que foi o 2.º recorrido que praticou o acto, a recorrente considerou que tinha sido o 1.º recorrido que o fez. Portanto, a recorrente percebeu que foi um representante do 1.º recorrido que praticou o acto e que a declaração da vontade recebida tinha sido do 1.º recorrido, mas que foi o 2.º recorrido que agiu em nome do 1.º recorrido.
XII. Terceiro, a lei não exige que a procuração para o empréstimo seja efectuada por escrito.
XIII. Segundo os artigos 209.º, 211.º, 255.º, 1070.º a 1078.º do CC, na falta de preceito legal sobre a forma obrigatória que o empréstimo para jogos deve revestir, a sua validade não depende da observância de forma especial. Logo, nem é necessário que a autorização dada a outros para concessão de crédito para jogos deva observar formas especiais.
XIV. A celebração dos créditos para jogo aqui em causa e a procuração para que um terceiro conceda créditos para jogo podem tomar a forma oral, escrita ou através de declaração directa de vontade.
XV. Os documentos a fls. 31 a 33 dos autos demonstram apenas que no momento em que o 1.º recorrido assinou tais documentos, não tinha autorizado o 2.º recorrido para empréstimos. Mas isso não significa que após não tenha autorizado o 2.º recorrido.
XVI. Além disso, o acórdão que a recorrente citou era apenas uma decisão do TUI sobre um caso específico, que não é jurisprudência uniformizada. Não tem força vinculativa obrigatória para o presente caso no que se refere à aplicação da lei e do conhecimento. As circunstâncias de facto diferem totalmente. Naquele acórdão não se procedeu à apreciação jurídica da matéria de facto. Julgou-se improcedente a acusação de conhecimento em excesso com base no seguinte: “o autor não contestou o entendimento. Então, não se pode considerar que na sentença recorrida, com base nos trechos de gravação e nos documentos referidos pelo 1.º réu, tenha conhecido do recurso interposto da resposta dada pelo tribunal colectivo relativamente ao quesito n.º 1 da base instrutória.”
XVII. Quarto, as “garantias” a fls. 34 e 412 dos autos não podem demonstrar ainda que minimamente a declaração de vontade por parte do 1.º recorrido de garantir para os empréstimos do 2.º recorrido no presente caso.
XVIII. As dívidas para jogo podem atingir facilmente dezenas de milhares, uns milhões e mesmo até dezenas de milhões. Segundo a lei de experiência comum, sem especificar o montante garantido, como é possível que uma pessoa comum esteja disposta a garantir uma ou várias dívidas de montante desconhecido que podem totalizar dezenas de milhões?
XIX. Além disso, o 2.º recorrido assinou os títulos executivos em 03/09/2016, 30/09/2016 e 02/10/2016, enquanto o 1.º recorrido assinou as garantias em 21/12/2016. Por outras palavras, quando o 1.º recorrido assinou as garantias, já existiam, de facto, os três empréstimos referidos nos títulos executivos. Assim, se tivesse sido verdadeiramente para garantir as dívidas mencionadas nos títulos executivos, por que não se especificou quais as dívidas nas garantias? Além disso, entre a assinatura posterior pelo 1.º recorrido e a assinatura dos títulos executivos e das garantias há um espaço de 2 anos. Os recorridos não consideram necessários dois anos para praticar-se o acto de garantia.
XX. Na hipótese de entender que a assinatura posterior pelo 1.º recorrido nos títulos executivos equivale à garantia em termos de natureza, então, no momento de assinatura, porque não acrescentou “o garante” nos títulos executivos?
XXI. Obviamente, logo desde o princípio até ao fim, a recorrente tem sempre considerado como creditado o 1.º recorrido. Portanto, mesmo aquando da assinatura posterior, exigiu que o 1.º recorrido assinasse onde estava “assinatura do creditado”, sem acrescentar o termo “garante”, a fim de poder, ao instaurar a acção executiva, exigir a liquidação simultaneamente ao 1.º recorrido, que já assinou, e ao 2.º recorrido. Seriam os dois que garantiriam o crédito perante a recorrente com os seus bens.
XXII. Além disso, no texto das garantias, há linhas horizontais traçadas para o montante do empréstimo garantido e o prazo de validade. O espaço deixado em branco significa a existência da declaração da vontade de especificar a dívida garantida. A garantia foi elaborada pela recorrente, o que significa, portanto, que a recorrente também achava necessário descrever mais detalhadamente a dívida garantida. Mas na realidade, no presente caso não se encontram descrições. Uma pessoa comum no lugar dos recorridos não saberia deduzir quais as dívidas garantidas em termos concretos, já para não falar do facto de que os recorridos assinaram notas de empréstimo para com a recorrente mais do que uma vez. Portanto, com base nas garantias, não se consegue confirmar que se trate das dívidas nos títulos executivos aqui em causa.
XXIII. Quinto, o caso previsto pelo art.º 388.º, n.º 1 do CC conduz à inadmissibilidade da prova testemunhal. No entanto, tal como opina o académico Dr.º Vaz Serra, há excepções na aplicação do artigo, sendo uma delas quando se trata de um princípio de prova por escrito, que torne verosímil o facto alegado. O mesmo parecer encontra-se também nos acórdãos do TSI n.º 38/2022 e n.º 661/2022.
XXIV. Nos títulos executivos está claramente marcado “M95 B”. No espaço dedicado à assinatura do creditado, estão as assinaturas do 1.º recorrido e do 2.º recorrido. Há três possibilidades de interpretação de tal teor. Primeiro, o empréstimo referido na nota entrou na conta n.º M95 e considerou-se como empréstimo pedido pelo 1.º recorrido; segundo, o 1.º recorrido foi o garante e o 2.º recorrido o creditado; terceiro, o 1.º recorrido foi o creditado e o 2.º recorrido, o garante.
XXV. A terceira hipótese é de probabilidade diminuta. Pois das notas de empréstimo não resulta de qualquer maneira a declaração da vontade do 2.º recorrido de estar disposto a ser o garante.
XXVI. Quanto à 2.ª hipótese, o que consta das garantias e das notas de empréstimo está longe de constituir a declaração da vontade do 1.º recorrido de constituir a garantia.
XXVII. A 1.ª hipótese, porém, pode ser provada com as provas documentais nos autos. Em primeiro lugar, em todos os títulos executivos no processo principal de execução lê-se na rubrica “cliente n.º” “M95 B”. Segue daqui que para a recorrente, o cliente das notas de empréstimo era o dono da conta n.º M95 B, ou seja, o 1.º recorrido, em vez do 2.º recorrido.
XXVIII. Segundo, os registos de empréstimo a fls. 11 a 14 dos autos e os registos de depósito e de levantamento a fls. 42 a 50 têm todos como sujeito de registo a conta n.º M95 do 1.º recorrido.
XXIX. Terceiro, dada a existência da “assinatura no acto de depósito”, se o verdadeiro creditado tivesse sido o 2.º recorrido, então, o 2.º recorrido deveria ter providenciado o montante equivalente aos empréstimos. Então por que resulta dos registos de depósito e levantamento a fls. 42 a 50 dos autos que o dinheiro no montante equivalente aos empréstimos aqui em causa foi depositado na conta n.º M95 do 1.º recorrido? Além disso, os “recibos de depósito de fichas pelo cliente” também especificam que se tinha recebido o dinheiro em numerário entregue pelo 1.º recorrido? Obviamente não corresponde ao senso comum.
XXX. Segundo demostram os registos de depósito e levantamento a fls. 42 a 50 dos autos, os depósitos seriam destinados ao “uso exclusivo de resgatar M”, ou seja, resgatar “MARKER” (verba de uso exclusivo para jogo), ou seja, para reembolsar o empréstimo para jogo concedido à conta n.º M95. Assim sendo, se os depósitos tivessem sido do 2.º recorrido, como teria sido possível que este permitisse que se usasse seu dinheiro para pagar dívidas na conta do 1.º recorrido, fosse quem fosse o signatário das notas de empréstimo? Obviamente, o dinheiro que o 2.º recorrido depositou não foi dele próprio. A explicação mais razoável seria que o dinheiro depositado na conta n.º M95 pertencia ao dono da conta n.º M95, ou seja, ao 1.º recorrido.
XXXI. Visto que o dinheiro depositado pertencia ao 1.º recorrido, se o verdadeiro creditado tivesse sido o 2.º recorrido, o 2.º recorrido teria respondido pelas dívidas emergentes. Mas que o 1.º recorrido colocasse à disposição do 2.º recorrido uns milhões do seu dinheiro para liquidar as dívidas do 2.º recorrido e que o depositasse na conta, a fim de a recorrente conceder empréstimos ao 2.º recorrido, seria completamente irrazoável. Uma explicação mais razoável seria a seguinte: o verdadeiro creditado foi o 1.º recorrido. As dívidas na conta n.º M95 eram do 1.º recorrido.
XXXII. Quarto, o caso referido no acórdão do TSI n.º 661/2022 é análogo ao presente. Só que lá foi D e cá, o 2.º recorrido. As datas e os montantes de empréstimo foram diferentes. Dos factos provados pode-se ver que foi na qualidade do representante do 1.º recorrido que D assinou as notas de empréstimo naquele processo. Assinou-os em nome do 1.º recorrido. Ainda que D, o embargante lá não seja parte no presente caso, em ambos os casos, estão em causa empréstimos entre o 1.º recorrido, os seus empregados e a recorrente. Portanto, a apreciação de factos naquele processo pode servir de prova corroborativa para a do presente caso.
XXXIII. Quinto, o documento de ratificação a fls. 426 a 427 faz prova plena, segundo o qual o 1.º recorrido ratificou que tinha sido o 2.º recorrido que assinou as notas de empréstimo em causa mas que as dívidas recaíam a suo próprio cargo.
XXXIV. O documento de ratificação acima referido não é o caso previsto pelo art.º 348.º, números 1 a 3 do CC. Não foi feito em juízo, antes sim num documento particular. Anexou-se ao processo só mais tarde mediante solicitação. Portanto, tal documento constitui confissão extrajudicial. Nos termos do art.º 351.º, n.º 2 do CC, a confissão extrajudicial tem força probatória plena.
XXXV. Portanto, o princípio da prova escrito acima referido consegue suster suficientemente que o creditado foi, em vez do 2.º recorrido, antes o 1.º recorrido. O que o 2.º recorrido fez foi apenas assinar os títulos executivos em nome do 1.º recorrido.
XXXVI. Em segundo lugar, na falta de exigência legal no crédito para jogo e a procuração aqui em causa, não é verdade que tenha sido um mandato sem representação.
XXXVII. Tal como referido atrás, a celebração dos créditos para jogo aqui em causa e a procuração para que um terceiro conceda créditos para jogo podem tomar a forma oral, escrita ou através de declaração directa de vontade. Então, não é preciso documento escrito para demonstrar que o 1.º recorrido conferiu procuração ao 2.º recorrido para pedir empréstimos à recorrente. É improcedente, portanto, a tese da recorrente, sobre mandato sem representação causado pela falta de procuração escrita.
XXXVIII. Em terceiro lugar, a obrigação no presente caso não é solidária. Tal como referido atrás, o verdadeiro devedor nos títulos executivos em causa é o 1.º recorrido, em vez do 2.º recorrido; portanto, cabe somente ao 1.º recorrido assumir a obrigação.
XXXIX. Portanto, na opinião dos recorridos, a sentença recorrida não violou qualquer preceito legal. É de julgar improcedente quanto pedido pela recorrente.

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre assim apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Dos Factos

Na decisão recorrida foi dada por assente a seguinte factualidade:
1. Em 27/03/2002, pelo Despacho do Chefe do Executivo n.º 76/2002 e nos termos da Lei n.º 16/2001 e do Regulamento Administrativo n.º 26/2001, o Chefe do Executivo adjudicou à "Sociedade de XXXX, S. A." uma das três concessões para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino postas a concurso (vd. os autos de execução a fls. 10 e verso). (facto provado A)
2. A embargada é uma sociedade fundada legalmente na RAEM em 14/03/2006, registo de empresário comercial pessoa colectiva n.º 24029SO, que explora a promoção de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino (vd. os autos de execução a fls. 11 a 28). (facto provado B)
3. Em 03/09/2016, o 2.º embargante assinou a “nota de empréstimo” a fls. 45 dos autos de execução. (facto provado C)
4. Em 30/09/2016, o 2.º embargante assinou a “nota de empréstimo” a fls. 46 dos autos de execução. (facto provado D)
5. Em 02/10/2016, o 2.º embargante assinou a “nota de empréstimo” a fls. 47 dos autos de execução. (facto provado E)
6. Em 26/02/2021, a embargada instaurou processo de execução contra os dois embargantes, tendo como título executivo as três notas de empréstimo acima referidas a fls. 45 a 47 dos autos de execução. (facto provado F)
– Factos provados através da audiência: (para os fundamentos com que se deu por assentes os factos, vd. os autos a fls. 439 a 447)
7. Em 09/11/2010, a Sociedade de XXXX, S. A. celebrou com a embargada o contrato de promoção de jogos de fortuna ou azar a fls. 29 a 34 dos autos de execução, que permitia à segunda, na qualidade de promotor de jogo, explorar a operação de salas VIP (incluindo a “Sala VIP E”) e a promoção de jogos no seu casino. (resposta ao quesito 1.º)
8. No mesmo dia, mediante o contrato a fls. 35 a 36 dos autos de execução, a Sociedade de XXXX, S. A. deu permissão à embargada para explorar actividades de crédito para jogos de fortuna ou azar dentro do seu casino (incluindo a “Sala VIP E”). O contrato renovava-se automaticamente. (resposta ao quesito 2.º)
9. Durante o ano 2016, a embargada detinha o Licenciamento dos promotores de jogo da pessoa colectiva n.º E037 emitido pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) e constante dos autos de execução a fls. 44 (resposta ao quesito 3.º)
10. Não mais tarde do que 24/03/2004, o 1.º embargante abriu a conta de jogos n.º M95 na sala VIP operada pela embargada e detinha-a, podendo pedir emprestadas fichas de uso exclusivo para jogos mediante a conta para jogar. (resposta ao quesito 4.º)
11. Pelo menos a partir de 2016, como a sua conta n.º M95 já tinha acumulado um certo montante de dívidas, o 1.º embargante não podia pedir emprestadas mais fichas de uso exclusivo para jogos mediante a conta com “notas de empréstimo” assinadas. (resposta ao quesito 5.º)
12. A pedido da embargada, o 1.º embargante devia depositar dinheiro ou fichas em numerário na sua conta n.º M95 ou noutras contas designadas por si mesmo, ou ainda creditar dinheiro em contas designadas pela embargada através de transferência bancária; e só tendo feito isso é que o 1.º embargante ou outros determinados indivíduos podiam levantar fichas de uso exclusivo para jogos de valor equivalente na sala VIP para jogar. O levantamento seria feito através da assinatura de “notas de empréstimo”. (resposta ao quesito 6.º)
13. Ao mesmo tempo, a embargada exigiu o seguinte: se perdiam todas as fichas de uso exclusivo para jogos, então o 1.º embargante não podia recuperar o dinheiro já depositado na conta, pois que seria destinado na sua totalidade para pagar a dívida mencionada na “nota de empréstimo” correspondente ou em outras “notas de empréstimo” celebradas por meio da conta do 1.º embargante; caso contrário, no caso de ganhar, podia recuperar o dinheiro depositado, não se colocando a questão de dívidas. Por outras palavras, as verbas depositadas eram, por natureza, cauções ou garantias. (resposta ao quesito 7.º)
14. Através do procedimento acima descrito, o 1.º embargante podia ganhar “comissões de fichas” concedidas pela embargada, calculadas com base nos montantes referidos nas “notas de empréstimo” (resposta ao quesito 8.º)
15. Procedendo da maneira acima referida, ficava-se com registos correspondentes na sala VIP da embargada. (resposta ao quesito 9.º)
16. Ficou provado o mesmo que o referido nas respostas aos factos por provar números 6 a 8, 23 e 26. (resposta ao quesito 10.º)
17. O 2.º embargante, empregado do 1.º embargante, assistia este no acolhimento dos clientes, acompanhando-os durante os jogos e ajudando-os a trocar fichas. (resposta ao quesito 11.º)
18. O 2.º embargante não tinha linha de crédito na sala VIP da embargada, nem autorização para pedir emprestadas fichas de uso exclusivo para jogos. (resposta ao quesito 12.º)
19. O mesmo que o referido na resposta ao facto por provar n.º 27. (resposta ao quesito 12.º)
20. Em 03/09/2016, 30/09/2016 e 02/10/2016, o 1.º embargante tinha clientes que desejavam jogar na sala VIP. Então, o 1.º embargante mandou ao 2.º embargante acolher e acompanhá-los e trocar fichas para eles, a fim de ganhar “comissões de ficha”. (resposta ao quesito 13.º)
21. Em 03/09/2016, o cliente do 1.º embargante queria jogar com HKD$1.000.000,00. O 1.º embargante, então, depositou HKD$1.000.000,00 na sua conta n.º M95 através do 2.º embargante. (resposta ao quesito 14.º)
22. Depois de o 1.º embargante ter depositado os HKD$1.000.000,00 na sua conta n.º M95 através do 2.º embargante, o 2.º embargante assinou a “nota de empréstimo” n.º 021555 a fls. 45 dos autos do processo principal de execução, para levantar fichas de uso exclusivo para jogos no valor de HKD$1.000.000,00 através da conta n.º M95. (resposta ao quesito 15.º)
23. Em 30/09/2016, o cliente do 1.º embargante queria jogar com HKD$1.000.000,00. O 1.º embargante, então, mandou ao 2.º embargante trocar-lhe fichas de uso exclusivo para jogos contra o dinheiro em numerário de HKD$1.000.000,00. (resposta ao quesito 16.º)
24. Conforme as instruções do 1.º embargante, o 2.º embargante depositou o dinheiro em numerário de HKD$1.000.000,00 na conta n.º M95 do 1.º embargante mediante o modo acima referido. Depois, o 2.º embargante assinou a “nota de empréstimo” n.º 192405 a fls. 46 dos autos de processo de execução, para levantar fichas de uso exclusivo para jogos no valor de HKD$1.000.000,00 através da conta n.º M95. (resposta ao quesito 17.º)
25. Em 02/10/2016, o cliente do 1.º embargante queria jogar com HKD$1.000.000,00. O 1.º embargante, então, mandou ao 2.º embargante trocar-lhe fichas de uso exclusivo para jogos contra o dinheiro em numerário de HKD$1.000.000,00. (resposta ao quesito 18.º)
26. Conforme as instruções do 1.º embargante, o 2.º embargante depositou o dinheiro em numerário de HKD$1.000.000,00 na conta n.º M95 do 1.º embargante mediante o modo acima referido. Depois, o 2.º embargante assinou a “nota de empréstimo” n.º 192438 a fls. 47 dos autos de processo de execução, para levantar fichas de uso exclusivo para jogos no valor de HKD$1.000.000,00 através da conta n.º M95. (resposta ao quesito 19.º)
27. As fichas das três vezes acima referidas foram todas dadas ao cliente para jogar ou apostar. Não foram dadas a nenhum dos embargantes para jogar ou apostar. (resposta ao quesito 20.º)
28. O 1.º embargante não estava presente quando assinaram as notas de empréstimo mencionadas nas respostas aos factos por provar números 15, 17 e 19. Não jogou ou apostou com aquelas fichas de uso exclusivo para jogos. (resposta ao quesito 21.º)
29. O 2.º embargante não tinha o hábito de jogar ou apostar. Não pediu emprestadas as fichas de uso exclusivo para jogos aqui em causa para jogar ou apostar. (resposta ao quesito 22.º)
30. Operando da maneira acima descrita, o 1.º embargante ganhava “comissões de fichas”. Os seus depósitos funcionaram como caução ou garantia. As fichas de uso exclusivo para jogos foram por fim dadas ao cliente para apostar. Não foi nenhum dos dois embargantes que apostou. (resposta ao quesito 23.º)
31. A conta n.º M95 do 1.º embargante já tinha acumulado um certo montante de dívidas. No entanto, desejava continuar a fazer “bate-ficha”. Então conforme quanto exigido pela embargada, procedeu da maneira descrita nas respostas aos factos por provar números 15, 17 e 19. (resposta ao quesito 24.º)
32. No fim de cada jogo ou aposta, o 1.º embargante podia escolher entre destinar o depósito para pagar as dívidas mencionadas nas 3 “notas de empréstimos” no caso em apreço e destiná-lo para pagar outras dívidas concedidas há ainda mais tempo na conta n.º M95, dívidas essas referidas em outras “notas de empréstimo”. (resposta ao quesito 25.º)
33. Mandado pelo 1.º embargante, o 2.º embargante foi à sala de jogos da embargada e assinou, em nome do 1.º embargante, as três “notas de empréstimo” constantes dos autos do processo principal de execução a fls. 45 a 47. (resposta ao quesito 26.º)
34. Salvo com permissão do pessoal de chefia da embargada, a embargada não emprestava fichas de uso exclusivo para jogos ao 2.º embargante. Emprestava-as somente à própria pessoa do proprietário da conta. (resposta ao quesito 27.º)
35. Os empregados da embargada deviam sempre obter em primeiro lugar o consentimento do 1.º embargante e só com a permissão do pessoal de chefia da embargada é que podiam deixar o 2.º embargante assinar as três “notas de empréstimo” aqui em causa e prestar-lhe as fichas de uso exclusivo para jogos de valor correspondente. (resposta ao quesito 28.º)
36. Ficou provado o mesmo que o referido na resposta ao facto por provar n.º 26. (resposta ao quesito 29.º)
37. De facto, o 2.º embargante depositou na conta n.º M95 do 1.º embargante HKD$1.000.000,00 em numerário ou em fichas de numerário às 13h37 de 03/09/2016. Para isso, a embargada emitiu-lhe o “recibo de depósito de fichas pelo cliente” (doravante “recibo de depósito de fichas”) n.º 030675 em três vias; a 1.ª via do recibo de depósito de fichas foi entregue ao 2.º embargante, enquanto conservou para si a 2.ª e a 3.ª via. (resposta ao quesito 30.º)
38. As dívidas contraídas pelo 1.º embargante na conta n.º M95 em 2015 e nos anos anteriores todavia ainda não liquidadas chegaram ao montante de HKD$ 46.020.000,00. Portanto, o 2.º embargante procedeu da maneira descrita nas respostas aos factos por provar números 15, 17 e 19. (resposta ao quesito 30.º – A)
39. Além disso, o 2.º embargante depositou na conta n.º M95 do 1.º embargante HKD$1.000.000,00 em numerário ou em fichas de numerário às 16h19 de 30/09/2016. Para isso, a embargada emitiu-lhe o “recibo de depósito de fichas pelo cliente” n.º 110492 em três vias; a 1.ª via do recibo de depósito de fichas foi entregue ao 2.º embargante, enquanto conservou para si a 2.ª e a 3.ª via. (resposta ao quesito 31.º)
40. Além disso, o 2.º embargante depositou na conta n.º M95 do 1.º embargante HKD$1.000.000,00 em numerário ou em fichas de numerário às 20h37 de 02/10/2016. Para isso, a embargada emitiu-lhe o “recibo de depósito de fichas pelo cliente” n.º 110557 em três vias; a 1.ª via do recibo de depósito de fichas foi entregue ao 2.º embargante, enquanto conservou para si a 2.ª e a 3.ª via. (resposta ao quesito 32.º)
41. Segundo a prática na sala de jogo operada pela embargada, quando o detentor do recibo de depósito de fichas queria recuperar as fichas depositadas, pediam-lhe (podia não ser a própria pessoa que tinha depositado as fichas) entregar de volta o original da 1.ª via do recibo de depósito de fichas para ser carimbado com o selo “CANCELLED”, que significava que já tinha sido cancelado o depósito de fichas e que o dinheiro já tinha sido restituído ao detentor do recibo de depósito de fichas. (resposta ao quesito 33.º)
42. O depósito de HKD$1.000.000,00 no recibo de depósito de fichas n.º 030675 já foi levantado pelo 2.º embargante às 22h10 de 11/09/2016. (resposta ao quesito 34.º)
43. O depósito de HKD$1.000.000,00 no recibo de depósito de fichas n.º 110492 e o depósito de HKD$1.000.000,00 no recibo de depósito de fichas n.º 110557 já foram ambos levantados pelo 2.º embargante em 23/10/2016. (resposta ao quesito 35.º)
44. Na conta n.º M95, o 2.º embargante não obteve consentimento do 1.º embargante para autorização de empréstimos (resposta ao quesito 36.º)
45. Em 11/12/2018, a embargada exigiu que o 1.º embargante assinasse nas “notas de empréstimo” constantes dos autos do processo principal de execução a fls. 45 a 47 para solicitar-lhe o pagamento (resposta ao quesito 36.º)

2. Do Direito

Sobre uma situação em tudo idêntica à destes autos em que apenas a pessoa do 2º Embargante diverge já nos pronunciámos em Acórdão de 12.10.2023 no processo que correu termos sob o nº 411/2023.
Em síntese nas suas conclusões de recurso sustenta a Recorrente que ambos os Executados actuaram em nome próprio contraindo os empréstimos junto da Embargada e garantindo o pagamento da dívida, pelo que, em face dos títulos executivos dados à execução ambos são responsáveis pelo pagamento.
Mais sustenta a Recorrente a responsabilidade solidária dos devedores porquanto as dívidas nascem do exercício da actividade empresarial, bem como, de aos juros acrescer a sobretaxa comercial de 2% por se tratar de acto de comércio.

Vejamos então.

Resumindo o que consta da factualidade apurada temos que a Embargada é uma empresa com licença de promotor de jogo e autorizada por uma das concessionárias a exercer também a actividade de crédito para jogo em casino.
Por sua vez o 1º Embargante era titular da conta M95 na sala VIP explorada pela Embargada, conta essa que lhe permitia até ao limite do crédito autorizado pedir emprestado fichas mortas para jogar recebendo a respectiva comissão de fichas em função do montante de fichas mortas que adquiria.
Porque o 1º Embargante já havia atingido o plafond do seu crédito, de maneira a poder continuar a receber comissão pelo valor das fichas mortas que adquiria através da sua conta, sempre que fosse feita uma aquisição de fichas a crédito havia de ser depositado igual montante para pagamento das dívidas anteriores.
O que releva neste momento para a decisão e para apreciar da responsabilidade do 2º Embargante está directamente relacionado com os títulos executivos que sustentam a execução e a relação entre os Executados/Embargantes.
O 2º Embargante era trabalhador do 1º Embargante tendo como função receber clientes deste, acompanhá-los a comprar fichas e no jogo – facto 17 -.
Como também resulta da factualidade apurada – facto 18 – o 2º Embargante não tinha conta na Sala VIP da Embargada, nem o 1º Embargante na conta M95 havia passado procuração autorizando o 2º Embargante a contrair empréstimos em seu nome – facto 44 -.
Como também se provou mediante instruções que recebeu do 1º Embargante, o 2º Embargante nos dias 3 e 30 de Setembro e 2 de Outubro, todos de 2016 recebeu clientes e acompanhou-os no jogo, tendo para o efeito assinado os títulos executivos para adquirir a crédito fichas mortas no valor global de HKD3.000.000,00 – factos 20 a 26 e 33 -.
Quando o 2º Embargante assinou os recibos de empréstimos que constituem os títulos executivos os funcionários da Embargada previamente obtiveram autorização do 1º Embargante para permitir que fossem levantadas as fichas mortas de valor equivalente – facto 34 e 35 -.
Ou seja, dúvidas não há de que o 2º Embargante é funcionário do 1º Embargante e actuou ao contrair estes empréstimos segundo as instruções e no interesse do 1º Embargante.
Contudo, o 1º Embargante na conta M95 não havia concedido poderes ao 2º Embargante para actuar em sua representação, ou seja, não havia passado procuração a este para poder contrair empréstimo em seu nome.
No caso “sub judice” o que acontece na relação entre Embargantes e o que se estabelece entre Embargantes e Embargada não é totalmente coincidente.
No domínio das relações entre os Embargantes efectivamente está provado que o 1º Embargante encarrega o 2º Embargante de fazer algo que este faz.
Até podemos aceitar que sejam comitente e comissário, mas chegados aqui há que procurar como resolver a questão das responsabilidades assumidas.
A relação comitente comissário é tratada a propósito da responsabilidade pelo risco relativamente aos danos causados pelo comissário nos termos do artº 493º do C.Civ., contudo não é essa a situação dos autos.
Esclarecendo-se que seja a actuação como empregado subalterno ou outra qualquer classificação, tal facto é irrelevante para a caracterização jurídica que se impõe fazer.
Aceitando-se que o 1º Embargante encarregou o 2º Embargante de fazer algo dada a factualidade apurada tal terá acontecido nos termos do mandato sem representação – cf. artº 1106º a 1110º do C.Civ. -.
Sem que tenha conferido poderes de representação, vulgo procuração, ao 2º Embargante, o 1º Embargante encarregou-o de contrair três empréstimos na aquisição de fichas mortas para os seus clientes (do 1º Embargante) poderem jogar, fazendo-a através da conta que tinha aberto na Embargada, recebendo (o 1º Embargante) em contrapartida a comissão pela aquisição das fichas.
Nos termos do artº 1108º do C.Civ. dúvidas não temos que no domínio das relações entre os Embargantes o 1º Embargante é obrigado a assumir as obrigações contraídas pelo mandatário sem representação aqui 2º Embargante ou a reembolsá-lo do que houver despendido nesse cumprimento.
Contudo, no domínio das relações com terceiros, isto é com a Embargada, de acordo com o disposto no artº 1106º do C.Civ., quem assumiu a dívida foi o 2º Embargante, pelo que, perante a Embargada é este (o 2º Embargante) que deve assumir a obrigação do acto que celebrou, a saber, a aquisição de fichas mortas a crédito.
Pese embora o 1º Embargante haja autorizado que os empréstimos fossem contraídos através da sua conta, só em 11.12.2018 (cf. títulos executivos) é que veio também a assinar as declarações de dívida e a garantir perante a Embargada o pagamento daquelas, mas o que daí resulta não é a exoneração do 2º Embargante da obrigação de pagamento, mas aumentar o número de pessoas que estão obrigados a fazê-lo.
Pergunta-se: se o 1º Embargante não tivesse posteriormente assinado os títulos executivos como devedor quem é que se tinha constituído como devedor até que aquela assinatura foi aposta? A única resposta possível é a de que quem reconheceu ser devedor e se comprometeu a pagar foi o 2º Embargante, e fê-lo como mandatário sem representação (face ao que se provou) o que não afasta a sua responsabilidade pelo cumprimento das obrigações que assumiu perante o credor aqui Embargada/Exequente.
Logo, aqui chegados, temos que em face dos títulos executivos e da factualidade apurada o que resulta é que o 2º Embargante perante a Embargada actuou em nome próprio (no âmbito do mandato sem representação) assumindo a obrigação decorrente da compra de fichas a crédito ainda que a relação de mandato fosse conhecida da Embargada (o que não se provou) pois não havia procuração que o autorizasse a actuar em representação do 1º Embargante.

Por fim no caso dos autos, a assinatura do 2º Embargante nos títulos executivos não foi impugnada pelo que, nos termos do artº 368º do C.Civ. se tem a mesma por verdadeira.
Face ao disposto no artº 370º do C.Civ. os títulos executivos fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, neste caso o 2º Embargante.
Estando o reconhecimento de dívida e o compromisso de pagamento assumido pelo 2º Embargante plenamente provado por documento, nos termos do nº 2 do artº 387º do C.Civ. não é admitida prova testemunhal para demonstrar o contrário ou que tenha por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento – artº 387º do C.Civ. -. Sendo certo que, não há qualquer princípio de prova escrita que permita concluir em sentido contrário, pois não basta que se indique o número da conta do 1º Embargante e o nome deste, sendo que para haver princípio de prova era no sentido da Embargada e Exequente saber que o 2º Embargante actuava em representação, em nome e por conta do 1º Embargante e que o 2º Embargante não assumia qualquer obrigação em nome próprio, o que de modo algum foi sequer indiciado nos autos.
Ou seja, para se concluir que o 2º Embargante não era responsável pelo pagamento da dívida, cabia aos Embargantes terem demonstrado que a relação de empréstimo entre 2º Embargante e Embargada não aconteceu – cf. C.Civ. artº 452º nº1 in fine quando se diz “fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário” -, o que significa, que cabia aos Embargantes, ou pelo menos ao 2º Embargante, o ónus da prova – por outra forma que não a prova testemunhal dado que o título executivo tem força probatória plena cf. artº 387º do C.Civ. – de que a relação de empréstimo não aconteceu, ou não é verdadeira, ou não existe, pelo menos no que concerne ao 2º Embargante.
Ora o que os Embargantes demonstraram foi a relação entre eles, que nesta decisão se subsumiu a um mandato sem representação, mas não se demonstrou que o empréstimo contraído junto da Embargada não aconteceu, nem tão pouco que o 2º Embargante não assumiu a dívida para com a Embargada, havendo documento com força probatória plena a demonstrá-lo.

Destarte, face ao disposto no artº 452º do C.Civ. tem-se por demonstrada a existência do crédito da Embargada sobre ambos os Embargantes, não podendo o que resulta do título ser afastado apenas com base na prova testemunhal.
Assim sendo, face a todo o exposto nunca a decisão poderia ter sido isentar o 2º Embargante, seja porque o título faz prova plena da assumpção de dívida e promessa de pagamento assumida por este a qual não pode ser afastada com base na prova testemunhal, seja porque, havendo uma relação de mandato sem representação entre os Embargantes e actuando o 2º Embargante em nome próprio assumiu as obrigações decorrentes dos actos que celebrou, sem prejuízo da responsabilidade do 1º Embargante para com o 2º Embargante mas que não é objecto destes autos.
No que concerne à responsabilidade solidária dos devedores aqui Embargantes o que resulta dos títulos executivos é que ambos assumiram a responsabilidade pelo pagamento integral da obrigação, sendo certo que, inicialmente até foi apenas o 2º Embargante a fazê-lo, pelo que, nada tendo sido ressalvado, e resultando a solidariedade da vontade das partes nos termos do artº 506º do C.Civ. impõe-se concluir no sentido de ambos os Embargantes/Executados serem solidariamente responsáveis pelo pagamento das dívidas.

Síntese conclusiva:
- Há mandato quando alguém encarrega outro de praticar actos jurídicos por sua conta, dizendo-se sem representação quando não forem conferidos poderes ao mandatário para o efeito (artº 1083º, 1104º e 1106º do C.Civ.);
- O mandatário sem poderes de representação age em nome próprio assumindo as obrigações dos actos que celebra ainda que o mandato seja do conhecimento dos terceiros com quem pratica os actos jurídicos no âmbito do mandato – artº 1106º do C.Civ. -;
- Sem prejuízo dos direitos e das obrigações decorrentes para o mandante da execução do mandato e do direito do mandatário de ser reembolsado do que tiver despendido na execução do mandato, não deixa de ser o mandatário o responsável pelo cumprimento das obrigações assumidas perante os terceiros com quem contratou (artº 1106º a 1108º do C.Civ.);
- Não sendo impugnada a assinatura aposta em documento particular no qual se reconhece uma dívida e se assume o respectivo pagamento, o mesmo faz prova plena das declarações atribuídas ao seu autor, não podendo o que dele consta ser infirmado através de prova testemunhal (artº 368º nº 1, 370º nº 1, 387º nº 1 e 2, 388º do C.Civ.).
  - A prova testemunhal da relação e eventuais acordos quanto à responsabilidade pelo pagamento de determinada dívida entre dois co-devedores/executados não é bastante para afastar a responsabilidade que para os mesmos decorre de terem assinado o documento em que reconhecem a dívida e se comprometem a pagá-la.
  - Beneficiando o exequente, ora embargado do disposto no nº 1 do artº 452º do C.Civ. caberia ao executado, ora embargante ter demonstrado que era inexistente ou não era devida qualquer obrigação relativamente aos documentos que servem de título executivo.
  
III. DECISÃO
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso revoga-se a decisão recorrida na parte em que julgou procedentes os embargos deduzidos por C, julgando os embargos por este deduzidos improcedentes com o consequente prosseguimento da acção executiva contra este (C), mais se determinando a responsabilidade solidária dos Executados, mantendo-se em tudo o mais a decisão recorrida.
  
  Custas a cargo dos Recorridos.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 19 de Outubro de 2023
  
Relator
Rui Carlos dos Santos Pereira Ribeiro

Primeiro Juiz-Adjunto
Fong Man Chong

Segundo Juiz-Adjunto
Ho Wai Neng (vencido nos termos da declaração de voto constante do acórdão do Proc. n.º 411/2023.)

420/2023 CÍVEL 1