打印全文
Processo n.º 650/2023
(Autos de recurso em matéria cível)

Relator: Fong Man Chong
Data: 26 de Outubro de 2023

ASSUNTOS:

- Facto não provado em processo criminal e facto provado em processo cível

SUMÁRIO:

I - Por força do disposto no artigo 579º do CPC, um facto não provado de um processo-crime pode ser provado em processo cível.

II – Em caso de a nulidade contratual decorrer dum ilícito criminal, a obrigação de restituir por nulidade tem também natureza de indemnização por acto ilícito, razão por que, é solidária a obrigação de restituir, nos termos do disposto no artigo 490º do CCM.

III – Ficou demonstrado que o Autor e as Rés criaram entre si uma comunidade de ilicitude para dela obterem proveitos juridicamente inadmissíveis. As Rés enganaram um vendedor e o Autor aproveitou esse engano, o Direito não pode tolerar que os Autor ou as Rés tenham proveitos da sua comunidade de ilicitude. Com efeito, é a expressão dum antigo princípio jurídico à luz do qual ninguém pode tirar benefícios do seu próprio delito (Nemo ex suo delicto meliorem suam conditionem facere potest).




O Relator,

________________
Fong Man Chong















Processo nº 650/2023
(Autos de recurso em matéria cível)

Data : 26 de Outubro de 2023

Recorrente : - A (na qualidade de sucessora do autor falecido B)

Recorridas : - C
- D

*
   Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I - RELATÓRIO
    A (na qualidade de sucessora do autor falecido B), Recorrente, devidamente identificada nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datado de 28/03/2023, veio, em 17/04/2023, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 752 a 763, tendo formulado as seguintes conclusões:
     I - Em sede da "decisão quanto à matéria de facto" de 2 FEV 2023, o Tribunal recorrido sustentou ter julgado inteiramente provado o mencionado quesito n.º 1.°-A com base no seguinte: «(...) Quanto ao quesito 1.º-A (conhecimento do autor de que a aquisição das rés era fraudulenta) foi semelhante o processo de formação da convicção, mas agora conjugando o indício advindo da factualidade considerada provada no referido acórdão criminal com idêntico indício que vem da "rapidez" com que o autor, utilizando a procuração com poderes para celebração de negócio consigo mesmo, "revendeu" o imóvel em causa, após a outorga da referida procuração cuja cópia consta de fls. 93 e 94 (22 dias); fls. 95 e 96) (...)»
     II - Antes de mais, o Tribunal a quo invoca, em bloco e indistintamente, a totalidade de uma decisão judicial composta de 61 (sessenta e uma) páginas e, por conseguinte, não é possível conseguir adivinhar - nem é suposto que tal tarefa perscrutatória e iluminatória caiba aos destinatários de uma decisão judicial - em que concreto segmento ou passagem desse acórdão criminal se estaria o Tribunal a quo a fundar para efeitos de formação da sua convicção.
     III - O Tribunal louva-se e invoca genericamente esse acórdão proferido nos autos n.º CR2-12-0028-PCC mas jamais indica ou explicita em que página, em que parágrafo, em qual elemento da "factualidade assente" ou em qual "argumento da motivação" dessa decisão n.º CR2-12-0028-PCC estaria o "indício" que teria permitido fundar a sua convicção quanto ao "conhecimento do autor de que a aquisição das rés era fraudulenta".
     IV - Por força do acórdão proferido em 14 DEZ 2012 nos autos criminais n.º CR2-12-0028-PCC, foi condenada cada uma das aqui recorridas, C e D, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos e 6 meses, pela comissão por cada uma de um crime de burla qualificada sendo que, nessa mesma decisão n.º CR2-12-0028-PCC, o aqui recorrente – ali 4.º arguido – foi expressamente absolvido.
     V - Pode, aliás, ler-se a fls. 55 da decisão n.º CR2-12-0028-PCC, em sede de "Factos não provados": «(...) O 4.º arguido soube que o imóvel adquirido estava envolvido num acto ilícito (...)».
     VI - Isto é, nesse acórdão absolutório relativamente ao aí 4.° arguido - o aqui recorrente -, o Tribunal Criminal não julgou provada a imputação que tinha sido efectuada em sede de acusação por parte do M.P., ou seja, o Tribunal Criminal julgou, após produção de prova e sua análise, como facto não provado que o 4.° arguido soubesse que o imóvel adquirido estava envolvido num acto ilícito.
     VII - Assim, além de ter sido invocada de forma global e em bloco, nunca a decisão n.º CR2-12-0028-PCC, no âmbito da qual ambas as recorridas foram condenadas e o recorrente foi absolvido, poderia ter sido valorada pelo Tribunal a quo para o efeito de ter por provado que o Sr. B tivesse sabido que a aquisição por parte das rés era fraudulenta.
     VIII - "Rapidez", "pressa" ou "celeridade" são conceitos que se podem contrapor a "morosidade", "lentidão" ou "vagar" e, uns e outros, se não forem objecto de uma concreta comparação contextualizadora, por si só nada são aptos a significar autonomamente e, por isso, 22 dias para se efectivar a revenda de um imóvel não é, só por si, de qualificar, sem mais, como uma actuação "rápida" ou nem sequer, aliás, como uma actuação "rápida” ou nem sequer, alias, como uma actuacao “lenta”.
     IX - Não é facto publicitado nos instrumentos de estatística elaborados em R.A.E.M. qual o período temporal médio que um comprador-investidor precisa a fim de conseguir encontrar a quem revenda um imóvel.
     X - A circunstância de se conseguir encontrar um comprador a quem revender é, em bom rigor, uma simples vicissitude, um mero fruto do acaso, algo que vai relevar apenas da maior ou menor sorte, ou da eventual maior destreza, em se conseguir encontrar tal potencial adquirente.
     XI - Não se sabe, por isso não ter sido indagado nos autos, se o Sr. B - sócio de uma sala de jogo -, costumava ou não adicionalmente às suas funções na sala de jogo realizar investimentos de revenda lucrativa de imóveis e, por isso, não se sabe se, caso realizasse tais eventuais investimentos imobiliários, qual a cadência, velocidade ou "rapidez" dos mesmos.
     XII - Assim sendo, mesmo se comparado consigo próprio ou com a sua própria performance, não se sabe se esta revenda de 22 dias foi ou não "rápida" para os seus próprios padrões pessoais.
     XIII - Não se estabeleceu qualquer prazo médio, ou "moldura temporal média", dentro da qual os profissionais do ramo de investimentos de revenda lucrativa de imóveis conseguem realizar uma revenda de algum imóvel que tenham em carteira.
     XIV. Por nenhuma via se logra obter um dado que permita proceder a qualquer juízo comparativo de "mais" ou de "menos" em termos de "rapidez" ou "lentidão" do tempo necessário até se conseguir fazer uma revenda sendo que, sem que existam quaisquer "dados" contextualizadores aptos a permitir uma "comparação", dizer-se que 22 dias é um prazo "rápido" configura um simples juízo conclusivo e insubstanciado.
     XV - A resposta dada ao quesito 1.°-A encerra, pois, um juízo conclusivo, meramente concludente e sem qualquer substanciação.
     XVI - Deverá, assim sendo, ser modificada a resposta dada ao quesito 1.º-A para "NÃO PROVADO".
     XVII - Nos termos e para os efeitos da al. a) do n.º 1 do art. 599.° e da primeira parte da al. a) do n.º 1 do art. 629.°, ambos do C.P.C., a recorrente impugna a decisão de facto do Tribunal a quo e requer que o T.S.I. modifique tal decisão nos termos acima apresentados pela recorrente (ou noutros, substancialmente equivalentes).
     XVIII - Uma vez modificada a decisão de facto recorrida nos termos acima suscitados, deverá a acção ser julgada procedente quanto à pretensão da recorrente em ser ressarcida pelas recorridas quanto a "lucros cessantes" de MOP$2.878.000,00.
*
    C e D, Recorridas, com os sinais identificativos nos autos, ofereceu a resposta constante de fls. 767 a 770, tendo formulado as seguintes conclusões:
     1. 對於上訴人所持之理據,兩名被上訴人表示並不認同,並認為應維持原審法院就本案所作出的裁判。
     2. 首先,上訴人不同意疑問事實1A視為已獲證實,並對此提出爭執,並認為該疑問應視為未獲證實。
     3. 《民事訴訟法典》第五百五十八條(證據自由評價原則):
     一、證據由法院自由評價,法官須按其就每一事實之審慎心證作出裁判。
     二、然而,如就法律事實之存在或證明,法律規定任何特別手續,則不得免除該手續。
     4. 因此,除涉及法律規定具有法院必須採信具約束力的所謂「法定證據」外,法官應根據經驗法則和常理來評價證據的證明力以認定或否定待證事實。
     5. 以及,原審法院根據直接原則,通過審查附卷文件和庭上調查方式作出證據調查,在庭審直接和親身聽取各證人在其面前作證。因此,原審法院被視為最具條件評價和決定是否採信這些在庭上作出的證言,事實上,若非原審法院在審查、調查或評價證據時犯有明顯錯誤,原審法院所認定之事實不應被質疑。
     6. 在本個案中,原審法院在對事實事宜作出評價時採納了多種證據方法,簡言之,書證並非唯一證據方法。
     7. 當然亦包括了有關證人證言,而且在聽證中已就證人證言錄製成視聽資料,倘若上訴人對事實認定方面存有質疑,可通過向法官閣下申請庭審錄音之方式進行確認,以指出其中的事實細節及錯誤。
     8. 因此,如若對該事實事宜提出爭執,針對事實事宜的裁判提出爭執應遵照《民事訴訟法典》第599條第1款及第2款之規定指明何部分作為其爭執之依據,方能客觀地評價有關事實事宜問題。
     9. 在2023年2月2日關於事實事宜之裁判中,原審法庭開始分析時已指出:"Uma vez que não foram produzidos meios de prova com força probatória vinculada quanto aos factos da base instrutória, a convicção do tribunal resultou da análise conjunta e crítica da prova produzida, ponderada segundo a sua verosimilhança e em confronto com as regras da lógica e da experiência."以及"Quanto à prova testemunhal, ponderou-a o tribunal tendo em conta a razão de ciência demonstrada pelas testemunhas inquiridas e a forma mais ou menos espontânea, clara, coerente, serena ou exaltada, pormenorizada ou vaga (...)"
     10. 由此可見,原審法庭對該案的事實認定是結合人證、書證及其他證據綜合考慮,以及有關評價證言時之考慮因素。
     11. 另外,上訴人亦指出原審法庭籠統地引用刑事判決內容,無具體指出哪一頁、哪一段等作為形成心證之證據。對此,被上訴表示不認同。
     12. 上訴人並未爭執所附入之相關書證,且有關刑事判決內容已作為已證事實D項且內容已全部被轉錄;原審法庭有權審視及考慮該書證全部內容並成為形成心證之依據,當中未見有任何錯誤。
     13. 而且,根據該第CR2-12-0028-PCC號刑事案件判決書第14頁(中文判決)以及第46頁(葡文文本)所載之已證事實,我們可以知悉有關重點是同年3月2日治安警察局收到匿名信展開調查,同日傳召第一、第二及第三嫌犯及被害人到治安警察局接受詢問。第一嫌犯及第二嫌犯(即本案中兩名被上訴人)知道事件被揭發,將事件告知B,B知道第一、第二嫌犯之不正當行為之後,為獲取金錢利益,願意以港幣300萬向第一及第二嫌犯購入......街19號(詳細及完整內容原文參見本卷宗第23頁及55頁)。
     14. 而且,上訴人在上訴理由陳述第16點所指出之第CR2-12-0028-PCC號刑事案件判決書第55頁所指出的未被證實之事實僅屬片面,我們不能斷章取義忽略其完整的意思,而需要整體內容去看:
     O 4°. Arguido soube que o imóvel adquirido estava envolvido num acto ilícito, tinha medo de perder o interesse obtido através de transmissão, em conluio com as 1ª e 2ª arguidas, não falou verdadeiramente ao notário privado sobre o estado mental do ofendido, mediante o arranjo das 1ª e 2ª Arguidas e do 4 arguido, mandou ao ofendido exarar uma declaração perante o notário privado F, a respectiva declaração foi antecipadamente redigida pelas 1ª e 2ª arguidas e pelo 4° arguido, não sendo menifestada pelo ofendido, fazendo com que o notário privado fizesse constar falsamente os factos jurídicos importantes no documento notarial, através do qual os três arguidos tentaram obter interesse ilícito.
     15. 上述之事實乃是涉及上訴人與兩名被上訴人當時在同一刑事案中涉及被指控之一項偽造具特別價值文件罪,上述事實並非未能證明上訴人知情,僅是未能證明上訴人知道所取得之不動產涉及不法行為後與兩名被上訴人合謀作出偽造文件之事實等。因上述事實未獲證實,故三人均被宣告該罪名不成立。
     16. 另外,在上述刑事案件判決後,該案法官另外作出的批示(載於本卷宗第282頁),當中第2點亦清楚表明:2. B知道C及D的不正當行為後,為獲取金錢利益,以港幣300萬元向C及D購買......街19號。(...)
     17. 上訴人一直強調兩名被上訴人在編號為CR2-12-0028-PCC的刑事案件中分別被判處一項詐騙罪,而原告無被判罪;但此並不影響上訴人要為其自行作出之行為負上民事責任。
     18. 事實上,兩名被上訴人一直以來所表現的態度均是積極的並希望妥善解決問題,從一開始股票被刑事案扣押及宣告歸澳門特區所有,她們一直上訴及再次申請,純粹是希望並想盡力彌補善意第三人的損失,而兩名上訴人亦一直爭取及盡早提供協助,最終成功將有關股票全數轉予瑞盈物業有限公司名下。(卷宗第279至285頁)
     19. 而很明顯,上訴人一手主導並決定有關轉售行為,而兩名被上訴人是不知悉亦無預計有此轉售行為,更沒有收取有關轉售之價金。
     20. 在上訴人知情的情況下,即使其遭受到損害,也是因為其沒有盡量避免。只要上訴人不作出轉售行為,則不會遭受到其聲稱的損害。上訴人參與並掌控了其主張的損害的因果關係全過程,而其本人要為此承擔責任,而此與兩名被上訴人所作的不法行為無關。(有關理由詳見原審法院判決第13頁)
     21. 另外,上訴人指出22天轉售此一速度沒有比較不足以界定到底快還是慢;對此,被上訴人不認同。
     22. 本案涉及的是一幅土地,不是一個住宅單位或車位;上訴人提出的購入價金僅港幣300萬,而當時土地的市場價值至少港幣580萬元(參見已獲證實的疑問點2及2A)。
     23. 按一般的經驗所知,22天這一轉售速度明顯不尋常,亦可以說是相當快的速度,並且其轉售的價格(港幣580萬)正正是其購入當時的市場價值!
     24. 再者,庭審當中,被上訴人之證人亦表明上訴人是知情的,亦有證人是直接聽到上訴人與被上訴人之對話,當中可以清楚反映上訴人在購入物業交易前已知悉涉案物業之取得涉及欺騙行為以及相關刑事程序正在進行中。
     25. 最後,被上訴人認為原審法庭對1A的回覆並沒有包含任何結論性判斷,亦不存在任何錯誤,無需被修改。
     26. 上訴人於第34點所指出之修改內容,應與本案無關,並非本案相關事實。
     27. 再次重申,原審法院依法享有自由心證,只有在原審法院在證據評定上出現偏差、違反法定證據效力的規定或違反一般經驗法則的情況下才可作出變更。
     28. 本案中不存在應予變更之情況,而原審法庭亦已適當說明理由,
     29. 最後,被上訴之事審事宜裁判中所作之認定以及相關理由說明均未有沾有任何瑕疵,原審法院所作的判決沒有任何應被質疑的地方。
*
    Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
* * *
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
    Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
    O processo é o próprio e não há nulidades.
    As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
    Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* * *
  III – FACTOS ASSENTES:
    A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
     a) Através de escritura pública de 21 de Janeiro de 2011, celebrada no Cartório Notarial privado do Dr G, as rés adquiriram ao Sr H1 o seguinte imóvel: Domínio útil do prédio urbano sito na Rua ......, n.º 19, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 6***.
     b) Por acórdão proferido nos autos criminais n.º CR2-12-0028-PCC, transitado em julgado em 7 de Janeiro de 2013, as rés e o marido da 2ª ré defraudaram o Sr H2, pelo que determinou as suas condenações pelos crimes de burla.
     c) Mediante acção judicial tramitada no Tribunal Judicial de Base sob o n.º CV1-12-0001-CAO, intentada pelo Ministério Público em representação de H3, foi promovida, entre o mais, a subsequente declaração de nulidade dos contratos de compra e venda dos 3 imóveis que haviam sido adquiridas pelas aqui rés bem como do posterior contrato de revenda feito pelo autor à I Real Estate Limited do prédio urbano sito na Rua ......, n.º 19.
     d) Em face da decisão proferida em 2 de Julho de 2013 em tal acção, todos os referidos contratos – incluindo o da venda que fora feita pelo autor à I Real Estate Limited – bem como as inerentes hipotecas e inscrições registais foram declarados nulos e, como sua directa decorrência, o imóvel n.º 19 da Rua ...... foi restituído e retornou à esfera do H4.
     e) Após o cancelamento da venda o imóvel n.º 19 da Rua ......, a I Real Estate Limited intentou a respectiva acção declarativa (CV3-14-0032-CAO), derivada da declaração de nulidade da venda dos imóveis e da sua consequente devolução à esfera do H5.
     f) Segundo o despacho proferido pelo M.mº Juiz no processo CR2-12-0028-PCC, foi atribuída à I – Fomento Predial Limitada, na qualidade de terceiro de boa-fé, as 700.000 acções do Banco da China (acção com ordem n.º 3988) existentes na conta conjunta da 1ª ré e do 2º réu, com n.º 01-88-84-****** do Banco da China.
     g) Os rés receberam do autor três milhões de dólares de Hong Kong a título de aquisição do direito de disposição do imóvel em discussão, e posteriormente, adquiriram as 700.000 acções do Banco da China, indicadas no artigo 11.º.
     h) A fim de dar cumprimento ao despacho do M.mº Juiz Criminal do processo atrás mencionado, relativamente à atribuição das acções à I – Fomento Predial Limitada, a 1ª ré e o 2º réu não receberam qualquer quantia pela alienação das citadas acções, mas sim, a 25 de Julho de 2018, foram directamente alineadas à I – Fomento Predial Limitada 700.000 acções do Banco da China existentes na conta n.º 01-88-84-****** do Banco da China.
     i) Na altura da alienação das referidas acções, o preço por cada acção era de HKD4.37, acções estas, perfazem o total de HKD3.059.000,00, equivalente a MOP3.150.770,00.
     j) Por fim, a I – Fomento Predial Limitada adquiriu as acções dos 1ª e 2º réus, mediante as formalidades da alienação, na quantidade de setecentas mil, no Banco da China, no montante de HKD3.059.000,00.
     k) O autor apenas teve conhecimento da aquisição referido em A) por a 1ª ré, C, lho ter referido casualmente. (Q 1.º)
     l) Quando foi outorgada a procuração referida no ponto 4.º da base instrutória, em 09/03/2011, o autor sabia que as rés haviam adquirido o imóvel da Rua ...... enganando o seu anterior proprietário e sabia que corria procedimento criminal por tais factos. (Q 1.ºA)
     m) O autor pretendia adquirir o imóvel n.º 19 da Rua ...... e propôs o preço de HKD3.000.000,00, equivalente a MOP3.096.000,00, para a compra desse imóvel. (Q 2.º)
     n) No início de Março de 2011, o preço de mercado do imóvel em causa foi não inferior a HKD5,8 milhões. (Q 2.ºA)
     o) As rés aceitaram o preço proposto pelo autor para a compra do imóvel n.º 19 da Rua ....... (Q 3.º)
     p) Em 9 de Mar de 2011, no cartório notarial privado do Dr. J, as rés e K outorgaram a favor do autor a procuração cuja cópia consta de fls. 93 e 94, através da qual, entre o mais, declararam conceder poderes ao autor para celebração de quaisquer negócios consigo mesmo em relação ao imóvel n.º 19 da Rua ....... (Q 4.º)
     q) As duas rés em 09 de Março de 2011 assinaram a procuração relacionada com o imóvel em causa, e no mesmo dia receberam do autor o preço de venda do imóvel de HKD3.000.000,00, equivalente a MOP3.096.000,00. (Q 4.ºA)
     r) Na mesma data da outorga da procuração o autor entregou às rés uma livrança no valor de HKD800.000,00. (Q 5.º e 6.º)
     s) Mediante escritura pública outorgada em 1 de Abril de 2011 no cartório notarial privado do Dr F, o autor vendeu à sociedade Comercial I Real Estate Limited, pelo preço de HKD5.800.000,00, o imóvel n.º 19 da Rua ....... (Q 7.º)
     t) As duas rés por meio da outorga da procuração quiseram vender o imóvel em causa ao autor. (Q 7.ºA)
     u) As duas rés não receberam do autor o preço de venda de HKD5.800.000,00 proveniente da venda do imóvel em causa à Sociedade Comercial I Real Estate Limited em 01 de Abril de 2011. (Q 8.ºA)
     v) A Sociedade Comercial I Real Estate Limited, na sequência da aquisição, cumpriu a sua obrigação de pagamento do imposto de selo. (Q 9.º)
     w) As rés devolveram ao autor a quantia de HKD600.000,00. (Q 10.º)

* * *
IV – FUNDAMENTAÇÃO
    Comecemos pela 1ª parte do recurso: impugnação da matéria de facto.
    A Recorrente veio a atacar a resposta POSITIVA dada ao quesito 1º-A, que tem o seguinte teor:
    Quando foi outorgada a procuração referida no ponto 4.º da base instrutória, em 09/03/2011, o autor sabia que as rés haviam adquirido o imóvel da Rua ...... enganando o seu anterior proprietário e sabia que corria procedimento criminal por tais factos?
    Provado.
    No entender da impugnante, esta parte da matéria foi incorrectamente apreciada, por o Colectivo se apoiar nos factos fixados pelo acórdão do processo criminal, em que ficou, entre outras matérias, a seguinte factualidade com interesse para este processo:
    “(…)
     Factos não provados:
     Os restantes factos relevantes constantes da acusação que não estejam em conformidade com a factualidade acima provada, nomeadamente:
     O 4º. arguido soube que o imóvel adquirido estava envolvido num acto ilícito, tinha medo de perder o interesse obtido através de transmissão, em conluio com as 1ª. e 2ª. arguidas, não falou verdadeiramente ao notário privado sobre o estado mental do ofendido, mediante o arranjo das 1ª. e 2ª. arguidas e do 4°. arguido, mandou ao ofendido exarar uma declaração perante o notário privado F, a respectiva declaração foi antecipadamente redigida pelas 1ª. e 2ª. arguidas e pelo 4°. arguido, não sendo manifestada pelo ofendido, fazendo com que o notário privado fizesse constar falsamente os factos jurídicos importantes no documento notarial, através do qual os três arguidos tentaram obter interesse ilícito.”
    
    Ora, é pertinente que a Recorrente invoca esta parte para sustentar a sua posição, mas não é suficiente, já que outra parte do acórdão do mesmo processo-crime o Tribunal consignou igualmente o seguinte:
    “(…)
     Em 02 de Março do mesmo ano, a PSP recebeu uma carta de denúncia anónima e iniciou a investigação. No mesmo dia, as 1ª. e 2ª. arguidas, o 3º. arguido e o ofendido foram chamados para serem inquiridos nas instalações da PSP. As 1ª. e 2ª. arguidas tomaram conhecimento de que o assunto foi desvendado e disseram isso a B (4°. arguido), amigo que já conheceram há muitos anos. O 4°. arguido, depois de ter sabido do acto impróprio das 1ª. e 2ª. arguidas e com o intuito de obter vantagem pecuniária, pretendia comprar às 1ª. e 2ª. arguidas a propriedade situada na Rua ......, nº. 19 por preço de três milhões Dólares de Hong Kong, as 1ª. e 2ª. arguidas prometeram o pedido do 4°. arguido por desejarem vender rapidamente os imóveis obtidos. Dado que o 4°. Arguido pretendia revender a propriedade dentro de curto tempo a fim de ganhar lucros, pediu então às 1ª. e 2ª. arguidas e ao 3°. arguido para outorgar uma procuração, conferindo o poder ao 4°. arguido de vender sozinho a propriedade situada na Rua ......, nº. 19.
     Em 09 de Março de 2011, perante o notário privado J, as 1ª., 2ª. arguidas e o 3°. arguido celebraram uma procuração com o conteúdo de que as 1ª., 2ª. arguidas e o 3°. arguido conferiram a poder ao 4°. arguido de tratar a propriedade situada na Rua ......, nº. 19, incluindo o poder de vender o supracitado imóvel. O 4°. arguido entregou às 1ª. e 2ª. arguidas duas ordens de pagamento (uma no valor de oitocentos mil Dólares de Hong Kong e outra no de três milhões Dólares de Hong Kong).”
    
    Bem vistas as coisas, não contradição tudo aquilo acima transcrito, pois:
    1) – Uma coisa é: até 09/03/2011, data em que foi outorgada a respectiva procuração a favor do 4º arguido/ex-Autor (falecido), este não sabia que existiam antes actos de burlões!
    2) – Outra coisa: a partir de 09/03/2011, o 4º arguido/ex-Autor (falecido) sabia que as Rés haviam adquirido o imóvel da Rua ...... enganando o seu anterior proprietário, assim ele acelerou o processo de venda do imóvel em causa! Ou seja, o que ficou provado é que o 4º arguido sabia a existência de actos enganadores, mas não ficou provado que ele teve concluio com outros intervenientes.
    3) - Por isso, ao julgar a matéria de facto, o Colectivo afirmou e bem o seguinte:
“(…)
Quanto ao quesito 1º-A (conhecimento do autor de que a aquisição das rés era fraudulenta) foi semelhante o processo de formação da convicção, mas agora conjugando o indício advindo da factualidade considerada provada no referido acórdão criminal com idêntico indício que vem da “rapidez” com que o autor, utilizando a procuração com poderes para celebração de negócio consigo mesmo, “revendeu” o imóvel em causa, após a outorga da referida procuração cuja cópia consta de fls. 93 e 94 (22 dias; fls. 95 e 96).
Quanto à pretensão do autor de adquirir o imóvel, quanto ao preço acordado e quanto ao recebimento deste pelas rés (quesitos 2º, 3º e 4º-A) não foi o tribunal colocado em dúvida consistente pela discussão das partes. E a dúvida que pudesse existir é removida pela ponderação da actuação do autor que “revendeu” com lucro e pela actuação das rés, que adquiriram acções com o dinheiro recebido, como as partes aceitam nos seus articulados, designadamente nos articulados supervenientes apresentados e nas respectivas respostas.”

    4) – Mais, por força do disposto no artigo 579º do CPC, um facto não provado de um processo-crime pode ser provado em processo cível, pois tal normativo manda:

(Eficácia da decisão penal absolutória)
    1. A decisão penal, transitada em julgado, que tenha absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
    2. A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.

    Nestes termos, como inexistem elementos probatórios nos autos que imponham uma decisão diversa da fixada pelo Tribunal recorrido (artigo 629º/1-a) do CPC), nem se verifica qualquer contradição ou incorrecção na apreciação da matéria em causa, é de julgar improcedente o recurso nesta parte, mantendo-se a resposta fixada pelo Tribunal recorrido.
*
    Prosseguindo,
    Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
     
     I – RELATÓRIO
     B, que, por ter falecido na pendência do presente processo, foi substituído pela sua mãe A através do incidente de habilitação de sucessores, intentou a presente acção declarativa de condenação que segue termos sob a forma de processo ordinário, contra
     1. C, maior, viúva, titular do BIRM n.º 7******(5), e
     2. D, casada, titular do BIRM n.º 1******(8), com outros elementos de identificação nos autos.
     
     Pediu o autor que as rés sejam solidariamente condenadas a pagar-lhe a quantia global de MOP6.296.000,00 acrescida de juros de mora contados à taxa legal desde a citação até ao efectivo e integral pagamento.
     
     Como fundamento da sua pretensão alegou o autor que comprou um imóvel às rés, que o revendeu com lucro a um terceiro e que estes contratos foram depois declarados nulos porquanto as rés haviam adquirido o referido imóvel através de burla de que foi vítima o vendedor. Conclui o autor:
     - Que lhe deve ser restituída a quantia que pagou às rés (HKD3.000.000,00);
     - Que lhe deve compensado o lucro que deixou de obter (MOP2.878.000,00) e;
     - Que lhe deve ser restituída uma quantia de HKD200.000,00 que entregou às rés em garantia para o caso de necessitarem de pagar imposto do selo se o autor revendesse o imóvel, imposto que não tiveram de pagar.
     
     Depois de citadas, contestaram as rés:
     - Deduzindo a excepção peremptória de prescrição do direito invocado pelo autor;
     - Aceitando que compraram fraudulentamente o imóvel que revenderam ao autor e aceitando ainda que as duas vendas foram declaradas nulas;
     - Concluindo pela improcedência da acção dizendo que:
     i - O autor sabia que o imóvel tinha sido adquirido fraudulentamente e que foi por causa disso que quis comprá-lo por cerca de metade do seu valor real;
     ii - O autor se comprometeu a não revender o imóvel enquanto não terminasse o processo-crime relativo à aquisição fraudulenta do mesmo imóvel, tendo o autor entregue às rés em garantia da sua promessa uma quantia em dinheiro, mas tendo revendido antes de ter terminado o referido processo.
     Acrescentaram ainda as rés em contestação que o dano do autor não se deveu à actuação delas, rés, mas à actuação do próprio autor. E acrescentaram também que o autor ainda não devolveu ao comprador o preço que dele recebeu.
     
     Na réplica veio o autor defender que não ocorre a alegada prescrição e requereu a modificação do pedido no sentidido de a peticionada indemnização pelo dano emergente de MOP2.878.000,00 ficar sem efeito no caso de o autor ser absolvido no processo n.º CV3-14-0032-CAO e não ter de restituir ao seu comprador (I Real Estate Limited) a quantia correspondente ao preço que dele recebeu pela revenda do imóvel em causa.
     
     Na tréplica, as rés defendem que o pedido modificado também deve improceder uma vez que, mesmo que o autor seja condenado a restituir o preço ao seu comprador (I Real Estate Limited), não significa que efectivamente cumpra a condenação e só depois de cumprir pode pretender receber das rés. À cautela, pediram as rés que se suspendessem os presentes autos até à decisão daqueles n.º CV3-14-0032-CAO que o comprador do autor intentou contra este e também contra as rés pretendendo reaver o preço que pagou em cumprimento do contrato que veio a ser declarado nulo.
     
     As rés ainda apresentaram dois articulados supervenientes, os quais foram admitidos no despacho a fls. 419. Em tais articulados vieram as rés dizer que com o preço que receberam do autor compraram acções de uma sociedade comercial, as quais foram apreendidas no processo-crime e foram atribuídas e entregues a quem comprou o prédio ao autor (I Real Estate Limited), tendo sido vendidas pelo valor de HKD3.059.000,00, valor que foi entregue ao referido comprador (I Real Estate Limited).
     
     Tendo a I Real Estate Limited recebido aquele valor, veio o autor dizer que só ele foi condenado no referido processo n.º CV3-14-0032-CAO a restituir o preço ao seu comprador (“I”), tendo as rés sido absolvidas e veio reduzir o seu pedido feito nos presentes autos em HKD3.059.000,00, redução que foi admitida pelo despacho a fls. 426.
     
     Tendo falecido o autor em 08/12/2019 foi, por despacho a fls. 510 habilitada a sua mãe A, para, com ela no lugar do falecido, prosseguirem a acção.
     
     Foi proferido despacho saneador a fls. 184 a 186v que julgou improcedente a prescrição invocada pelas rés, que admitiu a alteração do pedido formulada na réplica, que recusou a suspensão da instância requerida pelas rés e que seleccionou a matéria de facto relevante para a decisão.
     
     O autor ainda requereu ampliação do pedido a fls. 583 a 585, ampliação que foi recusada por despacho de fls. 589.
     
     Procedeu-se a julgamento, tendo a matéria de facto controvertida sido decidida sem reclamação.
     
     Não foram apresentada alegações de Direito.
     *
     II – SANEAMENTO
     A instância mantém-se válida e regular, como decidido no despacho saneador.
     *
     III – QUESTÕES A DECIDIR
     Tendo em conta o relatório que antecede, cabe aferir se, em consequência de nulidade contratual do contrato de compra e venda decorrente de acto ilícito das rés vendedoras tem o autor comprador direito a:
     - Receber o preço que pagou (HKD3.000.000,00);
     - Ser indemnizado pelos lucros que deixou de obter através da revenda da coisa que havia comprado e que foi declarada nula (MOP2.878.000,00);
     - Ser restituído da quantia que entregou às rés para o caso de estas terem que pagar imposto do selo e que não tiveram que pagar (HKD200.000,00).
     
     No entanto, porque as rés acabaram por restituir o preço que receberam do autor a um credor deste (o comprador “I”), o autor reduziu o pedido, pelo que só já há que apreciar se o autor tem direito à indemnização dos lucros que deixou de auferir através da revenda da coisa que havia comprado às rés e se tem direito a que as rés lhe restituam a quantia que lhes entregou para garantia do imposto do selo que eventualmente tivessem que pagar e que, afinal, não necessitaram de pagar.
     *
     IV – FUNDAMENTAÇÃO
     A) – Motivação de facto
     (...)
     
     B) - Motivação de direito
     Vejamos então se a pretensão do autor tem acolhimento no Direito da RAEM aplicável ao caso em apreço conformado de acordo com a factualidade provada.
     Bem interpretada a pretensão em apreciação há-de concluir-se que o autor invocou, embora não expressamente:
     - O regime da nulidade contratual para justificar a procedência da pretensão de receber de volta o preço que pagou (HKD.3.000.000,00);
     - O regime da responsabilidade civil por acto ilícito para justificar a procedência da pretensão de receber o lucro que poderia ter auferido e não auferiu (MOP2.878.000,00);
     - O regime do incumprimento contratual para justificar a procedência da pretensão de receber de volta a quantia que entregou às rés para o caso de terem de pagar imposto do selo (HKD.200.000,00).
     
     Pois bem.
     A pretensão de reembolso do preço de HKD3.000.000,00.
     O autor já desistiu da pretensão de receber o preço que pagou às rés, porque este preço já foi utilizado para reduzir a dívida do autor de restituir a terceiro o preço que ele próprio recebeu na revenda que fez, razão por que já não haverá que apreciar esta parte da pretensão do autor.
     
     A pretensão de recebimento da quantia de HKD200.000,00.
     O autor alegou que acordou com as rés entregar-lhe determinada quantia para o caso de estas terem de pagar imposto do selo se o próprio autor revendesse o imóvel que havia adquirido às rés. Ora, como as rés não tiveram de pagar aquele imposto, pede o autor que as rés lhe restituam a parte da quantia que receberam e ainda não devolveram.
     O autor invoca, pois, um acordo de constituição de uma garantia de uma possível futura dívida que não veio a existir.
     A garantia alegada consiste na prestação de uma caução.
     Mas o autor não provou este acordo de constituição de garantia, o qual seria eventualmente nulo por eventual impossibilidade original da obrigação fiscal das rés que a caução se destinava a garantir. Na verdade, segundo a alegação das rés este dever de pagamento de imposto do selo para quem revendesse imóveis no período de dois anos seguintes à aquisição ainda não tinha sido estabelecido por lei.
     As rés aceitaram que receberam uma quantia em caução e que não restituíram, mas disseram que o acordo foi outro: a caução não se destinou a garantir a evental dívida de imposto do selo, mas destinou-se antes a garantir que o autor não revenderia em curto prazo, tendo, afinal, vendido.
     Nem um, nem outro dos alegados acordos se provou.
     Mas, fosse o alegado pelo autor ou fosse o alegado pelas rés, o acordo era nulo, pois que fazia parte de um contrato de compra e venda que já foi declarado nulo por decisão judicial. As rés venderam ao autor e este, além de pagar o preço, entregou uma caução relativa a obrigações resultantes do mesmo contrato para o autor, obrigações diferentes da obrigação de pagar o preço6.
     Ora, a nulidade parcial do contrato, relativamente à venda stricto sensu, só não implicaria a nulidade total, designadamente a nulidade da cláusula de caução, se se demonstrasse que as partes teriam querido estabelecer a caução mesmo sem a venda viciada (art. 285º do CC). É evidente que as partes não estabeleceriam a caução sem a venda, pelo que a nulidade da venda não poupa a caução.
     As rés devem, pois, restituir a caução que receberam ao abrigo de um contrato nulo.
     O tribunal não está impedido de conhecer desta nulidade, pois é de conhecimento oficioso (art. 279º do CC). E não há excesso de pronúncia, pois a nulidade não necessita de ser expressamente invocada. Trata-se apenas de conhecimento do Direito e de aplicação do direito “aplicável” aos factos que as partes alegaram (art. 567º do CPC). O autor formulou a sua pretensão e disse que tinha acolhimento no regime jurídico do cumprimento coercivo do contrato. O tribunal entende que tem acolhimento no regime jurídico da nulidade contratual.
     Procede, pois esta parte da pretensão do autor.
     
     A pretensão de condenação em regime de solidariedade passiva.
     Porque a nulidade contratual decorre de ilícito criminal, a obrigação de restituir por nulidade tem também natureza de indemnização por acto ilícito, razão por que, é solidária a obrigação de restituir, nos termos do disposto no art. 490º do CC.
     
     A pretensão de recebimento dos lucros que o autor poderia ter tido com a revenda que fez e que não teve por ter de restituir o preço em consequência da nulidade.
     Como se disse, o autor invocou o regime da responsabilidade civil por acto ilícito para justificar a procedência da pretensão de receber o lucro que poderia ter auferido e não auferiu. Pretende, pois, o autor, embora não o diga expressamente, ver reconhecida a obrigação de indemnizar existente na esfera jurídica das rés, a qual tem por fonte a responsabilidade civil. Tal obrigação depende de vários pressupostos, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto do agente e o dano do lesado.
     No que respeita ao nexo de causalidade, exige a conclusão que o dano resulta do facto praticado pelo agente. No caso dos autos, o autor entende que o seu dano de perda de lucros deriva do facto de as rés terem causado a nulidade da venda feita pelo autor por terem defraudado a pessoa que lhes vendeu o imóvel e que estas venderam ao autor.
     Como se disse, a obrigação de indemnizar por acto ilícito surge de um conjunto de pressupostos cumulativos onde avulta o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano a indemnizar (arts. 477º - “…danos resultantes da violação” - e 557º (“danos que o lesado provavelmente não teria se não fosse a lesão”). O nexo de causalidade é um juízo de adequação que redunda na conclusão que os danos provavelmente não teriam ocorrido se não tivesse ocorrido o acto ilícito (ou lícito no caso de se estar perante uma situação de indemnização por acto lícito). A nossa lei ao recorrer no art. 557º do CC à probabilidade da ocorrência do dano como critério de ressarcibilidade consagrou o que é habitual chamar de teoria da causalidade adequada. O dano que o autor reclama é a privação de um lucro. Diz o autor que se as rés não tivessem defraudado o vendedor, a venda posterior seria válida e o autor receberia um preço superior ao que havia pago às rés. Há, pois que saber se tal dano foi causado ao autor pelo facto de as rés terem comprado fraudulentamente. Num juízo abstracto de probabilidade é claro que a fraude das rés que burlaram o vendedor de um imóvel é susceptível de causar a nulidade subsequente dos posteriores negócios relativos a tal imóvel. O nexo de causalidade entre o facto e o dano é uma ligação do facto ao dano, um ligação provável ou de probabilidade. Porém, independentemente de saber se as rés defraudaram um terceiro, há que concluir que o autor tomou conhecimento dessa fraude antes de ter o dano que reclama, como resulta da resposta positiva dada ao quesito 1º-A da base instrutória. Este conhecimento do autor interrompe a ligação de causalidade entre o facto das rés e o dano do próprio autor, entre a alegada fraude das rés e o dever de restituição do preço que o autor recebeu. Ocorreu uma quebra do nexo causal. O alegado facto (burla) ia a caminho de gerar o dano (dever de o autor restituir o preço da venda que fizesse), mas o conhecimento que o autor teve da referida fraude e de que pendia procedimento criminal contra as rés deu-lhe a possibilidade de evitar o dano pelo que, a partir daí, se dano houve, foi causado pelo próprio autor que não o quis evitar como podia. Bastava-lhe não revender e já não teria o dano que peticiona. O autor teve o domínio integral do processo causal do dano que reclama, pelo que interrompeu o processo causal relativamente à fraude das rés e estabeleceu um novo processo causal assumindo-o para si próprio e desligando-o do acto ilícito atribuído às rés. O autor casou o dano por obra sua, pois, sabendo que havia causa de nulidade contratual, celebrou um contrato viciado de nulidade subsequente advinda da venda de coisa alheia.
     Assim, por falta de prova do nexo causal entre o facto das rés e o dano do autor e independentemente de se concluir se ocorreu ou não ilicitude na actuação das rés (dolo causador de erro e viciador da vontade do vendedor e viciador também da validade do contrato), não ocorre na esfera jurídica das rés a obrigação de indemnizar o autor em consequência de actuação ilícita e culposa causadora de nulidade do contrato que o autor celebrou com um terceiro (“I”).
     Improcede, pois, também esta pretensão indemnizatória do autor.
     
     Uma questão peculiar numa situação processual peculiar.
     O autor e as rés criaram entre si uma comunidade de ilicitude para dela obterem proveitos juridicamente inadmissíveis. As rés enganaram um vendedor e o autor aproveitou esse engano. O Direito, designadamente o Direito da RAEM, não pode tolerar que o autor ou as rés tenham proveitos da sua comunidade de ilicitude. Com efeito, é antigo princípio de Direito que ninguém pode tirar benefícios do seu próprio delito7.
     É na concretização deste princípio que o art. 103º do Código Penal dispõe que são declaradas perdidas a favor da RAEM as vantagens obtidas através de crime, pelos agentes de crime, para si próprios ou para terceiros, directamente ou mediante transacção. E dispõe ainda que, se tais vantagens não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento do respectivo valor à RAEM.
     As rés receberam HKD3.000.000,00 do autor e compraram acções que foram vendidas por HKD3.059.000,00. Com o preço da venda das acções foi cumprida uma parte da obrigação do autor de restituir o preço que recebeu daquele a quem vendeu (“I”). Se o autor pagou 3.000.000 e solver a obrigação de 3.059.000, beneficiará de HKD59.000,00 provenientes de vantages decorrentes da prática de crime pelas rés.
     O Direito da RAEM não pode tolerar que alguém beneficie com a sua torpeza. As rés enganaram um idoso e este vendeu-lhes um imóvel que as rés revenderam ao autor. Este revendeu a um terceiro que pagou o preço e não recebeu o imóvel porque a revenda foi nula. Com o preço que as rés receberam do autor compraram accões de uma sociedade comercial. As acções foram revendidas com lucro. Esse lucro foi entregue a quem comprou ao autor como forma de lhe restituir parte do preço que pagou ao autor. A quem deve ser atribuído a final esse lucro?
     - Às rés que fizeram a aplicação financeira com o produto da sua fraude?
     - Ao autor que pagou o preço, não recebeu o imóvel e tem que restituir o preço que recebeu da revenda que fez?
     - À RAEM a título de produto do crime?
     É evidente que é à RAEM.
     Na sentença tem o juiz o dever de obstar ao uso anormal do processo pelas partes, designadamente evitando que, através do processo, as partes consigam um fim proibido por lei (art. 568º do CPC).
     Se este processo acolher, sem mais, a redução do pedido feita pelo autor, poderá estar a legitimar que este se beneficie indevidamente com vantagens provenientes de crime.
     É no processo-crime que deve evitar-se que as vantagens provenientes de crime beneficiem os agentes e/ou terceiros.
     Determinar-se-á, pois, a comunicação da presente sentença ao referido processo-crime a fim de, se assim for entendido, se determinar que o autor pague à RAEM a quantia de HKD59.000,00 enquanto vantagem que obteve com proveniência na prática de crime.
     *
     V – DECISÃO
     Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência,
     1. Condenam-se as rés, C e D, solidariamente, a pagar à autora habilitada, A, a quantia global de HKD200.000,00, acrescida de juros de mora contados à taxa legal desde a citação da ré que foi citada em primeiro lugar até integral pagamento.
     2. Absolvem-se as rés do demais peticionado pelo autor.
     3. Condenam-se a autora habilitada e as rés nas custas do processo na proporção do respectivo decaimento.
     4. Determina-se a comunicação da presente sentença, imediatamente e independentemente do seu trânsito em julgado, ao processo nº CR2-12-0028-PCC, para os fins tidos por convenientes, designadamente relativos a vantagens que o aqui autor, ou a herança deste, obteve com proveniência na prática dos factos julgados naqueles autos.
     
     Registe e notifique.
     
*
    Quid Juris?
    Ora, bem vistas as coisas, é de verificar-se que, praticamente, todas as questões levantadas pelo Recorrente já foram objeto de reflexões e decisões por parte do Tribunal recorrido, e nesta sede, não encontramos vícios que demonstrem a incorrecta aplicação de Direito, muito menos os alegados vícios invalidantes da decisão atacada.
    Perante o decidido e o fundamentado do Tribunal recorrido, na sequência da não modificação da decisão sobre a matéria de facto, é da nossa conclusão que o Tribunal a quo fez uma análise ponderada dos factos e uma aplicação correcta das normas jurídicas aplicáveis, tendo proferido uma decisão conscienciosa e legalmente fundamentada, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto no artigo 631º/5 do CPC, é de manter a decisão recorrida.

*
*
    Síntese conclusiva:
    I - Por força do disposto no artigo 579º do CPC, um facto não provado de um processo-crime pode ser provado em processo cível.
    II – Em caso de a nulidade contratual decorrer dum ilícito criminal, a obrigação de restituir por nulidade tem também natureza de indemnização por acto ilícito, razão por que, é solidária a obrigação de restituir, nos termos do disposto no artigo 490º do CCM.
    III – Ficou demonstrado que o Autor e as Rés criaram entre si uma comunidade de ilicitude para dela obterem proveitos juridicamente inadmissíveis. As Rés enganaram um vendedor e o Autor aproveitou esse engano, o Direito não pode tolerar que os Autor ou as Rés tenham proveitos da sua comunidade de ilicitude. Com efeito, é a expressão dum antigo princípio jurídico à luz do qual ninguém pode tirar benefícios do seu próprio delito (Nemo ex suo delicto meliorem suam conditionem facere potest).
    
*
    Tudo visto e analisado, resta decidir.
* * *
V ‒ DECISÃO
    Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao presente recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
*
    Custas pela Recorrente.
*
    Registe e Notifique.
*
RAEM, 26 de Outubro de 2023.

Fong Man Chong
(Relator)

Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

Tong Hio Fong
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 Deve se ler XXX – CR2-12-0028-PCC.
2 Como nota n.º 1.
3 Como nota n.º 1.
4 Como nota nº 1.
5 Como nota n.º 1.
6 Suportar o imposto de selo devido pelas rés ou não vender em curto período de tempo.
7 Nemo ex suo delicto meliorem suam conditionem facere potest (Ulpiano).
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------





2023-650-lucro-cessante-burla-imóvel-venda 43