Processo nº 535/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 8 de Novembro de 2023
Recorrente: A
Recorridos: B e C
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
O Ministério Público, em representação do menor B, com os demais sinais dos autos,
em processo especial de regulação do exercício do poder paternal contra,
o seu pai, C e sua mãe, A, ambos, também eles com os demais sinais dos autos,
veio pedir a fixação de regime de poder paternal e de alimentos relativamente ao menor B.
Proferida sentença foi decidido que:
1. O poder paternal do menor B é atribuído à parte masculina C;
2. A parte feminina, A, deve assumir MOP$2.000,00 por mês a título dos alimentos do menor;
3. A parte feminina pode, com aviso prévio à parte masculina e sem prejuízo do descanso e do estudo do menor, ver o menor pelo menos uma vez por semana, mas não pode levá-lo para fora desta região até decisão em contrário do Tribunal.
Não se conformando com aquela decisão, veio a Requerida e agora Recorrente interpor o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões e pedidos:
1. Salvo o devido respeito ao tribunal a quo, a recorrente não concorda com a decisão referente ao processo da regulação do poder paternal no. FM1-22-0128-MPS, a recorrente entende que o tribunal a quo não realizou a investigação e análise suficientes sobre as condições de vida específicas do pai e da mãe do menor e sua capacidade de cuidar do filho (especialmente o comportamento e a tendência anteriores do pai de ofender o menor através da violência), entretanto, surgiu erros na apreciação da prova que violou as regras de experiência comum e o princípio do contraditório.
2. Causando que a decisão recorrida violou as disposições do no. 2 do artigo 1760º do Código Civil e do artigo 119º e da primeira metade do no. 1 o artigo 120º do Decreto-Lei no. 65/99M e outras disposições relevantes, tendo prejudicado os interesses do menor, pelo que, a referida decisão recorrida deve ser revogada.
3. Entre os factos reconhecidos pelo tribunal a quo, alguns estão relacionados com o facto de a menor não ter sido devidamente cuidado e com a vida pessoal da requerida (especialmente os factos provados 4, 5, 11, 12, 13, 14), no entanto, estes factos reconhecidos não são os factos reais, nem todos são os factos.
4. Em termos probatórios, neste caso, não há o registo das informações dos pais na conferência, excepto que o pai apresentou uma declaração após a conferência (principalmente explicando o motivo do espancamento contra o menor e acusando a requerida de cuidar do menor de forma inadequada) e dois relatórios sociais, não há outra prova específica neste caso que possa ser utilizada como prova de apoio, portanto, pode-se saber que o tribunal a quo fez esse reconhecimento fáctico desfavorável à recorrente principalmente com base nos relatórios sociais elaborados pelo Instituto de Acção Social.
5. Sendo mais importante que os relatórios sociais relevantes não mencionaram de forma alguma o acto violento (vide alegação na próxima parte) que o recorrido havia cometido contra o menor e contra a recorrente, e o assistente social na época estava ciente desse acto violento (especialmente por causa disso, a recorrente abandonou a casa de morada de família e passou a residir no "Lar de Abrigo para Mulheres" do Centro de Solidariedade Social Lai Yuen da Associação Geral das Mulheres de Macau, vide anexos 1 e 2 - certidão emitida pela Associação Geral das Mulheres de Macau e despacho de arquivamento do Ministério Público).
6. Antes de a recorrente ter separado do recorrido, o recorrido sempre teve uma forte tendência à violência, muitas vezes gritava com o filho pequeno, e se o filho chorasse, batia violentamente no filho, até colocava as mãos em volta do pescoço do filho, dificultava-lhe a respiração.
7. Em 12 de Junho de 2021, para impedir o choro do filho, o recorrido então usou de violência contra o filho, incluindo colocar as mãos em volta do pescoço do filho para que ele não pudesse respirar, resultando em graves manchas de sangue (vide anexos 3 e 4 – gravura capturada de monitorização e fotos de ferimento).
8. Em 18 de Junho de 2021, devido a uma discussão entre a recorrente e o recorrido, este sacou um cutelo e ameaçou a recorrente (vide anexo 5 - gravura capturada de monitorização).
9. Em 21 de Abril de 2022, o recorrido mais uma vez agrediu violentamente a recorrente e seu filho, e em seguida, a recorrente denunciou o caso à polícia (Inquérito no. 3777/2022) (vide anexos 2, 6 e 7 - despacho de arquivamento do Ministério Público, recorte de "Macau Daily News" e guia de denúncia).
10. Em 7 de Novembro de 2022, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento do referido inquérito por não haver provas suficientes para reconhecer que o recorrido cumpriu os requisitos penais aludidos no no. 1 do artigo 18º da Lei nº. 2/2016 -《Lei de prevenção e combate à violência doméstica》.
11. No entanto, este Delegado do Procurador também indicou no respectivo despacho de arquivamento: o número de vezes de que o recorrido agrediu seu filho, ainda pode ser considerado como crime previsto no artigo 137º do Código Penal, tratando-se de caso de ofensa simples.
12. Indubitavelmente, no regime jurídico de Macau, a única consideração é os interesses do menor ao regular o poder paternal para o menor.
13. Conforme acima referido, os actos ininterruptos de violência do recorrido contra o menor e contra a recorrente ao longo dos anos são suficientes para inferir que o recorrido tem tendência à violência, nomeadamente a falta de cuidado e paciência para com o menor, sendo previsível que estes comportamentos venham a afectar o desenvolvimento psicológico e de carácter do menor, pelo que, o recorrido não tem capacidade para cuidar devidamente do menor.
14. Assim, a presente decisão recorrida confiou o poder paternal do menor ao recorrido exercer unilateralmente e residir com ele, colocando o menor num ambiente vulnerável à violência, sendo difícil proteger a saúde física e mental do menor.
15. Nos termos do artigo 6º do Código de Processo Civil, o Mmo. Juiz deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
16. No entanto, é incrível que nem os relatórios sociais nem o tribunal a quo tenham feito qualquer investigação ou análise sobre se a situação pessoal do pai (tendência violenta) representaria perigo para o menor.
17. Por um lado, nos autos, a investigação de factos destes dois relatórios sociais elaborados pelo pessoal do Instituto de Acção Social baseia-se principalmente no juízo subjectivo e na inteferência do assistente social durante a breve cena de conferência, e a lógica de raciocínio e a conclusão são muito grosseiras, não considerou nem comparou totalmente esses problemas do menor que realmente já surgiram quando ambos os pais viviam juntos e não considerou totalmente que a recorrente estava limitada a medidas de prevenção de epidemia e restrições de trabalho (de curto prazo), o que levou à ocorrência de problemas de dificuldade do cuidado, as conclusões dos relatórios relevantes são injustas.
18. Além disso, as autoridades correspondentes e o tribunal não notificaram a recorrente do conteúdo dos relatórios releventes antes de o tribunal a quo ter reconhecido os factos no procedimento de elaboração dos respectivos relatórios. Nesses relatórios e procedimentos judiciais, o direito da recorrente de saber e o direito de defesa não foram devidamente protegidos, o que violou o princípio do contraditório.
19. Por outro lado, sendo necessário indicar que, os recpectivos relatórios sociais indicaram que, em relação à questão de linguagem, saúde e ausência escolar do menor B, bem como à questão de trabalho, estado de vida da recorrente, o tribunal recorrido e o assistente social relevantes não conduziram investigação e análise suficientes, especialmente não deram à recorrente a oportunidade de se explicar, o que violou o princípio do contraditório e levou a erros e insuficiências nos factos reconhecidos na decisão recorrida.
20. Em relação à questão de linguagem do menor, a recorrente precisa de esclarecer e apontar que o problema linguístico teve origem antes do processo da regulação do poder paternal, ou seja, existiu durante o tempo em que as duas partes viviam juntas antes do processo de divórcio litigioso.
21. De facto, a recorrente tem levado o seu filho menor aos Serviços de Saúde de Macau para diversos tratamentos de reabilitação, tais como terapia da fala, psicoterapia e terapia ocupacional (vide anexo 8 - alguns recibos de tratamentos), não sendo como o alegado nos relatórios sociais que a recorrente não tenha levado o filho menor para terapia de fala, ou tenha demonstrado atitude de indiferença e impaciência com o filho.
22. Além disso, como a questão de linguagem do filho menor existe há muito tempo, a recorrente tem transmitido vídeos de desenhos animados de reconhecimento de palavras em cantonês para B em sua vida diária, na esperança de melhorar a sua questão de linguagem, mas não é conforme declarado nos relatórios sociais, deixe-o brincar no telemóvel.
23. Em segundo lugar, quanto à questão do ingresso escolar, cumpre esclarecer que, como a recorrente e seu filho viviam juntos no Centro de Solidariedade Social Lai Yuen da Associação Geral das Mulheres de Macau no início da mudança da casa de morada de família, os dois viveram num quarto e partilharam a casa de banho com outras pessoas, o ambiente de vida era pior, aliás, a epidemia de Macau eclodiu em Junho de 2022, pelo que a recorrente trouxe o menor para o continente em Zhuhai (sic.), onde os pais da recorrente ajudaram a cuidar dele, posteriormente, devido aos múltiplos surtos da epidemia no segundo semestre de 2022 (especialmente no final do ano), o filho da recorrente estava impedido de sair da sua residência no Continente na maior parte do tempo, não podendo ir à escola e frequentar aulas normalmente.
24. De facto, nessa altura, a recorrente também se preocupava muito com o facto de o seu filho ainda não vacinado se deslocar frequentemente entre Macau e o Continente, a sua saúde ficaria gravemente afectada caso contraísse a doença, até Fevereiro de 2023, a situação epidémica no Interior da China e em Macau foi gradualmente estabilizada, tendo sido levantadas as medidas de prevenção epidémica em ambos os locais, tendo a recorrente trazido o filho a Macau para viver e frequentar aulas.
25. Além disso, a recorrente também considerou especialmente a ausência do filho menor no jardim de infância e seu problema de linguagem, para permitir que B alcançasse seu progresso académico, a recorrente também arranjou B em aula de explicações (vide anexo 9 - recibo da aula de explicações), vê-se que a recorrente não é, conforme consta dos relatórios sociais, uma mãe que negligencia as necessidades de crescimento, saúde, desenvolvimento da linguagem do filho.
26. Quanto ao problema das faltas e atrasos prolongados à escola, a recorrente entende claramente que seu filho, como aluno, deve receber uma educação adequada e cumprir as regras da escola, no entanto, a intenção original da recorrente foi por que seu filho era fisicamente fraco desde era pequeno, esperava que seu filho pudesse dormir de forma suficiente, também considerando que ele não recebeu nenhuma vacina do novo coronavírus, estava no pico da epidemia naquela época, ficar em casa para descansar também era uma das opções que valia a pena considerar.
27. De facto, agora a recorrente já percebeu seu erro, prestará mais atenção em incentivar a criança a assistir às aulas e cuidar da criança de maneira mais científica no futuro.
28. Quanto ao problema de cárie dentária de B, na realidade, esta situação de cárie dentária já existia no período em que a recorrente e o recorrido viveram juntos, a recorrente levou regularmente B a clínicas dentárias em Macau ou Zhuhai para tratamento (vide anexo 10 - recibos médicos).
29. Relativamente ao facto de a recorrente ser acusada por assistente social de se recusar a comunicar, é necessário esclarecer: a recusa em fornecer os dados pessoais como salário, local de trabalho e horário se baseia no facto de que a recorrente exerceu naquela altura empregos a tempo parcial em diferentes empresas, e também ao mesmo tempo, exerceu vários empregos de tipos diferentes a tempo parcial, e os empregos diferentes a tempo parcial também tinham horários e locais de trabalho diferentes, aliás, as empresas empregadoras também não celebraram quaisquer contratos de trabalho ou documentos com a recorrente, recusou tal fornecimento por não os ter.
30. No que diz respeito à recusa em atender o telefone, sendo necessário esclarecer que a recorrente tinha vários empregos a tempo parcial, não tinha tempo livre para atender o telefone durante o horário de trabalho intenso e não sempre mantinha o telefone consigo, portanto, quando o trabalhador ligou várias vezes para a recorrente, ela não respondeu imediatamente.
31. A recorrente, como mãe monoparental, no contexto social da alta taxa de desemprego devido à epidemia, continuou a tentar encontrar um emprego adequado, apenas para proporcionar um ambiente de vida melhor para seu filho, e as dificuldades de trabalho de curto prazo levaram a um cuidado inadequado de seu filho em vida, o que é realmente justificável e não deve ser excessivamente culpado.
32. Além disso, a recorrente tem agora residência fixa e emprego estável em Macau, trabalha como vendedora na Agência Comercial “Pou Loi”, sendo o seu salário fixo mensal incluindo as comissões, em média, de cerca de MOP$ 15,000.00 (vide anexo 11 e 12 – contrato de trabalho e contrato de arrendamento). A fim de arranjar mais tempo para cuidar de seu filho, a recorrente deixou de trabalhar a tempo parcial.
33. Ademais, quanto à acusação do recorrido de que a recorrente lhe pedia dinheiro emprestado e era viciada em jogos de azar, cumpre esclarecer que a recorrente nunca pediu dinheiro emprestado ao recorrido, também não tinha o chamado vício do jogo, podendo contar-se apenas com os dedos o número de vezes que a recorrente sequer entrou no casino, como se pode dizer que era viciada em jogo, tudo isso pertencia à calúnia deliberada do recorrido.
34. Com base nisso, a recorrente entende que o reconhecimento do tribunal a quo dos factos provados 4, 5, 11, 12, 13 e 14 com base nos relatórios sociais é errado e insuficiente, que violou as regras de experiência comum, o princípio do contraditório e o princípio do inquisitório, em particular, não houve investigação e análise factuais suficientes.
35. Quanto à forma de cuidado do recorrido, o relatório social apontou que como o recorrido trabalha no casino responsável pela monitorização e precisa de trabalhar por turnos, pelo que, o menor é cuidado pelos avós paternos no seu quotidiano e seu tio está encarregado de seus estudos. Isso se mostra que, o recorrido não passava muito tempo com o menor, cabendo aos seus pais e irmão a responsabilidade de o ajudar a prestar cuidado quer na escola quer na vida.
36. Pelo contrário, a recorrente tem actualmente um emprego estável com horário de trabalho fixo e com folgas aos fins-de-semana, não necessita de trabalhar por turno e dispõe de tempo suficiente para cuidar pessoalmente dos estudos e da vida quotidiana do menor, entretanto, a recorrente também tem os pais aposentados para prestar ajuda.
37. Na verdade, o mundo interior do menor é mais inclinado para o lado da recorrente, sempre que a recorrente estava preparada para enviar o menor para casa da recorrente após a visita ao menor, o menor chorou e segurou a mão da recorrida, não querendo voltar para casa do recorrido. A recorrente não pôde deixar de suspeitar que as frequentes repreensões do recorrido ao filho o deixariam com medo de voltar para a casa do pai.
38. Vê-se que, em comparação com o recorrido, a recorrente tem capacidade e condições mais adequadas para cuidar do filho menor, devendo o poder paternal relevante ser exercido unilateralmente pela recorrente, devendo o recorrido pagar mensalmente de acordo com os níveis social e económico de Macau, um montante não inferior a 6,000 patacas a título de alimentos.
39. Face ao acima exposto, a recorrente entende que os relatórios sociais possuem o desvio subjectivo e conteúdo orientador, nunca foi mencionada a violência do recorrido contra o menor e não realizou investigação e análise suficientes sobre as condições e capacidades de ambos os pais, as conclusões relevantes são obviamente tendenciosas e imprecisas.
40. Nos termos do artigo 5º do Decreto-Lei no. 65/99/M, o relatório social é apenas um documento para apoiar o trabalho do tribunal. Nos termos do artigo 6º do Código de Processo Civil, o Juiz deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
41. Em conjugação com o no. 1 do artigo 119º do Decreto-Lei no. 65/99/M, “Quando os pais não apresentem alegações, ou com elas não ofereçam testemunhas, junto o relatório social e realizadas outras diligências necessárias é proferida sentença…”.
42. Portanto, o tribunal a quo não deve simplesmente tomar o conteúdo e as conclusões dos relatórios sociais como base principal para reconhecer os factos, mas deve tomar as diligências necessárias para investigar os factos que são importantes no aspecto jurídico, como por exemplo, os factos provados 4 , 5, 11 , 12, 13, 14 no presente processo e os actos de violência do recorrido contra o menor (ainda não investigados).
43. Portanto, neste processo, o tribunal a quo baseou-se no conteúdo e nas conclusões dos relatórios relevantes como base probatória para o reconhecimento do facto, que violou as regras de experiência comum e o princípio do contraditório, não considerou plenamente os interesses do menor, existem erros notórios e omissões no juízo dos factos e na investigação, a respectiva decisão de recurso não se conforma com os interesses do filho menor e viola o no. 2 do artigo 1760º do Código Civil, artigo 119º e nº. 1 do artigo 120º do Decreto-Lei nº. 65/99/M, artigo 6º do Código de Processo Civil e disposições conexas, deve ser revogada.
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Face ao acima exposto, requer ao Mmo. Juiz que admita as alegações de recurso, e julga que:
I. Seja revogada a decisão recorrida;
II. Seja o poder paternal do menor B exercido unilateralmente pela recorrente, devendo o recorrido pagar mensalmente um montante não inferior a 6,000 patacas a título de alimentos do filho menor até a sua maioridade e, seja fixado o regime de visita.
III. Sejam pagas as custas processuais resultantes deste processo e a procuradoria.
Contra-alegando, vem o Ministério Público apresentar as seguintes conclusões:
1. A recorrente, A, alegou que o Tribunal a quo tinha violado o princípio da investigação ao não efectuar uma investigação adequada dos actos de violência doméstica cometidos pelo recorrido, C, em particular.
2. Note-se que o caso de violência doméstica foi apresentado ao Tribunal pelo recorrido, por sua própria iniciativa, na primeira conferência de pais realizada em 27 de Setembro de 2022
3. Na referida conferência, o Tribunal, tendo considerado as informações constantes do processo, incluindo, evidentemente, o conteúdo da declaração do recorrido alegando que envolvia um caso de violência doméstica, decidiu que o poder paternal provisório do menor devia ser atribuído à recorrente, A.
4. Após uma análise exaustiva dos incidentes de violência doméstica acima referidos, do desempenho dos deveres parentais por ambos os progenitores, e depois de ouvir as declarações prestadas por pessoas como a professora da turma do menor, a assistente social da Divisão de Serviços Familiares do Departamento de Serviços Familiares e Comunitários, o avô paterno e a assistente social responsável pelo acompanhamento da recorrente A no Lar “Lai Yuen”, o IAS recomendou finalmente, no seu relatório de 25 de Novembro de 2022, que o pai deste caso, ou seja, o recorrido, exercesse o poder paternal provisório do filho.
5. Na conferência de pais de 10 de Janeiro de 2023, o Tribunal ouviu as declarações prestadas por três assistentes sociais, incluindo a assistente social Cheong, que tinha acompanhado o caso de violência doméstica, e, na ausência de qualquer indicação do assistente social de que o recorrido não estava apto a exercer o poder paternal, o Tribunal não adoptou a recomendação do relatório social referido no artigo anterior de que o poder paternal provisório do menor fosse exercido pelo recorrido, C, e decidiu, em vez disso, que deveria ser mantido e exercido pela recorrente, A.
6. No entanto, de acordo com o relatório social datado de 23 de Março de 2023, reflectindo que a recorrente não cuidou devidamente do menor durante o exercício do poder paternal provisório, tendo negligenciado o seu crescimento, saúde e higiene, desenvolvimento linguístico e progresso académico, e que não interagiu suficientemente com o menor; pelo contrário, o recorrido amava e cuidava do menor, tomava pessoalmente conta do seu filho durante o seu tempo livre e tinha um plano para contratar uma empregada doméstica para ajudar nos cuidados.
7. Tendo ponderado todos os factos objectivos constantes do processo, o Tribunal a quo decidiu, em 21 de Abril de 2023, colocar o poder paternal do menor nas mãos do recorrido C.
8. A base factual do referido acórdão não foi, como alega a recorrente, formada apenas com base no conteúdo dos relatórios sociais e nos factos que lhe são desfavoráveis, mas sim um juízo obtido após uma análise objectiva e rigorosa de todos os elementos constantes dos autos, seguida de uma pesquisa de provas, que incluiu, nomeadamente, os dois relatórios sociais e as declarações das pessoas que participaram nas três conferências de pais, razão pela qual o Ministério Público considera que o acórdão do Tribunal a quo não está viciado por qualquer violação do princípio da investigação.
9. Além disso, a recorrente também alega que o Tribunal a quo não lhe deu uma oportunidade adequada para responder antes de fazer os seus reconhecimentos de facto, particularmente no que diz respeito ao incidente de violência doméstica e ao conteúdo do relatório social que lhe era desfavorável, violando assim o princípio da contraditório.
10. Mais uma vez, no que respeita a outras opiniões mais favoráveis, o Ministério Público não concorda com o que precede.
11. Em primeiro lugar, a recorrente, enquanto parte tanto no processo de violência doméstica como no presente processo, poderia ter exposto as circunstâncias do incidente e os factos (desfavoráveis) que entendia deverem ser esclarecidos ao Tribunal a quo (nas três conferências de pais) ou directamente ao assistente social (na elaboração do relatório social) nas várias fases dos articulados do processo, ou apresentando uma declaração que o reflectisse no prazo previsto no artigo 118.º do D.L. n.º 65/99/M, ou ainda defendendo os seus direitos e interesses através de meios adequados, como a apresentação de documentos comprovativos, em qualquer momento anterior ao encerramento do debate de primeira instância, e não apenas apresentando documentos anexos à sua alegação na fase do recurso.
12. Simultaneamente, a recorrente pode, em qualquer momento da pendência do processo, exercer oportunamente o seu direito do contraditório, requerendo ao Tribunal a quo a consulta dos autos ou as diligências instrutórias que considere adequadas.
13. No entanto, a recorrente não fez nenhuma das alegações nem apresentou nenhum dos pedidos acima referidos nas várias fases permitidas por lei.
14. Por conseguinte, o Ministério Público é de opinião que o Tribunal a quo seguiu as disposições da lei e deu a ambas as partes todas as oportunidades suficientes de exercerem os seus direitos em todas as fases, e a decisão do tribunal a quo não está viciada da violação do princípio do contraditório, como alegado pela recorrente.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a. Factos
Na decisão Recorrida foi dada por assente a seguinte factualidade:
1) O Requerido ou seja a parte masculina, C (adiante designado por “parte masculina”) e a Requerida ou seja a parte feminina, A (adiante designada por “parte feminina”) foram registados como casados em Macau em 8 de Março de 2017 e divorciaram-se em 21 de Fevereiro de 2023 por sentença deste Tribunal no processo n.º FM1-22-0072-CDL, que foi transitada em julgado em 9 de Março de 2023, com a conclusão de que a parte feminina era a principal culpada;
2) As partes têm um filho menor, B, nascido a 10 de Fevereiro de 2018 em Macau;
3) O Tribunal fixou o regime de visitas provisório para o menor em 27 de Setembro de 2022 na conferência de pais:
-O poder paternal provisório do menor é exercido pela parte feminina;
-A parte masculina fica obrigada a pagar à parte feminina, por transferência bancária, até ao dia 5 de cada mês, a quantia de MOP$3.500,00 para o alimento do menor;
4) Depois de lhe ter sido atribuído o poder paternal provisório sobre o menor, a parte feminina não cuida adequadamente do menor, nomeadamente entregando à avó materna a responsabilidade pelo transporte do menor de e para a escola, e o menor frequentemente não vai à escola, chega atrasado, não entrega os trabalhos para casa ou tem a roupa desarrumada, tem cáries dentárias graves, tem uma mastigação deficiente, e negligencia o crescimento, a higiene e a saúde do menor, o desenvolvimento da linguagem e os progressos nos seus trabalhos escolares.
5) A parte feminina residiu com o menor no Interior da China de Agosto a Dezembro de 2022, período durante o qual não providenciou para que o menor frequentasse a escola em Macau;
6) A parte masculina trabalha como supervisor de casino com um salário mensal de cerca de MOP$26.000,00 e tem de trabalhar por turnos com dois dias de férias por semana;
7) A parte masculina toma conta pessoalmente do menor e ensinar-lhe-á os trabalhos para casa quando estiver de licença, enquanto o avô paternal e o tio do menor o ajudarão quando ele estiver a trabalhar;
8) A parte masculina indicou que tencionava contratar uma empregada doméstica que não resida na mesma casa do dono para ajudar a cuidar do menor;
9) Na visita domiciliária, a assistente social observou que o menor era muito próximo, por sua iniciativa, e gostava do pai, e que este estava preocupado com o facto de a dor de dentes do menor afectar a sua alimentação e o seu desenvolvimento linguístico;
10) A parte masculina pediu à parte feminina que pagasse MOP$2.000,00 a título de alimento do menor, e a parte feminina podia ter contacto com o menor durante as férias escolares do menor, mas não podia sair desta região;
11) A parte feminina aluga uma fracção de duas divisões com a menor e a avó materna, com uma renda mensal de HKD$8.000,00 e a sua casa está num estado de desordem;
12) O menor não teve qualquer interacção com a mãe e ela recusou-se a permitir que a assistente social tivesse mais contacto com o menor e recusou-se a falar em pormenor sobre o plano de cuidados do menor;
13) O menor é principalmente cuidado pela sua avó materna durante a semana;
14) A parte feminina deu explicações diferentes sobre os seus rendimentos, ora afirmando que ganhava mais de MOP$100.000,00 por mês, ora afirmando que não tinha despesas de subsistência. Mais tarde, disse à assistente social que tinha um emprego a tempo parcial, mas recusou-se a responder a perguntas sobre informações como o local de trabalho e o salário, enquanto que na conferência de pais disse que trabalhava como agente de compras e tinha um salário mensal de cerca de MOP$10.000,00;
15) A parte feminina pretende obter o poder paternal sobre o menor, declarando que deixará o menor ao cuidado da avó materna e espera que a parte masculina pague MOP$6.000,00 pelo sustento do menor, o que permitirá a parte masculina ter contacto com o menor duas vezes por mês; se o poder paternal do menor for exercido pela parte masculina, esta estará disposto a pagar metade do seu salário todos os meses para o sustento do menor, e espera poder visitar o menor em qualquer altura;
16) O menor tem agora 5 anos de idade e está a estudar no Jardim de Infância Caritas no 2.º ano da educação infantil.
b. Do Direito
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Nos termos dos artigos 1732.º, 1733.º, 1739.º, 1756.º, 1760.º a 1763.º, 1844.º a 1846.º do Código Civil de Macau e do artigo 120.º do D.L. n.º 65/99/M, compete a este Tribunal regular as questões da atribuição do poder paternal ao menor B, do regime de visitas e de pensão de alimentos a que tem direito.
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Quanto ao exercício do poder paternal:
Em conformidade com o artigo 1760.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil de Macau:
“1. Nos casos de divórcio, separação de facto ou anulação do casamento, a atribuição do filho, os alimentos a este devidos e a forma de os prestar são regulados por acordo dos pais, sujeito a homologação do Tribunal; a homologação será recusada se o acordo não corresponder ao interesse do menor, incluindo o interesse deste em manter com aquele progenitor a quem não seja confiado uma relação de grande proximidade.
2. Na falta de acordo, o Tribunal decidirá de harmonia com o interesse do menor, podendo este ser confiado à guarda de qualquer dos pais ou, quando se verifique alguma das circunstâncias previstas no artigo 1772.º, a terceira pessoa ou a instituição, pública ou particular, adequada.”
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Em primeiro lugar, os factos provados mostram que os Requeridos estavam divorciados e, por conseguinte, o exercício do poder paternal devia ser regulado; embora ambas as partes desejassem exercer o poder paternal sobre o menor. Ora, tendo em conta que a parte feminina não tem condições para cuidar convenientemente do menor durante o exercício provisório do poder paternal do menor, e confia na avó materna para cuidar do menor, negligenciando o seu crescimento, higiene e saúde, o desenvolvimento da linguagem e o progresso dos seus estudos, e não tem qualquer interacção com o menor, e que, pelo contrário, a parte masculina ama e cuida do menor, toma conta do menor e ensina pessoalmente o menor depois do trabalho, e tem uma relação de intimidade com o menor, e tem familiares que o ajudam a cuidar do menor e vai contratar uma empregada doméstica para ajudar a cuidar do menor. Pelas razões acima expostas, este Tribunal, após ter ouvido o parecer do Ministério Público, decide que é do interesse superior do menor que o poder paternal do menor, B, seja exercido pela parte masculina, C.
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Quanto ao alimento:
No que respeita à pensão de alimentos, tendo em conta que ambos os progenitores têm a obrigação legal de sustentar o menor, mesmo que o progenitor não exerça o poder paternal, a parte masculina pede à parte feminina que pague MOP$2.000,00 por mês para o sustento do menor, enquanto a parte feminina indica que pode pagar metade do seu salário para o sustento do menor.
a informação contida no presente processo, e tendo em conta que a parte masculina trabalha actualmente como supervisor de casino com um salário mensal de cerca de MOP$26.000,00, enquanto a parte feminina indicou na conferência que trabalha como agente de compras com um salário mensal de cerca de MOP$10.000,00, bem como indicou à assistente social que poderia pagar metade do seu salário como pensão de alimentos do menor, esta deu explicações diferentes, tendo-se recusado a fornecer a informação sobre o salário do seu trabalho. Tendo em conta os rendimentos e encargos financeiros de ambas as partes, as despesas de subsistência correspondentes à idade do menor, e ouvido o parecer do Ministério Público, o Tribunal considera que é mais razoável que a parte feminina, A, assumirá MOP$2.000,00, por mês para o alimento do menor, podendo, no entanto, ser ajustado no futuro.
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Quanto ao regime de visitas:
No que diz respeito ao regime de visitas, a parte feminina, neste caso, enquanto parte que não exerce o poder paternal, deve ser protegida no seu direito de visitar o menor. Tendo em conta a idade actual e as condições de vida do menor, o Tribunal decidiu que a parte feminina podia visitar o menor pelo menos uma vez por semana, com aviso prévio à parte masculina, e sem afectar o descanso e o estudo do menor. Tendo em conta o facto de o menor faltar frequentemente à escola durante a sua estadia no Interior da China, o que também dificultava a visita da parte masculina, a fim de manter a educação e a vida estável do menor em Macau, o Tribunal decidiu que a parte feminina não podia, temporariamente, levar sozinha o menor para fora desta região.».
No caso dos autos requerida a Regulação do poder paternal pelo Ministério Público na sequência do divórcio dos progenitores foram estes convocados para uma conferência a qual se realizou, não tendo sido possível alcançar o acordo e tendo ambos os progenitores sido notificados para alegarem e indicarem as provas que tivessem por convenientes – cf. fls. 14 e 15 -.
Apenas o pai apresentou alegações – cf. fls. 16 e 17 -, sem contudo requerer qualquer diligência de prova.
Junto aos autos o relatório social a fls. 18 a 48, depois de dada Vista dos Autos ao Ministério Público foi designada nova data para conferência de pais à qual a mãe não compareceu tendo-se tomado declarações ao pai, designando-se nova data para conferência e ouvir os assistentes sociais que acompanhavam o caso.
Realizada a nova conferência foram solicitados relatórios médicos e novo relatório social os quais foram juntos aos autos a fls. 76 a 108 e 110 a 122.
Com base naqueles elementos foi proferida decisão.
Invoca a Requerente nas suas conclusões de Recurso que não lhe foi dada oportunidade de responder ao relatório social mas sem razão.
Notificados os progenitores inicialmente para apresentar alegações e arrolarem prova apenas o pai alegou tendo a mãe silenciado.
De acordo com o disposto no nº 1 do artº 119º do Decreto-Lei nº 65/99/M, se os pais não alegarem ou se o fizerem mas não indicarem testemunhas, junto o relatório social e realizadas as diligências que o tribunal tiver por conveniente é proferida sentença.
Foi essa a situação dos autos, não se tendo omitido qualquer notificação aos pais a quem já havia sido dada oportunidade de alegarem e indicarem as provas que tivessem por conveniente.
O Relatório Social não é um documento das partes sujeito a contraditório, mas sim um documento elaborado pelo órgão que auxilia o tribunal no exercício das suas funções no que concerne à jurisdição de menores, pelo que, junto aquele, não tendo sido requerida a produção de diligências probatórias pelos progenitores nada mais havia a fazer, que não fosse decidir.
Vem também a progenitora insurgir-se contra os fundamentos da decisão, contudo a factualidade apurada resultou das diligências efectuadas pelo IASM junto dos progenitores e da percepção que teve da situação de vida do menor e respectivos progenitores.
Pretende a mãe retirar consequências de um acto violento que terá ocorrido quando o casal ainda vivia junto como fundamento para justificar que a guarda do menor não pode ser atribuída ao pai.
Porém, o que resulta é que sem prejuízo da factualidade invocada ter ocorrido ela mostra-se ocasional e inconsequente no decorrer da vida dos progenitores e menor, enquanto a atribuição provisória da guarda do menor à mãe na sequência daquela o votou a um tratamento negligente e descuidado que justificou a necessidade de intervenção posterior e alteração do que se havia antes decidido.
Não sendo a sentença recorrida extensa na sua argumentação e fundamentação dela constam de forma suficiente os factos e os fundamentos que justificaram a regulação do poder paternal nos termos decididos, sendo que, as conclusões de recurso mais não são do que as razões que a mãe pretende aduzir e que na sua opinião justificam que a decisão haveria de ser no sentido de lhe ser atribuída a guarda, sendo certo que, o que resulta dos relatórios sociais elaborados é que enquanto teve a guarda do menor descuidou os cuidados de higiene, médicos, escolares e de segurança do menor.
Destarte, nada se invocando que ponha em causa os fundamentos da decisão recorrida, impõe-se julgar improcedente o recurso confirmando aquela.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento ao recurso mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo da Recorrente.
Registe e Notifique.
RAEM, 8 de Novembro de 2023
Rui Carlos dos Santos Pereira Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto)
535/2023 CÍVEL 17