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Processo nº 120/2023
(Autos de Recurso Contencioso)

Data do Acórdão: 30 de Novembro de 2023

ASSUNTO:
- Dispensa de requisitos impedientes
- Prova

SUMÁRIO:
- A falta de prova dos factos integradores dos pressupostos que eventualmente conduziriam à dispensa de requisitos impedientes não pode deixar de conduzir à improcedência do pedido.


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Rui Pereira Ribeiro







Processo nº 120/2023
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 30 de Novembro de 2023
Recorrente: (A)
Entidade Recorrida: Secretário para os Transportes e Obras Públicas
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
  
I. RELATÓRIO
  
  (A), com os demais sinais dos autos,
  veio interpor recurso contencioso do Despacho de desaprovação da dispensa de requisitos impedientes para a candidatura à habitação social proferido pelo Secretário para os Transportes e Obras Públicas na proposta nº XX/DHP/DHS/2022, formulando as seguintes conclusões:
1. A decisão da entidade recorrida em relação a este pedido, também é demasiado precipitada e não cumpriu a obrigação de investigação, o que violou os princípios da boa fé, da cooperação e do inquisitório, e constitui uma violação à alínea d) do no. 1 do artigo 21º do Código do Processo Administrativo Contencioso, devendo ser anulada.
2. A entidade recorrida não analisou integralmente as declarações e provas apresentadas pelo recorrente e as informações do processo nº 75/2022 do Tribunal de Segunda Instância juntos aos autos, proferiu novamente decisão de desaprovação, tal acto já pertence à situação em que existe um erro notório no exercício de poderes discricionários, ou seja, o acto recorrido pertence à situação de violação de lei nos termos da alínea d) do no. 1 do artigo 21º do Processo Administrativo Contencioso, devendo ser anulado.

  Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas contestar, apresentando as seguintes conclusões:
A) Quanto à alegada violação do princípio da averiguação os factos referidos nos pontos 6.º a 11.º demonstram que a Entidade Recorrida cumpriu o dever de averiguação nos termos do n.º 1 do artigo 86.º do CPA.
B) Os meios de averiguação alegados no ponto 58.º da petição inicial do Recorrente não foram considerados, uma vez que só permitem conhecer os negócios jurídicos relativos ao reembolso de dívidas e à venda da fracção bem como as situações jurídicas relativas ao divórcio, mas não podem provar os motivos reais, à data da venda da fracção.
C) O facto de o Recorrente não concordar com os meios de averiguação utilizados pela Administração não significa qualquer violação do princípio de averiguação.
D) O pedido de dispensa do requisito impediente foi apresentado pelo Recorrente por sua própria iniciativa. Nos termos do artigo 87.º do CPA, cabe ao Recorrente provar os factos que alega.
E) Tal como se consignou no Parecer n.º 4/VI/2019 (Vide ponto 6.5. na página 19) da 1.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa: O Chefe do Executivo pode dispensar os requisitos impedientes previstos na alínea 2) do n.º 1 do artigo 8.º, mas apenas quando o adquirente da habitação económica comprove que procedeu à venda da fracção devido a problemas de saúde, dificuldades económicas, alterações adversas das circunstâncias familiares e acentuada diminuição do rendimento da família, ou quando tenha sido efectuada venda judicial da habitação para pagamento do empréstimo concedido pela entidade bancária, devido a situação de insolvência.
F) Considerando que as situações previstas no n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social devem ser comprovadas e que a Administração e as entidades privadas não têm pleno conhecimento dos factos e dos dados pessoais, o Recorrente deve ter recursos e condições suficientes para apresentar provas.
G) Contudo, o Recorrente limitou-se a alegar, de forma vaga que se tinha separado e divorciado, e que tinha trabalho instável, dívidas contraídas e doença prolongada, mas não conseguiu apresentar as provas objectivas que comprovasem as alterações de saúde, de economia, de família e de rendimentos de curto prazo, antes e depois de venda da fracção em 2005.
H) Não podendo o papel do Recorrente na apresentação de provas ser dispensável ou ser substituído pela Entidade Recorrida, que ao mesmo tempo cumpre o dever de averiguação nos termos da lei.
I) Quanto à alegada violação dos princípios da boa fé e da cooperação, em conformidade com o artigo 2.º do Regime jurídico da habitação social, a lei visa apoiar os residentes da RAEM em situação económica desfavorecida na resolução dos seus problemas habitacionais.
J) O objectivo da alínea 2) do n.º 1 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social é restringir os indivíduos que tenham adquirido habitação económica de se candidatarem à habitação social, uma vez que o número de fracções de habitação social é extremamente limitado, a Administração deve assegurar a atribuição de habitação social aos indivíduos que se encontrem, de facto, em situação económica difícil e que reúnam os requisitos de candidatura, evitando o abuso daqueles que já usufruíram dos beneficios das habitações do Governo.
K) Embora o n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social tenha estipulado uma situação excepcional para dispensar o requisito impediente, não se pode esquecer que o referido requisito impedi ente apenas pode ser dispensado quando o adquirente da habitação económica puder comprovar que se encontra nas situações previstas no n.º 2.
L) O legislador elaborou um conjunto de critérios de avaliação objectivos e socialmente aceitáveis para o integral cumprimento da lei pela Administração, a Entidade Recorrida está obrigada a cumprir a lei, verificando se o Recorrente está abrangido pelas situações legalmente previstas que permitam a dispensa dos requisitos impedientes, de modo a cumprir os princípios gerais consagrados no CPA, que naturalmente incluem os princípios da boa fé e da colaboração previstos respectivamente nos artigos 8.º e 9º.
M) Tal como já foi analisado, ao mesmo tempo que a Entidade Recorrida cumpre o dever de averiguação, o Recorrente, por sua própria iniciativa, deve submeter à Administração, as provas para fundamentar os factos por ele alegados, nos termos dos artigos 86.º e 87.º do CPA e do n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social.
N) Visto que o Recorrente, no momento da apresentação do pedido de dispensa dos requisitos impedientes, não apresentou provas relevantes, a Entidade Recorrida concedeu a oportunidade de audiência ao Recorrente, enviando notificação para apresentação dos documentos comprovativos específicos, bem como de todas as provas testemunhais, materiais, documentais ou outros meios de prova para provar os factos relevantes, nos termos dos artigos 93.º e 94.º do CPA.
O) Ademais, não foi detectado no processo que a Entidade Recorrida tenha violado ou impedido a participação do Recorrente durante o procedimento administrativo, ou que se. tenha recusado a cooperar ao ser solicitada a prestar informação ao Recorrente, ou que tenha impedido a apresentação de qualquer informação por parte do Recorrente.
P) Quanto à existência do erro manifesto no exercício do seu poder discricionário, antes de praticar o acto recorrido, a Entidade Recorrida, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, teve em consideração, através do IR, as provas apresentadas pelo Recorrente que não têm força probatória plena.
Q) Cumprido o dever de averiguação e tendo em consideração os pontos 39.º a 46.º, o Recorrente não provou que sé encontrava em qualquer uma das situações previstas no n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social, mais especificamente, com problemas de saúde, dificuldades económicas, alterações adversas das circunstâncias familiares ou de acentuada diminuição do rendimento da família, pelo que a Entidade Recorrida praticou o acto recorrido.
R) Pelo exposto, o acto recorrido não violou os princípios da averiguação, da boa fé e da colaboração, nem existe erro manifesto no exercício do poder discricionário, não se verifica o vício de violação de lei previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 21.º do CPAC, pelo que deverá o acto recorrido ser mantido e nunca anulado .
  
  Procedeu-se à inquirição das duas testemunhas indicadas.
  
  Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, ambas o fizeram, reiterando as posições antes assumidas.
  
  Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer pronunciando-se pela improcedência do recurso.
  
  Foram colhidos os vistos.
  
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  
  O Tribunal é o competente.
  O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
  Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
  Cumpre assim apreciar e decidir.
  
III. FUNDAMENTAÇÃO

a) Dos factos

1. Por Despacho do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas datado de 14.11.2022 foi indeferido o pedido formulado pelo Recorrente relativo à dispensa do requisito impediente com base nos fundamentos constantes na proposta nº XX/DHP/DHS/2022 cujo teor aqui se dá por reproduzido e que consta o seguinte:
«Assunto: Candidatura a habitação social Prop. Nº XX/DHP/DHS/2022
Proposta de não autorização – dispensa do requisito Data: 10/11/2022
impediente por ter sido adquirente de habitação económica
Boletim de candidatura n.º XXX
Ex.ma Senhora Vice-Presidente do Instituto de Habitação,
Informações do caso:
1. (A) (adiante designado por candidato) apresentou o boletim de candidatura a habitação social, tendo-lhe sido atribuído o n.º XXX, e o seu agregado familiar é constituído por 1 elemento.
O candidato solicitou a dispensa do requisito impediente por ter sido adquirente da habitação económica, cujo conteúdo, na presente proposta, é considerado integralmente reproduzido.
2. Após a apreciação, verificou-se que o candidato foi adquirente da habitação económica, fracção sita na “Avenida Marginal do Lam Mau n.ºs XX, YY, 9.º andar BO, Macau”, este facto está abrangido pelo requisito impediente da candidatura a habitação social, previsto na alínea 2) do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019 (Regime jurídico da habitação social).
3. Por despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, exarado na Prop. n.º X/DAJ/2022, de 30 de Maio de 2022, foi revogado o seu acto de indeferimento da dispensa do requisito impediente praticado na Prop. n.º X/DHP/DHS/2021, de 12 de Outubro de 2021, pelo que o Instituto de Habitação (IH) procedeu à investigação complementar e análise do presente caso.
Fundamentação legal:
4. De acordo com o n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social, se o adquirente da habitação económica provar que procedeu à venda da fracção devido a problemas de saúde, dificuldades económicas, alterações adversas das circunstâncias familiares e acentuada diminuição do rendimento da família, ou que tenha sido efectuada venda judicial da habitação para pagamento do empréstimo concedido pela entidade bancária, devido a situação de insolvência, poderá dispensar o requisito impediente para a candidatura a habitação social.
Análise e proposta:
5. Nos termos do artigo 87.º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/99/M, de 11 de Outubro, cabe aos interessados provar os factos que alegam, considerando que os factos alegados pelo candidato são de natureza pessoal, o IH não tem condições para proceder a uma investigação oficiosa, nem sequer pode indagar sobre a realidade dos factos alegados. Nesse sentido, o IH notificou, através do Ofício n.º 2101270115/DHS, o candidato para o procedimento de audiência, de modo a apresentar as provas para justificar os factos alegados.
6. No dia 19 de Fevereiro de 2021, o amigo do candidato (B) apresentou uma carta de esclarecimento, e no dia 22 de Fevereiro de 2021, o candidato apresentou uma justificação escrita, que, na presente proposta, são considerados integralmente reproduzidos.
A justificação escrita, as declarações médicas emitidas em Macau e no Interior da China, os elementos bancários relativos aos extractos das contas, e a carta de esclarecimento do amigo do candidato não provam que o candidato procedeu à venda da fracção devido a dificuldades económicas ou alterações adversas das circunstâncias familiares, pelo que o IH, em Setembro de 2022, enviou um outro ofício ao candidato, comunicando-lhe para proceder à entrega de documentos complementares, a fim de efectuar uma análise mais, profunda sobre o preenchimento ou não dos requisitos para a candidatura a habitação social.
Para verificar se a situação do candidato durante o período de venda da fracção estava em conformidade com o que foi dito, o IH, em Setembro de 2021, através de ofício e interligação com o sistema informático, consultou, junto do Fundo de Segurança Social (FSS), o registo das contribuições e prestações do regime da segurança social relativas ao candidato, bem como foram consultados os registos do imposto profissional e da contribuição industrial do candidato, junto da Direcção dos Serviços de Finanças (DSF), durante o período de venda da fracção.
Segundo as informações, o candidato vendeu a fracção, em Março de 2005. De acordo com os dados do FSS, durante o período de 2004 a 2005, o candidato não teve qualquer registo de que o empregador lhe pagou as contribuições e o mesmo não recebeu quaisquer prestações do regime da segurança social. Além disso, conforme os dados da DSF, o mesmo não teI?- registo de imposto profissional nem de contribuição industrial, nos anos de 2004 e 2005.
No dia 11 de Outubro de 2022, o candidato dirigiu-se ao IH para uma entrevista para explicar o motivo da venda da fracção, afirmando que, naquela altura, divorciou-se do cônjuge, teve de cuidar da filha menor, não tinha fonte de rendimento estável, e tinha ainda dívidas, esta situação não lhe permitia suportar a amortização do empréstimo feito ao banco e vendeu a fracção. O candidato enfatizou que, como ultimamente tem estado em mau estado físico, não se lembra da situação real na altura da venda da fracção, e acrescentou que não tem documentos complementares para apresentar, e que o motivo da venda da fracção está de acordo com o que tinha mencionado na justificação escrita apresentada.
7. Após análise, o candidato afirmou que naquela altura, como não conseguia arranjar um emprego estável, não tinha fonte de rendimento estável, e, posteriormente, divorciou-se do cônjuge, teve de cuidar da filha menor, além disso, tinha ainda dívidas pessoais, esta situação não lhe permitia suportar a amortização do empréstimo feito ao banco e vendeu a fracção da habitação económica. Com os documentos (incluindo justificação escrita, a carta de esclarecimento do amigo, caderneta do banco, declaração médica, etc.) apresentados pelo candidato, este não conseguiu provar que procedeu à venda da fracção devido a dificuldades económicas ou alterações adversas das circunstâncias familiares. Além disso, aquando da venda da fracção em 2005, o candidato tinha 37 anos de idade e tinha capacidade para trabalhar, não se encontraram elementos objectivos que demonstrassem que o mesmo tinha dificuldades económicas. Pelos fundamentos acima expostos e pelos documentos apresentados pelo candidato estes não são suficientes para comprovar que se encontrava na situação mencionada no n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social.
8. De acordo com a alínea 2) do n.º 1 do artigo 8.º e o n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social, como não provou que procedeu à venda da fracção bonificada devido a problemas de saúde, dificuldades económicas, alterações adversas das circunstâncias familiares, acentuada diminuição do rendimento da família, ou que tenha sido efectuada venda judicial da habitação para pagamento do empréstimo concedido pela entidade bancária, devido a situação de insolvência, propõe-se a não autorização do pedido relativo à dispensa do requisito impediente.».
2. Em 24.11.2022 foi o Recorrente notificado daquela decisão – cf. fls. 227 do PA -;
3. O Recorrente casou com (C) em 04.10.1989 o qual foi dissolvido por divórcio em 28.07.2004 – cf. fls. 33 -;
4. Em 04.11.1996 o Recorrente prometeu comprar a fracção autónoma BO sita no Xº andar do Edifício YY sito na Avenida Marginal do Lam Mau nº XX, Macau, pelo valor de MOP132.369,00 tendo para o efeito contraído um empréstimo de MOP93.000,00 – cf. fls. 35 a 38 -;
5. Aproximadamente em 1999 o Recorrente e a esposa separaram-se ficando aquele a viver na fracção autónoma referida na alínea anterior com a filha do casal, suportando todas as despesas com o sustento de ambos e o pagamento das amortizações do empréstimo contraído – depoimento da 1ª testemunha ouvida -;
6. O Recorrente trabalhava como operário de decorações sem ter emprego fixo – depoimento da 1ª testemunha ouvida -;
7. O Recorrente algumas vezes pediu dinheiro emprestado a um amigo – depoimento da 2ª testemunha ouvida -;
  
  Não se provaram os demais factos invocados uma vez que os documentos juntos não são idóneos para o efeito, nomeadamente no que concerne ao nascimento da filha do Recorrente facto que apenas se prova com a respectiva certidão de nascimento tendo apenas sido junto um boletim de vacinas alegadamente da filha do Recorrente, sendo que, dos depoimentos das testemunhas nada mais se apurou para além do indicado.
  
b) Do Direito
  
  É do seguinte teor o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público:
  «1.
  (A), melhor identificado nos autos, veio interpor recurso contencioso do acto administrativo praticado pelo Secretário para os Transportes e Obras Públicas, que decidiu não dispensar o Recorrente da satisfação do disposto na alínea 2) do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019, pedindo a respectiva anulação.
  A Entidade Recorrida apresentou contestação, pugnando pela improcedência do recurso contencioso.
  2.
  (i)
  O acto administrativo recorrido foi praticado ao abrigo da norma de competência constante do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019. Aí se preceitua que «o Chefe do Executivo pode dispensar a satisfação do disposto nas alíneas 2) e 3) do número anterior, mas apenas quando o adquirente da habitação económica ou quem obteve a bonificação aí referido comprove que procedeu à venda da fracção devido a problemas de saúde, dificuldades económicas, alterações adversas das circunstâncias familiares e acentuada diminuição do rendimento da família, ou quando tenha sido efectuada venda judicial da habitação para pagamento do empréstimo concedido pela entidade bancária, devido a situação de insolvência».
  A transcrita norma legal utiliza, do lado da respectiva hipótese, diversos conceitos normativos indeterminados ou imprecisos («problemas de saúde», «dificuldades económicas», «alterações adversas das circunstâncias familiares» e «acentuada diminuição do rendimento familiar», os quais no entanto, não nos parece que sejam daqueles através dos quais o legislador atribui discricionariedade à Administração pois que não remetem para valorações próprias desta) e, mais do que isso, implica a formulação de um juízo de causalidade entre o circunstancialismo verificado e a venda da fracção autónoma [«(…)procedeu à venda da fracção devido(…)»: sublinhado nosso] e, do lado da estatuição, concede ao Chefe do Executivo um poder discricionário que resulta da utilização do conector deôntico «pode» e que é, justamente, o poder de dispensar o candidato à habitação social de satisfazer os requisitos a que aludem as alíneas 2) e 3) do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019.
  (ii)
  Alega o Recorrente que a Administração ao praticar o acto impugnado incorreu em violação dos princípios da boa fé, da cooperação e do inquisitório.
  Salvo o devido respeito, não nos parece.
  (ii.1.)
  Desde logo, quanto à invocação do princípio da boa fé, que o Recorrente, aliás, não substanciou minimamente, é muito óbvio que se se trata de um equívoco a sua invocação neste contexto, porquanto nada se indicia no sentido da respectiva violação.
  (ii.2.)
  (ii.2.1.)
  No que tange a alegada violação dos princípios da cooperação e do inquisitório, importa considerar o seguinte.
  Sabemos todos que, ao contrário do que acontece quando em está causa o controlo do exercício de poderes vinculados por parte da Administração, os poderes de fiscalização do tribunal administrativo relativamente à legalidade do exercício do poder discricionário não são plenos. Ao tribunal cabe apenas a sindicância do respeito por parte da Administração dos limites jurídicos ao exercício de tal poder e da observância dos critérios que constituem as condições jurídicas do seu exercício legítimo (seguimos de perto a lição de PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, 2020, p. 234).
  No que especificamente concerne aos critérios jurídicos do exercício do poder discricionário, a boa doutrina aponta no sentido de que um desses critérios é precisamente o conhecimento integral, exacto e correcto dos elementos de facto que se mostrem pertinentes à boa decisão administrativa (os outros são o exercício adequado do poder de apreciação e a exigência de respeito pelos princípios gerais da actuação administrativa). De acordo com este critério, «o agente administrativo tem, sempre, o dever de identificar e avaliar todas as circunstâncias e elementos relevantes ou pertinentes para se colocar em posição de exercer o seu poder discricionário» (assim, PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual…, p. 243) em obediência ao princípio segundo o qual o exercício desse poder tem de assentar no conhecimento correcto das circunstâncias de facto (assim, JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, in Comentários à Revisão do Código do Procedimento Administrativo, Coimbra, 2016, p. 135).
  Em rigor, o que está em causa é o efectivo exercício do poder de apreciação que a lei defere à Administração pois que isso implica como sua condição necessária «a tomada em consideração de todos os elementos e circunstâncias pertinentes da situação em causa». É isto mesmo que é imposto pela norma do n.º 1 do artigo 86.º do CPA: «O órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito», a qual, não sendo privativa das decisões proferidas no exercício de poderes discricionários, adquire aí uma importância fundamental e decisiva para um correcto exercício de tais poderes (continuamos a acompanhar a lição de PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual…, p. 244).
  Desta norma resulta que, no procedimento administrativo, ao contrário do sucede nos processos judiciais, não vigora o princípio dispositivo. Pelo contrário, rege o princípio do inquisitório. No mesmo sentido, aliás, aponto o disposto no artigo 59.º do CPA, de acordo com o qual, «os órgãos administrativos, mesmo que o procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados, podem proceder às diligências que considerem convenientes para a instrução (…)», sendo de interpretar o poder a que se refere o transcrito inciso legal como um verdadeiro poder-dever. Irreleva, pois, que a iniciativa procedimental tenha sido do particular. Mesmo aí, a Administração não deixa de estar legalmente vinculada ao esclarecimento tão exaustivo quanto possível dos pressupostos de facto da decisão, de tal modo que insuficiência na instrução, na medida em que possa reflectir-se na insuficiência da base factual indispensável à justa e legal decisão do procedimento, em especial a um adequado exercício do poder discricionário, não pode deixar de se repercutir de modo invalidante nessa decisão.
  (ii.2.2.)
  Apesar de a letra da norma do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019 poder inculcar que é ao interessado que cabe a comprovação das razões pelas quais vendeu a fracção autónoma adquirida no regime da habitação económica, a verdade é que assim não é, podendo antes dizer-se que essa disposição em nada se afasta do regime geral já decorrente do artigo 87.º, n.º 1 do CPA.
  Ainda que se trate de um procedimento da iniciativa do particular, é de reconhecer que a Administração tem de proceder às diligências necessárias ao completo esclarecimento da base factual indispensável à prolação de uma decisão justa e ao exercício correcto do poder discricionário. Ora, no caso, estamos modestamente em crer que a Administração desenvolveu o indispensável e possível esforço instrutório no sentido de apurar os factos alegados pelo Recorrente e eventualmente outros susceptíveis de integrarem os pressupostos da contidos na hipótese da norma do n.º 2 do artigo 8.º da Lei 17/2019, para, à sua luz, proferir a decisão discricionária que legalmente se impunha, nomeadamente, se o Recorrente, vendeu a casa devido a problemas de saúde ou dificuldades económicas tal como foi por ele alegado.
  O que aconteceu foi que, após a realização dessas diligências, a Administração concluiu no sentido negativo, ou seja, no sentido de que não estavam provados factos que justificassem a dita dispensa. Daí que a questão já não seja a da insuficiência da base factual necessária à prolação da decisão resultante de uma violação dos princípios da cooperação e do inquisitório, mas, antes, a de uma eventual falta de prova dos factos integradores dos pressupostos da actuação administrativa que, em todo o caso, não pode deixar de conduzir à improcedência do alegado vício do acto recorrido consistente na infracção daqueles princípios.
  (ii.3.)
  O Recorrente, para fundamentar a sua pretensão anulatória, também invocou o erro notório no exercício do poder discricionário, embora, se bem vemos, a questão que em rigor vem colocada é a de saber se a decisão administrativa enferma de erro nos pressupostos de facto por ter considerado que se não provaram os factos integradores dos pressupostos da dispensa da satisfação do disposto na alínea 2) do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019.
  Cremos, no entanto, que também neste ponto o Recorrente não tem razão. Pelo seguinte.
  Como acima referimos, a Administração levou a cabo as diligências instrutórias que se impunham e possíveis tendo em visto o cabal apuramento da factualidade relevante. Acresce que o Recorrente teve plena oportunidade para, em sede procedimental, primeiro, e processual contenciosa, depois, produzir a prova que lhe afigurasse oportuna.
  Sem prejuízo de reconhecermos a dificuldade da prova dos factos relevantes, a verdade é que, o respectivo ónus recaía sobre o Recorrente, pois que se tratam de factos constitutivos da sua pretensão de aceder à habitação social e isso significa que a falta de prova ou a dúvida quanto à realidade de determinado facto, reverte contra ele. O ónus da prova, como se sabe, uma regra de decisão que transforma uma situação de non liquet numa situação de liquet contra a parte onerada.
  Neste conspecto, parece-nos que são de salientar dois pontos que decorrem da análise da prova produzida e se nos afiguram decisivos, na exacta medida em que comprometem a possibilidade de formar um juízo sobre os factos que contrarie aquele a que chegou a Administração. procedência da pretensão do Recorrente.
  O primeiro é de que o Recorrente, com maior ou menor dificuldade, foi reembolsando a instituição bancária do dinheiro que esta lhe emprestou para a aquisição da fracção autónoma (cfr. documentos de fls. 39 a 45 dos presentes autos) e isso, a nosso ver, é demonstrativo de que, no ano de 2005, já não se justificaria, pelo menos aparentemente, a venda daquela fracção para liquidar um empréstimo que já estava liquidado.
  O segundo é o de que, naquele ano de 2005, o Recorrente, que nasceu em 17 de Junho de 1967, estava em plena idade activa, sem que se demonstre comprova que, nessa altura, tivesse qualquer problema de saúde incapacitante. Pelo contrário, aliás. Da prova procedimental colhida pela Administração resulta que nos anos de 2004 e 2005 o Recorrente não requereu qualquer apoio junto parte da Segurança Social. Ora, como é notório, a Região naquele ano já estava a entrar numa fase de crescimento económico acelerado que garantia uma situação de pleno emprego, incluindo no sector da construção civil, pelo que, com o empréstimo bancário já liquidado, o Recorrente, em princípio e à falta da demonstração de razões especiais, não deveria ter dificuldades económicas que justificassem a alienação da fracção autónoma.
  Deste modo, a partir da prova produzida, parece-nos acertada a conclusão da Administração que fundou o acto recorrido de que não se podem dar por demonstrados os factos indispensáveis à conclusão de que o Recorrente procedeu à venda da fracção autónoma que adquiriu no regime da habitação económica devido a problemas de saúde, dificuldades económicas, alterações adversas das circunstâncias familiares ou a acentuada diminuição do rendimento da família, tal como exigido por lei, ou, pelo menos, cremos que sempre será de considerar existir a esse propósito uma situação de dúvida inultrapassável quanto à verificação de tais factos, a qual tem de ser valorada contra o Recorrente, considerando-se tais factos como não provados, o que, na perspectiva da aferição da legalidade do acto recorrido, vai dar ao mesmo.
  3.
  Pelo exposto, deve ser julgado improcedente o presente recurso contencioso.».
  Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual integralmente aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta entendemos que o acto impugnado não enferma dos vícios que o Recorrente lhe assaca, sendo de negar provimento ao recurso contencioso.
  
  No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
  
IV. DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso mantendo-se a decisão recorrida.
  
  Custas a cargo do Recorrente fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 30 de Novembro de 2023

Rui Carlos dos Santos Pereira Ribeiro
(Relator)

Fong Man Chong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto)

Fui presente,
Álvaro António Mangas Abreu Dantas
(Delegado Coordenador)




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