Processo nº 681/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 07 de Dezembro de 2023
ASSUNTO:
- Caso julgado
SUMÁRIO:
- A apreciação de decisão sobre a legitimidade das partes precede o conhecimento da excepção do caso julgado.
- É procedente a excepção do caso julgado se, depois de ter sido instaurada acção por acidente de trabalho com base no mesmo acidente e nas mesmas lesões se vem reivindicar o direito a indemnização mas agora por alegados danos morais.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 681/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 07 de Dezembro 2023
Recorrente: A
Recorrida: Companhia de Seguros B Insurance (Hong Kong) Limited
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção de processo especial para efectivação de direitos resultantes do acidente de trabalho contra,
Companhia de Seguros B Insurance (Hong Kong) Limited, também, com os demais sinais dos autos,
Pedindo que:
1. Seja julgada integralmente procedente a presente petição inicial;
2. Seja a Ré condenada a pagar ao Autor, a título de indemnização pelos danos morais, uma quantia de MOP$1.000.001,00, acrescida de juros legais contados a partir da data da prolação da sentença;
Pelo Tribunal “a quo” foi proferido despacho a indeferir liminarmente a petição inicial.
Não se conformando com a decisão proferida vem o Autor interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões:
I. Incorrer no vício de errada interpretação da lei
- As prestações em espécie e em dinheiro, compreendidas no direito à reparação emergente de acidentes de trabalho, não fazem parte da indemnização por danos morais
- Privação do direito subjectivo do recorrente que se traduz no gozo do direito fundamental de ser indemnizado por danos morais causados pelo acidente de trabalho
- A acção anterior e a presente acção não são idênticas quanto ao pedido e à causa de pedir
- Improcedência da excepção dilatória de caso julgado
1. O despacho recorrido julgou procedente a excepção de caso julgado e rejeitou a presente acção com fundamento na repetição da causa;
2. Todos os pedidos formulados na acção de processo especial do trabalho (acidente de trabalho) n.º LB1-18-0281-LAE visaram obter o efeito jurídico da indemnização de natureza patrimonial, decorrente do facto concreto de serem causados danos patrimoniais pela causa de pedir, ou concretamente, pelas lesões sofridas pelo recorrente devido ao acidente de trabalho!
3. Na acção de processo especial do trabalho (acidente de trabalho) n.º LB1-18-0281-LAE, a recorrente nunca alegou, e o tribunal a quo não fez o julgamento de facto e de direito no âmbito da indemnização por danos não patrimoniais emergentes do referido facto concreto, e muito menos, procedeu ao conhecimento da indemnização por danos não patrimoniais;
4. De acordo com o art.º 27.º do DL n.º 40/95/M, o direito subjectivo do recorrente, ou seja, o direito à reparação gozado pelo empregado no caso de acidente de trabalho, compreende prestações em espécie e prestações em dinheiro;
5. Tanto a incapacidade temporária absoluta como a incapacidade permanente parcial pressupõem a redução e a perda de capacidade de trabalho, sendo que a indemnização correspondente se baseia nos danos patrimoniais e tem como unidade de cálculo o salário do empregado;
6. O objecto das prestações em espécie e em dinheiro compreendidas no direito subjectivo do empregado à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho, delimitado pelo DL n.º 40/95/M, nada dispõe sobre a indemnização por danos não patrimoniais/morais causados ao empregado pelas lesões derivadas do acidente de trabalho!
7. De acordo com a al. a) do art.º 3.º do DL n.º 40/95/M, os factos alegados nos art.ºs 1º a 3º da petição inicial da presente acção constituem acidente de trabalho;
8. No regime jurídico da reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais previsto pelo DL n.º 40/95/M, não se encontra qualquer solução para a indemnização por danos morais causados pelo acidente de trabalho ao sinistrado, ou seja ao autor, nem se dispõe a respeito da fixação da respectiva quantia indemnizatória;
9. A responsabilidade decorrente do acidente de trabalho ocorrido ao empregado faz parte da responsabilidade pelo risco;
10. Assim, deve ser reconhecido e protegido por lei o direito à indemnização por danos morais de que o Autor pretendeu gozar com base na responsabilidade pelo risco, isto é, a responsabilidade objectiva pelo acidente de trabalho (nos termos do art.º 489.º, n.º 1, aplicável por força do art.º 492.º do Código Civil);
11. Ao abrigo dos dispostos no art.º 30.º, n.º 1 da «Lei Básica» de Macau, aplicável por força do art.º 31.º, n.º 1 da Constituição da República Popular da China, nos art.ºs 16.º e 17.º do «Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos», aplicável por força do n.º 1 do art.º 40.º da «Lei Básica», e nos art.ºs 67.º, n.º 1 e n.º 2, 71.º, n.º 1 e 73.º, n.º 1 do Código Civil de Macau, aplicável por força do art.º 8.º da «Lei Básica», é inviolável o direito à integridade moral compreendido pelo direito à integridade física e psíquica, derivado dos direitos fundamentais de personalidade gozados pelo recorrente como residente permanente de Macau sob o princípio “um país, dois sistemas”!
12. Nos termos do art.º 4.º do DL n.º 40/95/M: “São responsáveis pela reparação e demais encargos previstos neste diploma as entidades patronais relativamente aos trabalhadores ao seu serviço, sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 17.º e no regime geral de segurança social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 58/93/M, de 18 de Outubro.”
13. Não se pode, com fundamento na falta de legislação relativa aos danos morais causados por acidentes de trabalho no DL n.º 40/95/M, privar o recorrente do direito à indemnização por danos morais, resultante do seu direito subjectivo e fundamental à integridade moral, compreendido pelo direito à integridade física e psíquica!
14. Assim, as lesões incluídas na causa de pedir da presente acção, e os factos concretos respeitantes aos danos morais delas resultantes, são completamente diferentes dos alegados na acção de processo especial do trabalho (acidente de trabalho) n.º LB1-18-0281-LAE;
15. Os pedidos formulados na presente acção são completamente diferentes dos apresentados na acção de processo especial do trabalho (acidente de trabalho) n.º LB1-18-0281-LAE, sendo a primeira destinada a obter o efeito jurídico de indemnização por danos morais, e a última destinada a obter o efeito jurídico de indemnização por danos patrimoniais.
16. O tribunal a quo disse que o recorrente tinha formulado pedido genérico na acção de processo especial do trabalho (acidente de trabalho) n.º LB1-18-0281-LAE;
17. Se calhar é correcto dizer que são genéricos os pedidos de “julgar que o período de incapacidade temporária absoluta do Autor deve contar-se desde o momento em que ficou ferido até à data de total recuperação ou, pelo menos, de melhoria evidente das lesões” e “condenar a Ré a pagar ao Autor a indemnização pela perda dos salários no período de incapacidade temporária absoluta, contado a partir de 3 de Junho de 2019 até à data de total recuperação ou, pelo menos, de melhoria evidente das lesões”, no entanto, esses dois pedidos não se basearam nos factos concretos respeitantes aos danos morais, alegados na presente acção, e não pretenderam obter o efeito jurídico de indemnização por danos morais;
18. Assim, os supracitados dois pedidos são completamente diferentes dos formulados na presente acção;
19. A sentença proferida na acção de processo especial do trabalho (acidente de trabalho) n.º LB1-18-0281-LAE não fixou oficiosamente a quantia da indemnização por danos morais emergentes do acidente de trabalho conforme o art.º 42.º, n.º 3 do CPT, não assegurou o julgamento do direito subjectivo à integridade moral do recorrente, compreendido pelo seu direito à integridade física e psíquica e violado pelo acidente de trabalho em causa, e não garantiu tal direito do recorrente!
20. Salvo o devido respeito, a presente acção é apenas idêntica à acção de processo especial do trabalho (acidente de trabalho) n.º LB1-18-0281-LAE quanto aos sujeitos, mas não ao pedido e à causa de pedir, não se verificando, assim, a repetição da causa prevista pelos art.ºs 413.º, al. j), 416.º, n.º 1, 417.º, n.º 1, n.º 3 e n.º 4 do CPC;
21. O despacho recorrido incorreu no vício de errada interpretação da lei por violar o art.º 30.º, n.º 1 da «Lei Básica» de Macau, aplicável por força do art.º 31.º, n.º 1 da Constituição da República Popular da China, os art.ºs 16.º e 17.º do «Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos», aplicável por força do n.º 1 do art.º 40.º da «Lei Básica», os art.ºs 67.º, n.º 1 e n.º 2, 71.º, n.º 1 e 73.º, n.º 1 do Código Civil, e 413.º, al. j), 416.º, n.º 1, 417.º, n.º 1, n.º 3 e n.º 4 do CPC, ambos aplicáveis por força do art.º 8.º da «Lei Básica».
II. Incorrer no vício de errada interpretação da lei
- A caducidade prevista na al. a) do n.º 1 do art.º 59.º do DL n.º 40/95/M não se pode aplicar na presente acção
- O direito à reparação emergente de acidentes de trabalho é um direito disponível que integra o direito à indemnização por danos patrimoniais
- O direito à indemnização por danos morais emergentes de acidentes de trabalho é um direito disponível
- Há lacuna da lei quanto ao direito à indemnização por danos morais emergentes de acidentes de trabalho
- Aplicação analógica do Código Civil para integrar a lacuna da lei – norteia-se pelo princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador
- Aplicabilidade do regime jurídico de prescrição ao direito à indemnização por danos morais emergentes de acidentes de trabalho
- O prazo da prescrição de 3 anos deve contar-se a partir da data em que o recorrente tomou conhecimento da sua cura clínica
22. O despacho recorrido rejeitou oficiosamente a presente acção com fundamento na verificação de caducidade;
23. No caso sub judice, o direito subjectivo à indemnização por danos morais emergentes de acidentes de trabalho já se encontra previsto no art.º 1.º do DL n.º 40/95/M, mas não é aplicável o disposto no art.º 59.º, n.º 1, al. a), isto porque, o DL n.º 40/95/M não estabeleceu qualquer critério para o respectivo direito, existindo, assim, lacuna da lei!
24. Obviamente, de acordo com o art.º 9.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Civil, só se pode aplicar por analogia os dispostos nos art.ºs 477.º a 492.º do mesmo Código para integrar a lacuna relativa ao exercício do direito subjectivo à indemnização por danos morais emergentes de acidentes de trabalho, por se encontrarem estipuladas no n.º 1 do art.º 491.º as regras gerais da prescrição da responsabilidade civil;
25. Dito por outra palavra, ao direito subjectivo à indemnização por danos morais emergentes de acidentes de trabalho ora em questão não é aplicável a caducidade prevista no art.º 59.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 40/95/M, devendo-se recorrer ao n.º 1 do art.º 491.º do Código Civil para integrar a respectiva lacuna;
26. Nos termos do art.º 296.º, n.º 1, a contrario sensu, do Código Civil, o tribunal não conhece, de ofício, da prescrição;
27. A respeito do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, o Dr. Miguel Pacheco Arruda Quental, da Universidade de Macau, tem o seguinte entendimento: “
1.7. Princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador·
Na senda do que tem vindo a ser defendido numa “perspectiva tradicional” poder-se-á dizer que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, também designado por favor laboratoris, encontra o seu fundamento no próprio carácter histórico “protecionista” do Direito do Trabalho.
Já anteriormente se sublinhou que a “lógica global” do Direito do Trabalho se destina à protecção do trabalhador, traduzida na consagração de um conjunto de normas imperativas mínimas, ou que estabeleçam condições mínimas para a parte mais fraca da relação laboral, isto é, para o trabalhador.
Ora, uma primeira manifestação do princípio do favor laboratoris traduz-se no plano das fontes do Direito do Trabalho ou, mais concretamente, no plano da hierarquia das normas que o formam.
Neste sentido, estabelecendo as normas laborais, seja qual for a sua fonte, uma protecção mínima para o trabalhador, tal significa que as mesmas são imperativas, não podendo ser modificadas, mesmo por vontade das partes, sempre que da sua alteração resulte uma protecção menor (dita menos favorável) para o trabalhador do que a resultante da norma legal.
Ao invés, à partida, será válido que a generalidade das normas laborais admitam uma modificação do respectivo conteúdo para melhor (em sentido mais favorável) tomando “mais consistente” a protecção conferida ao trabalhador.
Convocado o princípio do favor laboratoris para o campo da hierarquia das normas, resulta que as normas de grau superior (v.g., a lei) podem ser derrogadas por normas de grau inferior (v.g., acordo celebrado entre empregador e trabalhadores), desde que estas dispunham em sentido mais favorável para o trabalhador, a não ser que das primeiras resulte a proibição da sua alteração.
O mesmo é dizer que as fontes inferiores “prevalecem” sobre as fontes superiores na medida em que estabeleçam um tratamento mais favorável para o trabalhador.
De volta ao exemplo, se por acordo entre trabalhadores e empregador for fixado o período normal de trabalho em 40 noras, tal acordo deverá prevalecer sobre a norma legal que fixa aquele mesmo período em 48 horas (art.º 33.º, n.º 1), na medida em que o acordo, não obstante provir de uma fonte inferior, consagra um regime mais favorável para os trabalhadores do que o consagrado na fonte superior, isto é, na Lei das Relações de Trabalho.
Num outro sentido, tendo igualmente em conta a concreta natureza protectora das normas de Direito do Trabalho, uma outra conclusão que ao nível da interpretação das normas se poderá extrair do princípio do favor laboratoris será a de que, se após o recurso aos critérios normais da interpretação jurídica subsistirem dúvidas quanto à natureza de uma determinada norma, isto é, em saber se a mesma admite uma modificação ao seu conteúdo por uma norma de hierarquia inferior, deverá entender-se que a norma admite uma alteração desde que em sentido mais favorável ao trabalhador.
Do mesmo modo, se concluído o processo interpretativo subsistirem dúvidas sobre o alcance de uma determinada norma, deverá preferir-se, de entre as diversas soluções possíveis, a que se revele mais benéfica para o trabalhador68.”
28. Na ausência de disposição legal a respeito do direito à indemnização por danos morais emergentes de acidentes de trabalho, segundo o princípio do mais favorável previsto no art.º 4.º da Lei n.º 7/2008, e atendendo aos art.ºs 291.º, 299.º, 302.º e 491.º do Código Civil, está sujeito a prescrição o referido direito que a lei não declare isento de prescrição;
29. A Prof.ª Ana Prata, de Portugal, tem o seguinte entendimento sobre o direito indisponível: “
Direito indisponível
(Dir. Civil) - Direito que não é susceptível de ser objecto de actos de disposição por parte do seu titular, isto é, direito relativamente ao qual a vontade do titular é ineficaz para a sua transmissão ou extinção. Os direitos de personalidade só são disponíveis na medida em que tal não contrarie a ordem pública, uma proibição legal ou os bons costumes (v. Artigo 81.º. e 340.º., CC).
Determina o artigo 354.º., CC, que «a confissão não faz prova contra o confitente [...] se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis».
V. indisponibilidade; Acto de disponsição; Ordem pública; Bons costumes; Direitos de personalidade; Consentimento do lesado; Confissão.”
30. Como é sabido, o direito à integridade física e psíquica, derivado dos direitos de personalidade, é um direito indisponível (nos termos dos art.ºs 67.º, n.º 1 e 71.º, n.º 1 do Código Civil), ao qual se aplica o regime de prescrição previsto nos art.ºs 477.º e 491.º do mesmo Código quando for ilicitamente ofendido;
31. No caso sub judice, o direito à indemnização por danos morais baseia-se na ofensa do direito à integridade física e psíquica, pelo que ainda se discute se tal direito é disponível ou indisponível;
32. Por um lado, entende-se que está em causa um direito disponível porque o titular do direito à indemnização por danos morais pode chegar à transacção ou renunciar ao seu direito;
33. Por outro lado, entende-se que é indisponível o direito à indemnização por danos morais por derivar do direito à integridade física e psíquica, que por sua vez, é um direito indisponível;
34. Obviamente, o actual regime jurídico da RAEM aceita a disponibilidade do direito à indemnização por danos morais, senão, nos processos penais de ofensas corporais causadas por acidentes de viação ocorridos na RAEM – nos quais foram os arguidos acusados da prática do crime de ofensas à integridade física por negligência – como é que se pode, através de acordo transacional, proceder à homologação judicial da desistência da queixa e do acordo transacional, respectivamente na parte penal e na parte civil (conforme o art.º 1173.º do Código Civil)!
35. Assim, é errado o entendimento do despacho recorrido de que o direito subjectivo à reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho – ou seja o direito à indemnização por danos patrimoniais – previsto no DL n.º 40/95/M, é um direito indisponível, e mesmo o regime da caducidade previsto pelo art.º 59.º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma não implica necessariamente a indisponibilidade do referido direito, senão, não há lugar ou margem para qualquer conciliação/transacção em todos os processos especiais do acidente de trabalho;
36. A errada interpretação feita pelo despacho recorrido no sentido de ser indisponível o supracitado direito à reparação já violou os art.ºs 1172.º e 1173.º do Código Civil, bem como o regime jurídico de homologação do acordo transacional obtido na tentativa de conciliação previsto pelos art.ºs 53.º e 54.º do CPT, incorrendo, assim, no vício de errada interpretação da lei.
37. O direito à indemnização por danos morais emergentes do acidente de trabalho, gozado pelo recorrente como empregado, é um direito disponível que a lei não declare isento de prescrição, sendo assim aplicável o regime jurídico de prescrição no prazo de 3 anos (conforme o art.º 291.º, n.º 1 do Código Civil)!
38. Ao mesmo tempo, atendendo a que o prazo de caducidade só se conta a partir da “data da cura clínica” prevista pelo art.º 59.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 40/95/M, deve-se entender, em harmonia com o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador previsto no art.º 4.º da Lei n.º 7/2008, que o prazo prescricional de 3 anos da indemnização por danos morais emergentes de acidentes de trabalho só se conta a partir da data em que o recorrente tomou conhecimento da “data da cura clínica” das suas lesões causadas pelo acidente de trabalho (conforme o art.º 491.º, n.º 1 do Código Civil)!
39. O Tribunal da Relação de Coimbra de Portugal disse o seguinte no seu acórdão n.º 20/19.1T8CVL.C1: “IV - Este entendimento ficou reforçado com a redacção dada ao artº 32º, nº 1, da Lei 100/97, ao exigir que a “data da alta clinica” seja “formalmente comunicada ao sinistrado”. V - O mesmo acontecendo no domínio da LAT/2009 - não estando em causa uma situação de morte, o direito de ação caduca no prazo de um ano a contar da alta clínica “formalmente comunicada ao sinistrado” – artº 179º, nº 1, citado. VI - O prazo de caducidade do direito de acção só começa a correr depois da efectiva entrega ao sinistrado do boletim da alta elaborado na forma legal, não bastando o mero conhecimento por parte deste de que lhe foi conferida a alta ... “Esta norma estabelece um prazo de caducidade do direito de acção, o qual - no caso do direito da autora - começa a correr a partir da data da alta clinica formalmente comunicada ao sinistrado. Ou seja, não basta que a sinistrada tenha recebido alta, antes é necessária a sua comunicação formal, comunicação essa que deve ter lugar, a nosso ver, nos termos previstos no art. 32.º do DL n.º 143/99, de 30/4 (diploma legal que regulamentou a LAT de 1997) - Deste sentido v., entre outros, o Ac. desta Relação de 4-6-2009, proc. 309/07.2TTTMR.C1, e o Ac. do STJ de 10-7-2013, proc. 941/08.7TTGMR.P1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.”
40. Segundo a jurisprudência acima referida, a supracitada “data da cura clínica” presume-se conhecida pelo recorrente na data em que lhe foi comunicada, por escrito, a cura clínica das lesões sofridas por ele.
41. Face à falta da aludida comunicação, quer na presente acção, quer na acção de processo especial do trabalho (acidente de trabalho) n.º LB1-18-0281-LAE, a simples “avaliação da deficiência” não basta para reconhecer a “data da cura clínica” das lesões sofridas pelo recorrente;
42. Não tendo sido cumprido o referido dever de comunicação, como é que podia o recorrente saber que estava clinicamente curado das lesões sofridas!
43. Como é sabido, o dever de comunicação deriva do princípio da boa fé, e visa comunicar, de modo honesto, ao recorrente que se encontra na situação jurídica de estar clinicamente curado das suas lesões, e em consequência, deixar ele saber que pode exercer o direito subjectivo à indemnização por danos patrimoniais e morais emergentes do acidente de trabalho, e dos respectivos limites no seu exercício!
44. Deste modo, não se pode, apenas com base na “avaliação da deficiência” realizada ao recorrente, retirar a ilação de que é necessariamente impossível a sua recuperação completa, nem equiparar a data da realização da “avaliação da deficiência” à data da cura clínica, para privar do recorrente o seu direito, fundamental e subjectivo, à indemnização por danos morais;
45. Deve-se usar o aludido princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador para interpretar a lei acima referida, e em consequência, adoptar a interpretação mais favorável ao exercício do direito à indemnização por danos morais, gozado pelo recorrente, no sentido de poder o recorrente intentar acção judicial no prazo de 3 anos a contar a partir da data da comunicação escrita de que estar clinicamente curado das lesões e o seu direito à indemnização prescrever no prazo de 3 anos, isto porque, os empregados fazem parte dos grupos sociais carenciados e não têm qualquer conhecimento jurídico!
46. In casu, ao direito à indemnização por danos morais emergentes do acidente de trabalho em causa não se aplica directamente o regime de caducidade previsto pelo art.º 59.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 40/95/M, e ao abrigo dos dispostos no art.º 4.º da Lei n.º 7/2008, e nos art.ºs 71.º, n.º 1, 291.º, n.º 1, 477.º a 492.º do Código Civil, aplicáveis por força do art.º 9.º, n.º 1 e n.º 2 do mesmo Código, o direito à indemnização por danos morais prescreve no prazo de 3 anos a contar a partir da “data da cura clínica” prevista pelo art.º 59.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 40/95/M.
47. Assim, o despacho recorrido violou o regime de caducidade previsto pelo art.º 59.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 40/95/M, e ao abrigo dos dispostos no art.º 4.º da Lei n.º 7/2008, e nos art.ºs 71.º, n.º 1, 291.º, n.º 1, 477.º a 492.º do Código Civil, aplicáveis por força do art.º 9.º, n.º 1 e n.º 2 do mesmo Código, incorreu no vício de errada interpretação da lei por ter conhecido oficiosamente de matéria a que não seja aplicável o regime de caducidade.
III. Incorrer no vício de errada interpretação da lei
- Os danos emergentes do acidente de trabalho ocorrido ao empregado, que integram a responsabilidade pelo risco, incluem necessariamente os danos morais
- É inviolável o direito fundamental do empregado, ou seja o direito à integridade física e psíquica derivado dos direitos de personalidade
- O seguro de acidentes de trabalho pertence ao seguro obrigatório de responsabilidade civil e abrange a indemnização por danos morais
- Efectuar a interpretação jurídica do DL n.º 40/95/M conforme o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador
- Efectuar a interpretação jurídica da Portaria n.º 237/95/M conforme o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador
- Improcedência da excepção dilatória de ilegitimidade passiva da recorrida
48. O despacho recorrido rejeitou a presente acção com fundamento na ilegitimidade passiva da recorrida;
49. Transcreve-se, a seguir, o Certificado de Seguro (Certificate of Insurance) emitido pela recorrida, constante das fls. 13 do Doc. 1-1 da petição inicial, na sua íntegra: “
CERTICATE OF lNSURANCE
This is to certify that the following insurance has been effected by the insured in accordance with tenns and conditions of our standard policy:
Certificate No. : …
Policy No. : …
Class of insurance : Employees' Compensation Insurance
Applicable Regulations: Decree-Law No. 40/95/M of 14/08/1995 and aH Ir s supplementary and relevante Employees' Compensation Insurance Execultive Orders
Insured : C Resort (Macau) S.A. andlany owned, controlled, associated, affiliated, joint venture, ou any subsidiary companies or corporations as now or may hereinafter be constituted or acquired inc1uding in partnership or joint ventures as their respective rights and interests may appear
Place of Employment : Anywhere within in Macau SAR
Business : All activities of the Insured inc1uding but no limited to :
Gaming, Hotel, Hospitallity, Food & Beverage, Entertainment and Retail Shopping
Period of Insurance : 16 April2017 (00:00) unti115 April2018 (24:00), both days inclusive - local Macau time
No. of Insured Employees : All Staff
Est. Total Earning : MOP 4,647,302,822
Extension : Automatic Cover Clause
For and on behalf of
B Insurance (Hong Kong) Limited
Authorized Signature
Date: 10 May 2017”
50. No acórdão n.º 60/2012, o TUI fixou o seguinte entendimento a respeito da fixação de indemnização por danos morais em sede do seguro obrigatório de responsabilidade civil: “
Nos termos do art.º 492.º do Código Civil de Macau, “são extensivas aos casos de responsabilidade pelo risco, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos”.
Daí que, para determinar a quantia indemnizatória a título de danos não patrimoniais, á aplicável o disposto no art.º 489.º do Código Civil de Macau, que tem o seguinte teor: …
Por sua vez, manda o art.º 487.º atender ao grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Ora, os danos não patrimoniais são os prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado, mas que podem ser compensados com uma obrigação pecuniária imposta ao lesante, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.
A lei limita os danos não patrimoniais àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
E a reparação obedecerá ao critério de equidade, tendo em conta as circunstâncias concretas de cada caso, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, aos patrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, etc.. 2
No caso em apreciação, a fixação da indemnização foi com base na responsabilidade objectiva ou pelo risco, uma vez que ficou afastada a culpa do arguido.
Tal facto não pode deixar de ser ponderado na fixação do montante dos danos não patrimoniais.3”
51. O Prof. Manuel Trigo da Universidade de Macau ensinou o seguinte: “Discutia-se se se devem indemnizar os danos não patrimoniais343. Contra invocava-se a dificuldade da determinação do valor do dano, dada a insusceptibilidade de avaliação pecuniária e a sua tendencial fixação arbitrária, pelo que se tornaria uma verdadeira pena privada, que a indemnização dos danos não patrimoniais seria imoral e corresponderia a uma perspectiva materialista da responsabilidade civil e da vida. Sendo inequívoca a opção pela ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, em favor, e refutando a argumentação contrária, vale a pena dizer que, primeiro, sempre se poderá deparar com alguma dificuldade na determinação do dano indemnizável, como sucede já com os danos patrimoniais, devendo o tribunal decidir equitativamente dentro do que tiver como provado, além de que aquilo de que aqui se trata é da compensação pelos danos sofridos; segundo, que a responsabilidade civil não tem uma função meramente reparadora mas também de sanção, sendo muito mais imoral não compensar os lesados, premiando os lesantes que tivessem actuado ilícita e censuravelmente, até porque o montante da indemnização será fixado equitativamente. Nos termos do art.º 489.º, …, ao prevêr-se no n.º 3, 1.ª parte, que a indemnização será fixada equitativamente pelo tribunal.”
52. É de salientar mais uma vez que, ao abrigo dos dispostos no art.º 30.º, n.º 1 da «Lei Básica» de Macau, aplicável por força do art.º 31.º, n.º 1 da Constituição da República Popular da China, nos art.ºs 16.º e 17.º do «Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos», aplicável por força do n.º 1 do art.º 40.º da «Lei Básica», e nos art.ºs 67.º, n.º 1 e n.º 2, 71.º, n.º 1 e 73.º, n.º 1 do Código Civil de Macau, aplicável por força do art.º 8.º da «Lei Básica», é inviolável o direito à integridade moral compreendido pelo direito à integridade física e psíquica, derivado dos direitos fundamentais de personalidade gozados pelo recorrente como residente permanente de Macau sob o princípio “um país, dois sistemas”!
53. Obviamente, os danos causados ao empregado pelo acidente de trabalho são regulados pelo DL n.º 40/95/M, do qual não consta qualquer norma relativa ao alcance dos danos morais/não patrimoniais compreendidos pelos referidos danos, pelo que, de acordo com o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador estabelecido no art.º 4.º da Lei n.º 7/2008, deve-se aplicar, subsidiariamente, o art.º 489.º do Código Civil, aplicável por força do art.º 492.º do mesmo Código, para fixar a indemnização por danos morais;
54. Ao mesmo tempo, as “prestações em espécie de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica e hospitalar, necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho da vítima e à sua recuperação para a vida activa”, previstas no art.º 3.º da Portaria n.º 237/95/M, devem ser interpretadas extensivamente segundo o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador previsto no art.º 4.º da Lei n.º 7/2008, como prestações em espécie (em dinheiro) incluindo a fixação duma quantia indemnizatória pelos danos morais destinada ao restabelecimento do estado psíquico e mental do empregado;
55. Salvo o devido respeito, não pode o despacho recorrido, apenas com base no art.º 4.º do DL n.º 40/95/M, segundo o qual são responsáveis pelos encargos previstos neste diploma os empregadores, fazer uma interpretação a sensu contrario do mesmo artigo e excluir a cobertura do risco no seguro de acidentes de trabalho comprado pelo empregador para seus trabalhadores, o que violará completamente o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador previsto no art.º 4.º da Lei n.º 7/2008, e há que entender que, para a plena garantia jurídica relativa aos danos emergentes da responsabilidade pelo risco, deve-se aplicar, subsidiariamente, o art.º 489.º do Código Civil, aplicável por força do art.º 492.º do mesmo Código, à indemnização por danos morais emergentes dos acidentes de trabalho ocorridos aos trabalhadores;
56. O n.º 1 do art.º 28.º do DL n.º 40/95/M, ou seja “as prestações em espécie visam o restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da vítima”, deve ser interpretado extensivamente segundo o art.º 4.º da Lei n.º 7/2008, no sentido de a responsabilidade civil pelo risco resultante de acidentes de trabalho visar reparar os danos para o restabelecimento da saúde (mental ou psíquica) do trabalhador, isto porque, o direito à integridade física e psíquica é composto pela saúde física e pela saúde psíquica!
57. Salvo o devido respeito, o despacho recorrido incorreu no vício de errada interpretação da lei por violar o art.º 30.º, n.º 1 da «Lei Básica» de Macau, aplicável por força do art.º 31.º, n.º 1 da Constituição da República Popular da China, os art.ºs 16.º e 17.º do «Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos», aplicável por força do n.º 1 do art.º 40.º da «Lei Básica», os art.ºs 9.º, n.º 1 e n.º 2, 67.º, n.º 1 e n.º 2, 71.º, n.º 1, 73.º, n.º 1, 492.º e 489.º do Código Civil, aplicável por força do art.º 8.º da «Lei Básica», os art.ºs 1.º e 4.º do DL n.º 40/95/M, e o art.º 4.º da Lei n.º 7/2008;
58. É irrefutável que, a responsabilidade civil pelo risco resultante de acidentes de trabalho compreende, necessariamente, os danos patrimoniais e não patrimoniais, os quais se encontram completamente no âmbito legal dos danos emergentes dos acidentes de trabalho, previsto no art.º 1.º do DL n.º 40/95/M;
59. Ao abrigo dos dispostos no art.º 2.º, al.s a), d), e), m) e o) do DL n.º 40/95/M, e no art.º 962.º do Código Comercial, o segurado é o empregado, ora recorrente, o tomador do seguro é a empregadora dele, C Resorts (Macau), S.A., e a seguradora é a ora recorrida;
60. Existe entre eles a relação jurídica segundo a qual é transferida para a recorrida a responsabilidade pelo risco assumida pela empregadora perante todos os danos causados ao empregado pelo acidente de trabalho, a empregadora obriga-se a pagar o prémio à recorrida, e a recorrida assume a responsabilidade de indemnizar o empregado pelos danos causados a ele;
61. O valor pretendido pelo recorrente é de apenas MOP$1.000.001,00, enquanto o valor coberto pelo supracitado contrato de seguro de acidente de trabalho é de MOP$4.647.302.822, pelo que o recorrente não precisa de intentar a presente acção contra a sua empregadora!
62. O âmbito legal do contrato de seguro de acidente de trabalho em causa abrange os danos morais, e a tese defendida pelo despacho recorrido, no sentido de não ter a recorrida legitimidade passiva, não é fundamentada e violou o art.º 30.º, n.º 1 da «Lei Básica» de Macau, aplicável por força do art.º 31.º, n.º 1 da Constituição da República Popular da China, os art.ºs 16.º e 17.º do «Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos», aplicável por força do n.º 1 do art.º 40.º da «Lei Básica», os art.ºs 9.º, n.º 1 e n.º 2, 67.º, n.º 1 e n.º 2, 71.º, n.º 1, 73.º, n.º 1, 492.º e 489.º do Código Civil, aplicável por força do art.º 8.º da «Lei Básica», os art.ºs 1.º e 2.º, al.s a), d), e), m) e o) do DL n.º 40/95/M, os art.ºs 962.º e 4.º do Código Comercial, o art.º 4.º da Lei n.º 7/2008 e o art.º 58.º do CPC, incorrendo, assim, no vício de errada interpretação da lei.
Contra-alegando veio a Recorrida apresentar as seguintes conclusões de recurso:
1. Salvo o devido respeito, a recorrida não concorda com os fundamentos e entendimentos do recorrente.
2. Em primeiro lugar, o DL n.º 40/95/M é um regime da responsabilidade extracontratual especialmente estabelecido pelo legislador, com dispensa do requisito de culpa exigido pelo regime geral da responsabilidade extracontratual previsto no art.º 477.º do Código Civil, e traduz-se numa modalidade de responsabilidade pelo risco.
3. Nos seus art.ºs 28.º, e 46.º a 50.º, o DL n.º 40/95/M regulou expressamente o conteúdo, a forma de cálculo e o limite máximo das prestações compreendidas pelo direito à reparação.
4. Apresenta-se muito expressa a intenção do legislador, que definiu claramente a forma de cálculo da reparação a que tem direito o empregado lesado, segundo a qual sem necessidade de decisão judicial, a seguradora tem que calcular quinzenalmente e pagar com antecipação as prestações, para que o empregado lesado possa obter protecção básica de vida durante a recuperação.
5. Nos art.ºs 492.º a 503.º do Código Civil, a responsabilidade pelo risco limita-se aos casos de danos causados por comissão, por Estado ou órgãos, agentes ou representantes das outras pessoas colectivas públicas, por animais, por veículos, e por instalações de energia eléctrica ou gás.
6. A responsabilidade pelo risco regulada nos art.ºs 492.º e segs. do Código Civil causa o resultado de ter o lesado direito à indemnização.
7. Pode o lesado, ao abrigo dos dispostos nos art.ºs 556.º e segs., e 489.º do Código Civil, deduzir o pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais contra aqueles que se responsabilizam pelos mesmos danos.
8. Daí que, a responsabilidade pelo risco regulada nos art.ºs 492.º e segs. do Código Civil não impõe ao responsável o pagamento prévio da indemnização ao lesado num determinado período após a ocorrência do acidente, o qual deve ser requerido por iniciativa do lesado, e se for necessário, será solicitada a indemnização por via judicial, e só as sentenças judiciais têm força obrigatória em relação à seguradora.
9. Obviamente, são duas coisas diferentes o direito à reparação resultante de acidentes de trabalho, regulado pelo DL n.º 40/95/M, e o direito à indemnização resultante da responsabilidade pelo risco, regulado pelo art.º 492.º e segs. do Código Civil.
10. No que diz respeito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, o legislador estabeleceu, através do DL n.º 40/95/M, um regime perfeito, incluindo a definição do âmbito da indemnização pelos danos emergentes de acidentes de trabalho.
11. Ao abrigo dos dispostos nos art.ºs 3.º, al.s a), g), h), i), 4.º, 27.º, 28.º, e 46.º a 52.º do DL n.º 40/95/M, o direito à reparação resultante de acidentes de trabalho compreende apenas as prestações em espécie destinadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da vítima, e as prestações em dinheiro destinadas à indemnização por incapacidade temporária, incapacidade permanente ou morte.
12. Porém, os factos alegados pelo recorrente na presente acção e a indemnização por danos morais pretendida por ele não se encontram no âmbito do direito à reparação emergente de acidentes de trabalho, previsto pelo DL n.º 40/95/M.
13. Por outro lado, o recorrente, com fundamento em sofrer de dores, ansiedade, insónia, e influência psicológica, entre outros danos, devido às lesões causadas pelo acidente de trabalho, pediu para condenar a recorrida a pagar-lhe a “indemnização por danos morais”, conforme os dos art.ºs 3.º, al. a) e 4.º do DL n.º 40/95/M, e 492.º, n.º 1 e 489.º, n.º 1 do Código Civil.
14. O recorrente qualificou como danos morais as dores, a ansiedade, a insónia e a influência psicológica que sofreu por causa das lesões causadas pelo acidente de trabalho, no entanto, esses chamados “danos morais” são completamente enquadráveis nos art.ºs 71ºd), 72º, 78ºb) ou c) da tabela de incapacidades anexa ao DL n.º 40/95/M, e podem ser calculados na indemnização da incapacidade permanente conforme o mesmo diploma, mas não na “indemnização por danos morais” genericamente qualificada pelo recorrente.
15. Relativamente ao acidente de trabalho alegado na petição inicial, o recorrente já solicitou indemnização da incapacidade à recorrida através do processo especial do acidente de trabalho n.º LB1-18-0281-LAE, cuja sentença já transitou em julgado; pelo que os pedidos formulados pelo recorrente na presente acção são idênticos aos deduzidos no processo especial do acidente de trabalho n.º LB1-18-0281-LAE.
16. Por outro lado, na acção n.º LB1-18-0281-LAE, apenas se provou que devido ao acidente de trabalho em questão, o recorrente sofreu contusões nos tecidos moles da cintura, da coxa esquerda, e do tornozelo esquerdo, e ainda sente dores na coxa esquerda, mas não foi provado o nexo de causalidade entre as outras lesões e o acidente, nem a restrição de mobilidade provocada pelas lesões.
17. Ao mesmo tempo, atendendo ao resultado do exame médico realizado no referido processo e à fixação da incapacidade para o trabalho realizada no seu apenso, tanto o exame médico, como a perícia, não revelaram que o recorrente, por causa das supracitadas lesões, sofreu das doenças mentais de estado de ansiedade, depressão ou tentativa de suicídio.
18. O recorrente invocou, tanto na presente acção, como na acção n.º LB1-18-0281-LAE, o acidente de trabalho ocorrido no dia 4 de Junho de 2017, e alegou que o acidente causou-lhe lesões no pé esquerdo, na perna esquerda, no osso ilíaco, no ísquio, no cotovelo esquerdo e nas vértebras lombares.
19. Na presente acção, o recorrente acresceu o facto de derivar das referidas lesões (sobretudo a protuberância discal lombar e mudanças degenerativas das vértebras lombares) doenças mentais tais como estado de ansiedade, dores, inconveniência de mobilidade, depressão e tentativa de suicídio, no entanto, na acção n.º LB1-18-0281-LAE, apenas se provou que devido ao acidente de trabalho em questão, o recorrente sofreu contusões nos tecidos moles da cintura, da coxa esquerda, e do tornozelo esquerdo, e ainda sente dores na coxa esquerda, mas os outros problemas encontrados na cintura do recorrente (sobretudo as mudanças degenerativas das vértebras lombares e a protuberância discal lombar/sacral) não tinham nexo de causalidade com o acidente de trabalho.
20. As doenças mentais incluindo estado de ansiedade, dores, inconveniência de mobilidade, depressão e tentativa de suicídio, pretendidas pelo recorrente na presente acção, pressupõem necessariamente o nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as mudanças degenerativas das vértebras lombares e a protuberância discal lombar/sacral, pelo que a causa de pedir na acção n.º LB1-18-0281-LAE já incluiu a causa de pedir na presente acção, verificando-se, assim, identidade de causa de pedir.
21. Ao abrigo dos dispostos nos art.ºs 416.º e 417.º do CPC, o processo especial do acidente de trabalho n.º LB1-18-0281-LAE e a presente acção são idênticos quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, pelo que verificam-se a repetição da causa e a excepção de caso julgado; assim, ao abrigo dos dispostos nos art.ºs 230.º, n.º 1, al. e) e 413.º, al. j) do CPC, deve ser indeferida a petição inicial do recorrente.
Da caducidade
22. Salvo o devido respeito, a recorrida não concorda com os fundamentos e entendimentos do recorrente.
23. Para a reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, o legislador estabeleceu especialmente um regime da responsabilidade extracontratual, isto é, o DL n.º 40/95/M, do qual constam disposições especiais a respeito do direito à reparação.
24. Ao abrigo dos dispostos no art.º 59.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 40/95/M, o direito à reparação emergente de acidentes de trabalho caduca no prazo de dois anos a contar da data da cura clínica do sinistrado.
25. Ao abrigo dos dispostos no art.º 12.º do DL n.º 40/95/M, considera-se que há cura clínica quando as lesões ou a doença desapareceram totalmente ou se apresentam como insusceptíveis de modificação com adequada terapêutica.
26. Trata-se da segunda acção intentada pelo recorrente para solicitar indemnização pelos danos causados pelo acidente de trabalho ocorrido no dia 4 de Junho de 2017, quer dizer, até à data da propositura da presente acção, já decorreram mais de 5 anos.
27. No âmbito do processo especial do acidente de trabalho n.º LB1-18-0281-LAE, o recorrente recebeu, no dia 22 de Junho de 2017, o boletim da alta emitido pelo Hospital Kiang Wu, e tomou conhecimento da sua recuperação. (vide as fls. 73 dos autos do processo n.º LB1-18-0281-LAE)
28. Por outro lado, tal como referiu o Juiz a quo no despacho de indeferimento liminar: “…o Ministério Público esperou, na fase conciliatória, pela recuperação do Autor, e só procedeu ao exame médico depois. Para o efeito, através dos despachos constantes das fls. 203, 204, 205, 209, 210 e 213 dos autos do referido processo, o MP tinha indagado o tempo de recuperação do Autor, e acabou por obter resposta no relatório pericial no sentido de o Autor necessitar de 6 meses (ou seja até 4 de Dezembro de 2017) para se recuperar. Só depois de ter confirmado o tempo de recuperação é que o MP tinha condições para organizar o exame médico (fls. 218 dos autos do referido processo), proceder à avaliação da incapacidade permanente parcial, e notificar o Autor do resultado do exame médico (fls. 221 dos autos do referido processo). Mesmo que a aludida data de recuperação ainda não for considerada como data da cura, salvo o devido respeito por opinião diferente, este Juízo entende que, pelo menos, a data da realização do exame médico (4 de Julho de 2019) deve ser considerada como data da cura do Autor, isto porque, faz parte do exame médico avaliar o grau de desvalorização da incapacidade permanente parcial do sinistrado (vulgarmente designado por “avaliação da deficiência”), e tal avaliação depende necessariamente da verificação de uma das seguintes situações: recuperação completa ou, apesar de tratamento médico, não se verifica comportamento ou resultado de melhoramento da situação. Se ainda não se recupere o sinistrado, ou ainda seja possível o melhoramento da sua situação, não faz sentido determinar o grau de desvalorização da incapacidade permanente parcial, uma vez que a respectiva desvalorização poderá desaparecer ou diminuir com a recuperação ou o melhoramento da situação do sinistrado.”
29. No âmbito do processo especial do acidente de trabalho n.º LB1-18-0281-LAE, o recorrente foi sempre assistido pelos mandatários judiciais nomeados pela DSAL, pelo MP e pela Comissão de Apoio Judiciário, sendo impossível que ele não soubesse a data da cura clínica.
30. Pelo exposto, o recorrente, pelo menos até ao dia 4 de Julho de 2019, tomou conhecimento de que já estava clinicamente curado no mesmo dia ou antes.
31. Embora o recorrente entenda que ao abrigo dos dispostos no art.º 4.º da Lei n.º 7/2008, e nos art.ºs 71.º, n.º 1, 291.º, n.º 1, 477.º a 492.º do Código Civil, aplicáveis por força do art.º 9.º, n.º 1 e n.º 2 do mesmo Código, o direito à indemnização por danos morais prescreve no prazo de 3 anos a contar a partir da “data da cura clínica” prevista pelo art.º 59.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 40/95/M, tem a recorrida entendimento diverso, ou seja, as “condições de trabalho mais favoráveis aos trabalhadores” referidas no n.º 2 do art.º 4.º da Lei n.º 7/2008 não são aplicáveis ao regime dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
32. A lei deve acompanhar a evolução do tempo, e alterar-se em conformidade com as mudanças e necessidades sociais, sendo que o direito laboral nunca se limitou a garantir os direitos dos empregados, mas sim destinou-se a definir os direitos e deveres para a relação laboral entre os empregados e empregadores, de modo a alcançar um equilíbrio relativo entre os direitos e interesses das duas partes.
33. Já que o legislador estabeleceu, por meio do art.º 59.º do DL n.º 40/95/M, o regime de caducidade do direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho, não devia o recorrente fazer uma interpretação demasiadamente extensiva do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, e muito menos, aplicar isoladamente o art.º 4.º da Lei n.º 7/2008, os art.ºs 71.º, n.º 1, 291.º, n.º 1, 477.º a 492.º do Código Civil, aplicáveis por força do art.º 9.º, n.º 1 e n.º 2 do mesmo Código, e, parcialmente, a “data da cura clínica” prevista pelo art.º 59.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 40/95/M, para efeitos da contagem do prazo de prescrição do direito à reparação resultante do acidente de trabalho.
34. Pelo exposto, o recorrente só intentou a presente acção depois de ter decorrido o prazo de caducidade de 2 anos, pelo que ao abrigo dos dispostos no art.º 59.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 40/95/M e no art.º 394.º, n.º 1, al. d) do CPC, deve ser liminarmente indeferida a petição inicial do recorrente.
Da legitimidade da Ré
35. A empregadora do recorrente, C Resorts (Macau), S.A., celebrou o contrato de seguro com a recorrida, e ao abrigo dos dispostos no art.º 62.º, n.º 1 do DL n.º 40/95/M, transferiu a responsabilidade pelas reparações previstas neste diploma para a recorrida.
36. No que diz respeito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, o legislador estabeleceu, através do DL n.º 40/95/M, um regime perfeito, incluindo a definição do âmbito da indemnização pelos danos emergentes de acidentes de trabalho.
37. Ao abrigo dos dispostos nos art.ºs 3.º, al.s a), g), h), i), 4.º, 27.º, 28.º, e 46.º a 52.º do DL n.º 40/95/M, o direito à reparação resultante de acidentes de trabalho compreende apenas as prestações em espécie destinadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da vítima, e as prestações em dinheiro destinadas à indemnização por incapacidade temporária, incapacidade permanente ou morte.
38. Por isso, os factos alegados pelo recorrente na presente acção e a indemnização por danos morais exigida por ele não se encontram no âmbito do direito à reparação emergente de acidentes de trabalho, previsto pelo DL n.º 40/95/M, e a indemnização por danos morais ou não patrimoniais pretendida pelo recorrente já excede o âmbito da responsabilidade pelas reparações dos danos emergentes do acidente de trabalho, transferida para a recorrida.
39. Tal como referiu o Juiz a quo no despacho de indeferimento liminar: “Quanto aos danos morais ou não patrimoniais alegados pelo Autor, suposta a sua correcta qualificação jurídica, a indemnização correspondente já excede o âmbito da responsabilidade pelo risco definida pelo regime da reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, pelo que devem ser aplicáveis as regras gerais previstas nos art.ºs 477.º e 489.º do Código Civil para definir a responsabilidade da sua empregadora, o que, porém, excede obviamente o âmbito da responsabilidade pela reparação transferida para a seguradora do acidente de trabalho em causa. Assim sendo, de acordo com o art.º 58.º do CPC, “…possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor…”, conjugado com os factos alegados na petição inicial, deve a empregadora do Autor ser identificada, formalmente, como devedora da responsabilidade extracontratual (indemnização por danos morais ou não patrimoniais). E, obviamente, a Ré no presente processo não é devedor por não ser lhe transferida, através do seguro de acidentes de trabalho, a referida responsabilidade extracontratual (indemnização por danos morais ou não patrimoniais), pelo que não tem legitimidade passiva.”
40. Daí que, a recorrida não tem legitimidade passiva na presente acção, e nos termos do art.º 394.º, n.º 1, al. c) do CPC, deve ser liminarmente indeferida a petição inicial do recorrente.
41. Pelo exposto, improcede, manifestamente, o recurso interposto pelo recorrente, pelo que, pede-se ao MM.º Juiz do TSI para indeferir todos os pedidos formulados pelo recorrente, e manter o despacho de indeferimento liminar proferido pelo tribunal a quo.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
É do seguinte teor a decisão recorrida:
«Visto o douto acórdão.
Considera-se definitivamente resolvida a questão de competência.
Assim, com observância da ordem de conhecimento mencionada no despacho constante das fls. 889 e v dos autos, e de acordo com o princípio da economia processual, cumpre conhecer das restantes questões verificadas.
*
Excepção de caso julgado
Segundo o que alegou o Autor na petição inicial, por causa do acidente de trabalho, ele sofreu de dores, ansiedade, insónia, tédio, e influência psicológica, entre outros danos, pelo que pediu, nos termos dos art.ºs 3.º, al. a) e 4.º do DL n.º 40/95/M, e 492.º, n.º 1 e 489.º, n.º 1 do Código Civil, para condenar a Ré, ou seja a seguradora de acidentes de trabalho do empregador do Autor, a pagar-lhe a indemnização pelos danos morais.
Porém, depois de uma leitura atenciosa da petição inicial do Autor, afigura-se que, o Autor não descreveu, de forma precisa, qual/quais os danos sofridos por ele a que correspondia a indemnização pecuniária solicitada. De facto, nos art.ºs 4º a 30º, 43º e 46º da petição inicial, o Autor alegou genericamente que os respectivos danos sofridos por ele foram causados pela violação do direito à integridade moral, derivado do direito à integridade física e psíquica (art.º 30º), e em termos concretos, as lesões sublinhadas pelos Autor incluem múltiplas lesões dos músculos e tendões na articulação ilíaca e nas pernas, doença Bi, entorse crónica da articulação ilíaca esquerda, contusões crónicas no lombassacro, protuberância discal lombar, mudanças degenerativas das vértebras lombares, inflamação da fáscia dos músculos lombares, ansiedade, insónia não-orgânica, e doenças mentais derivadas dessas lesões, tais como estado de ansiedade, dores, inconveniência de mobilidade, depressão e tentativa de suicídio, etc.
Embora o Autor tente qualificar os supracitados danos como danos morais ou não patrimoniais, tal qualificação não vincula os tribunais. Na verdade, salvo o devido respeito por opinião diferente, os aludidos danos, melhor dizendo, são lesões sofridas pelo Autor por causa do acidente de trabalho, e podem ser integrados, em absoluto, nas situações indicadas na tabela de incapacidades anexa ao DL n.º 40/95/M, nomeadamente nos art.ºs 71ºd), 72º, 78ºb) ou c). Não obstante que o Autor tente excluir os supracitados danos biológicos dos danos patrimoniais, para que não sejam os mesmos incluídos na desvalorização na referida tabela de incapacidades e na indemnização (da incapacidade permanente) calculada conforme o DL n.º 40/95/M, inegável se apresenta que, relativamente ao acidente de trabalho alegado na petição inicial, o Autor já solicitou indemnização da incapacidade à mesma Ré através do processo especial do acidente de trabalho n.º LB1-18-0281-LAE, no qual também alegou que o mesmo acidente causou-lhe as leões na coxa e na cintura, acompanhadas de dores. Porém, no âmbito do referido processo, apenas se provou que devido ao acidente de trabalho em questão, o Autor sofreu contusões nos tecidos moles da cintura, da coxa esquerda, e do tornozelo esquerdo, e ainda sente dores na coxa esquerda, mas não foi provado o nexo de causalidade entre as outras lesões e o acidente, nem a restrição de mobilidade provocada pelas lesões, e em consequência, com base nesses factos dados como provados e não provados, foi proferida a sentença transitada em jugado. Ao mesmo tempo, atendendo ao resultado do exame médico realizado no referido processo e à fixação da incapacidade para o trabalho realizada no seu apenso, tanto o exame médico, como a perícia, não revelaram que o Autor, por causa das supracitadas lesões, sofreu das doenças mentais de estado de ansiedade, depressão ou tentativa de suicídio.
Dito por outra palavra, cumpre analisar se há repetição da causa.
Nos termos do art.º 416.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC, “1. As excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado. 2. Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.”
E nos termos do art.º 417.º do CPC, “1. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. 2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. 3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. 4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, considerando-se como causa de pedir nas acções reais o facto jurídico de que deriva o direito real e, nas acções constitutivas e de anulação, o facto concreto ou a nulidade específica que a parte invoca para obter o efeito pretendido.”
No caso sub judice, não resta dúvida que são idênticos os sujeitos no processo especial do acidente de trabalho n.º LB1-18-0281-LAE e no presente processo.
Quanto à identidade de causa de pedir, ambos os processos invocaram o acidente de trabalho ocorrido no dia 4 de Junho de 2017, e alegaram que o acidente causou ao Autor lesões no pé esquerdo, na perna esquerda, no osso ilíaco (incluindo o ísquio), no cotovelo esquerdo e nas vértebras lombares. Nesta última acção, o Autor ainda acresceu o facto de derivar das referidas lesões (sobretudo a protuberância discal lombar e mudanças degenerativas das vértebras lombares) doenças mentais tais como estado de depressão e outras. No entanto, não se pode ignorar que, a sentença proferida na acção anterior já reconheceu que, com excepção das contusões nos tecidos moles da cintura, da coxa esquerda, do tornozelo esquerdo, e das dores na coxa esquerda, os outros problemas encontrados na cintura do Autor (sobretudo as mudanças degenerativas das vértebras lombares e a protuberância discal lombar/sacral) eram apenas doenças degenerativas próprias do Autor e não tinham nexo de causalidade com o acidente de trabalho. Ao mesmo tempo, as doenças mentais incluindo o estado de depressão, pretendidas pelo Autor na presente acção, pressupõem necessariamente o nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as mudanças degenerativas das vértebras lombares e a protuberância discal lombar/sacral, pelo que a falta de invocação desse facto na acção anterior não impede que a causa de pedir na acção anterior inclua a na última. Assim, há identidade de causa de pedir.
No que diz respeito à identidade de pedido, é de salientar que, embora o Autor solicite, na presente acção, a indemnização por danos morais ou não patrimoniais no montante de MOP$1.000.001,00, acrescida de juros, tal qualificação jurídica dos danos não vincula os tribunais. Como atrás já se referiu, as lesões ou doenças alegadas pelo Autor (múltiplas lesões dos músculos e tendões na articulação ilíaca e nas pernas, doença Bi, entorse crónica da articulação ilíaca esquerda, contusões crónicas no lombassacro, protuberância discal lombar, mudanças degenerativas das vértebras lombares, inflamação da fáscia dos músculos lombares, ansiedade, insónia não-orgânica, e doenças mentais derivadas dessas lesões, tais como estado de ansiedade, dores, inconveniência de mobilidade, depressão e tentativa de suicídio) inclinam-se aos danos biológicos e devem ser integradas na desvalorização nas situações indicadas na tabela de incapacidades anexa ao DL n.º 40/95/M. In casu, o Autor não adoptou a fórmula prevista pelo art.º 47.º do DL n.º 40/95/M para calcular o montante da respectiva indemnização, o que não tem relevância nenhuma para a qualificação dos aludidos danos.
Por outro lado, no âmbito da acção anterior, o Autor, para além de exigir indemnização líquida da incapacidade temporária absoluta, cujo período considerou já determinado, e da incapacidade permanente parcial, cujo coeficiente de desvalorização considerou já fixado, também formulou pedido genérico de eventual indemnização decorrente da incapacidade temporária absoluta e da incapacidade permanente parcial, das quais o período e o grau de desvalorização ainda não se identificaram. Ao mesmo tempo, a acção anterior fixou a indemnização da incapacidade temporária absoluta e da incapacidade permanente parcial num montante inferior ao calculado pelo Autor, e inferiu todos os pedidos formulados pelo Autor com fundamento em que este já recebeu uma quantia superior ao aludido montante. Importa notar, em primeiro lugar, que o Autor formulou, na acção anterior, pedido genérico de indemnização da incapacidade temporária absoluta e da incapacidade permanente parcial, o que significa que o Autor já pediu indemnização de todas as incapacidades, temporária absoluta e permanente parcial, causadas pelo acidente de trabalho envolvido, só que, posteriormente, não veio a provar a existência dessas incapacidades temporária absoluta e permanente parcial, pelo que o respectivo pedido formulado na acção anterior já abrangeu a indemnização por todos os eventuais danos biológicos (lesões ou doenças) decorrentes do acidente de trabalho, ora invocados pelo Autor; em segundo lugar, nos termos do art.º 42.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho, “3. O tribunal deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diferente do dele, sempre que isso resulte da aplicação à matéria de facto de preceitos inderrogáveis das leis ou regulamentos”, e no processo especial do acidente de trabalho, o direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho é um direito indisponível, pelo que, se, atentos os factos provados, deve o autor receber mais indemnização, caberá ao tribunal condenar oficiosamente em quantidade superior ao pedido ou em objecto diferente do dele, ainda que não haja pedido do autor. Daí que, na acção anterior, o tribunal, atendendo a todos os danos (incluindo a incapacidade temporária absoluta e a incapacidade permanente parcial) causados pelo acidente de trabalho, decidiu julgar improcedente o pedido de indemnização pelos respectivos danos, pelo que nesta parte (que indeferiu o pedido do Autor) da sentença, já se reconheceu que o Autor não gozava de mais direitos, e tal sentença transitada em julgado já abrangeu o pedido de indemnização formulado pelo Autor na presente acção, verificando-se, assim, a identidade de pedido.
O processo especial do acidente de trabalho n.º LB1-18-0281-LAE e o presente processo são idênticos quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, pelo que verificam-se a repetição da causa e a excepção de caso julgado, e ao abrigo dos dispostos nos art.ºs 230.º, n.º 1, al. e) e 413.º, al. j) do CPC, deve a Ré ser absolvida da instância.
(…)
Legitimidade da Ré
Mesmo que não se entenda que os danos alegados pelo Autor são danos biológicos, ou, se entenda que com aplicação da tabela de incapacidades anexa ao DL n.º 40/95/M, os mesmos são, efectivamente, danos morais ou não patrimoniais, esta última situação provocará, obviamente, a ilegitimidade passiva da Ré.
No caso sub judice, a Ré é seguradora de acidentes de trabalho da empregadora do Autor, mas não a própria empregadora.
Nos termos do art.º 62.º, n.º 1 do DL n.º 40/95/M, “1. Os empregadores são obrigados a transferir a responsabilidade pelas reparações previstas no presente diploma para seguradoras autorizadas a explorar o ramo de seguro de acidentes de trabalho na RAEM.” (sublinhado nosso)
Dispõe-se no art.º 4.º do mesmo DL que, “São responsáveis pela reparação e demais encargos previstos neste diploma as entidades patronais relativamente aos trabalhadores ao seu serviço, sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 17.º e no regime geral de segurança social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 58/93/M, de 18 de Outubro.” (sublinhado nosso)
É de notar que, a responsabilidade dos seguradores de acidentes de trabalho limita-se ao dever de indemnizar imposto pelo regime da reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, isto porque, o DL n.º 40/95/M (regime da reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais) é um regime da responsabilidade extracontratual especialmente estabelecido pelo legislador, com dispensa do requisito de culpa exigido pelo regime geral da responsabilidade extracontratual previsto no art.º 477.º do Código Civil, e traduz-se numa modalidade de responsabilidade pelo risco, segundo a qual no caso de ocorrer acidente no trabalho, independentemente da culpa do empregador, o empregado goza do direito à reparação conforme o DL n.º 40/95/M.
Ao mesmo tempo, por se tratar de uma responsabilidade pelo risco especial, o regime da reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, ou seja o aludido diploma, restringiu o âmbito dessa responsabilidade. Ao abrigo dos dispostos nos art.ºs 27.º, 28.º, 46.º, 47.º, 48.º, 50.º e 51.º do DL n.º 40/95/M, o respectivo direito à reparação compreende apenas prestações em espécie e prestações em dinheiro, e estas últimas compreendem a indemnização por incapacidade temporária e a indemnização por incapacidade permanente, etc. Por outro lado, o regime da reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais também estabeleceu o mecanismo de seguro obrigatório de responsabilidade, de modo a transferir para os seguradores a aludida responsabilidade pela reparação assumida pelos empregadores.
Daí que, a responsabilidade transferida para os seguradores limita-se às prestações em espécie e em dinheiro acima referidas (indemnização por incapacidade temporária e permanente).
Quanto aos danos morais ou não patrimoniais alegados pelo Autor, suposta a sua correcta qualificação jurídica, a indemnização correspondente já excede o âmbito da responsabilidade pelo risco definida pelo regime da reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, pelo que devem ser aplicáveis as regras gerais previstas nos art.ºs 477.º e 489.º do Código Civil para definir a responsabilidade da sua empregadora, o que, porém, excede obviamente o âmbito da responsabilidade pela reparação transferida para a seguradora do acidente de trabalho em causa.
Assim sendo, de acordo com o art.º 58.º do CPC, “…possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor…”, conjugado com os factos alegados na petição inicial, deve a empregadora do Autor ser identificada, formalmente, como devedora da responsabilidade extracontratual (indemnização por danos morais ou não patrimoniais). E, obviamente, a Ré no presente processo não é devedor por não ser lhe transferida, através do seguro de acidentes de trabalho, a referida responsabilidade extracontratual (indemnização por danos morais ou não patrimoniais), pelo que não tem legitimidade passiva.
De acordo com o art.º 394.º, n.º 1, al. c) do CPC, deve ser liminarmente indeferida a petição inicial.».
Suscitando-se na decisão recorrida a questão da ilegitimidade passiva esta há-de ser apreciada previamente à excepção do caso julgado, uma vez que, o pressuposto de excepção do caso julgado sobre a identidade de sujeitos, só pode ser apreciado depois de se decidir pela legitimidade das partes que estão na acção.
Em síntese na decisão recorrida entende-se que a Ré é parte ilegítima porquanto apenas lhe foi transmitida a responsabilidade nos termos do artº 62º nº 1 da Lei 40/95 e o seu dever de indemnizar se limita ao estabelecido naquela lei.
Contudo, esta matéria não se prende com a legitimidade processual ou adjectiva, mas sim com a responsabilidade substantiva.
Nos termos da indicada lei as entidades patronais são responsáveis pela reparação e demais encargos naquela previstos que hajam decorrido de acidente de trabalho, havendo que transferir a sua responsabilidade através de apólice de seguro para uma seguradora.
Como também se diz a responsabilidade das entidades patronias é nos termos da legislação de acidentes de trabalho uma responsabilidade objectiva ou pelo risco como se entenda chamar-lhe.
É com base nessa responsabilidade e não noutra que a acção é proposta uma vez que em momento algum se invoca a culpa da entidade patronal na produção do acidente situação que iria cair no artº 57º do indicado diploma.
Logo, independentemente de saber do direito do Autor e, ou da responsabilidade da Ré em ressarcir os danos cujo indemnização se pede, nos termos em que a acção é proposta, e tal como resulta da conclusão 8 e seguintes das alegações de recurso, dúvidas não há que se faz emergir o pedido do Decreto-Lei nº 40/95/M e na transmissão da responsabilidade da entidade patronal para a seguradora.
Saber se o seguro contrato cobre ou não a responsabilidade decorrente do que se pede é matéria do mérito da acção e não dos pressupostos processuais.
Destarte, nos termos em que o Autor configura a acção de acordo com o disposto no artº 58º do CPC a Ré é parte legítima, sendo de revogar nessa parte a decisão recorrida.
Concluindo-se pela legitimidade da Ré, concordamos integralmente com os fundamentos da decisão recorrida na parte relativa ao caso julgado.
Apenas esclarecemos que julgando-se procedente a excepção do caso julgado nada há a decidir em sede de caducidade – e a da legitimidade havia de a ter precedido -, uma vez que, verificando-se aquela – a excepção do caso julgado - o tribunal não emite pronúncia sobre qualquer outra questão que esteja para além das que lhe precedem.
No mais que se invoca em sede de conclusões de recurso razão tem o Autor quando na conclusão 8 diz “No regime jurídico da reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais previsto pelo DL n.º 40/95/M, não se encontra qualquer solução para a indemnização por danos morais causados pelo acidente de trabalho ao sinistrado, ou seja ao autor, nem se dispõe a respeito da fixação da respectiva quantia indemnizatória.”
Acrescentando-se apenas que não é por no regime jurídico Português se prever tal solução, o que não acontece no de Macau, que se justifica que o Autor possa instaurar outra acção com a mesma causa de pedir, pedido e sujeitos, pois se houvesse o direito a mais receber, como até resulta da decisão recorrida sempre o mesmo haveria de ter sido arbitrado na anterior decisão dado que se tratam de direitos indisponíveis – artº 61º do Decreto -Lei 40/95/M -.
Destarte, aderindo integralmente aos fundamentos da decisão recorrida no que concerne à excepção do caso julgado, para os quais remetemos nos termos do nº 5 do artº 631º do CPC, impõe-se negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos negando-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida quanto à legitimidade da Ré a qual se julga parte legítima e mantém-se a decisão recorrida no que concerne a julgar procedente a excepção do caso julgado.
Custas a cargo do Autor e Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Registe e Notifique.
RAEM, 07 de Dezembro de 2023
Rui Pereira Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto)
681/2023 CÍVEL 4