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Processo nº 754/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 18 de Janeiro de 2024

ASSUNTO:
- Caso julgado
- Incidente da liquidação

SUMÁRIO:
- O incidente da liquidação suscitado pelo exequente no requerimento inicial da execução que tem por objecto uma sentença condenatório visa fixar, por via de uma decisão judicial, os valores concretos das obrigações exequendas, já judicialmente reconhecidas na sentença exequenda, no caso em que a liquidação não for possível realizada pelo próprio exequente por ela não depender de simples cálculo aritmético.
- Se a sentença exequenda já tiver reconhecido ao exequente o direito de receber determinadas prestações ilíquidas, a decisão do incidente da liquidação nunca pode ser no sentido de lhe negar o direito cuja existência tenha sido já anteriormente reconhecida por uma decisão judicial transitada em julgado.
- Assim, a falta da prova para a demonstração desses elementos necessários à quantificação da extensão das prestações exequendas nunca pode conduzir à improcedência da liquidação e à consequente extinção da execução, sob pena de violar o caso julgado.
- A lei permite, senão impõe o tribunal, quer na acção declarativa quer no incidente da liquidação inserido na execução, o recurso ao critério da equidade, para a quantificação de danos patrimoniais, quando não for possível obter o valor exacto dos danos – artº 560º/6 do CC.

O Relator
Ho Wai Neng


















Processo nº 754/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 18 de Janeiro de 2024
Recorrente: (X) (Exequente/Embargado)
Recorrida: (Y) (Executada/Embargante)

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – RELATÓRIO
Por sentença de 06/03/2023, julgou-se improcedente o pedido de liquidação formulado pelo Exequente/Embargado (X).
Dessa decisão vem recorrer o Exequente/Embargado, alegando, em sede de conclusões, o seguinte:
1. Versa o presente recurso sobre a douta Sentença proferida em 6/03/2023, na qual foi julgado totalmente improcedente, por não provado, o pedido de liquidação formulado pelo ali Exequente e destinado a apurar o montante correspondente ao trabalho prestado pelo Autor, ora Recorrente, ao sétimo dia, isto é, após a prestação de seis dias de trabalho consecutivos, entre 29/05/2006 a 14/11/2008;
2. Salvo melhor entendimento, está ora Recorrente em crer que, ao concluir pela improcedência da liquidação, por falta de prova, a Decisão Recorrida enferma de um conjunto de erros processuais e de vícios de Direito que põem em causa quer a sua razoabilidade e bondade, quer a sua certeza e rigor jurídico, razão pela qual deve a mesma ser declarada nula e sem efeito e substituída por outra que condene a Recorrida nos termos que resultam do pedido de liquidação formulado pelo Recorrente;
3. Em concreto, ao concluir pela improcedência da liquidação - por falta de prova - está o Recorrente em crer existir na douta Decisão Recorrida uma clara ofensa de caso julgado (art. 583.º, n.º 2, al. a)) já formado na Decisão Exequenda e anteriormente tomada pelo mesmo Tribunal a quo, nos termos da qual já havia sido reconhecido ao ora Recorrente o direito ao montante correspondente ao trabalho prestado ao sétimo dia, após a prestação de seis dias de trabalho consecutivos, entre 29/05/2006 a 14/11/2008;
4. Trata-se, salvo o devido respeito, de uma decisão irrazoável porquanto em caso algum se revela possível que uma liquidação de sentença (acto similar a um “incidente de liquidação” à luz da Lei Portuguesa) possa ser julgada improcedente por falta de prova, sabido ser imposto ao próprio julgador que oficiosamente ultrapasse tal situação de non liquet, ordenando a produção de prova que julgue adequada (v.g. mediante prova pericial) ou, em último recurso, fazendo um julgamento ex aequo et bono;
5. De onde, ao concluir pela insuficiência de prova alegada sempre se impunha ao Tribunal a quo, oficiosamente, completar os factos alegados, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial (art. 691.º, n.º 2 do CPC);
6. Tal entendimento tem sido, de resto, pacificamente seguido pela doutrina e jurisprudência comparada (mas que se acredita corresponder totalmente à sufragada pela doutrina e jurisprudência de Macau) tem sublinhado, entre outro, o seguinte:
“I - A liquidação de uma sentença destina-se tão só à concretização do objecto da sua condenação, com respeito do caso julgado da sentença liquidanda, não sendo permitido às partes tomar uma posição diferente ou mais favorável do que a já assumida na acção declarativa.
II - Quando a prova produzida pelos litigantes (em incidente de liquidação) for insuficiente para fixar a quantia devida, incumbe ao juiz completá-la mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial – artº 380º, nº 4, CPC.
III - Da leitura do citado normativo resulta não só que as regras do ónus da prova não funcionam no caso do incidente de liquidação de sentença, mas, e sobretudo, que nunca poderá o incidente de liquidação vir a ser julgado improcedente por falta de prova.
IV - Não sendo suficiente a prova produzida pelas partes, para se proceder à liquidação do crédito em causa, deverá o julgador levar a efeito a prossecução de tal objectivo oficiosamente, ultrapassando a situação de non liquet com a produção de prova (suplementar) que julgue adequada para o efeito (v.g. pericial).
V - Se mesmo depois disso não for ainda possível atingir tal desiderato, deverá então e a final julgar-se a liquidação de acordo com a equidade, ou seja, fazendo um julgamento ex aequo et bono – artºs 4º, al. a) e 566.º, n.º 3, do Código Civil” (Cfr. Ac. Relação de Coimbra, Proc. n.º 249/2000.C1, de 04/12/2007, disponível para consulta em www.dgsi.pt);
7. De igual modo, também na Jurisprudência superior da RAEM tem sido entendimento pacífico que:
“(…) Como se sabe, o incidente da liquidação suscitado pelo exequente no requerimento inicial da execução que tem por objecto uma sentença condenatório visa fixa”, por via de uma decisão judicial, os valores concretos das obrigações exequendas, já judicialmente reconhecidas na sentença exequenda, no caso em que a liquidação não for possível realizada pelo próprio exequente por ela não depender de simples cálculo aritmético.
Assim, se a sentença exequenda já tiver reconhecido ao exequente o direito de receber determinadas prestações ilíquidas, a decisão do incidente da liquidação nunca pode ser no sentido de lhe negar o direito cuja existência tenha sido já anteriormente reconhecida por uma decisão judicial transitada em julgado.
Pois, não se tratando do julgamento de uma nova acção declarativa, antes tão só de um incidente para determinar os valores já contidos na condenação, o resultado do incidente da liquidação nunca pode ser no sentido de afastar a existência dos direitos já reconhecidos por uma decisão judicial transitada em julgada.
Na esteira desse entendimento, a falta in casu da prova para a demonstração desses elementos necessários à quantificação da extensão das prestações exequendas nunca pode conduzir à improcedência da liquidação e à consequente extinção da execução.
Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o caso julgado e a sua decisão não se pode manter e deve ser revogada” (Cfr. Ac. TSI Proc. n.º 598/2018).
8. In casu, tendo o Tribunal a quo concluído terem sido insuficientes os factos alegados pelo Exequente quanto ao número de dias de trabalho prestado ao sétimo dia, após a prestação de seis dias consecutivos, impunha-se ao mesmo Tribunal a quo que, oficiosamente, devesse completar tais factos, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial (art. 691.º, n.º 2 do CPC);
9. Não o tendo feito e antes concluído pela improcedência da liquidação - por falta de prova - tal deixa adivinhar a existência de uma clara violação ao caso julgado já formado na Decisão Exequenda e anteriormente tomada pelo mesmo Tribunal a quo, e nos termos da qual já havia sido expressamente reconhecido ao ora Recorrente o direito ao montante correspondente ao trabalho prestado ao sétimo dia, após a prestação de seis dias de trabalho consecutivo, entre 29/05/2006 a 14/11/2008, e que, agora, contraditoriamente, lhe vem a ser negado (leia-se, abrogado) pelo mesmo Tribunal de 1.ª Instância, numa decisão tomada com vista à liquidação de tal quantia indemnizatória;
  Se assim se não entender,
10. Em último caso, visto que a impossibilidade da liquidação da obrigação exequenda - por falta de prova - não poder conduzir à improcedência da liquidação e à consequente extinção da execução, assim como à absolvição da executada condenada na sentença exequenda, sob pena de uma manifesta existência de non-liquet, em matéria de obrigação de indemnização, sempre se recorda que nos termos do art.º 560.º, n.º 6 do Código Civil se dispõe que: “Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julga equitativamente dentro dos limites que tiver por provados” ;
11. Também a este concreto respeito - e para uma situação que se acredita ser similar à que se encontra em apreciação nos presentes autos - o Tribunal de Segunda Instância já afirmou o seguinte:
“Compreende-se perfeitamente a razão de ser dessa norma que consente a ficção do valor dos danos por equidade.
Na verdade, por razões variadíssimas, nomeadamente as que se prendem com a inquestionável limitação da capacidade e memória humana, a indisponibilidade da tecnologia e/ou dos meios científicos necessários ao apuramento de determinados factos insusceptível da apreensão por percepção visual, auditiva ou por restantes sensos humanos, e a preocupação da protecção dos bens jurídicos que visam tutelar as regras sobre a admissibilidade, a produção e a valoração das provas nos processos judiciais, há actos que nunca poderão vir a ser validamente apurados no processo judicial.
No regime da obrigação de indemnização, a lei nunca permite ao Juiz que simplesmente omita a decisão ou decida não fixar o valor de qualquer indemnização à parte a quem reconhece o direito de ser indemnizado, pura e simplesmente por falta de provas ou por non liquet quanto à extensão de danos patrimoniais.
Antes pelo contrário, a lei permite, senão impõe o tribunal, quer na acção declarativa quer no incidente da liquidação inserido na execução, o recurso ao critério da equidade, para a quantificação de danos patrimoniais, quando não for possível obter o valor exacto dos danos – artº 560º/6 do CC” (Cfr. Ac. do TSI, Proc. n.º 598/2018, pág. 20 a 23).
12. De onde, tendo em conta os elementos disponíveis existentes nos autos, nomeadamente os factos assentes na Sentença exequenda, os registos das entradas e saídas do exequente da RAEM, os pedidos de gozo de férias - com indicação dos concretos dias de descanso semanal ao sétimo dia - associado com as regras de experiência e de vida e conhecimento se largas centenas de situações semelhantes por parte de ex-guardas de segurança que prestavam a sua actividade para os Casino, acredita o ora Recorrente ser possível ao douto Tribunal de Recurso, segundo o critério da equidade, fixar em 100 (ligeiramente inferior ao peticionado que é de 103) o número dos dias de trabalho prestado ao sétimo dia e, neste sentido, nos termos do art.º 630.º do CPC que seja ordenado a baixa dos presentes autos ao douto Tribunal de Primeira Instância a fim de aquele proceder à liquidação de acordo com os valores que ora se sugere (ou outros que se entendam ser se aplicar), o que desde já e para os presentes e devidos efeitos se invoca e requer.
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A Executada/Embargante (Y) respondeu à motivação do recurso do Autor, nos termos constantes a fls. 190 a 235, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do mesmo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II - FACTOS
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
1. Por Sentença proferida por este Tribunal, de 09 de Junho de 2021, que já transitou em julgado, foi a Ré, ora a Embargante, condenada a pagar ao Autor, ora a Embargado, entre outro: “… o montante correspondente ao trabalho prestado ao sétimo dia, após a prestação de seis dias de trabalho consecutivos, entre 29/05/2006 a 14/11/2008, a liquidar em execução de sentença.” (Cfr. a Sentença a fls. 227 a 234 dos autos principais, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido paro os efeitos devidos)
2. No dia 06 de Abril de 2022, o Embargado instaurou a execução contra a Embargante com base da referida Sentença. (Cfr. o requerimento inicial a fls. 2 a 11 dos autos do apenso A, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido paro os efeitos devidos)
3. Entre 29/05/2006 a 14/11/2008, o Autor esteve ao serviço da Ré, prestando funções de “guarda de segurança”, enquanto trabalhador não residente.
4. Entre 29/05/2006 a 30/06/2006, a Ré pagou ao Autor a quantia de MOP$7,500.00, a título de salário de base mensal.
5. Entre 01/07/2006 a 30/06/2007 a Ré pagou ao Autor a quantia de MOP$8,700.00, a título de salário de base mensal.
6. Entre 01/07/2007 a 30/06/2008 a Ré pagou ao Autor a quantia de MOP$8,850.00, a título de salário de base mensal.
7. Entre 01/07/2008 a 14/11/2008 a Ré pagou ao Autor a quantia de MOP$9,210.00, a título de salário de base mensal.
8. Durante o período da relação de trabalho o Autor gozou das férias anuais nomeadamente durante o período entre 03/11/2007 a 02/12/2007 (incluindo 5 dias de descanso semanal), 07/06/2008 a 25/06/2008 (incluindo 4 dias de descanso semanal).
9. Entre 29/05/2006 a 14/11/2008, o Autor prestou trabalho para a Ré ao sétimo dia, em número de dias não concretamente apurado, após a prestação pelo Autor de seis dias de trabalho consecutivo.
10. Entre 29/05/2006 e 14/11/2008, a Ré nunca pagou ao Autor um qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado em cada um dos sétimos dias, após a prestação de seis dias de trabalho consecutivo.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
Sobre as questões suscitadas no presente recurso, este Tribunal já tem oportunidade de se pronunciar sobre as mesmas no processo nº 598/2018, a saber:
“…
  3. Da violação do caso julgado
  Como fundamento subsidiário, o recorrente defende que ao julgar improcedente a liquidação por falta da prova, o Tribunal a quo tomou uma decisão que se mostra em total contradição com a decisão exequenda e que viola o caso julgado.
  Como se sabe, o incidente da liquidação suscitado pelo exequente no requerimento inicial da execução que tem por objecto uma sentença condenatório visa fixar, por via de uma decisão judicial, os valores concretos das obrigações exequendas, já judicialmente reconhecidas na sentença exequenda, no caso em que a liquidação não for possível realizada pelo próprio exequente por ela não depender de simples cálculo aritmético.
  Assim, se a sentença exequenda já tiver reconhecido ao exequente o direito de receber determinadas prestações ilíquidas, a decisão do incidente da liquidação nunca pode ser no sentido de lhe negar o direito cuja existência tenha sido já anteriormente reconhecida por uma decisão judicial transitada em julgado.
  Pois, não se tratando do julgamento de uma nova acção declarativa, antes tão só de um incidente para determinar os valores já contidos na condenação, o resultado do incidente da liquidação nunca pode ser no sentido de afastar a existência dos direitos já reconhecidos por uma decisão judicial transitada em julgada.
  Na esteira desse entendimento, a falta in casu da prova para a demonstração desses elementos necessários à quantificação da extensão das prestações exequendas nunca pode conduzir à improcedência da liquidação e à consequente extinção da execução.
  Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o caso julgado e a sua decisão não se pode manter e deve ser revogada.
  …”.
Por ora, não se vê qualquer razão plausível para alterar a posição já assumida.
Na verdade, como bem afirmou o douto aresto acima em referência que:
  “…
  No regime da obrigação de indemnização, a lei nunca permite ao Juiz que simplesmente omita a decisão ou decida não fixar o valor de qualquer indemnização à parte a quem reconhece o direito de ser indemnizado, pura e simplesmente por falta de provas ou por non liquet quanto à extensão de danos patrimoniais.
  Antes pelo contrário, a lei permite, senão impõe o tribunal, quer na acção declarativa quer no incidente da liquidação inserido na execução, o recurso ao critério da equidade, para a quantificação de danos patrimoniais, quando não for possível obter o valor exacto dos danos – artº 560º/6 do CC.
  …”.
Nesta conformidade, o recurso não deixará de ser julgado provido.
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IV – DECISÃO
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto, revogando a decisão recorrida que julgou a extinção da execução, determinando a remessa dos autos para o Tribunal a quo proferir a nova decisão em conformidade com o supra decidido.
*
Custas do recurso pela Executada/Embargante.
Notifique e registe.
*
RAEM, aos 18 de Janeiro de 2024.

  Ho Wai Neng
  (Juiz Relator)
  
  Tong Hio Fong
  (1º Juiz-Adjunto)
  
  Rui Pereira Ribeiro
  (2º Juiz-Adjunto)
  




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