Processo n.º 221/2023
(Autos de recurso jurisdicional)
Data: 18/Janeiro/2024
Recorrente:
- Secretário para a Economia e Finanças
Recorrido:
- (X)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo que julgou procedente o recurso contencioso intentado por (X), recorreu o Exm.º Secretário para a Economia e Finanças jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. Foi dado como provado, no âmbito do processo de infracção n.º 012/2020, instaurado pela AMCM, que o Recorrente violou o disposto nos artigos 2º, n.º 1, 17º, n.º 1, alínea b), 19º, n.º 1 e 122º, n.º 2, alínea b) todos do RJSF, bem como os artigos 2º, 6º e 13º do Decreto-Lei n.º 15/83/M, de 26 de Fevereiro, por concessão de crédito a terceiros na RAEM, com carácter habitual e intuito lucrativo, sem estar autorizado para o efeito, no período compreendido entre 14 de Fevereiro de 2017 a 3 de Janeiro de 2019.
II. Não se verifica uma divergência entre a matéria de facto tida por provado nos autos e a decisão sancionatória, uma vez que a decisão assenta fundamentalmente no facto de o Recorrente ter celebrado 39 empréstimos hipotecários e respectivos actos de registo de hipoteca e declarações de concessão de crédito, como garantia do Recorrente, (X).
III. Os factos dados como provados não se limitam à natureza e tipo de actos praticados ou realizados pelo Recorrente, reportam-se também aos documentos cuidadosamente preparados, bem como aos registos de hipoteca realizados para o desenvolvimento da actividade de concessão de crédito, declarações de empréstimos, circunstâncias de tempo e lugar, etc., e foram revelados através de meios de prova legais.
IV. Estamos perante infracções consumadas e de especial gravidade, que afectam seriamente a imagem do sistema financeiro local, o funcionamento do mercado financeiro e, em especial, as actividades das instituições de crédito (como é consabido e se pode constatar pelas estatísticas reveladas ao público pela AMCM, os empréstimos hipotecários constituem uma parte relevante da actividade bancária).
V. A AMCM efectuou todas as diligências ao seu alcance, que considerou necessárias no âmbito da instrução, tendentes a averiguar todos os factos cujo conhecimento considerou conveniente para a justa e rápida decisão deste procedimento sancionatório.
VI. O legislador não atribuiu à AMCM o especial ónus de fazer prova de que o dinheiro dos juros foi efectivamente recebido pelo autuado, nem lhe atribuiu competências para realizar essa prova.
VII. Note-se que a Administração Pública (incluindo a AMCM) não dispõe dos poderes de investigação dos órgãos de polícia criminal e dos tribunais, pelo que lhe seria, na prática, impossível determinar se, como e quando o autuado recebeu efectivamente o dinheiro dos juros; mais a AMCM não tem instrumentos para fazer em toda a sua extensão o que se usa chamar de “seguir o rasto do dinheiro”.
VIII. Acresce que não se reputa de essencial fazer prova de que o dinheiro relativo aos juros foi efectivamente recebido pelo autuado para se provar que o autuado concedeu crédito a terceiros, com carácter habitual e intuito lucrativo, e que com isso obteve um determinado benefício económico, e que esse benefício era a razão que presidiu à concessão do crédito.
IX. E isto porque como é consabido, um direito de crédito e, consequentemente, o direito a receber juros, traduz-se numa vantagem patrimonial em si, sendo contabilizada como activo de per si.
X. Ora esta vantagem patrimonial entra na esfera jurídica do credor no momento em que o direito de crédito é validamente constituído.
XI. O Acórdão do TSI, de 1.12.2022, proferido no âmbito do processo n.º 575/2022, refere que o benefício económico é relevante não só para o n.º 3 do artigo 128º do RJSF mas também para o n.º 1 deste normativo – cujo moldura é de dez mil a cinco milhões de patacas, sendo legítimo e obrigatório ponderar o benefício económico como resultado ou consequência da infracção.
XII. Este mesmo Acórdão refere que a finalidade (da sanção) traduzida na prevenção – geral e especial – justifica e até exige que se tenha em devida consideração o benefício económico.
XIII. Passamos a transcrever excertos deste mesmo Acórdão: “O n.º 1 do artigo 128º do RJSF não exige benefício económico obtido, apenas o n.º 3 o exige. Bem vista a técnica legislativa e a sua ratio, inclinamo-nos a entender que enquanto o sobredito n.º 1 prescreve o tipo-base da infracção administrativa, o que é apontado no n.º 3 é já o correspondente tipo agravado.
XIV. O apuramento do benefício económico efectivamente “obtido” só é necessário e imprescindível nos casos em que a Administração aplica o n.º 3 ao infractor, visto que este preceito legal permite que a multa a aplicar possa ser elevada ao dobro do benefício económico “obtido”.
XV. Nos restantes casos, em que o benefício económico vale apenas como uma circunstância agravante ou atenuante, basta atender a todos os lucros estipulados nos contratos de empréstimos ilícitos, sem se exigir o preciso apuramento do benefício económico “obtido” pelo infractor.
XVI. Ora, no caso em apreço, foi aplicado o n.º 1 do artigo 128º do RJSF, muito embora o benefício económico estimado tenha ultrapassado os MOP2.500.000,00, tendo sido concretamente apurado o valor de MOP2.825.745,00 a título de benefício económico.”
XVII. Por despacho do SEF, datado de 18.03.2021, exarado na proposta n.º 048/2021-CA, de 09.03.2021, que incorpora a Deliberação n.º 178/CA, de 04.03.2021, do conselho de Administração da AMCM elaborada a final do processo de infracção administrativa n.º 012/2020, instaurado pela AMCM, foi aplicada a (X) uma multa de MOP$3.000.000,00 (três milhões de patacas) por concessão ilegal de crédito a terceiros, sem autorização para o efeito, com carácter habitual e intuito lucrativo, no período compreendido entre 14 de Fevereiro de 2017 a 3 de Janeiro de 2019, tendo sido ainda aplicada, a título acessório, a publicitação desta decisão sancionatória.
XVIII. Atendendo às situações em que os empréstimos são garantidos por hipotecas de imóveis, sendo a intenção da concessão destes créditos alcançar um benefício patrimonial, e considerando que o grau de certeza de alcançar este objectivo, que é de quase 100%, atendendo à natureza real da garantia, entendemos que aquando da constituição do direito de crédito, o benefício económico está na prática obtido.
XIX. O direito de crédito mais não é que, o direito de exigir de outrem a realização de uma prestação de carácter patrimonial, ou seja, suscetível de avaliação em dinheiro.
XX. Na verdade, um crédito é um bem, quer do ponto de vista jurídico, quer do ponto de vista económico – e, até, contabilístico. É exactamente por essa razão que, nos balanços, os créditos são inscritos no activo, juntamente com os outros bens, e não no passivo.
XXI. A mera constituição de direitos de crédito (incluindo o direito a juros) reitera-se, constitui sempre um benefício económico para o titular desses direitos, também porque o direito de crédito mais não é que o direito de exigir de outrem a realização de uma prestação de carácter patrimonial, susceptível de avaliação em dinheiro.
XXII. Os empréstimos hipotecários celebrados pelo Recorrente, ao criarem direitos de crédito na sua esfera jurídica, proporcionaram-lhe ipso facto um benefício económico – independentemente de ele ter cobrado ou não esses créditos.
XXIII. Estão tais direitos de crédito provados documentalmente no processo instrutor, não tendo o Recorrente jamais impugnado a autenticidade desses documentos, designadamente em sede do processo de infracção.
XXIV. O facto de os empréstimos hipotecários terem sido realizados com assinatura reconhecida apenas revela que o Recorrente queria assegurar a legalidade formal dos seus negócios de concessão de crédito. Acresce que a realização isolada ou não habitual de contratos de mútuo está conforme com a lei, o que a viola é a celebração habitual e com intuito lucrativo deste tipo de acordos. Estes contratos, acompanhados do registo de hipoteca são verdadeiros títulos executivos.
XXV. A lei estabelece uma relação entre o benefício económico obtido pelo infractor e o montante da multa, de forma a garantir o efeito dissuasor desta, evitando que as infractores encarem a sanção meramente como um custo, suportável (art. 128º do RJSF).
XXVI. Para se concluir que o “benefício económico” não foi o facto determinante, nem tão pouco o principal, para a graduação da multa, basta atentar nos números 3 e 4 da Parte III da Deliberação n.º 178/CA, de 04.03.2021, do Conselho de Administração da AMCM, que contém os fundamentos do acto recorrido.
XXVII. Para além do “benefício económico” foram ponderados, para a fixação da multa em causa, o facto de o autuado ser primário, o seu grau de culpa, o facto de estarmos perante infracções de especial gravidade (elevado grau de ilicitude) e os prejuízos e os perigos que resultam para o sistema financeiro e para o público, deste tipo de actividades ilícitas, sem adequados mecanismos de controlo e supervisão.
XXVIII. Note-se que a contrario, à luz do n.º 1 do artigo 130º do RJSF, os prejuízos causados para o sistema monetário-financeiro ou para a economia da RAEM, constituem, também, um importante factor a ter em conta na fixação das multas por infracções ao RJSF.
XXIX. O elevado risco para os consumidores do exercício destas actividades, sem autorização, supervisão e controlo, traduz-se, fundamentalmente, na exposição a que estes ficam sujeitos a criminalidade económico-financeira, mormente a burlas e a branqueamento de capitais.
XXX. A graduação das multas administrativas é um acto discricionário, como já foi reconhecido pelo TUI e pelo TSI.
XXXI. Em recurso contencioso, o tribunal não pode sindicar o exercício de poderes discricionários excepto nos casos de erro manifesto ou total desrazoabilidade.
XXXII. Por outro lado, o artigo 45º do CP não é aplicável às infracções administrativas, nem directamente, nem por analogia.
XXXIII. Não são aplicáveis directamente, porque o legislador, no RGIA, não os incluiu entre os preceitos do CP aplicáveis, ex vi artigo 9º e n.º 3 do artigo 3º do RGIA.
XXXIV. E não é aplicável por analogia por não haver lacuna a preencher.
XXXV. Efectivamente, é muito diferente aquilo que está em causa no Direito Penal e aquilo que está em causa no Direito Administrativo.
XXXVI. A medida concreta da multa administrativa difere, na sua natureza e na sua finalidade, da multa aplicada em sede penal.
XXXVII. Assim, a sentença recorrida errou ao socorrer-se desta norma do direito penal para julgar que a multa aplicada pelo SEF possa ser excessiva.
XXXVIII. Acresce que existem limites e constrangimentos à acção administrativa que não se verificam na acção dos tribunais e das autoridades policias, em sede penal, designadamente no que se refere aos poderes e aos instrumentos de investigação para determinar a capacidade económica do infractor.
XXXIX. Não obstante, parece-nos óbvio que uma pessoa que é titular de direitos de crédito no montante de MOP55.350.501,00 (cinquenta e cinco milhões trezentos e cinquenta mil quinhentos e uma patacas) não pode ser alguém que vive numa situação de carência económica.
XL. No caso concreto, o montante da multa aplicada não é excessivo, tendo em atenção que a sanção aplicada constitui o meio idóneo para a Administração alcançar os seus objectivos, que consistem, fundamentalmente, na repressão das práticas ilegais (que causam danos ao sistema financeiro da RAEM), em imperativos de prevenção especial (dissuadir o infractor de praticar, novamente, este tipo de infracções) e de prevenção geral (alertar o público e o mercado para o facto de o exercício destas actividades, sem autorização, não ser tolerado na RAEM e acarretar diversos prejuízos e perigos para o mercado local).
XLI. É, para nós, inequívoco que não existe uma manifesta desproporção entre os efeitos da prática das infracções consideradas provadas incluído o benefício económico (calculado em MOP2.825.745,00 – como vimos) e a multa aplicada no valor de MOP3.000.000,00.
XLII. E isto também porque o grau de desvalor da conduta do infractor e a defesa do interesse público, consubstanciado, entre outras valências, na protecção do sistema financeiro da RAEM e dos consumidores locais, justificam plenamente a aplicação ao infractor da multa no valor de MOP3.000.000,00 (três milhões de patacas), ao exercer a actividade de concessão de crédito, com carácter habitual e intuito lucrativo, sem autorização para este efeito, actividade esta que está, por lei, reservada às instituições de crédito.
Nos termos expostos, pugnamos pela concessão de provimento do presente recurso jurisdicional, pedindo ao Tribunal de Segunda Instância que revogue a sentença impugnada, mantendo intocado o acto administrativo objecto do recurso contencioso.”
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Contra-alegou o (X), ora recorrido, pugnando pela negação de provimento ao recurso e confirmação da sentença recorrida.
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Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
No período compreendido entre Fevereiro de 2017 e Março de 2019, o ora Recorrente subscreveu no total de 28 contratos de empréstimo hipotecário com os terceiros, concedendo-lhes os empréstimos com taxas anuais de juros convencionadas entre 2.4% a 28.8% (conforme os docs. juntos a fls. 189 a 238 e 303 a 412 do P.A.).
As actuações acima referidas do Recorrente nunca foram autorizadas pela autoridade financeira.
Foi tomada a deliberação n.º 178/CA de 4/3/2021 do Conselho de Administração da AMCM no sentido de propor à Entidade recorrida a determinação da aplicação da multa ao Recorrente no montante de MOP3,000,000.00, pela prática não autorizada da concessão de crédito a terceiros na RAEM, com carácter habitual e intuito lucrativo, no período compreendido entre Fevereiro de 2017 e Março de 2019 (conforme o doc. junto a fls. 25 a 34 do P.A.).
A proposta acima referida mereceu o despacho da concordância da Entidade recorrida em 18/3/2021, exarada na proposta n.º 048/2021-CA de 9/3/2021, que foi por ofício n.º 2242/2021-AMCM-DAJ, de 23/3/2021, enviado ao Recorrente. (conforme o doc. junto a fls. 21 a 34 do P.A.).
Em 20/5/2021, o ora Recorrente apresentou junto do Tribunal Administrativo o recurso contencioso da dita decisão.
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O tribunal recorrido proferiu a decisão nos seguintes termos transcritos:
«Do que se trata aqui é de uma sanção administrativa aplicada nos termos previstos no Regime Jurídico do Sistema Financeiro (doravante designado por RJSF), aprovado pelo DL n.º 32/93/M, de 5 de Julho, pelo exercício não autorizado da actividade da concessão de créditos, a que se refere nos artigos 2.º, n.º 1, 17.º, n.º 1, alínea b), 19.º, n.º 1 e 122.º, n.º 2, alínea b) desse Regime.
As operações de concessão de crédito encontram-se reguladas pelo artigo 17.º, n.º 1, alínea b) do RJSF, nos termos do qual “Os bancos podem efectuar as seguintes operações:…b) Concessão de crédito, incluindo a prestação de garantias e outros compromissos, locação financeira e factoring; …”, ao passo que se exige, no disposto do artigo 2.º, n.º 1 e do 16.º do Regime, que apenas as instituições financeiras regularmente constituídas e autorizadas estejam habilitadas a exercer as operações de concessão de crédito referidas no citado preceito legal, de modo habitual e com intuito lucrativo. Para este efeito, são instituições financeiras, designadamente, as de crédito (os bancos, a Caixa Económica Postal, outras sociedades que também desenvolvem a actividade prevista no artigo 1.º, alínea b) do Regime – a que se refere o artigo 15.º), cujo acesso à actividade depende da prévia autorização nos termos do disposto no artigo 19.º do Regime.
Como assim, o exercício das operações de concessão de crédito reservadas às instituições acima referidas por quaisquer outras pessoas ou entidades que não tenham sido autorizadas para o tal constitui a infracção de especial gravidade prevista no artigo 122.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do RJSF, e por conseguinte, está sujeito à aplicação das sanções cominadas nos artigos 126.º a 128.º do Regime. É de reter que como já vimos, o que se encontram especificamente reguladas, e por isso, reservadas às instituições especialmente autorizadas são actividades de operação financeira que envolvam o carácter de exercício habitual e com intuito lucrativo. Fica fora disso, como por exemplo, uma actuação de concessão do empréstimo ocasional ou isolada, ou sem intenção de enriquecer com o exercício da actividade.
O que se aborda aqui é a operação da concessão de crédito na modalidade de contrato de mútuo, previsto na norma dos artigos 1070.º e ss do CCM, que é caracterizado como “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
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A impugnação deduzida por ora Recorrente fundamenta-se em duas partes, dirigindo-se contra, respectivamente, a infracção qualificada como tal pela Recorrida, e a fixação quantitativa da multa.
Sem extrair consequência jurídica dos “vícios” por si alegados, o Recorrente começou por referir na petição inicial que as concessões de crédito foram apenas feitas em favor dos seus amigos. Além do mais, 11 empréstimos entre os 39 deviam ser desqualificados como infracção pela ausência dos juros remuneratórios estipulados. E ainda por fim, não se podia calcular o número das concessões conforme o de contratos celebrados.
Diríamos que a falta da razão é manifesta nesta parte.
Conforme já vimos acima, constitui a infracção tipificada pela norma do artigo 122.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do RJSF, o exercício da actividade sem autorização que envolva o carácter de exercício habitual e o intuito lucrativo.
Logo à partida, conforme se depreende dos factos provados com base nos documentos juntos a fls. 292 a 298 e 303 a 412 do processo administrativo, no período compreendido entre Fevereiro de 2017 e Março de 2019, foram realizadas, reiteradamente, no total de 28 operações de concessão de crédito, com a estipulação das cláusulas contratuais de modelo tendencialmente uniformizado.
O que podia ter interesse na tese do Recorrente é que as actividades não eram destinadas indiscriminadamente a quem quer que seja, ou, aos sujeitos indeterminados (Diferentemente do que sucedeu com os serviços facultados ao público pelas instituições bancárias), mas ao elenco das pessoas determinadas – os seus amigos em especial. Parece que se assim o entender, deva ser o Recorrente próprio que faz prova disso a fim de mostrar que as operações sempre foram desenroladas entre as pessoas determinadas. E como assim, poder-se-ia convencer o Tribunal pela falta do carácter habitual da actividade desenvolvida. De todo o modo, não basta a mera alegação.
Na situação vertente, não logrou o Recorrente demonstrar isso. Além disso, embora tivesse tentado, não conseguiu fazer prova de que a concessão de crédito dirigido ao seu amigo (Y) era destituída da intenção lucrativa.
Por outro lado, mesmo tendo sido descontado o número das operações sem fixação do juro remuneratório como contrapartida para o mutuante como já fizemos na seleção dos factos assentes, não se afasta o carácter habitual da sua actividade com as restantes operações realizadas no referido período.
Por fim, a arguição sobre o erro no cálculo do número das operações realizadas é tanto absurda – o número das concessões de crédito é conforme o de negócios jurídicos celebrados, como irrelevante – não o tornaria irresponsável pela infracção praticada.
Dito isto, é evidente que o recurso deve improceder nesta parte.
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Ainda, o Recorrente não se contentou com a quantificação da multa aplicada, pugnando-se pela respectiva excessividade, com base na ilegalidade de apropriar-se do benefício económico obtido a título da multa, na frustração da confiança que mereça a proteção, assim como na violação do princípio de proporcionalidade pela falta da ponderação das circunstâncias que lhe são favoráveis.
Em primeiro lugar, inexiste a confiança por parte do infractor, alegadamente criada por causa da falta de advertência por partes dos funcionários notariais quando tratavam os seus negócios de mútuo, muito menos se deve falar da frustração dessa confiança em virtude do exercício do poder punitivo como tipo de reacção de censura à actividade ilegal por aquele desenvolvida. Conforme se prevê na norma do artigo 5.º do CCM, “A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas”.
Por seu lado, a propósito da legitimação de tal parâmetro de “benefício económico” obtido pelo infractor do RJSF aprovado pelo DL n.º 32/93/M, de 5 de Julho aquando da fixação do quantum da multa, tal questão não deixa de ser relativizada também, tendo em consideração o elucidado no douto Acórdão do Tribunal de Segunda Instância n.º 1040/2020, de 21/1/2021, nos seguintes termos:
“Dado preceituado no nº 3, é evidente que o elevado benefício económico obtido pelo infractor com a prática da infracção é tido pelo nosso legislador como uma das circunstâncias a atender na determinação da medida concreta das sanções administrativas dos factos punidos nos termos do «Regime Jurídico do Sistema Financeiro».
Pois, de outro modo, o elevado benefício económico não poderia ter sido considerado como circunstância agravante modificativa da moldura máxima de penas pecuniárias. Para nós, ao mandar atender o tal benefício económico obtido pelo infractor com a prática da infracção para a determinação concreta da pena, o que pretende o nosso legislador é, na prática não autorizada de operações reservadas às instituições sujeitas a supervisão pela AMCM, normalmente geradoras de benefícios económicos a favor de infractores e em prejuízos ao sistema económico e financeiro da RAEM, mandar atender o quantum do benefício económico obtido pelo infractor com a prática da infracção, que reflecte o grau de ilicitude dos factos, o que não tem nada a ver com o instituto de confisco.”
Mas a argumentação trazida pelo Recorrente não é sem razão nenhuma, na medida em que a Recorrida não ponderou todas as circunstâncias relevantes na fixação da concreta sanção pecuniária, designadamente, a situação económica e financeira do agente, conforme é exigido pela norma do artigo 45.º, n.º 2 do CPM.
É de salientar, sobre a atendibilidade desta circunstância específica, que o tribunal superior foi assertivo na afirmação de que “Em face da ausência das regras para a determinação das sanções das infracções administrativas no Decreto-Lei nº 52/99M, e nos termos autorizados pelo seu artº 3º/3 do mesmo diploma, é defensável, na matéria da graduação concreta de penas de infracções administrativas, o recurso aos princípios gerais subjacentes ao critério orientador da determinação da pena de multa adoptado no Capítulo IV (Determinação da pena) do Título III (Consequência Jurídica do facto) da parte geral do Código Penal, à luz dos quais a situação económica do agente do facto deve ser tida como uma das circunstâncias a atender na determinação concreta da pena pecuniária e o quantum fixado de sanções não deve representar para o infractor obrigações cujo cumprimento não lhe seja razoável exigir.” (veja-se o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância n.º 339/2021, de 24/2/2022). A bondade da douta jurisprudência é incontroversa: mesmo fora dos casos típicos da manifesta dificuldade económica de algum infractor em especial, para a generalidade das pessoas, a aplicação de uma multa no valor de MOP1,000,000.00 poderia implicar os encargos mais ou menos gravosos para quem aufira mensalmente MOP50,000.00, ou MOP100,000.00. Ou seja, a fixação do montante da multa é condicionada pelo princípio de razoabilidade.
Na situação vertente, dos factores elencados no acto recorrido como circunstâncias consideradas para a quantificação da sanção, não se depreende que a situação económica do infractor foi levada em conta, o que por si só já impõe a anulação do acto recorrido, por violação do disposto do artigo 45.º, n.º 2 do CPM.
Mas não só. Há uma outra questão que não se deve deixar de referir.
Na matéria da infracção financeira por exercício não autorizado da actividade de concessão de crédito, tem vindo o Tribunal superior, em jurisprudência constante, a considerar que “os contratos de mútuo foram celebrados contra disposições imperativas, precisamente as contidas nos artigos 17.º, n.º 1, alínea b), 19.º, n.º 1 e 122.º, n.º 2, alínea b) do RJSF, advindo daí a assinalada nulidade. Nestes termos, apenas na hipótese de ter havido uma efectiva percepção de juros por parte do infractor é que a multa concretamente a aplicar os deverá ter em devida conta, dessa forma se podendo operar a expropriação do benefício que, no plano dos factos, tenha sido ilicitamente obtido, com desconsideração, mas sem prejuízo, do crédito de natureza restitutiva fundado na norma legal do n.º 1 do artigo 282.º do Código Civil de que o mutuário será titular” (cfr. ainda as jurisprudências recentes, Acórdãos do TSI n.º 357/2022, de 8/9/2022, n.º 350/2022, de 27/10/2022, n.º 378/2022, de 28/9/2022 e n.º 356/2022, de 28/9/2022).
No caso dos autos em apreço, não será difícil inferir a partir da informação n.º 739/2020-DSB, constante de fls. 100 a 101 do processo administrativo que o cálculo do benefício económico se apoia, basicamente, nas cláusulas estipuladas nos contratos de mútuo celebrados, sendo resultante de operação aritmética com o valor do capital de cada empréstimo, e ainda os juros remuneratórios convencionados. É óbvio que não se deve a Administração contentar apenas com a presença desses elementos que se recolheu, conforme ensina a jurisprudência supra “tudo isto depende da prova concretamente produzida a cargo da entidade com poder punitivo.”
A omissão em apurar o montante do benefício efectivamente obtido pelo Recorrente nas actividades ilegais inquinou o acto impugnado do erro no pressuposto de facto, por se ter fundado no valor pecuniário exagerado que se desfasaria da realidade. Apesar de não ter sido o vício qualificado como tal pelo Recorrente, certo é que ele alegou e imputou ao acto impugnado a respectiva excessividade que decorreu do cálculo do montante do benefício económico, como ainda a insuficiência das provas para a tomada da decisão recorrida. Nestes termos, “A errada qualificação pelo recorrente dos fundamentos do recurso não impede o seu provimento com base na qualificação que o tribunal considere adequada.” conforme o disposto no artigo 74.º, n.º 6 do CPAC.
Assim sendo, o acto recorrido deve ser anulado pelo seguinte:
- o erro no pressuposto de facto, decorrente da inexistência das provas necessárias à quantificação do benefício económico, decisiva para determinação da medida concreta da multa;
- a violação do disposto do artigo 45.º, n.º 2 do CPM, por falta da consideração da situação económica e financeira do infractor.
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Uma vez que não há elementos suficientes (o montante devidamente apurado do benefício económico, e a situação económica real do infractor a atender nos termos do artigo 45.º, n.º 2 do CPM) para a determinação oficiosa da sanção aplicável ao Recorrente, ainda que entendemos que o mesmo deva ser condenado, é dispensado o cumprimento do artigo 118.º, n.º 2 do CPAC.
Resta decidir.
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III. Decisão
Assim, pelo exposto, decide-se:
Julgar procedente o presente recurso contencioso, com a anulação do acto recorrido.
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Sem custas pela Entidade Recorrida, por ser subjectivamente isenta.
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Registe e notifique.»
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Aberta vista ao Ministério Público, o Digno Delegado Coordenador teceu as seguintes doutas considerações:
“Nos termos previstos na norma do artigo 157.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), vem o Ministério Público pronunciar-se:
1.
(X), melhor identificado nos presentes autos, interpôs recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Economia e Finanças que lhe aplicou a multa de 3000000 de patacas e a sanção acessória de publicitação da multa aplicada pela prática da infracção de exercício não autorizado da actividade de concessão de crédito.
Por douta sentença do Tribunal Administrativo que se encontra a fls. 89 a 95 dos presentes autos foi o recurso contencioso julgado procedente com a consequente anulação do acto impugnado.
Inconformado com a dita sentença, veio o Secretário para a Economia e Finanças interpor o presente recurso jurisdicional, pugnando pela respectiva revogação.
2.
Parece-nos, salvo o devido respeito, que a douta sentença recorrida não enferma de qualquer dos erros de julgamento que o Recorrente lhe imputa.
As razões deste nosso modesto entendimento, que coincidem, no essencial, com aquelas que serviram de fundamento à decisão a quo, enunciam-se em termos breves.
(i)
A primeira questão prende-se com a desconsideração por parte da Administração, no momento da determinação do concreto montante da multa aplicada ao Recorrente, da situação económica do infractor. Tal desconsideração, no entender do Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo justificaria a anulação do acto contenciosamente recorrido por violação do disposto no artigo 45.º, n.º 2 do Código Penal.
Sobre isto, diz o Recorrente que o recurso à aludida norma do Código Penal para fundamentar a anulação do acto seria ilegal face ao disposto no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 52/99/M, de 4 de Outubro que estabelece o Regime Geral da Infracções Administrativas, o qual não remete subsidiariamente para o dito artigo 45.º, n.º 2 do Código Penal.
Salvo o devido respeito, somos modestamente a entender que o Recorrente labora em pelo menos dois equívocos que comprometem, a nosso ver, irremediavelmente, a procedência da sua pretensão recursória.
Pelo seguinte.
(i.1.)
Cremos não dever merecer grande controvérsia o juízo segundo o qual o Regime Geral das Infracções Administrativas plasmado no Decreto-Lei n.º 52/99/M, de 4 de Outubro, sofre de significativas lacunas de regulamentação, tendo em vista que o mesmo se anuncia como um regime geral sobre as infracções administrativas, ou seja, um regime com vocação para se aplicar sempre que esteja em causa a reacção contra a prática de uma conduta enquadrável como infracção administrativa. Isto acontece, desde logo, em virtude da opção do legislador, de remeter a fixação dos regimes material e procedimental aplicáveis às infracções administrativas para as leis ou regulamentos que as prevêem e sancionam (cfr. artigo 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 52/99/M).
Em relação aos dos critérios a considerar na concreta determinação da medida da multa, é certo que, como assinala o Recorrente, no artigo 9.º do referido diploma legal, não é feita qualquer remissão expressa para a norma do n.º 2 do artigo 65.º do Código Penal, que, como sabemos, contém os critérios a considerar na determinação da medida pena, nem para a norma do n.º 2 do artigo 45.º do mesmo Código, a qual manda atender, na graduação do quantitativo diário da multa, à situação económica e financeira do condenado.
Por outro lado, o Regime Jurídico do Sistema Financeiro (RJSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 32/93/M, de 5 de Julho, também não contém qualquer previsão a esse respeito, pelo que parece legítimo concluir que nos encontramos perante uma lacuna, a reclamar o respectivo preenchimento de acordo com o critério fixado no n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil: «Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos», sendo que, segundo o disposto no n.º 2 do 9.º, «há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei».
A partir daqui, parece-nos inaceitável concluir, com o Recorrente, que o vazio legislativo que ele próprio aceita existir sobre a matéria, deverá ser preenchido por referência às normas do Código de Procedimento Administrativo, nomeadamente, às regras de distribuição do ónus da prova que resultam do artigo 87.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), porquanto falta evidentemente qualquer analogia.
Como assinalam PAULA COSTA E SILVA/MIGUEL BRITO BASTOS, «o juízo de analogia postula, então, num primeiro momento, a identificação da razão justificativa de cada norma candidata a aplicação analógica, bem como das propriedades dos casos por ela regulados que são necessárias à procedência dessa razão justificativa. A verificação de uma relação de analogia entre o caso omisso e os casos regulados pela norma cuja aplicação analógica se equaciona dependerá, então, num segundo momento, da averiguação sobre se essas propriedades, necessárias à procedência da razão justificativa daquela norma, se verificam também no caso omisso» (cfr. dos Autores citados, A Interpretação dos Atos Administrativos, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 122, Março/Abril 2017, p. 16).
No caso, olhando para a razão de ser da norma do n.º 2 do artigo 45.º do Código Penal, que manda atender à situação económica e financeira do condenado na operação da fixação do quantitativo diário da multa e que se prende com a adequação da multa a essa situação, parece-nos que essa razão de ser também se verifica no caso da fixação das multas aplicáveis a sanções administrativas, pelo que é de considerar aplicável a estas aquela exigência resultante do n.º 2 do artigo 45.º do Código Penal.
(i.2.)
Além disso, mesmo que, sem conceder, partamos do mesmo pressuposto do Recorrente, de que a matéria da determinação da sanção administrativa é de natureza discricionária e de que a regulação dessa actividade é feita no quadro normativo resultante do CPA, sempre diremos, encontramos o segundo dos equívocos que antes assinalámos.
Sabemos todos que os poderes de fiscalização do tribunal administrativo relativamente à legalidade do exercício do poder discricionário não são plenos, contrariamente ao que acontece quando em causa está o controlo do exercício de poderes vinculados. Ao tribunal cabe apenas a sindicância do respeito por parte da Administração dos limites jurídicos ao exercício de tal poder e da observância dos critérios que constituem as condições jurídicas do seu exercício legítimo (seguimos de perto a lição de PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, 2020, p. 234).
No que especificamente concerne aos critérios jurídicos do exercício do poder discricionário, a boa doutrina aponta no sentido de que um desses critérios é precisamente o conhecimento integral, exacto e correcto dos elementos de factos que se mostrem pertinentes à boa decisão administrativa (os outros são o exercício adequado do poder de apreciação e a exigência de respeito pelos princípios gerais da actuação administrativa). De acordo com este critério, «o agente administrativo tem, sempre, o dever de identificar e avaliar todas as circunstâncias e elementos relevantes ou pertinentes para se colocar em posição de exercer o seu poder discricionário» (assim, PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual…, p. 243) em obediência ao princípio segundo o qual o exercício desse poder tem de assentar no conhecimento correcto das circunstâncias de facto (assim, JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, in Comentários à Revisão do Código do Procedimento Administrativo, Coimbra, 2016, p. 135).
Em rigor, o que está em causa é o efectivo exercício do poder de apreciação que a lei defere à Administração pois que isso implica como sua condição necessária «a tomada em consideração de todos os elementos e circunstâncias pertinentes da situação em causa» (para usarmos a sugestiva formulação do Tribunal Geral da União Europeia, no seu acórdão de 14.12.2018, processo T-750/16, FV vs. Conselho da União Europeia, disponível online em www.curia.europa.eu).
É isto mesmo que é imposto pela norma do n.º 1 do artigo 86.º do CPA: «O órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito», a qual, não sendo privativa das decisões proferidas no exercício de poderes discricionários, adquire aí uma importância fundamental e decisiva para um correcto exercício de tais poderes (continuamos a acompanhar a lição de PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual…, p. 244).
Desta norma resulta que, no procedimento administrativo, ao contrário do sucede nos processos judiciais, não vigora o princípio dispositivo. Pelo contrário, rege o princípio do inquisitório. E isto é ainda mais assim, como é evidente, no âmbito dos processos de aplicação de sanções administrativas, cuja natureza punitiva é indiscutível e em que, por causa disso, o apelo a regras de distribuição do ónus da prova não pode deixar de ser feito com muito prudência e cautela.
No mesmo sentido, aliás, aponto o disposto no artigo 59.º do CPA, de acordo com o qual, «os órgãos administrativos, mesmo que o procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados, podem proceder às diligências que considerem convenientes para a instrução (…)», sendo de interpretar o poder a que se refere o transcrito inciso legal como um verdadeiro poder-dever. O que significa que a Administração está sempre legalmente vinculada ao esclarecimento tão exaustivo quanto possível dos pressupostos de facto da decisão, de tal modo que insuficiência na instrução, na medida em que possa reflectir-se na insuficiência da base factual indispensável à justa e legal decisão do procedimento, em especial a um adequado exercício do poder discricionário, não pode deixar de se repercutir de modo invalidante nessa decisão.
Como salienta a boa doutrina «o princípio do inquisitório determina a obrigação, para o órgão administrativo, de proceder a todas as investigações que repute necessárias para encontrar as bases da sua decisão, não podendo, portanto, a Administração – salvo se tiver procedido a todas as diligências possíveis e razoáveis – refugiar-se na falta de cumprimento do ónus da prova, que sobre o interessado impenda, para dar um eventual conteúdo desfavorável à decisão» (assim, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/PEDRO COSTA GONÇALVES/J. PACHECO AMORIM, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, Coimbra, 1998, p. 423 e, no mesmo sentido, ANTÓNIO POLÍBIO HRENRIQUES, in Comentários à Revisão do Código do Procedimento Administrativo, Coimbra, 2016, p. 245).
Aliás, dever de prova ou iniciativa de prova não deve confundir-se com ónus da prova. Como sabemos, a doutrina processual civil e bem assim a jurisprudência vêm assinalando, sem sobressaltos, que o ónus da prova constitui, essencialmente, um critério de decisão destinado a permitir ultrapassar situações de falta de prova ou de dúvida quanto à realidade de determinado facto, transformando uma situação de non liquet numa situação de liquet contra a parte onerada (MANUEL DE ANDRADE), que apenas deve intervir quando as vias probatórias possíveis estiverem esgotadas.
No caso em apreço, a falta de qualquer indagação por parte da Administração relativamente à situação económica e financeira do Recorrido, sempre consubstanciaria uma óbvia violação do falado princípio do inquisitório que resulta do disposto no citado artigo 59.º e no n.º 1 do artigo 86.º do CPA e, portanto, sempre seria de reputar de ilegal, mesmo, pois, à luz dos critérios normativos que emergem desse Código.
(ii.)
A segunda questão trazida ao presente recurso jurisdicional é a concernente ao benefício económico.
A este propósito, o Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo considerou que «[a] omissão em apurar o montante do benefício económico efectivamente obtido pelo Recorrente nas actividades ilegais inquinou o acto impugnado do erro no pressuposto de facto, por ser fundado num valor pecuniário exagerado que se desfasaria da realidade», pelo que faltaria a quantificação de uma circunstância decisiva para a «determinação da medida concreta da multa».
O Recorrente discorda deste segmento decisória da sentença impugnada. Segundo afirma, a mera constituição de direitos de créditos, incluindo o direito a juros, constitui sempre um benefício económico para o respectivo titular e por isso, esse benefício é obtido no momento em que o direito de crédito se constitua validamente na esfera jurídica do credor.
Não nos parece que este douto argumentário, apesar da sua sedutora linearidade, possa ser acolhido.
Procuraremos demonstrar, em breves linhas, porquê.
Como já noutra ocasião processual tivemos oportunidade de referir, não nos custa a aceitar, em geral, o entendimento do Recorrente quanto à natureza dos créditos, incluindo os créditos de juros, enquanto coisas que integram, do lado activo, o património do credor.
No entanto, daqui não decorre, de modo algum que esses créditos de juros representem o benefício económico que aqui releva. Por duas ordens de razões.
(ii.1.)
A primeira, que tem sido assinalada pelo Tribunal de Segunda Instância em diversas decisões sobre a matéria (cfr. os acórdãos de 8/9/2022, processo n.º 357/2022, de 27/10/2022, processo n.º 350/2022, de 28/9/2022, processo n.º 378/2022 e de 28/9/2022, processo n.º 356/2022) é a de que, colocadas as coisas no estrito plano jurídico, que é aquele em que a questão é colocada pelo Recorrente, e não no plano dos factos, a verdade é que, no caso, dos contratos de mútuo celebrados pelo Recorrente contencioso, no rigor dos termos, não resultou a constituição no seu património de qualquer crédito de juros. Isto, pela simples razão de que tais contratos estarão feridos de nulidade por ser isso o que resulta do disposto no artigo 287.º do Código Civil, de acordo com o qual, «os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei». No caso, os contratos de mútuo foram celebrados contra disposições imperativas, precisamente as contidas nos artigos 17.º, n.º 1, alínea b), 19.º, n.º 1 e 122.º, n.º 2, alínea b) do RJFS, advindo daí a assinalada nulidade e, como tal, os ditos contratos de mútuo seriam desprovidos de outra força jurísgena que não seja a de fundar pretensões restitutivas ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 282.º do Código Civil. Em todo o caso, não se chegou a radicar na esfera jurídica do recorrente contencioso um direito de crédito corresponde aos juros acordados e, portanto, nessa perspectiva, não será juridicamente rigoroso afirmar que, com a celebração dos ditos contratos de mútuo, o activo do seu património sofreu um incremento na medida correspondente aos ditos juros. Daí que, também se não possa dizer que tais juros sejam a expressão e a medida do benefício económico obtido pelo infractor.
Apenas na hipótese de ter havido uma efectiva percepção de juros por parte do infractor é que a multa concretamente a aplicar os deverá ter em devida conta, dessa forma se podendo operar a expropriação do benefício que, no plano dos factos, tenha sido ilicitamente obtido, com desconsideração, mas sem prejuízo, do crédito de natureza restitutiva fundado na norma legal do n.º 1 do artigo 282.º do Código Civil de que o mutuário será titular.
E a verdade é que o Recorrente não dá resposta convincente, que nem sequer esboçou, aliás, relativamente a este ponto que foi expressamente salientado pela douta sentença recorrida e constituiu a sua ratio decidendi fundamental.
Não vislumbramos, com todo o respeito, a razão da insistência do Recorrente em falar de créditos que o Recorrido poderia livremente exigir, mesmo em sede executiva, quando é evidente que os mesmos estão feridos de invalidade, pois que constituiria uma insuportável contradição intra-sistémica, considerar que a actividade de crédito desenvolvido por aquele era ilegal porque violadora de normas de natureza púbica e, simultaneamente, sustentar a validade dos contratos em que se consubstanciou o exercício dessa actividade.
(ii.2.)
A segunda razão, tem que ver com o facto de o Recorrente desconsiderar que o benefício económico relevante é o benefício económico líquido, uma vez que só este é resultado da prática da infracção.
Assim, mesmo que se pudesse assumir, como se sustenta no recurso, que os créditos de juros se constituíram validamente e integraram, do lado activo, o património do Recorrido, parece incontornável assumir que não existirá uma correspondência quantitativa exacta entre esses créditos e o dito benefício económico, uma vez que no cálculo deste, por isso que apenas deve relevar o benefício líquido, deve entrar em linha de conta, pelo menos, a privação da disponibilidade do capital por parte do Recorrente durante o prazo do mútuo, como parece evidente, aliás, uma vez que essa privação representa, necessariamente e do posto de vista económico, um custo, grande ou pequeno, não é relevante, para o Recorrido, correspondente ao que ele deixou de ganhar se tivesse aplicado alternativamente o seu capital, por exemplo, a juros.
Com a breve motivação que antecede, somos, assim, modestamente a entender que a decisão recorrida não é merecedora de censura, uma vez que não padece dos erros de julgamento que doutamente lhe foram assacados pelo Recorrente.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, somos de parecer de que deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional.”
*
Atento o teor das doutas considerações tecidas pelo Digno Delegado Coordenador que antecede, somos a entender que a solução adoptada na sentença recorrida é acertada, perpicaz e sensata, nela foi feita uma correcta aplicação de direito, cuja explanação sufragamos inteiramente, pelo que remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC ex vi artigo 149.º, n.º 1 do CPAC e, em consequência, negamos provimento ao recurso.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, o Colectivo de Juízes deste TSI acorda em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo Exm.º Secretário para a Economia e Finanças, confirmando a sentença recorrida.
Sem custas, por o recorrente ser subjectivamente isento.
Registe e notifique.
***
RAEM, 18 de Janeiro de 2024
Tong Hio Fong
(Relator)
Rui Pereira Ribeiro
(Primeiro Juiz Adjunto)
Fong Man Chong
(Segundo Juiz Adjunto)
Mai Man Ieng
(Procurador Adjunto do Ministério Público)
Recurso Jurisdicional 221/2023 Página 34