Processo nº 273/2023
(Reclamação para a conferência)
Data do Acórdão: 25 de Janeiro de 2024
ASSUNTO:
- Prova produzida noutro processo
SUMÁRIO:
- Se a prova tiver sido produzida noutro processo que ofereça as mesmas garantias e se a parte contra quem a prova é oferecida tiver sido ouvida no exercício do contraditório, se o processo onde a prova tiver sido produzida não tiver sido anulado, na parte relativa à produção de prova, pode aquela ser utilizada noutro processo em que o mesmo sujeito seja parte.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 273/2023
(Reclamação para a conferência)
Data: 25 de Janeiro de 2024
Reclamante: Secretário para os Transportes e Obras Publicas
Reclamadas: A, Lda. e B, Limitada
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, Lda. e B, Limitada, com os demais sinais dos autos,
veio interpor recurso contencioso do Despacho de 13.03.2023 do Secretário para os Transportes e Obras Públicas que lhe aplicou uma multa no valor de MOP4.268.550,00, pelo atraso na conclusão da obra “Empreitada de Construção do Complexo Municipal de Serviços Comunitários da Praia do Manduco (1ª Fase).
No que concerne à prova vieram as Recorrentes e agora Reclamadas requerer o aproveitamento da prova testemunhal e pericial produzida nos autos de Recurso Contencioso nº 779/2017, ou se assim não se entendesse que se procedesse à produção da prova testemunhal e realização da prova pericial que indica.
Citada a entidade Requerida e agora Reclamante para contestar veio esta fazê-lo nada dizendo quanto ao requerimento de prova apresentado.
Dada Vista dos Autos ao Ilustre Magistrado do Ministério Público pelo mesmo foi emitido parecer no sentido de que entendia não se justificar a realização da perícia requerida e que se designasse data para a audição das testemunhas.
Por despacho de fls. 1099 a 1101 foi decidido que:
«(…)
Quanto à requerida prova pericial:
Pelo Recorrente é sustentado que a realização da perícia se destina a comprovar que o incumprimento do prazo na execução da empreitada não lhe é imputável.
Pelo Ministério Público é sustentado que considerando o objecto do processo não se justifica a realização da perícia e pela entidade Recorrida é sustentado que o Recorrente pretende discutir mais uma vez a não imputabilidade do atraso na execução da obra ou arrogar-se no direito à prorrogação de prazo de execução da obra que já foi declarado irrecorrível.
Vem este recurso interposto do acto da entidade Recorrida que aplicou ao Recorrente uma multa por atraso na conclusão da obra.
Com a realização da prova pericial que pede pretende o Recorrente demonstrar a matéria alegada nos artigos 118 a 258 da p.i. para prova de que não é imputável ao recorrente o atraso na conclusão da obra por resultar de acto de terceiro, neste caso o dono da obra, por erro de concepção do projecto da responsabilidade do dono da obra, para efeitos do disposto no nº 4 do artº 169º do Decreto-Lei nº 74/99/M.
Ora, salvo melhor opinião sendo o acto impugnado a multa aplicada pelo atraso na conclusão da obra e invocando o empreiteiro como ilegalidade do acto o não lhe ser imputável o atraso, entendemos que a matéria objecto da perícia tem interesse para a decisão da causa, tendo em consideração as soluções em direito invocadas.
Por outro lado não ocorre a invocada reapreciação de questão que já se haja decidido como invoca a Entidade Recorrida, relativamente ao “direito à prorrogação de prazo de execução da obra que já foi declarado irrecorrível”, uma vez que, como resulta do Acórdão do TUI de 10.02.2021 proferido no processo que ali correu termos sob o nº 198/2020 o que ali se decidiu é que o acto atacado não era contenciosamente recorrível e aqui não está em causa a prorrogação do prazo, mas, como também resulta da própria alegação da entidade recorrida, a questão da “imputabilidade do atraso na execução da obra” que não foi sequer objecto daqueles autos.
Destarte, sem prejuízo da matéria de facto a apreciar para uma e outra questão ser a mesma, não sendo aquela outra recorrível e admitindo-se em direito que haja de decidir nestes autos da invocada imputabilidade do atraso na execução da obra pelo empreiteiro, nada obsta que seja realizada a perícia requerida com vista a se poder decidir sobre a matéria invocada se se vier a entender ser essa a solução jurídica.
Quanto à necessidade de realização da Perícia foi pelo Recorrente pedido nos termos do artº 446º do CPC que a perícia realizada no processo que correu termos neste tribunal sob o nº 779/2017 em que eram Recorrentes e Recorrido os mesmos sujeitos destes autos, que aquela fosse aqui utilizada para prova sem necessidade de realizar outra.
Sem prejuízo de entender que a questão da imputabilidade não pode ser objecto destes autos, nada opôs a entidade Recorrida que a peritagem realizada possa ser usada como prova nestes autos.
Assim sendo, de acordo com o disposto no artº 446º do CPC aceita-se como prova a peritagem realizada no processo que correu termos neste tribunal sob o nº 779/2017 e cujo relatório foi junto com a certidão de fls. 482 e seguintes.
No que concerne aos depoimentos das testemunhas dado os benefícios da imediação e depois de sumariamente os ouvir mostra-se não haver identidade entre a matéria a que foram ouvidas no processo anterior e este, pelo que, é irrelevante o uso dos depoimentos antes prestados, havendo que ser inquiridas novamente.
Contudo, da matéria indicada parte dela é conclusiva ou consta de documentos indicados e juntos aos autos, pelo que, as testemunhas serão apenas ouvidas à matéria dos artigos 78, 92, 122, 137 a 191, 205, 221, 233 a 238 e 243 a 254.
Para inquirição das testemunhas designa-se o próximo dia (…).».
Daquele despacho veio a ser interposta a fls. 1156 reclamação para a conferência pelo Secretário para os Transportes e Obras Públicas invocando em síntese que no processo onde foi realizada a perícia cujo aproveitamento se autorizou a agora Recorrida foi ali absolvida da instância pelo que face ao disposto no nº 1 do artº 446º do CPC não pode aquela ser aproveitada, mais invoca argumentos de direito referentes a outra acção que identifica.
Notificadas daquela reclamação vieram as Recorrentes e agora Reclamadas responder invocando que os fundamentos alegados na reclamação para a conferência carecem de qualquer fundamento de facto e de direito devendo improceder.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer com o seguinte teor:
«Sobre a reclamação para a conferência apresentada pela Entidade Recorrida a fls. 1156 a 1160 dos presentes autos
Parece-nos que a douta decisão reclamada não é merecedora de qualquer censura.
Com efeito,
- a norma do artigo 446º do Código Processo Civil, aqui aplicável por força do disposto no artigo 1º do Código de Processo Administrativo Contencioso, permite o aproveitamento neste processo da prova pericial produzida no processo de recurso contencioso que correu termos no Tribunal de Segunda Instância sob o nº 779/2017;
- perante as diversas soluções plausíveis da questão de direito suscitada nos presentes autos, não cremos que se possa dizer que a dita prova pericial e a prova testemunhal requerida sejam impertinentes.
Assim,
Salvo melhor opinião, a reclamação para a conferência deve ser indeferida.».
Foram colhidos os Vistos legais.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sua reclamação para a conferência invoca a Reclamante que o despacho reclamado viola o nº 1 e 2 do artº 446º do CPC.
Vejamos então.
Reza assim o artº 446º do CPC:
1. Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 348.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.
2. O disposto no número anterior não tem aplicação quando o primeiro processo tiver sido anulado, na parte relativa à produção da prova que se pretende invocar.
Do nº 1 do indicado preceito resulta que as perícias (na parte que interessa a esta decisão pois apenas a perícia foi autorizada) produzidas num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte sem prejuízo do disposto no nº 3 do artº 348º do C.Civ..
O nº 3 do artº 348º do C.Civ. diz que:
(…)
3. A confissão feita num processo só vale como judicial nesse processo; a realizada em qualquer procedimento preliminar ou incidental só vale como confissão judicial na acção correspondente.
Como se vê é óbvio que no caso em apreço não se aplica o nº 3 do artº 348º do C.Civ..
Continua o nº 1 do artº 446º do CPC que se o regime de prova do primeiro processo oferecer menos garantias que as perícias realizadas no segundo (isto é neste processo onde estamos a apreciar a questão), então as perícias realizadas no primeiro só valem como princípio de prova.
Ora bem:
- A parte contra quem a perícia pretende ser usada como meio de prova é a mesma – Secretário para os Transportes e Obras Publicas -.
- A parte indicada contra quem a perícia é apresentada interveio na realização da mesma no processo;
- O processo onde a perícia foi realizada e que correu termos neste tribunal sob o nº 779/2017 era um recurso contencioso tal como este.
Logo, se ambos os processos são recurso contencioso o regime de prova é igual.
Assim, se a parte é a mesma, se foi cumprido o contraditório e se ambos os processos seguem a mesma forma processual, quando se diz que o despacho reclamado viola o nº 1 do artº 446º do CPC só se pode estar a fazer uma errada interpretação da lei.
Do nº 2 do artº 446º do CPC resulta que não se pode fazer uso da perícia realizada no primeiro processo, se esse primeiro processo tiver sido anulado na parte relativamente à produção de prova.
O que se invoca é que a entidade Recorrida foi naquele processo, a final e já depois da prova produzida, absolvida da instância.
Como se deve saber a absolvição da instância não se confunde com a anulação do processado no que concerne à produção da prova – a perícia – que aqui se pretende usar.
Destarte, de igual modo como o anterior, quando se diz que o despacho reclamado viola o nº 2 do artº 446º do CPC só se pode estar a fazer uma errada interpretação da lei.
Assim sendo, pelos fundamentos constantes do despacho recorrido e do Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público, a reclamação apresentada só pode improceder.
III. Decisão
Termos em que, pelos fundamentos expostos, indeferindo a reclamação apresentada, mantém-se o despacho recorrido nos seus precisos termos.
Sem custas por delas estar isenta a Entidade Recorrida.
Notifique.
RAEM, 25 de Janeiro de 2024
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(1o Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
(2o Juiz-Adjunto)
Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto)
273/2023 RECL P/CONF 6