ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
A (arguido condenado no processo de recurso penal n.º 373/2023 do Tribunal de Segunda Instância, ora preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de Macau) apresentou ao Tribunal de Última Instância o requerimento de providência de habeas corpus nos termos do art.º 206.º do Código de Processo Penal, alegando que, findo o prazo máximo de prisão preventiva previsto no art.º 199.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal, se deve declarar a extinção da prisão preventiva e a sua libertação imediata.
Por despacho de fls. 326 a 327v dos autos, a Relatora decidiu indeferir o pedido de habeas corpus por considerar manifestamente improcedentes os pressupostos e fundamentos do pedido formulado pelo requerente.
Vem agora o requerente reclamar para a conferência, alegando que o despacho reclamado violou o disposto nos artigos 198.º, n.º 1, alínea d) e 499.º 1, n.º 1 do Código de Processo Penal, uma vez que o acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância não tem força executiva por não ter transitado em julgado em virtude do recurso interposto pelo Ministério Público para o Tribunal de Última Instância, e também não é correcta a decisão do Juiz do Tribunal de Segunda Instância que declarou extinta a prisão preventiva do requerente, nos termos do art.º 198.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal; apesar de o juiz do Tribunal Judicial de Base já ter feito a liquidação da pena única (5 anos e 6 meses de prisão) a que o requerente foi condenado, e o juiz do Tribunal de Segunda Instância também proferiu a decisão de decretar a extinção da prisão preventiva, a verdade é que, o requerente só veio a ser notificado em 27 de Dezembro de 2023, pelo que estas duas decisões ainda não transitaram em julgado, não podendo o Tribunal de Última Instância, com base nestas duas decisões, indeferir o pedido de habeas corpus formulado pelo requerente; a prisão do requerente é ilegal nos termos do art.º 206.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal.
Respondeu a Digna Procuradora-Adjunta do Ministério Público à reclamação apresentada pelo requerente, afirmando que, tendo em conta as exigências legais de unidade processual nos processos conexos e o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, segundo o qual “quando alguém tiver praticados vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena”, a decisão nos processos conexos deve também ter essa unidade, ou seja, não se suscita o problema de execução definitiva da decisão fraccionada”. Por outras palavras, antes de o Tribunal de Última Instância proferir decisão sobre o recurso interposto pelo Ministério Público, “parte da pena fixada pelo Tribunal de Segunda Instância (irrecorrível para o Tribunal de Última Instância) não tem autónomia, visto que a execução parcial da pena não está em conformidade com o disposto na referida lei quanto à ‘condenação numa única pena’”.
Corridos os vistos pelos Mmos. Juízes-Adjuntos, cumpre decidir.
2. Fundamentação
No despacho ora reclamado, a Relatora fez consignar o seguinte:
“……
Como é sabido, o habeas corpus é uma medida extraordinária (e não um processo comum de recurso) e uma medida especial para proteger a liberdade das pessoas. Com o objectivo de proteger a liberdade pessoal sem qualquer outro meio que possa pôr termo à violação ilegal da liberdade, resolver de imediato as situações de detenção ou prisão ilegais. Trata-se de uma medida excepcional para proteger a liberdade pessoal.
O Tribunal de Última Instância tem entendido que, o ‘habeas corpus é uma medida excepcional de protecção da liberdade da pessoa, tendo por objectivo resolver de imediato as situações de prisão ilegal, que só pode ser pedida e concedida nos termos prescritos na lei.
Não se visa a apreciação material da decisão da entidade competente. Para impugnar a justiça e a legalidade de uma decisão, arguir os erros na aplicação do direito substantivo ou processuais, deve ser por via de recurso para obter a reforma da respectiva decisão, mas não através do pedido de habeas corpus, sob pena de criar um novo grau de jurisdição, alterando o regime geral de recurso.’2
Esta posição é de manter.
No presente processo, o Tribunal de Segunda Instância absolveu o requerente dos crimes de sociedade secreta e de branqueamento de capitais agravado pelos quais o mesmo foi condenado pelo Tribunal Judicial de Base, passando a condená-lo pela prática de 3 crimes de corrupção activa, na pena de 2 anos de prisão por cada um, pela prática de dois crimes de branqueamento de capitais, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão cada; e, em cúmulo jurídico, passou a condená-lo numa pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.
Apesar de o Ministério Público já ter interposto recurso do acórdão do Tribunal de Segunda Instância, o juiz do Tribunal Judicial de Base entende que ‘seja qual for a decisão do Tribunal de Última Instância sobre o recurso, não haverá lugar à redução da medida concreta da pena aplicada pelo Tribunal de Segunda Instância’; por outro lado, nos termos das al.s f) e g) do n.º 1 do art.º 390.º do Código de Processo Penal, o requerente já não pode recorrer da decisão acima referida, pelo que, ‘em termos jurídicos, a decisão deve já ter produzido efeitos em relação aos condenados’, por isso, decidiu fazer a liquidação da pena única acima referida (5 anos e 6 meses de prisão) e extraiu o respectivo certidão para ser remetido ao Juízo de Instrução Criminal, o qual instaurou o processo de execução da pena de prisão.
O referido despacho de liquidação da pena foi notificado, por carta registada, à defesa da requerente em 19 de Dezembro de 2023.
Por despacho do Juiz do Tribunal de Segunda Instância, de 21 de Dezembro de 2023, foi declarada extinta, de imediato, a medida de coacção aplicada ao requerente, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 198.º do Código de Processo Penal, por o requerente já ter iniciado a execução da pena. O mesmo despacho foi igualmente notificado à defesa da requerente através da notificação de 21 de Dezembro de 2023.
Até ao presente momento, a requerente não impugnou a decisão do Tribunal Judicial de Base (nem do Tribunal de Segunda Instância).
Em suma, a medida de prisão preventiva aplicada ao requerente foi declarada extinta em 21 de Dezembro de 2023, o estado de prisão preventiva em que o requerente se encontrava cessou de imediato e o requerente já começou a cumprir a pena.
O requerente invoca como fundamento da extinção da prisão preventiva e da sua libertação imediata o facto de já ter expirado a duração máxima da prisão preventiva, que é de 2 anos.
Mas na realidade, o juiz do Tribunal de Segunda Instância já decretou a extinção da prisão preventiva, encontrando-se o requerente neste momento na fase de cumprimento da pena.
Tendo em conta que o requerente já não se encontra em prisão preventiva, são manifestamente improcedentes os pressupostos e fundamentos do pedido de habeas corpus apresentado pelo recorrente3.
Face ao exposto, decido rejeitar o pedido.”
De acordo com os dados constantes dos autos, o requerente recorreu, respectivamente, em 19 de Janeiro de 2024, do despacho do juiz do Tribunal Judicial de Base que procedeu à liquidação da pena (e que determinou a execução da pena de prisão) e do despacho do juiz do Tribunal de Segunda Instância que declarou extinta a prisão preventiva por o requerente já ter iniciado a cumprir a pena.
Em virtude do recurso interposto pelo requerente, a Relatora teve dúvidas sobre se o presente processo devia prosseguir, pelo que notificou o requerente para se pronunciar. O requerente entende que as referidas decisões do Tribunal Judicial de Base e do Tribunal de Segunda Instância ainda não transitaram em julgado, reiterando o seu ponto de vista sobre a prisão ilegal, defendendo que, independentemente de haver ou não recurso pendente e independente das vicissitudes processuais, o tribunal deve sempre prosseguir com o presente processo e deferir o seu pedido de habeas corpus, de natureza urgente.
Salvo o devido respeito, não podemos concordar com a posição da requerente.
Em primeiro lugar, do disposto no artigo 398.º do Código de Processo Penal resulta que o recurso interposto pelo requerente não tem efeito suspensivo, mas meramente devolutivo, pelo que o recurso não obsta à produção de efeitos das decisões judiciais recorridas.
Em segundo lugar, como se referiu, o habeas corpus é uma medida extraordinária (e não um processo comum de recurso), uma medida especial para proteger a liberdade das pessoas, uma medida excepcional de remédio sem qualquer outro meio que possa pôr termo à violação ilegal da liberdade. Por outras palavras, as medidas de habeas corpus não podem ser adoptadas se existirem outras soluções e meios de resolução.
Por outro lado, o habeas corpus não é um exame substancial da decisão tomada pela autoridade competente. O requerente não pode, mediante um requerimento de habeas corpus, pôr em causa a justiça e a legalidade da decisão da autoridade competente com vista à sua alteração.
A requerente entende que a sua prisão constitui a situação de prisão ilegal prevista no art.º 206.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal.
O que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito de providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso ordinário.4
E o habeas corpus também não é o meio próprio de impugnação da oportuna liquidação da pena, que sendo definida e decidida em despacho judicial, somente poderá ser impugnável por via de recurso ordinário5, e não por via de apresentação de um requerimento de habeas corpus.
No caso dos autos, o requerente continua preso por decisão dos juízes do Tribunal Judicial de Base e do Tribunal de Segunda Instância, de que recorreu.
Como existem efectivamente outros meios de apreciação da legalidade da prisão por parte dos tribunais superiores, entende o Tribunal Colectivo que os pressupostos para o decretamento da providência excepcional de habeas corpus deixam de existir, pelo que não há lugar ao prosseguimento do presente processo para conhecer da reclamação deduzida pela requerente.
Nestes termos, nos termos da alínea e) do artigo 229.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal, decreta-se a extinção da presente instância.
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em decretar a extinção da presente instância.
Custas pelo requerente, com taxa de justiça fixada em 6 UC.
26 de Janeiro de 2024
Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai
1 Deve ser o artigo 449.º.
2 Cfr. o acórdão do Tribunal de Última Instância de 31 de Março de 2004, proferido no processo n.º 11/2004.
3 Deve ser o requerente.
4 Cita-se aqui, em termos de direito comparado, o acórdão do STJ de 26 de Abril de 2014, proferido no processo 6/14.2YFLSB.S1.
5 Cita-se aqui, em termos de direito comparado, o acórdão do STJ de 18 de Maio de 2022, proferido no processo 1649/19.3JAPRT-A.S1.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
(Tradução)
40
Processo n.º 111/2023