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Processo nº 728/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data do Acórdão: 07 de Fevereiro de 2024

ASSUNTO:
- Usucapião
- Lei das Terras
- Venda sujeita a autorização

SUMÁRIO:
- Dependendo de prévia autorização a transmissão inicial do direito sobre fracção autónoma construída em terreno concedido por arrendamento de acordo com o nº 5 do artº 9º da Lei nº 10/2013 não pode esse direito ser adquirido por usucapião.


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Rui Pereira Ribeiro




Processo nº 728/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 07 de Fevereiro de 2024
Recorrente: A
Recorrida: Sociedade de Investimento B, Limitada
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  A, com os demais sinais dos autos,
  vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
  Sociedade de Investimento B, Limitada, também, com os demais sinais dos autos,
  Pedindo a Autora/Recorrente que seja a Ré/Recorrida a:
1. Reconhecer que a autora, pelo menos desde 11 de Agosto de 1999 até à presente data, tem exercido a posse sobre a fracção autónoma com finalidade habitacional, sita na XXX (descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXX B11);
2. Declarar a autora como legítima proprietária da fracção autónoma por a ter adquirido por usucapião.
  
  Proferida sentença, foi a acção julgada parcialmente procedente e em consequência:
1. Reconhece que a Autora, desde 11 de Agosto de 1999 até à presente data, tem exercido a posse sobre a fracção autónoma “B11”, sita na XXX (descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXX);
2. indefere o outro pedido formulado pela Autora.
  
  Não se conformando com a decisão proferida vem a Autora e agora Recorrente interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões e pedidos:
1. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo TJB no processo epigrafado, na qual se reconhece que desde 11 de Agosto de 1999 até à presente data, a recorrente tem exercido a posse sobre a fracção autónoma com finalidade habitacional, sita na XXX (descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXX B11), indeferindo-se, no entanto, o outro pedido da recorrente – declarar a recorrente como legítima proprietária da fracção autónoma por a ter adquirido por usucapião;
2. Consta das fls. 220v a 222v dos autos a fundamentação da supracitada decisão de indeferimento, tomada pela sentença recorrida.
3. Quanto aos factos, tendo sido regularmente citada pelo Tribunal a quo, a ré não contestou no prazo legal, pelo que nos termos do art.º 405.º, n.º 1 do CPC, consideram-se reconhecidos os factos articulados na petição pela autora, e constam da sentença recorrida os factos básicos que servem de fundamento dela (vide as fls. 216v a 219 dos autos).
4. São fundamentos do presente recurso: 1. (Aplicação das leis no tempo) Da aplicação da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras; 2. Interpretação do art.º 9.º, n.º 5 da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras.
5. (Aplicação das leis no tempo) Da aplicação da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, tanto a sentença recorrida como o despacho constante das fls. 198 dos autos consideraram, ao abrigo dos dispostos no art.º 216.º, n.º 1 e n.º 3 da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, que a concessionária optou pela aplicação da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, por não ser apresentada, pelos condóminos de XXX, a declaração no sentido de a concessão do terreno envolvido continuar a reger-se pela legislação anterior.
6. Sintetizados os elementos constantes dos autos, os condóminos de XXX, não declararam, no prazo estipulado no n.º 1 do art.º 216.º da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, que a concessão do terreno envolvido continuara a reger-se pela legislação anterior, razão pela qual se considera que a concessionária optou pela aplicação da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras; quanto à aplicação no tempo da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, há que se conjugar com o disposto no n.º 1 do art.º 11.º (princípio geral) do Código Civil, quer dizer, a referida lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular; o legislador não atribuiu eficácia retroactiva à Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, pelo que a Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, só dispõe sobre as concessões do terreno feitas após a sua entrada em vigor (ou seja no dia 1 de Março de 2014) e sobre os direitos resultantes dessas concessões; no que respeita à aplicação das leis no tempo, prevista pelo art.º 11.º do Código Civil (correspondente ao art.º 12.º do Código Civil de Portugal), segundo o entendimento explanado pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no seu acórdão n.º 510/07.9TBCBC.G1 de 17/12/2013, proferido num caso semelhante ao presente caso, às situações jurídicas já existentes ou constituídas antes da entrada em vigor da nova lei, e aos respectivos efeitos jurídicos produzidos, deve-se continuar a aplicar a lei antiga; e a nova lei só regula as relações jurídicas ainda não constituídas;
7. De acordo com os elementos constantes dos autos, no dia 15 de Agosto de 1989 (data da declaração constante das fls. 57 dos autos), já estavam verificados os elementos de corpus e animus possidendi da recorrente relativamente ao direito de propriedade da fracção envolvida, resultante da concessão do terreno envolvido, e a recorrente já se considerou proprietária da mesma fracção, pelo que, até à data da entrada em vigor da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, a recorrente já possuiu a fracção envolvida há mais de 20 anos, quer dizer, antes da entrada em vigor da referida lei, já decorreu o tempo legal necessário para que a recorrente adquirisse por usucapião o direito de propriedade da fracção envolvida; o direito pretendido pela recorrente já existiu e foi constituído antes da entrada em vigor da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, pelo que deve aplicar-se à acção de usucapião intentada pela recorrente a Lei n.º 6/80/M, em vez da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras; o art.º 8.º da Lei n.º 6/80/M não proibiu a aquisição por usucapião da fracção envolvida, pelo que, face à verificação dos requisitos da usucapião, deve-se declarar que a recorrente adquiriu o direito de propriedade da fracção envolvida.
8. Da interpretação do art.º 9.º, n.º 5 da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, nos termos do art.º 9.º, n.º 5 da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, caso na presente lei ou no respectivo contrato de concessão do terreno esteja prevista a proibição de transmissão do direito resultante da concessão por arrendamento ou do domínio útil ou a sujeição da transmissão desses direitos a autorização prévia ou a outras restrições, não podem esses direitos ser adquiridos por usucapião; por isso, para saber se é permitido adquirir o direito de propriedade da fracção envolvida por meio de usucapião, precisamos de analisar se a Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, ou o contrato de concessão do terreno em causa, previu ou não a proibição de transmissão do direito resultante da concessão por arrendamento ou do domínio útil, ou a sujeição da transmissão desses direitos a autorização prévia ou a outras restrições;
9. Em primeiro lugar, o registo provisório da concessão por arrendamento do terreno em causa foi feito no dia 4 de Agosto de 1987, e a respectiva concessão baseou-se nos contratos de desenvolvimento para a habitação regulados pelo DL n.º 124/84/M; os contratos de desenvolvimento para a habitação são contratos especiais de concessão de terrenos a celebrar entre a Administração Pública e empresas de construção civil operando no Território, em que estas se comprometem a desenvolver em terrenos do domínio privado do Território, a construção de habitação de baixo custo, em contrapartida de benefícios e apoios diversos a conceder pela Administração; daí que, o terreno envolvido foi concedido, por arrendamento, à ré para o desenvolvimento e a construção de habitação de baixo custo, com a consequente venda aos indivíduos qualificados; e nos termos do art.º 6.º do DL n.º 124/84/M, o acesso dos interessados à habitação poderá ser feita por qualquer uma das seguintes vias: por inscrição no Gabinete Coordenador da Habitação, para todos os agregados ou grupos de pessoas que apresentem níveis mensais de rendimento, inferiores a determinados valores a fixar anualmente em portaria; ou por negociação directa com a empresa construtora, para todos os agregados interessados na compra de fogos ou no seu arrendamento na forma de renda condicionada;
10. Voltamos ao caso concreto, conforme o que consta das fls. 54 e 56 dos autos, o requerimento, do Sr. C, de compra da habitação a construir no terreno envolvido, concedido por arrendamento, foi dirigido directamente à ré; e o contrato de aquisição da fracção envolvida também foi celebrado directamente entre a ré e C. Ao mesmo tempo, a certidão de registo predial da fracção envolvida releva que, após a conclusão do registo da propriedade horizontal, não foi transferida a fracção, sendo a concessionária (ré) titular do direito de propriedade da mesma fracção; pelo que, a compra da habitação envolvida foi feita, na forma prevista pelos art.ºs 6.º, n.º 2, al. b), 32.º e 33.º do DL n.º 124/84/M, por negociação directa entre o Sr. C e a empresa construtora; e tal compra não necessitou de obter a autorização prévia de qualquer serviço do Governo, desde que o Sr. C preenchesse os requisitos estipulados no n.º 3 do art.º 6.º do referido diploma;
11. Conjugando com as finalidades da concessão do terreno envolvido, constantes da certidão do registo predial da fracção envolvida, não está envolvida a proibição de transmissão do direito resultante da concessão por arrendamento ou do domínio útil, nem se encontra qualquer cláusula que sujeite a transmissão desses direitos a autorização prévia ou a outras restrições; após consulta da Conservatória do Registo Predial e requerimento da emissão duma cópia do (eventual) documento acima referido, o funcionário da CRP respondeu que o respectivo documento não se encontrava depositado na mesma Conservatória; ao mesmo tempo, atento o conteúdo da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, não se encontra a aludida norma restritiva; tanto a Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, como o contrato de concessão do terreno envolvido, não impuseram as restrições acima referidas, pelo que ao caso sub judice não se aplica o n.º 5 do art.º 9.º da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, pelo contrário, ao abrigo dos dispostos no n.º 3 do supracitado artigo da Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, só pode ser adquirido por usucapião o direito resultante da concessão onerosa por arrendamento, inscrito definitivamente a favor de particular no registo predial, quando essa concessão se torne definitiva; in casu, a ré obteve, de forma onerosa, a concessão por arrendamento do terreno envolvido, que por sua vez, já se tornou definitiva no dia 11 de Agosto de 1999; além disso, segundo a certidão do registo predial da fracção envolvida, esta é propriedade da concessionária (ou seja a ré), que é uma pessoa colectiva, não de direito público, mas sim integra-se na categoria de empresários comerciais privados, pelo que pode ser adquirido por usucapião o direito resultante da concessão por arrendamento envolvida, definitivamente inscrita.
12. Pelo exposto, independentemente de se aplicar ou não a Lei n.º 10/2013 – Lei de Terras, pode a recorrente adquirir por usucapião o direito de propriedade da fracção envolvida.
Nestes termos e nos melhores de direito que o MM.º Juiz do TSI doutamente suprirá, pede-se para julgar integralmente procedentes os pedidos da recorrente, declarar a recorrente como legítima proprietária da fracção autónoma envolvida por a ter adquirido por usucapião, e anular a decisão proferida pelo tribunal recorrido.
  
  Notificada a Ré/Recorrida do recurso da Autora, esta silenciou.
  
  Foram colhidos os vistos.
  
  Cumpre, assim, apreciar e decidir.
  
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Factos
  
  A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
1. A ré é uma sociedade limitada, com sede na XXX, e registada na Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis sob o n.º XXX, cujo objecto social é aquisição, alienação e construção de prédios em Macau, aquisição e alienação de quaisquer outros bens, direitos móveis e imóveis e bem assim a prática de todos os actos necessários atinente a estas operações. (vide as fls. 14 a 41 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
2. Por meio do Despacho n.º 75/SAES/87 do Secretário-Adjunto para o Equipamento Social, de 14 de Maio de 1987, foi concedido, por arrendamento, à ré um terreno urbano sito na Rua Um à Rua Onze do Bairro Tamagnini Barbosa, (descrito na CRP sob o n.º XXX), com as cláusulas de concessão constantes das fls. 181 a 184 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
3. A referida concessão foi revista pelo Despacho n.º 11/SATOP/99 do Secretário-Adjunto para os Transportes e Obras Públicas, de 19 de Fevereiro de 1999, com as cláusulas de revisão constantes das fls. 185 a 187 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
4. Em 17 de Novembro de 1987, a ré celebrou com C um “Contrato de Aquisição de Habitação”, pelo qual a ré prometeu vender a C e este prometeu comprar a fracção habitacional sita na XXX (adiante designada por “fracção em causa”). (vide as fls. 54 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
5. Por volta de Agosto de 1989, por enfrentar dificuldades na circulação de fundos devido à celebração de casamento, C decidiu alienar a fracção em causa à autora, e as partas convencionaram que a autora pagaria a C as despesas pagas ao Governo e o preço pago por este para a compra da “fracção em causa”. (vide as fls. 55 e 56 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
6. Para adquirir a “fracção em causa”, a autora pagou a C as quantias convencionadas.
7. Depois de ter recebido as referidas quantias, C prestou a seguinte declaração no dia 15 de Agosto de 1989:
“Eu, C, venho por este meio entregar a fracção sita em XXX, a A, que por sua vez, pagará o preço da fracção. Ambas as partes concordam em celebrar a presente declaração e a assinam para comprovar a sua veracidade.” (vide as fls. 57 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
8. C e sua mulher D assinaram a referida declaração para comprovar a sua veracidade e puseram as suas impressões digitais.
9. Depois, em conformidade com o supracitado “Contrato de Aquisição de Habitação” celebrado entre a ré e o Sr. C, e com a convenção entre o Sr. C e a autora, esta pagou, oportunamente, à ré o preço de aquisição da “fracção em causa”, até integral pagamento.
10. A fracção sita em XXX, indicada no supracitado “Contrato de Aquisição de Habitação”, corresponde à fracção “B11” constante do registo predial (descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXX, cujas informações prediais constam das fls. 42 a 53 dos autos).
11. Depois de ser concluído o registo da propriedade horizontal da “fracção em causa” e ter recebido a chave em 11 de Agosto de 1999, C entregou a chave da “fracção em causa” à autora.
12. Desde a recepção da chave à fracção em causa, a autora, o marido dela e os seus filhos começaram a viver na “fracção em causa”.
13. A autora alegou ser dona da “fracção em causa”, comprou todos os mobiliários e aparelhos eléctricos existentes na fracção, procedeu à decoração da mesma, e pagou, em numerário, as despesas de água, electricidade, gás e condomínio, as contribuições prediais, o foro e o seguro de incêndio da “fracção em causa”, entre outras despesas.
14. Quer os moradores vizinhos, quer o administrador que exercia funções nos primeiros dias seguintes à emissão da licença de utilização da “fracção em causa”, sabiam que a família da autora morava na “fracção em causa” e a autora alegava ser dona desta.
15. A família da autora precisou de desocupar a “fracção em causa”, e durante o período, a autora colocou os artigos diversos na “fracção em causa”, dirigiu-se frequentemente à “fracção em causa” para fazer limpeza e receber as cartas, e pagou as despesas de água, electricidade, gás e condomínio, as contribuições prediais, o foro e o seguro de incêndio da “fracção em causa”.
16. Em meados de 1999, C recebeu a carta enviada pela advogada E, que o notificou para proceder aos trâmites de celebração de escritura (vide as fls. 131 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
17. C e a autora perguntaram à ré e ao Instituto de Habitação sobre a alteração do titular do direito resultante do “Contrato de Aquisição de Habitação” para a autora, mas o IH respondeu que não podia ser alterado o promitente-comprador do “Contrato de Aquisição de Habitação”, pelo que C nunca procedeu aos trâmites de celebração de escritura relativa à “fracção em causa”.
18. Após discussão, a autora e C entenderam que foi apenas por causa dos procedimentos e formalidades legais é que não podia alterar o promitente-comprador do “Contrato de Aquisição de Habitação”, pelo que decidiram suspender temporariamente o tratamento do respectivo assunto.
19. A partir de 2005, a autora arrendou, em nome de dona da fracção e através da Agência Fomento Predial XX, a “fracção em causa” a outrem, e até à presente data, todos os impostos do Governo (o foro e as contribuições prediais), as despesas de condomínio, o foro e o seguro de incêndio da “fracção em causa” são pagos pela autora, e as despesas quotidianas de água, electricidade e gás, entre outras, são suportadas pelos arrendatários.
20. Posteriormente, por ser cessado o arrendamento e não encontrado de imediato um novo arrendatário, a “fracção em causa” encontrava-se vaga, e durante o período, a autora dirigiu-se, por várias vezes, à “fracção em causa” para fazer limpeza e trabalhos de conservação, incluindo substituir as lâmpadas e reparar as paredes.
21. A autora nunca exigiu que C ou qualquer outra pessoa reembolsasse as supracitadas despesas realizadas com a respectiva fracção, porque desde 11 de Agosto de 1999, tem entendido que ela é dona da “fracção em causa” e é responsabilidade dela suportar as respectivas despesas.
22. C ou outras pessoas nunca devolveram à autora as supracitadas despesas realizadas com a “fracção em causa”.
23. A autora nunca pagou a renda à ré, a C ou qualquer pessoa por ter habitado na fracção em causa.
24. Nunca havia ninguém que exigiu à autora a restituição da “fracção em causa”, ou invocou a violação, por parte da autora, de qualquer direito sobre a mesma fracção.
25. A autora está convicta de que todos os actos de gestão, praticados por ela em relação à “fracção em causa”, não violam os eventuais direitos ou interesses de qualquer pessoa.
26. Desde o dia 15 de Agosto de 1989, todos os assuntos relacionados com a “fracção em causa” têm sido tratados pela autora, no entanto, veio a autora exigir que o Sr. C apostasse a sua assinatura em parte dos documentos quando fosse necessário. Excepto a assinatura, o Sr. C não teve nenhuma intervenção no tratamento dos assuntos respeitantes à “fracção em causa”, pelos quais se responsabilizou, efectivamente, a autora.
27. Até à presente data, a autora ainda exerce, de modo contínuo e ininterrupto, a apreensão material da fracção em causa, responsabilizando-se, sobretudo, por suportar as despesas de condomínio, as contribuições prediais e o foro, e as despesas de manutenção (as despesas de água, electricidade e gás são pagas pelos parentes que vivem temporariamente na “fracção em causa”), bem como arrendar a fracção ou emprestá-la a outrem para habitação.
28. No dia 17 de Fevereiro de 2021, o IH oficiou à fracção em causa exigindo o acompanhamento de certos assuntos, e depois, foi a autora, em vez do Sr. C, que se dirigiu, em pessoa, ao IH para tratar dos respetivos assuntos.

b) Do Direito

  É o seguinte o teor da decisão recorrida:
  «No caso sub judice, a autora pediu ao tribunal para declarar que ela adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre a fracção autónoma “B11”, sita na Avenida de Artur Tamagnini Barbosa, XXX.
  Nos termos do art.º 1212.º do Código Civil (correspondente ao art.º 1287.º do Código Civil de 1966), “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.”
  Quanto à noção da posse, dispõe-se no art.º 1175.º do Código Civil (correspondente ao art.º 1251.º do Código Civil de 1966) que “posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”
  Dos art.ºs 1175.º (correspondente ao art.º 1251.º do Código Civil de 1966) e 1177.º, al. a) (correspondente ao art.º 1253.º, al. a) do Código Civil de 1966) do Código Civil resulta que, a posse é composta por dois elementos, ou seja, o corpus possidendi e o animus de proprietário (ou de outro direito real).
  O corpus corresponde aos actos materiais praticados no exercício de certos poderes sobre a coisa, enquanto o animus equivale à intenção de agir como titular do direito real.
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  Corpus possidendi
  In casu, de acordo com os artigos 11, 12, 15, 19, 20 e 27 dos factos provados, a autora, desde 11 de Agosto de 1999, data em que concluiu o registo da propriedade horizontal da fracção autónoma “B11” e recebeu, junto de C, a chave, começou a viver na mesma fracção com a família, e a partir daí, tem exercido o controlo e o poder de facto sobre a fracção, incluindo arrendou a fracção a outrem em 2005, e tem a liberdade de decidir como usar a fracção, pelo que deve-se entender que, está verificado o corpus da posse da respectiva fracção autónoma, exercida pela autora desde 11 de Agosto de 1999.
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  Animus possidendi
  Quanto ao aminus que a autora tem no exercício do poder de facto sobre a fracção em causa, o Tribunal, atendendo aos artigos 4 a 9, 11 a 15, 18 a 23, e 26 a 27 dos factos provados, pode entender que C assinou uma declaração unilateral, pela qual alienou à autora o direito de aquisição da fracção autónoma envolvida, tendo a autora pago a C na íntegra o preço que este tinha pago à ré (promotora do empreendimento), bem como o restante do preço necessário à aquisição da mesma fracção. No dia 11 de Agosto de 1999, foi entregue à autora a chave da fracção envolvida, e a partir daí, a autora e a família dela têm ocupado e fruído o imóvel envolvido, pagaram as contribuições prediais, as despesas de água, electricidade, condomínio, o foro e o seguro de incêndio, fizeram limpeza e realizaram obras de manutenção e decoração, bem como arrendaram a fracção a outrem, situação essa que permaneceu por um período relativamente longo, pelo que entende o Tribunal que há factos suficientes para sustentar que, no exercício do poder de facto sobre o imóvel, a autora tem a intenção de agir como proprietário do mesmo imóvel. Mesmo que a autora saiba perfeitamente que para se tornar proprietário jurídico, ainda necessita de tratar de certos trâmites legais, isto, no meu entender, não impede que, de facto, a autora se considere verdadeiro dono do imóvel envolvido.
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   Estando verificados os requisitos de corpus e de animus da posse, é de reconhecer, nos termos do art.º 1175.º do Código Civil, que a autora começou a exercer a posse sobre a fracção autónoma “B11” desde 11 de Agosto de 1999.
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   Natureza da posse exercida pela autora
  Ao abrigo dos dispostos nos art.ºs 1185.º, n.º 1 e 1186.º do Código Civil (correspondentes aos art.ºs 1261.º, n.º 1 e 1262.º do Código Civil de 1966), a posse ora em questão não foi constituída com violência, e de acordo com os factos provados, é público o exercício da posse por parte da autora, e todos interessados têm condições para tomar conhecimento da apreensão exercida pela autora sobre o imóvel envolvido, sendo assim a posse pacífica e pública.
  Por outro lado, não é titulada a posse exercida pela autora, pois ao abrigo dos dispostos no art.º 1183.º, n.º 1 do Código Civil (correspondente ao art.º 1259.º, n.º 1 do Código Civil de 1966), diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo abstractamente idóneo para adquirir o direito nos termos do qual se possui, no entanto, como resulta dos elementos constantes dos autos, a aquisição da posse pela autora fundou-se na transferência do direito resultante do “Contrato de Aquisição de Habitação” celebrado entre C e a ré, e a autora sabia bem que o que adquiriu através do documento constante das fls. 55 a 57 dos autos era apenas a posição contratual de C no “Contrato de Aquisição de Habitação”, e precisaria de continuar a pagar o preço e proceder aos trâmites de celebração de escritura no futuro. Por isso, em bom rigor, a autora não celebrou com C qualquer contrato de compra e venda de imóvel. Considerando que o acordo celebrado entre a autora e C não constituiu qualquer negócio jurídico abstractamente idóneo para adquirir o direito, é de considerar intitulada a posse da autora.
  Estando em causa uma posse não titulada, presume-se de má fé conforme o art.º 1184.º, n.º 2 do Código Civil (correspondente ao art.º 1260.º, n.º 2 do Código Civil de 1966). Porém, a ré não contestou, o que importou reconhecimento dos factos articulados pela autora, incluindo o artigo 26º da petição inicial (artigo 25 dos factos provados), segundo o qual a autora, subjectivamente, está convicta de que os actos de gestão praticados por ela não violam os interesses de qualquer pessoa. Surge aqui a seguinte questão: para determinação da boa fé prevista no n.º 1 do art.º 1184.º do Código Civil, deve-se aplicar os critérios meramente psicológicos ou os critérios éticos. Caso seja aplicável o primeiro critério, só é preciso ponderar se o possuidor tinha ou não conhecimento subjectivo de que os seus actos lesavam o direito de outrem; caso contrário, é ainda necessário ponderar se o possuidor, sem culpa, ignorou a violação do direito alheio.
  Das circunstâncias do caso e dos documentos constantes dos autos resulta que, na altura em que C transferiu o direito resultante do “Contrato de Aquisição de Habitação” para a autora, esta tinha conhecimento da existência do documento constante das fls. 56 dos autos, do qual constava que: “7. Consinto que o montante de MOP$3.000,00 que paguei sirva apenas para adquirir a fracção autónoma, e não possa, em caso algum, ser restituído ou transmitido a outrem. Se mude de opinião e decida não comprar a fracção, o referido montante considera-se sinal perdido”. Por outro lado, atento o artigo 17 dos factos provados, C e a autora perguntaram à ré e ao IH sobre a alteração do titular do direito resultante do “Contrato de Aquisição de Habitação” para a autora, mas o IH respondeu que não podia ser alterado o promitente-comprador do “Contrato de Aquisição de Habitação”, e segundo o senso comum, deveria a autora, a partir de então, ficar em condições de ter consciência de que o seu direito não seria reconhecido pela ré e pelo IH, ou que a sua posse da fracção autónoma envolvida contraria à vontade da ré ou do IH e lesaria o direito de outrem.
  Porém, à luz do entendimento dominante1, e segundo o sentido literal do art.º 1184.º, n.º 1 do Código Civil (correspondente ao art.º 1260.º, n.º 1 do Código Civil de 1966), para verificação da boá fé mencionada na respectiva norma, parece que será ponderado apenas o estado psicológico e subjectivo do possuidor, não se devendo fazer qualquer juízo moral e ético, ou seja, sem necessidade de indagar se a ignorância do possuidor é inocente ou não.
  Assim, entendo que a confissão da ré é susceptível de ilidir a presunção de má fé, fundada na posse intitulada, quer dizer, a posse da autora diz-se de boa fé.
*
  Usucapião
  Ao abrigo dos dispostos no art.º 1221.º do Código Civil (correspondente ao art.º 1296.º do Código Civil de 1966), não havendo título e registo da posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse for de boa fé, e de 20 anos, se for de má fé.
  A posse da autora diz-se de boa fé, pelo que o prazo necessário para o efeito de usucapião é de 15 anos, a contar do dia 11 de Agosto de 1999, e terminou no dia 11 de Agosto de 2014.
  Porém, como se referiu no despacho constante das fls. 198 dos autos, quanto à questão de aplicação de direito, não se pode deixar de considerar as novas restrições impostas, pelo art.º 9.º da Lei n.º 10/2013, à aquisição por usucapião do direito resultante da concessão por arrendamento.
  Nos termos do art.º 9.º, n.º 5 da referida Lei: “Caso na presente lei ou no respectivo contrato de concessão do terreno esteja prevista a proibição de transmissão do direito resultante da concessão por arrendamento ou do domínio útil ou a sujeição da transmissão desses direitos a autorização prévia ou a outras restrições, não podem esses direitos ser adquiridos por usucapião”. (sublinhado nosso)
  De acordo com o artigo 2 dos factos provados, o edifício onde se localiza a fracção autónoma envolvida foi construído num terreno concedido por arrendamento, e à luz da cláusula 11ª, n.º 1 do respectivo contrato de concessão, a ré, ao vender a fracção, obrigou-se a observar os dispostos no art.º 33.º do DL n.º 124/84/M e os restantes números da mesma cláusula, dos quais o n.º 6 dispôs expressamente que a ré devia comunicar previamente a promessa de venda da fracção ao concedente e obter a autorização prévia do Gabinete Coordenador da Habitação antes de concluir a compra e venda, sob pena de nulidade da compra e venda – vide as fls. 182v dos autos.
  Como é óbvio, a supracitada concessão impôs, expressamente, autorização prévia e restrições à transmissão do direito resultante da concessão por arrendamento, pelo que, ao abrigo dos dispostos no art.º 9.º, n.º 5 da Lei n.º 10/2013, não pode esse direito ser adquirido por usucapião após a entrada em vigor da mesma Lei.
  No entanto, vale a pena mencionar a questão da aplicação da Lei n.º 10/2013 no tempo, ou seja, se as novas restrições impostas pela mesma Lei podem regular os prazos em curso.
  Sobre a aplicação das leis no tempo, o art.º 11.º do Código Civil dispõe o seguinte:
Artigo 11.º
(Aplicação das leis no tempo. Princípio geral)
  1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
  2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
  À luz da referida norma, em regra, vigora o “princípio da não retroactividade”, ou seja, a nova lei aplica-se apenas às circunstâncias futuras, e, ainda que seja susceptível de regular os factos ocorridos no passado, não prejudica os efeitos jurídicos já produzidos.
  In casu, o que enfrentamos é um direito constituendo.
  Ao abrigo dos dispostos no art.º 1212.º do Código Civil, a usucapião faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, e a produção desse efeito da aquisição do direito depende da verificação de dois requisitos: primeiro, a existência da posse; e segundo, o decurso do tempo legalmente previsto.
  Por isso, a posse não produz imediatamente o efeito de usucapião, o que é diferente das outras figuras jurídicas, por exemplo, a ocupação. Só pode ser produzido o resultado de aquisição do direito depois de a posse do agente ter durado certo lapso de tempo, e através da invocação da usucapião. Assim, no caso sub judice, o tempo é o factor decisivo.
  Voltamos ao caso concreto, e como atrás já se referiu, o prazo da usucapião invocada pela autora devia ser completado em 11 de Agosto de 2014, e nos termos do art.º 1213.º do Código Civil, invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse. Mas, após a entrada em vigor da Lei n.º 10/2013, foram impostas novas restrições e requisitos à aquisição por usucapião do direito resultante da concessão por arrendamento. De acordo com o art.º 223.º da Lei n.º 10/2013, esta entrou em vigor no dia 1 de Março de 2014, ou, dito por outra palavra, precisamente antes do termo do supracitado prazo da usucapião. Dest’arte, cumpre analisar se a respectiva lei impede os pedidos formulados pela autora, questão essa que, conforme os fundamentos mencionados no despacho constante das fls. 198v dos autos, constitui excepção peremptória de conhecimento oficioso.
  Das disposições transitórias sobre a aplicação da Lei n.º 10/2013 no tempo resulta que, o legislador não estabeleceu regras transitórias especiais para a situação da autora, isto porque, os dispostos nos art.ºs 212.º e segs. da mesma Lei aplicam-se apenas aos procedimentos de concessão em curso, às concessões do pretérito e às ocupações, entre outras situações. De facto, não se encontra na referida Lei qualquer disposição transitória que diga respeito ao pedido da usucapião formulado pela autora (que não é requerente ou concessionário da concessão), pelo que devem ser aplicáveis as disposições gerais no Código Civil.
  Considerando que até à data da entrada em vigor da Lei n.º 10/2013, a autora ainda não adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade da fracção autónoma envolvida, não há direito adquirido, pelo que a aplicação da Lei n.º 10/2013, ainda que imediata e directa, não violará o art.º 11.º, n.º 1 do Código Civil.
  Quanto a esse aspecto, ou seja se a nova lei pode ou não ser directamente aplicável às situações jurídicas constituendas, o Prof. J. BAPTISTA MACHADO ensinou o seguinte: “A LN2 é competente para regular a constituição ou a extinção das SsJs3 cujo processo constitutivo ou extintivo ainda não estava concluso no momento da sua entrada em vigor, salvo no que respeita à validade, sob o aspecto formal e (segundo cremos) do ponto de vista da capacidade, dos actos jurídicos integrados nesse processo que tenham sido praticados sob a LA4. Deste modo, sem incorrer em retroactividade, a LN pode, designadamente;
a) Recusar a possibilidade de constituição ou de certa modalidade de constituição daquele tipo de SJ.
b) Considerar irrelevantes para o mesmo fim os factos passados sob o domínio da LA que, em face desta lei, eram havidos como factos virtualmente constitutivos ou extintivos.
c) Exigir novas condições para a constituição ou para a extinção da SJ em causa.” – cfr. «Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil», Almedina, 1968, p.158-159.
  No caso em apreço, a nova Lei de Terras impôs restrições adicionais à aquisição por usucapião do direito resultante da concessão por arrendamento, proibindo tal aquisição quando do contrato de concessão do terreno conste cláusula restritiva de transmissão, situação essa que se enquadra na supracitada al. a), e na altura em que a nova lei entrou em vigor, o direito invocado pela autora ainda não se chegou a constituir, razão pela qual, mesmo que a nova lei atinja a posse já iniciada, não se pode entender que tem efeito retroactivo e quebra a legítima expectativa da autora.
  Do ponto de vista de direito comparado, o Tribunal da Relação de Guimarães também decidiu sobre casos semelhantes, e chegou à seguinte conclusão num processo de usucapião, no qual se provou que o imóvel envolvido foi monumento classificado e não se podia invocar a usucapião:
  “1. No domínio da aplicação de leis no tempo, a lei nova, em princípio, aplica-se a situações jurídicas novas. Mesmo que tenha eficácia retroactiva, deve respeitar os efeitos jurídicos produzidos.
  2. Nas situações em que o tempo é elemento constitutivo, se já tiver ocorrido o tempo necessário para a constituição da situação jurídica, a lei nova não se aplica.
  3. No caso de ainda não ter ocorrido o tempo necessário para terminar o processo de constituição, é de aplicar a lei nova, para impedir a sua constituição.”5
  Ressalvado respeito pela opinião diferente, afigura-se-nos que merece acolhimento o supracitado entendimento, ou seja, no caso de entrar em vigor, antes de ter ocorrido o tempo necessário para a usucapião, uma nova lei que a limite, aplica-se imediatamente a nova lei.
  Com a aplicação imediata do n.º 5 do art.º 9.º da Lei n.º 10/2013 (que entrou em vigor no dia 1 de Março de 2014), será causada a consequência necessária de ser o tribunal impedido de reconhecer a aquisição por usucapião do direito de propriedade da fracção autónoma envolvida “B11”.».
  
  Do nº 6 da cláusula décima primeira do contrato de concessão por arrendamento referente ao prédio a que se reportam os autos, dado por reproduzido nas alíneas 2 e 3 da matéria de facto consta que:
  «Cláusula décima primeira - Comercialização dos fogos do segundo outorgante
  1. A venda de fogos pertencentes ao segundo outorgante reger-se-á pelo disposto no artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 124/84/M, de 29 de Dezembro, devendo o segundo outorgante observar, nomeadamente, os condicionalismos constantes dos números seguintes desta cláusula.
  2. O segundo outorgante obriga-se a vender os fogos de sua pertença, exclusivamente, a indivíduos que satisfaçam cumulativamente as seguintes condições:
a) Tenham idade igual ou superior a 18 anos;
b) Residam em Macau, no mínimo, há 5 anos;
c) Possuam documento de identificação, emitido pela Administração do Território;
d) Não sejam proprietários de nenhum imóvel em Macau (edifício, fracção autónoma ou terreno);
e) Não sejam concessionários de qualquer terreno do domínio privado do Território.
  3. O segundo outorgante obriga-se, ainda, a vender apenas um fogo a cada pessoa interessada, desde que o mesmo se destine a habitação própria do comprador. A venda de fogos, destinados a arrendamento a celebrar nos termos da cláusula 13.ª, não fica sujeita ao estipulado na primeira parte deste número nem ao estipulado no n.º 2 desta cláusula.
  4. O segundo outorgante compromete-se a reservar livres, para efeitos de venda obrigatória a agregados familiares a indicar pelo primeiro outorgante, 7,5% dos fogos de sua pertença até 6 meses, contados a partir da data da publicação no Boletim Oficial do despacho que autoriza o presente contrato. Esgotado este prazo, e caso a lista de agregados familiares, fornecida pelo primeiro outorgante, não preencha o número de fogos reservados, poderá o segundo outorgante vender os fogos restantes a quaisquer outros indivíduos interessados, se prejuízo do cumprimento dos demais condicionalismos estipulados nesta cláusula e na lei.
  5. O segundo outorgante obriga-se, na comercialízação dos fogos da sua pertença a respeitar os preços máximos de venda fixados no preçário que se junta em anexo (Anexo III). Os mesmos serão actualizáveis, semestralmente, a pedido do segundo outorgante, sendo utilizado para o efeito o índice de peços no consumidor, publicado pela Direcção dos Serviços de Estatística e Censos de Macau para o semestre anterior.
  6. O segundo outorgante compromete-se a comunicar ao primeiro outorgante, em impresso próprio fornecido pelo GCH, as promessas de venda assumidas, para efeitos de obtenção de autorização prévia para a concretização das vendas. Esta autorização será emitida pelo Gabinete Coordenador da Habitação e constituirá documento indispensável à celebração das escrituras de compra e venda, sendo consideradas nulas e de nenhum efeito as vendas realizadas à margem deste procedimento.
  7. Adicionarão à reserva de fogos da Administração, mencionada no nº 4 desta cláusula, os fogos da empresa cujos promitentes-compradores desistam da compra após ter o GCH emitido já o respectivo termo de autorização e compra.
  8. No caso dos promitentes-compradores terem acesso ao regime de subsídios, criado pelo Decreto-Lei n.º 3/86/M, de 4 de Janeiro, e sempre que se verifique a situação prevista no n.º 4 do artigo 7.º daquele diploma, o segundo outorgante compromete-se, sob pena de vir a perder os benefícios fiscais previstos na cláusula 18.ª deste contrato, a depositar aquela diferença junto do Fundo para Bonificações ao Crédito à Habitação (F.B.C.H.), no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, contados a partir da data da notificação para o efeito.».
  
  Destarte, dúvidas não há que as vendas das fracções autónomas do edifício a que se reportam os autos feitas pelo concessionário inicial têm de ser aprovadas pela autoridade competente.
  No caso em apreço trata-se da venda inicial da fracção autónoma objecto destes autos.
  Regendo o artº 11º do C.Civ. sobre a aplicação da leis no tempo, o certo é que, a actual Lei das Terras, Lei nº 10 /2013 no seu artº 216º define o regime da aplicação na lei no tempo, sobrepondo-se ao regime consagrado no artº 11º do C.Civ..
  A interpretação feita na decisão recorrida está de acordo com a indicada norma, sendo a actual Lei das Terras aplicada à situação dos autos.
  Pelo que, pese embora o prazo bom para a aquisição por usucapião se tenha completado antes da entrada em vigor da actual Lei, aplicando-se esta à concessão do prédio em causa não pode a fracção em causa ser adquirida por usucapião uma vez que nos termos do nº 5 do artº 9º da Lei nº 10/2013 a transmissão inicial daquele direito depende de autorização prévia.
  Na data da entrada em vigor da Lei 10/2013 não havia sentença a declarar a aquisição do direito.
  Tal como tem vindo a ser jurisprudência uniforme do TUI6 a posse do direito real não se confunde com o direito real, e a invocação da usucapião com base naquela posse só se deu quando já estava em vigor a Lei nº 10/2013, ou seja, quando aquele direito já não era usucapível, pelo que, não pode a mesma – a usucapião - ser reconhecida.
  
  Destarte, bem se decidiu na decisão recorrida, nada mais havendo a acrescentar aos fundamentos da decisão recorrida, para os quais remetemos e aderimos integralmente nos termos do nº 5 do artº 631º do CPC, impondo-se negar provimento ao recurso, mantendo-a.
  
III. DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
  
  Custas a cargo da Recorrente.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 07 de Fevereiro de 2024
  
  Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
  (Relator)
  
  Fong Man Chong
  (1º Adjunto)
  
  Ho Wai Neng
  (2º Adjunto)
1 Do ponto de vista de direito comparado, pode-se tomar como referência os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal:
- De 8.5.2003, proferido pelo relator Dr. Ferreira Girão, acessível na www.dgsi.pt;
- De 9.10.2003, proferido pelo relator Dr. Santos Bernardino, acessível na www.dgsi.pt;
- De 11.1.2005, proferido pelo relator Dr. Azevedo Ramos, acessível na www.dgsi.pt;
- De 19.3.2009, proferido pelo relator Dr. Mário Cruz, acessível na www.dgsi.pt;
- De 28.5.2009, proferido pelo relator Dr. Santos Bernardino, acessível na www.dgsi.pt.
2 Abreviatura de Lei Nova.
3 Abreviatura de Situações Jurídicas.
4 Abreviatura de Lei Antiga.
5 Vide o Acórdão proferido pelo TRG em 17 de Dezembro de 2013, no Proc. n.º 510/07.9TBCBC.G1, www.dgsi.pt.
6 Vejam-se Acórdãos do Tui de 05.07.2006 Processo nº 32/2005 e de 22.10.2008 Processo nº 34/2008.
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728/2023 CÍVEL 4