Processo nº 208/2023
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 07 de Fevereiro de 2024
ASSUNTO:
- Renovação de autorização de residência
- Residência habitual
SUMÁRIO:
1. No n.º 5 do artigo 43.º da Lei n.º 16/2021, o legislador veio esclarecer que o conceito de residência habitual relevante enquanto pressuposto da manutenção e da renovação da autorização de residência temporária, não exige que Macau constitua o centro efectivo da vida pessoal e familiar do interessado, o qual nem sequer precisa de aqui ter a sua habitação para pernoitar.
2. Resulta expressamente daquela norma que «não deixa de ter residência habitual o titular que, embora não pernoite na RAEM, aqui se desloque regular e frequentemente para exercer actividades de estudo ou profissional remunerada ou empresarial», pelo que, ao lado das pessoas que em Macau fixaram com carácter estável e permanente o seu centro de interesses, o centro efectivo da sua vida, e que, por isso, residem habitualmente em Macau, também em relação às pessoas que aqui apenas exercem uma actividade, seja académica, seja profissional, seja empresarial, ainda que aqui não vivam, se tem de considerar, face ao critério legal, que aqui residem habitualmente, desde que aqui se desloquem «regular e frequentemente» para exercer tais actividades.
3. Igualmente se deve entender que tem residência habitual em Macau quem trabalhando para empresa com sede em Macau por exigências profissionais tem de exercer a sua actividade no exterior mantendo a sua residência em Macau e aqui se deslocando sempre que possível para passar férias e se reunir com a família e amigos.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 208/2023
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 07 de Fevereiro de 2024
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Economia e Finanças
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Economia e Finanças de 27.01.2023 que indeferiu o pedido de renovação da autorização de fixação de residência, formulando as seguintes conclusões:
1. A Recorrente contenciosa face ao “despacho de indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência temporária da Requerente A” proferido pelo Exmº Sr. SEF em 27 de Janeiro de 2023 com base parecer nº 0074/2013/02R, vem nos termos do artº 21º do CPAC interpor recurso contencioso.
2. A Recorrente contenciosa entende que enferma de diversos vícios que implica a anulação, pelo que a decisão do Exmº Sr. SEF não é acto válido.
3. O acto em causa existe erro no pressuposto de facto: A Recorrente desde 2013 foi contratada e nomeada como representante principal da MASTV destacada em Beijing, e seu cargo nunca mudou ao longo dos anos.
4. A Recorrente contenciosa, como apresentadora e representante principal da MASTV Co., Ltd., foi destacada pela empregadora a Beijing para responsabilizar pela produção do programa "Três Vidas Com Sorte", cujo conteúdo principal é introduzir conhecimentos relacionados com a saúde e o desenvolvimento da medicina na China.
5. Durante a permanência da Recorrente contenciosa em Beijing, ela ainda continuava a cumprir as ordens e seguir as indicações da empregadora MASTV Co., Ltd., e o seu horário de trabalho e aprovação do programa são tudo supervisionado e apreciado pela MASTV Co., Ltd. localizada em Macau.
6. Os convidados do programa "Três Vidas Com Sorte" são todos médicos especialistas dos principais hospitais da China, e alguns deles ocupam cargos de director e sub-director de hospitais da RPC, e por causa do cargo, eles não podem vir pessoalmente a Macau para serem entrevistados.
7. Além disso, todo o equipamento para gravação e filmagem do programa estão instalados em Beijing, devido à urgência e pontualidade do programa, toda a preparação prévia, gravação das entrevistas, selecção, produção e edição, têm de ser concluídas em Beijing. Sendo a Recorrente coordenadora e apresentadora do programa, do mesmo modo, só podia permanecer em Beijing para fazer o seu trabalho.
8. Como representante principal da MASTV destacada em Beijing, a Recorrente contenciosa tem ainda outra tarefa que é preparar contactos com vários departamentos do governo da China.
9. A por possuir o título de representante principal da MASTV em Beijing, é que permite, em representação da companhia, angariar negócios e coordenar com a produção de programas. A Recorrente devido à especificidade da sua profissão de ser pessoal da mídia, por isso tem de ficar em Beijing para concluir o seu trabalho.
10. Desde 10/10/2013, a Recorrente contenciosa obteve autorização de residência temporária para técnicos especializados, a partir de então, ela sempre considerou Macau como a sua única residência.
11. Toda a família da Recorrente: seu pai B, sua mãe C e sua irmã D e família, são todos residentes permanentes de Macau
12. A Recorrente e sua mãe C adquiriram em conjunto um imóvel em Macau para habitação sita na XXX, Macau.
13. A Recorrente contenciosa sempre pagou os impostos de acordo com a lei de Macau ao longo dos anos.
14. A maior parte dos bens da Recorrente contenciosa encontra-se em Macau, ela tem conta bancária aberta em Macau.
15. Um dos fundamentos que indeferiu o pedido da Recorrente foi que seu salário é inferior à média do salário dos técnicos especializados de outros sectores de trabalho, mas de acordo com a lei de residência temporária não impõe qualquer exigência sobre o salário mensal dos Requerentes de autorização de residência temporária; acresce que o salário mensal de MOP$30.000 é suficiente para a Recorrente manter um bom nível de vida em Macau.
16. A Recorrente sempre exerceu o cargo de representante principal e apresentadora da MASTV em Beijing, o local de trabalho sempre incluía Beijing.
17. A Recorrente sempre trabalhou para a empregadora de Macau MASTV, portanto prova-se que seu centro de trabalho fica em Macau.
18. Relativamente ao conteúdo da análise dos vários pontos do parecer nº 0074/2013/02R, incluindo “mudança de local de trabalho”, “residência eventual”, “o centro de trabalho já não se encontra em Macau”, “não tem grande vontade de permanecer em Macau” etc., a Recorrente não concorda, entende que não corresponde com o facto de a Recorrente considerar Macau como o centro da sua vida, portanto houve erro no reconhecimento do facto.
19. Torna a salientar a opinião do TSI, se por motivo de serviço é destacado para uma companhia filial situada no exterior por um longo período tempo, deve também entender que a pessoa considera Macau como sua residência habitual.
20. Além disso, do conhecimento geral, por causa da pandemia, a partir de 2020, por várias vezes, implementou políticas de controle e quarentena, a Recorrente com vista a não afectar a transmissão do programa, não pôde regressar a Macau é justa causa, pelo que não deve reconhecer que a Recorrente deixou de ter residência habitual em Macau.
21. No ponto 8, al. (7) do parecer alega que a Recorrente não reside habitualmente em Macau. A “residência habitual” é um conceito impreciso que não pertence ao âmbito do poder discricionário da entidade administrativa; bem como, a situação concreta da Recorrente, excepto por razões de trabalho não permaneceu muitos dias em Macau, de resto preenche absolutamente as exigências de “residência habitual” previstas na lei.
22. Designadamente a Recorrente contenciosa trabalha para uma companhia de telecomunicações de radiodifusão televisiva e pela especificidade da sua profissão foi destacada para trabalhar em Pequim, bem como o facto da pandemia preenchem por força maior disposto no artº 4º da Lei n.º 8/1999, 1) O motivo, período e frequência das ausências constitui fundamento razoável do não regresso temporário a Macau; preenche “2) tem residência habitual em Macau, ela própria já adquiriu um imóvel em Macau; 3) trabalha para uma instituição de Macau, a MASTV Co. Ltd.; 4) seus principais familiares, ela é solteira, os pais residem em Macau.” através dos diversos factores permitem concluir que não se deve considerar que a Recorrente contenciosa deixou de residir habitualmente em Macau.
23. A decisão tomada pela entidade administrativa violou os princípios da cooperação e do inquisitório.
24. A situação da Recorrente de ter sido destacada para trabalhar em Beijing, já existia desde que apresentou o primeiro pedido de residência temporária para técnicos especializados em 2013, e continua a existir;
25. Na altura não por causa disso rejeitou o pedido, e aquando em 2016, a Recorrente apresentou o pedido de renovação da residência temporária para técnicos especializados também não rejeitou o pedido.
26. Até que em 2019, de repente, usou essa situação para indeferir o seu pedido, tal faz pensar que a entidade administrativa aquando tomou a decisão violou os princípios de cooperação e de boa fé.
27. A autoridade administrativa apenas concedeu 10 dias de cada vez para proceder a audiência escrita, a Recorrente já tinha dito claramente que por razões de trabalho não lhe é possível preparar atempadamente os materiais e desejaria prorrogar o prazo; contudo a entidade em causa rejeitou a prorrogação, que por sua afectou a entidade recorrida a tomar uma decisão administrativa com exatidão, ao mesmo tempo, também não agiu com cooperação e boa fé.
28. O acto recorrido apenas com fundamento de que a Recorrente nos últimos anos permaneceu poucos dias em Macau, determinou arbitrariamente que a Recorrente deixou de considerar Macau como centro da sua vida, pois ignorou que a Recorrente por motivo de trabalho foi destacada para trabalhar em Beijing, nem deu qualquer oportunidade à Recorrente para provar esse ponto.
29. Além do mais, a Recorrente, por várias vezes, apresentou respostas, enfatizou a especificidade da sua profissão, bem como também frisou que não pôde regressar a Macau por motivo de serviço, mas a entidade administrativa não analisou quanto a isso.
30. Pelo exposto, a decisão da entidade administrativa não foi tomada de boa fé, nem cooperou estreitamente com particulares, assim como violou o princípio do inquisitório, resultando insuficiência da matéria fática, devendo, portanto, esta decisão administrativa ser anulada.
31. De acordo com o relatório de investigação do CCAC de 2018, o pedido de renovação de residência temporária não é apreciado se o requerente reside em Macau e qual a duração do tempo de residência.
32. Ora, para um pedido de residência já existente no passado, de acordo com o princípio jurídico de “lei desfavorável à parte não é retroativa”, certamente que não pode aplicar uma lei desfavorável à Recorrente, pois deve aplicar os critérios do passado para avaliar a “residência habitual” do presente pedido.
33. A entidade administrativa face a este caso, aplicou erradamente o artº 18º do RA nº 3/2005 e artº 43º, nº 3 do n.º 2, al. 3 e nº 3 do da Lei nº 16/2021.
34. O RA nº 3/2005 não estipulou exigências sobre o salário mensal dos requerentes do pedido de autorização de residência temporária, portanto, o salário da Recorrente é inferior à média do salário dos técnicos especializados de outros sectores de trabalho referente ao quarto trimestre de 2020 que é de MOP$40.000,00, não pode ser fundamento de indeferimento do seu pedido.
35. Além disso, a pandemia nos últimos 3 anos causou a recessão económica, pelo que é justificável o salário da Recorrente não ter aumentado durante esse período.
36. Torna a salientar que a Recorrente tem muitas ligações com Macau, e todos os membros da família da Recorrente vivem há muito tempo em Macau; a Recorrente e a sua mãe são proprietárias comuns de um imóvel em Macau usado como residência em Macau; a Recorrente é trabalhadora de uma companhia de Macau MASTV; a Recorrente por ordem da sua empregadora foi destacada para trabalhar em Beijing; A recorrente paga habitualmente o imposto profissional em Macau. Ela nunca alterou os pressupostos que fundamentaram o deferimento do pedido inicial.
37. A residência habitual é um conceito impreciso, a autoridade administrativa não tem nenhum espaço de discricionariedade.
38. Uma vez que a Requerente preenche os requisitos de "residência habitual" e durante a residência temporária não houve alteração da situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão dessa autorização, portanto, a autoridade administrativa só pode adoptar apenas a (única) solução que é nos termos do artº 19º do RA nº 5/2003 autorizar o pedido de renovação da autorização de residência da Recorrente.
39. Pelo exposto, o indeferimento do pedido de autorização de residência temporária desta vez violou o princípio da aplicação da lei ou padece de vícios, nos termos do artº 124º, o despacho do Exmº Sr. SEF é anulável.
Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Economia e Finanças contestar, apresentando as seguintes conclusões:
1. A decisão que a entidade recorrida proferiu em 27 de Janeiro de 2023 no sentido de indeferir o pedido de renovação da autorização de residência da recorrente não padece dos vícios invocados por esta última.
2. Na determinação da residência habitual, relevam não só o lugar onde o indivíduo reside, como ainda o centro da sua vida pessoal e as relações (jurídicas) aí estabelecidas pelo mesmo, relações que têm de ser “efectivas e estáveis”.
3. No caso em apreço, a recorrente permanece poucos dias por ano em Macau (cfr. ponto 8, al. (3) da decisão recorrida, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). Ela trabalha permanentemente no exterior, e viaja para Macau menos de 10 vezes por ano, onde normalmente permanece durante 3 a 5 dias de cada vez. Anualmente, tem aqui uma permanência mais longa, mas apenas durante cerca de 10 dias. A única ligação que tem a Macau é o facto de ser contratada por um empregador de Macau.
4. A recorrente encontra-se destacada em Pequim, e o seu trabalho é inteiramente feito aí. Ela não precisa de vir trabalhar para Macau.
5. As funções exercidas pela recorrente desenvolvem-se sempre em Pequim. Nesse caso, cremos que não se pode concretizar a finalidade do regime de residência – atrair para Macau investimentos economicamente eficientes, captar técnicas especiais e quadros de elevada qualidade, com contributos adequados, de longo prazo e continuados para Macau.
6. A recorrente limitou-se a apresentar comprovativo de bem imóvel para provar que o tinha comprado juntamente com seu membro familiar. Mas não se vislumbra qualquer prova de ela conviver com a família.
7. O facto de a sua família viver em Macau não se torna uma ligação relevante da recorrente a Macau.
8. Desde a primeira vez que lhe foi concedida a autorização de residência até agora, a recorrente sempre trabalha em Pequim, o que obviamente não é mera ausência temporária, mas antes ausência permanente de Macau.
9. A recorrente, pela sua própria vontade, mantém o centro da sua vida no exterior de Macau. Macau é apenas um lugar para onde viaja pontualmente, quando necessário.
10. É mais do que normal escolher o local de residência que ache adequado. No entanto, trata-se da mesma escolha com a qual se deparam muitos requerentes da autorização de residência para actividade de investimento – mudar-se para Macau ou ficar no local de residência.
11. Convém mencionar que muitos talentos já vieram para Macau através do regime de residência. Trazendo familiares, vieram aqui trabalhar, estudar, residir e desenvolver a vida, contribuindo para a região.
12. Concluindo, a recorrente não tem qualquer ligação pessoal a Macau, para além de às vezes precisar de aqui se deslocar e de ser contratada por um empregador de Macau. Também não tinha a intenção de mudar-se para Macau depois de lhe ter sido concedida a autorização de residência.
13. Do número de dias de permanência da recorrente em Macau, dos motivos da sua ausência e do lugar onde se centra a sua vida resulta que ela nunca desenvolveu a sua vida em Macau nem estabeleceu qualquer ligação efectiva e estável a Macau. Logo, não preenche as exigências relativas à residência habitual.
14. A decisão recorrida não viola os princípios da colaboração e do inquisitório.
15. O indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência da recorrente deveu-se, principalmente, ao facto de ela não residir habitualmente em Macau. Foram realizadas diligências de averiguação adequadas por parte das autoridades, incluindo a solicitação dos registos de migração da recorrente junto do CPSP.
16. Cabe à própria recorrente provar os factos de natureza pessoal e os factos que só ela conhece.
17. Recai sobre o interessado o ónus de provar os seus factos pessoais, por ele os conhecer melhor e estar assim melhor posicionado para apresentar todas as provas que militem a seu favor.
18. No respectivo procedimento administrativo, a recorrente dispunha de tempo e oportunidade suficiente para se pronunciar sobre a referida questão, e já apresentou os respectivos documentos.
19. Tanto a Lei n.º 16/2021 (nova legislação geral de migração), como a Lei n.º 4/2003 (antiga lei reguladora da migração), que foi revogada pela primeira, estabelecem que o titular de autorização de residência tem de “residir habitualmente” em Macau.
20. A Lei n.º 16/2021 não prevê qualquer norma inovadora em relação à residência habitual. É errado dizer que a nova lei (Lei n.º 16/2021) é desfavorável à recorrente.
21. “Residência habitual” é um conceito indeterminado que não tem critério legalmente estabelecido.
22. A Administração tem de ter em conta todos os elementos concretos para decidir se a recorrente “reside habitualmente” em Macau.
23. Se Macau fosse o lugar onde a recorrente reside habitualmente, ainda que o seu trabalho, pela sua natureza, imponha que se desloque ao exterior para exercer as suas funções profissionais, regressaria após concluídos os trabalhos para aqui residir e desenvolver a vida pessoal, isto é, trabalhar no escritório de Macau, aqui descansar nos tempos livres, passar férias, encontrar-se com amigos e participar em actividades. Não teria vindo a Macau apenas ocasionalmente.
24. De acordo com os factos constantes dos autos, a recorrente permanece em Macau muito poucos dias por ano, e passa a maioria do seu tempo a trabalhar e viver no exterior. Daí resulta claro que Macau não é o lugar onde a recorrente vive normalmente e costuma regressar.
25. Ter contrato de trabalho com empregador de Macau ou familiares que aqui residam não é suficiente para a determinação da residência habitual.
26. O RA n.º 3/2005 tem como finalidade legislativa reter os talentos de especial valor em Macau, para aqui trazerem, através dos seus trabalhos, novos conhecimentos e novas perspectivas, e desenvolverem o seu papel orientador, de modo a elevar a qualidade e impulsionar o desenvolvimento da população e da economia social de Macau. Só desta forma pode o regime de autorização de residência desempenhar bem o seu papel.
27. Razão pela qual, e a fim de defender os interesses sociais e salvaguardar o valor fundamental do regime de autorização de residência para investimento, não é de renovar a autorização de residência que não preenche os respectivos pressupostos e condições.
As partes foram notificadas para apresentar alegações facultativas, o que a Recorrente fez.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer pugnando pela procedência do recurso.
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
A factualidade com base na qual foram praticados os actos recorridos consiste no seguinte:
a) Em 14.02.2013, a Recorrente na qualidade de “apresentadora” requereu pela primeira vez ao IPIM, a autorização de residência temporária para técnicos especializados, o pedido foi deferido em 10 de Outubro do mesmo ano – cf. fls. 27 a 31 -;
b) Quando a Recorrente apresentou pela primeira vez o pedido, entregou um documento comprovativo emitido pela Companhia de Televisão por Satélite MASTV, Limitada onde consta que é responsável pela edição e apresentação dos programas “Vida Saudável” (produzido na China) e “Macau Múltiplos Fenómenos”, na cláusula 4 do contrato de trabalho consta expressamente que “o local de trabalho situa-se na XXX, Macau, e a Parte A, em caso de necessidade profissional, pode mudar o local de trabalho da Parte B” – cf. fls. 28 e 29 -;
c) Em Abril de 2013, o presidente da MASTV Co., Ltd. nomeou a Recorrente para assumir o cargo de representante principal e apresentadora da MASTV em Beijing, representando a sede da MASTV na comunicação com as entidades de todos os níveis do governo central e empresas de grande envergadura em Beijing. Auxiliando e responsabilizando ainda pelos trabalhos de cobertura e operação da sede TV nas zonas de Beijing, do Norte e Nordeste da China; assim como, desempenhar apresentadora e responsável principal do programa “Três Vidas Com Sorte”, transmitindo ordens aos vários departamentos e companhias relacionadas – cf. fls. 32 -;
d) Em 23.05.2016, a Requerente requereu a renovação da autorização de residência temporária para técnicos especializados e o pedido foi deferido em 1 de Julho do mesmo ano – cf. fls. 33 a 42 -;
e) A Recorrente no seu pedido de renovação também entregou um documento comprovativo emitido pela MASTV Co., Ltd. onde consta que desempenha “o cargo de apresentadora e simultaneamente representante principal da estação de reportagem de Beijing” e na cláusula 4 do contrato de trabalho indica expressamente que “o local de trabalho situa-se na XXX, Macau, e a Parte A, em caso de necessidade profissional, pode mudar o local de trabalho da Parte B” – cf. fls. 33 a 42 -;
f) Nos últimos anos, a MASTV Co., Ltd., começou a usar o apartamento sito no XXX, Beijing, como escritório principal para o pessoal destacado em Beijing – cf. fls. 45 -;
g) Em 15.05.2019, a Requerente requereu a renovação da autorização de residência temporária para técnicos especializados. A Requerente preencheu no fundamento do pedido, a profissão: “apresentadora e simultaneamente representante principal da estação de reportagem de Beijing”, e novamente apresentou documentos comprovativos emitidos pela MASTV Co., Ltd. onde consta que é representante principal destacada em Beijing, “local de trabalho: 1. XXX, Macau, 2. apartamento sito no XXX, Beijing”, nesse formulário indica que seus pais B e C residem em Macau – cf. fls. 43 a 53 -;
h) MASTV Co., Ltd. é uma companhia registada e estabelecida em Macau desde 16.12.2000 – cf. fls. 54 a 56 -;
i) A Recorrente como apresentadora e representante principal da MASTV Co., Ltd., foi destacada pela empregadora a Beijing para responsabilizar pela produção do programa “Três Vidas Com Sorte”, cujo conteúdo principal é introduzir conhecimentos relacionados com a saúde e o desenvolvimento da medicina na China – cf. fls. 89 a 94 -;
j) Os convidados do programa “Três Vidas Com Sorte” são todos médicos especialistas dos principais hospitais da China, e alguns deles ocupam cargos de director e sub-director de hospitais da RPC, e por causa do cargo, eles não podem vir pessoalmente a Macau para serem entrevistados – cf. fls. 89 a 94 -;
k) Todo o equipamento para gravação e filmagem do programa estão instalados em Beijing, devido à urgência e pontualidade do programa, toda a preparação prévia, gravação das entrevistas, selecção, produção e edição, têm de ser concluídas em Beijing. Sendo a Recorrente coordenadora e apresentadora do programa, do mesmo modo, só podia permanecer em Beijing para fazer o seu trabalho – cf. fls. 95 a 97 -;
l) Como representante principal da MASTV destacada em Beijing, a Recorrente tem ainda outra tarefa que é preparar contactos com vários departamentos do governo da China, tal trabalho para ser concluído também exige que a Recorrente tenha de permanecer em Beijing – cf. fls. 95 a 97 -;
m) A Recorrente é solteira, seu pai B, sua mãe C e sua irmã D, desde 2005 requereram para ser residentes de Macau – cf. fls. 106 a 109 -;
n) Os pais da Recorrente, B, e C, passaram a viver em Macau – cf. depoimento da 1ª testemunha -;
o) A irmã mais velha da Recorrente, D, é violinista da Orquestra de Macau desde 2003, ela tem trabalhado e vivido em Macau até à presente data – cf. fls. 110 -;
p) Em 14.05.2014, a Recorrente e sua mãe C adquiriram em conjunto um imóvel em Macau para habitação sita na XXX, Macau – cf. fls. 112 e 113 -;
q) A Recorrente sempre pagou os impostos de acordo com a lei de Macau ao longo dos anos – cf. fls. 114 -;
r) Nos últimos anos, excepto por motivo de serviço que se desloca a Beijing, a Recorrente sempre tem regressado a Macau para gozar ferias e unir-se com a família – cf. depoimento da 1ª testemunha -;
s) A vida familiar da Recorrente gira em torno de Macau – cf. depoimento da 1ª testemunha -;
t) A Recorrente nas suas férias encontra-se em Macau com os amigos – cf. depoimento da 1ª testemunha -;
u) Antes da pandemia, a Recorrente basicamente, em 1 a 2 meses, tinha que voltar para Macau para ter uma reunião com a administração da companhia para expor sobre revisão da organização do trabalho - cf. depoimento da 2ª testemunha -;
v) Desde 16.03.2020 até final de 2022, Beijing implementou uma política de quarentena às pessoas que regressam do exterior para Beijing – cf. fls. 120 a 122 -;
w) Quer seja a primeira e nova estreia ou episódios selecionados, a Recorrente precisa de trabalhar horas extras, das segundas a sextas e fins de semana em Beijing para apresentar e produzir o programa - cf. depoimento da 2ª testemunha -;
x) Com vista a garantir que a produção e transmissão do programa “Três Vidas Com Sorte” não seja afectada pela política da pandemia, a Recorrente só podia permanecer maior parte do tempo no período entre 2020 a 2022 em Beijing para assegurar o posto de trabalho - cf. depoimento da 2ª testemunha -;
y) Durante a pandemia, a Recorrente continuava a manter contacto com a administração da MASTV e relatava o trabalho online;
z) Durante a pandemia a Recorrente mantinha em assegurar a importante tarefa de relatar e entrevistar o pessoal médico da linha de frente, porque o seu desejo é informar as notícias, em primeira mão, à população de Macau;
aa) Em Janeiro de 2023, depois de Beijing ter cancelado o bloqueio, a Recorrente regressou, imediatamente, para Macau e permaneceu 16 dias para passar o ano novo chinês com a sua família - cf. fls. 132 a 133 -;
bb) A Recorrente está precisamente a requerer à MASTV, para ser transferida de volta para Macau, a fim de acompanhar a sua família- cf. fls. 134 a 135 -;
cc) Por a Recorrente possuir abundantes recursos de medicina na China e longa experiência na mídia, é que conseguiu ajudar a MASTV a criar com sucesso o programa “Três Vida Com Sorte” em 2013, e durante 10 anos sacrificou o seu tempo de união com a família, a fim de contribuir para o programa, foi por persistir em estar destacada no posto de trabalho em Beijing é que este programa conseguiu manter a transmissão durante os últimos 3 anos difíceis por causa da pandemia - cf. depoimento da 2ª testemunha -;
dd) No seguimento do pedido de renovação de autorização de residência em Macau formulado pela Recorrente foi o mesmo indeferido por Despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças datado de 27.01.2023, nos termos e com os fundamentos da Parecer nº 0074/2013/02R elaborado pela IPIM, a qual consta de fls. 22 a 25 e traduzida a fls. 239 a 247 e com o seguinte teor:
Assunto: Apreciação do pedido de residência temporária
Gerente da DAFR:
1. Elementos de identificação da interessada:
Nº
Nome
Relação
Documento de identificação
Validade do documento
Autorização de residência temporária até
Primeiro pedido e estendido aos membros familiares
1
A
Requerente
Passaporte da RPC nº XXX
29/05/2026
10/10/2019
Não aplicável
2. O primeiro pedido de autorização de residência da requerente foi deferido em 10/10/2013.
3. De acordo com os elementos constantes nos autos, por enquanto não se verifica que a requerente cometeu infrações penais.
4. Para efeito de renovação, a requerente apresentou o contrato de trabalho e documentos relacionados, nos quais demonstram o seguinte (vide fls. 11 a 31):
Nome do empregador: MASTV Co., Ltd. (vide fls. 25)
Designação do cargo: Apresentadora e simultaneamente Representante principal da Estação de Reportagem de Beijing (vide fls. 25)
Remuneração base: MOP$30.000,00 (vide fls. 23)
Data da contratação: Desde 30/04/2013, o contrato actual não tem prazo (vide fls. 25)
5. Da apreciação dos documentos do pedido de renovação desta vez, apurou-se que a Requerente mantém ainda o mesmo cargo e a trabalhar para a mesma entidade patronal, o salário base mantém-se MOP$ 30.000,00 que é inferior à média do salário dos técnicos especializados de outros sectores de trabalho referente ao quarto trimestre de 2020 que são MOP$40.000,00, o presente contrato não tem prazo, e já declarou/pagou o imposto profissional nos termos legais.
6. Em 29/05/2019 e 12/01/2021, o nosso instituto através dos ofícios nº 02553/DJFR/2019 e nº OF/00032/DJFR/2021 solicitou à PSP para fornecer os registos de entradas e saídas fronteiriças da requerente, cujos dados são os seguintes (vide fls. 33 a 42):
Período
Dias de permanência da requerente
01/01/2017 a 31/07/2017
45
01/01/2018 a 31/07/2018
32
01/01/2019 a 31/07/2019
31
01/01/2020 a 31/07/2020
6
Porém, de acordo com os registos de entradas e saídas fronteiriças da requerente, não é suficiente para demonstrar que ela considera Macau como centro da sua vida, pelo que já não reúne as condições para manter a autorização de residência temporária.
7. Com base na situação acima referida, em 25/01/2021, o nosso instituto abriu processo de audiência à interessada (vide fls. 170 a 172), posteriormente, em 03/02/2021 a requerente respondeu por e-mail e respectivamente em 08 e 10 de Fevereiro de 2021, apresentou resposta por escrito e documentos relevantes (vide fls. 173 a 266, 269 a 321), cujo conteúdo principal é o seguinte:
(1) Em 03/02/2021, a Requerente através de e-mail declarou ao vosso serviço que a própria é representante principal e apresentadora da MASTV em Beijing, sempre permaneceu em Beijing a produzir gravações do programa “Três Vidas Com Sorte” para ser transmitida na hora mais assistida do MASTV, sem interrupção mesmo no período da pandemia. A missão de trabalho é intensa, a pressão é alta, não só tem de planear e produzir programas, assim como, tem de contactar com especialistas, assumir a apresentação, e ao mesmo tempo tem de responsabilizar pelo trabalho de comunicação e contacto entre o governo e as empresas; dado à gravidade da situação de prevenção e controle da pandemia em Beijing, ultimamente o pessoal do departamento de reportagem e notícias não pode sair livremente de Beijing, posto isto, não me é possível voltar para entregar pessoalmente os documentos, pelo que incumbe a minha mana D para entregar a resposta escrita.
(2) O documento emitido pela empregadora da Requerente afirma que a Requerente é representante principal e apresentadora da MASTV destacada em Beijing, a qual é responsável principal da produção e apresentação do programa fixo sobre saúde denominada por “Três Vidas Com Sorte” transmitida na hora mais assistida da MASTV, desde há vários anos que este programa é gravado em Beijing, as equipas de gravação, estúdio e produção, incluindo os principais médicos, médicos especialistas dos principais hospitais entrevistados, todos estão localizados em Beijing. Além disso, em 2020 por causa da pandemia COVID-19 e das exigências de prevenção e controle da pandemia, Beijing e Macau também têm respectiva política de quarentena, durante esse período, a equipa da requerente não parava de planear, produzir e apresentar o programa "Três Vidas Com Sorte", ao mesmo tempo, a própria requerente sempre ficou em Beijing a apresentar programas de saúde e produziu um grande número de programas sobre saúde relacionados com a prevenção e controle da pandemia, por outro lado, também ajudou a respectiva TV a abrir e expandir os negócios em Beijing, muito contribuiu para a companhia, tanto no planeamento e produção de programas, assim como, na obtenção de receitas provenientes da publicidade, e esforçou muito para aproximar Macau da China. Que não só contribuiu para que a China conheça e goste de Macau, assim como promoveu o desenvolvimento e intercâmbio acerca da medicina, turismo cultural, tecnologia e demais aspectos entre a China e Macau.
(3) Ao mesmo tempo, a Requerente apresentou cronograma do trabalho, o mapa de revisão do programa, cartas para convidar os especialistas para participar na gravação do programa, folhetos de publicidade do programa “Três Vidas Com Sorte” e busca predial.
8. A análise da resposta supracitada é a seguinte:
(1) Nos termos do artº 18º e 23º do RA n.º 3/2005 com aplicação subsidiária do artº 43º, nº 2, al. 3) da lei nº 16/2021, o interessado deve manter, durante todo o período de residência temporária autorizada, os pressupostos ou condições subjacentes à concessão da autorização de residência, a situação juridicamente relevante e a residência habitual.
(2) Nos termos do artº 4º, nº 4 da Lei n.º 8/1999: “Para a determinação da residência habitual do ausente, relevam as circunstâncias pessoais e da ausência, nomeadamente: 1) O motivo, período e frequência das ausências; 2) Se tem residência habitual em Macau; 3) Se é empregado de qualquer instituição sediada em Macau; 4) O paradeiro dos seus principais familiares, nomeadamente cônjuge e filhos menores. ";
(3) Através dos registos de entradas e saídas fronteiriças da Requerente fornecidos pela PSP, demonstra que a requerente entre 2017 a 2020 permaneceu anualmente em Macau 45, 32, 31 e 6 dias respectivamente, as entradas em Macau em 2017 foram 10 vezes, em 2018 foram 6 vezes, em 2019 foram 7 vezes e em 2020 só uma vez, durante quatro anos, cada vez a requerente permanecia em Macau entre 1 a 11 dias, e os dias de permanência em Macau foram diminuindo, além disso depois da saída em 27/01/2020, nunca mais houve registo de entrada até 31/12/2020, portanto houve um intervalo de ausência de 11 meses, o que revela que a requerente maior parte do tempo não se encontrava em Macau.
(4) A requerente através do formulário de pedido de residência temporária declarou residir "na XXX (vide fls. 1) e ao mesmo tempo, a requerente durante o processo de audiência escrita apresentou relatório do registo predial da referida moradia e comprovativo de residência (vide fls. 264 e 266), no qual demonstra que a requerente e seu familiar C adquiriram conjuntamente a referida propriedade em 14/05/2014 para residência, mas de acordo com os registos de entradas e permanência em Macau, é difícil de refletir que ela reside habitualmente em Macau, o imóvel adquirido em comum com seu familiar em Macau é apenas “residência eventual” da requerente.
(5) Embora a requerente continua a trabalhar para a “MASTV Co., Ltd.”, contudo de acordo com o documento emitido por essa companhia em 09/02/2021 (vide fls. 269 a 270), a requerente está atualmente em Beijing, foi destacada pela empregadora MASTV para assumir o cargo de representante principal, apresentadora e responsável por um programa fixo gravado em Beijing há muitos anos. No entanto, de acordo com os contratos de trabalho apresentados pela requerente, respectivamente da primeira vez que fez o pedido de autorização de residência temporária e o primeiro pedido de renovação, constam claramente que o local de trabalho situa na "XXX, Macau”, até que desta vez, no pedido de renovação da requerente, apresentou um contrato de trabalho com vigência a partir de 29 de abril de 2019, onde consta que o seu local de trabalho para além de Macau inclui também Beijing. É de realçar que a requerente nunca comunicou ao nosso instituto a alteração do seu local de trabalho e conjugando com a análise da situação da requerente em Macau entre 2017 a 2020, que não ultrapassa 45 dias por ano, além disso, a entidade patronal também declarou expressamente que a requerente trabalha maior parte do tempo em Beijing, o que revela que o seu centro de trabalho já não se encontra em Macau."
(6) É de enfatizar que a residência habitual é requisito essencial exigida por lei para a manutenção da autorização de residência temporária. Os interessados devem cumprir as leis e regulamentos aplicáveis desde a aprovação da autorização de residência temporária. A requerente foi autorizada a residência temporária desde 10/10/2013 que já lá vão mais de 7 anos, mas através dos elementos declarados pela requerente neste pedido e no processo de audiência, a requerente excepto ser contratada por entidade local e ter adquirido imóvel em Macau, não se verifica que a mesma tenha mais ligações com Macau, o que reflecte que ela não tem grande vontade de permanecer em Macau
(7) Após processo de audiência, não vemos outros fundamentos razoáveis que impossibilitaram a requerente de poder residir em Macau, com base na situação acima referida, conclui-se que a requerente não reside habitualmente na RAEM.
9. Tendo em conta que residir habitualmente na RAEM é condição para a manutenção da autorização da residência da interessada, porém, através dos elementos de entrada e saída fronteiriça fornecidos pela PSP demonstram que a requerente maior parte do tempo não se encontrava em Macau, além disso, após audiência escrita e consideradas as diversas situações previstas no artº 4º, no nº 4 da Lei nº 8/1999, revelam que a requerente, durante o período da autorização de residência temporária, não residia habitualmente em Macau. Pelo que promove ao Exmº Sr. SEF no exercício dos poderes conferidos pelo Exmº Sr. Chefe Executivo da RAEM previsto no artº 1º da ordem executiva nº 3/2020, e nos termos do artº 23º do RA nº 3/2005 com aplicação subsidiária do artº 43º, nº 2, al. 3) da Lei n.º 16/2021, indeferir o pedido de renovação da autorização de residência temporária da requerente.
À apreciação
Técnico Superior
Ass. vide original
XXX
21/03/2022
Redactor: XXX
A convicção do Tribunal resultou da apreciação crítica das provas.
Relativamente aos documentos juntos vem a entidade Recorrida impugnar o documento junto sob o nº 5 por lhe faltar o verso de duas páginas, contudo, esse documento é uma certidão emitida pelo IPIM, entidade junto da qual foi processado o pedido de renovação de autorização de residência aqui em causa, respeitando os referidos documentos a cópias de documentos cujos originais estão na posse da entidade Recorrida, pelo que, se a certidão não contém as páginas todas dos documentos a si, Entidade Recorrida se deve a deficiência, sem prejuízo de que se tem dúvidas estando na posse dos originais os pode consultar a todo o tempo.
O documento nº 10, em parte também impugnado por duas páginas serem ilegíveis, é inócuo para a prova dos factos selecionados.
Os factos seleccionados e que se entendeu serem relevantes para a decisão não foram impugnados, pelo que, nos termos do artº 54º do CPAC se têm os mesmos por provados, para além de, encontrarem suporte nos documentos e depoimentos das testemunhas indicados, sendo que os depoimentos um foi da irmã da Recorrente que também vive em Macau e outro de uma colega de trabalho na mesma empresa, tendo nessas qualidades conhecimento directo dos factos que relataram.
b) Do Direito
É do seguinte teor o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público:
«1.
A, melhor identificada nos autos, veio instaurar o presente recurso contencioso do acto do Secretário para a Economia e Finanças, praticado em 27 de Janeiro de 2023, de indeferimento do seu pedido de renovação da autorização de residência temporária na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM), pedindo a respectiva anulação.
A Entidade Recorrida, devidamente citada, apresentou contestação na qual pugnou pela improcedência do recurso contencioso.
2.
(i.)
Apesar de a Recorrente, na sua douta petição inicial ter invocado separadamente diversos fundamentos para sustentar a sua pretensão impugnatória, parece-nos que a questão essencial que suscita se reconduz a saber se o acto recorrido enferma ou não do vício de violação de lei em virtude de o respectivo Autor ter erradamente considerado que a Recorrente, no período temporal situado entre 1 de Janeiro de 2017 e 31 de Julho de 2020, não residiu habitualmente na RAEM e, nesse pressuposto, ter aplicado ao caso a norma legal contida na alínea 3) do n.º 2 do artigo 43.º da Lei n.º 16/2021 e, com base nela, indeferido o pedido de renovação.
Vejamos, pois.
(ii.)
(ii.1)
A residência habitual na RAEM é um pressuposto da manutenção e da renovação da autorização temporária de residência. É isso o que resulta das normas da alínea 3) do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 43.º da Lei n.º 16/2021 [de acordo com o que se preceitua na alínea 3) do n.º 2, «a autorização de residência na RAEM pode ser revogada, por despacho do Chefe do Executivo (…) quando o titular deixar de ter residência habitual na RAEM ou deixar de verificar-se algum dos requisitos, pressupostos ou condições subjacentes à concessão da autorização de residência» e segundo o n.º 3, «os fundamentos referidos nos números anteriores podem ser igualmente oponíveis para efeitos de recusa de renovação ou de prorrogação da autorização de residência»], as quais são aplicáveis à situação em apreço em virtude do disposto no artigo 23.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, que estabelece ser «subsidiariamente aplicável aos interessados que requeiram autorização de residência temporária nos termos do presente diploma o regime geral de entrada, permanência e fixação de residência na Região Administrativa Especial de Macau».
Antes da entrada em vigor da Lei n.º 16/2021, os nossos Tribunais tenderam a construir o conceito de residência habitual (o qual, segundo o entendimento pacífico da nossa jurisprudência, sendo embora um conceito jurídico indeterminado, não confere, margem de livre apreciação à Administração, estando, por isso, a sua interpretação e aplicação sujeitas a plena sindicância por parte dos Tribunais: por todos, cfr. o acórdão do Tribunal de Última Instância de 13.11.2019, processo n.º 106/2019), a partir, desde logo, da norma do n.º 2 do artigo 30.º do Código Civil («considera-se residência habitual o lugar onde o indivíduo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal»), fazendo-o coincidir com o lugar onde determinada pessoa fixou com carácter estável e permanente o seu centro de interesses vitais, o centro efectivo da sua vida, constituindo, portanto, o local em torno do qual gravitam as respectivas ligações existenciais mais relevantes.
Na densificação do conceito de residência habitual relevante em matéria atinente ao estatuto de residente da RAEM, têm também sido chamadas à colação as normas dos n.ºs 3 e 4 do artigo 4.º da Lei n.º 8/1999.
Da norma do n.º 3 do artigo 4.º do mencionado diploma legal [com o seguinte teor: «para os efeitos do estatuto de residente permanente referido nas alíneas 2), 5), 8) e 9) do n.º 1 do artigo 1.º e da perda do direito de residência referida no n.º 2 do artigo 2.º, a ausência temporária de Macau não determina que se tenha deixado de residir habitualmente em Macau»] resulta que a residência habitual em Macau é compatível com a ausência temporária da Região (veja-se, neste mesmo sentido de que a ausência temporária não implica a quebra da residência habitual, o acórdão do Tribunal de Última Instância de 13.11.2019, processo n.º 106/2019 e o acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 2.7.220, processo n.º 473/2019).
Por sua vez, decorre do n.º 4 do artigo 4.º da Lei n.º 8/1999 que, em caso de ausência temporária do residente, na determinação da residência habitual, relevam as circunstâncias pessoais e os motivos da ausência, nomeadamente: 1) o motivo, período e frequência das ausências; 2) se o ausente tem residência habitual em Macau; 3) se é empregado de qualquer instituição sediada em Macau; 4) o paradeiro dos seus principais familiares, nomeadamente cônjuge e filhos menores.
A partir destes elementos fornecidos pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 4.º da Lei n.º 8/1999, parece-nos que se pode dizer, por aproximação exemplificativa, que não deixa de residir habitualmente em Macau, por exemplo, alguém que vai trabalhar para o exterior de Macau, ainda que por longos períodos, mas aqui deixa a sua casa de morada da família, na qual continuem a residir, eventualmente, o seu cônjuge e os seus filhos e onde regressa durante o período de férias.
Do mesmo modo, também não deixa de residir habitualmente em Macau, por exemplo, o estudante que conclui o ensino secundário e se ausenta da Região para prosseguir os estudos numa universidade localizada no exterior de Macau, aí permanecendo durante todo o ano lectivo, mas regressando à casa de morada da família situada em Macau durante as férias escolares.
O ponto essencial é, pois, a nosso modesto ver, o de que, apesar da ausência de Macau, a situação concreta permita, ainda assim, descortinar vínculos pessoais legalmente relevantes entre o ausente e a Região, nomeadamente, aqueles a que se referem as alíneas 2), 3) e 4) do n.º 4 do artigo 4.º da Lei n.º 8/1999 (mas não só esses, dado que a enumeração legal é meramente exemplificativa), que permitam reconhecer que Macau não deixou, num certo sentido, de ser o centro da vida pessoal do residente que se ausentou da Região. Noutra formulação, diremos que Macau não deixa de ser o lugar da residência habitual se e enquanto for o lugar ao qual o ausente regressa por ter aqui a sua casa (apontando igualmente para este elemento da residência habitual como sendo o lugar de regresso após ausências mais curtas ou mais longas, veja-se CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito civil, 5.ª edição, Coimbra 2020, p. 262. Note-se, aliás, que a doutrina também assinala que a residência habitual não tem de ser permanente, assim, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS - PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª edição, Coimbra, 2019, p. 106. Do mesmo modo, tem-se entendido, maioritariamente, que as residências alternativas a que se refere o n.º 1 do artigo 83.º devem ser consideradas, ainda, residências habituais: cfr. CLARA MARTINS PEREIRA, in Comentário ao Código Civil Parte Geral, Universidade Católica, Lisboa, 2014, p. 206).
(ii.2)
Na situação em apreço, resulta dos autos que a Recorrente trabalha para uma sociedade comercial com sede em Macau, tendo sido destacada pela entidade patronal, desde Abril de 2013, para trabalhar em Beijing.
Além disso, a Recorrente, que é solteira e não tem filhos, adquiriu, conjuntamente com a sua mãe, um apartamento em Macau que é a sua residência quando aqui se encontra.
Os pais da Recorrente e bem assim a sua irmã e a família desta (cônjuge e filhos) vivem em Macau.
A Recorrente, embora trabalhe em Beijing, no ano de 2017, permaneceu em Macau por 45 dias, no ano de 2018, por 32 dias, no ano de 2019, por 31 dias e entre 1 de Janeiro e 31 de Julho de 2020, por 7 dias.
Em face deste concreto circunstancialismo, propendemos no sentido de considerar que a Administração andou mal ao considerar que a Recorrente, entre 1 de Janeiro de 2017 e 31 de Julho de 2020, não residiu habitualmente em Macau e ao indeferir, com esse fundamento, o seu pedido de renovação da autorização de residência temporária.
Em termos breves, pelo seguinte.
A Recorrente trabalha para uma entidade patronal que tem a sua sede em Macau e é aqui que tem, não só a sua residência, mas, também, os seus laços familiares mais importantes, não se podendo dizer, contrariamente ao que consta da fundamentação do acto recorrido, que a mesma não tenha ligações a Macau e que não tenha grande vontade de aqui permanecer. O que aconteceu foi que, por imposição da sua entidade patronal, a Recorrente foi destacada para trabalhar em Beijing, mas tal não significou, como os elementos relativos às passagens na fronteira bem demonstram, que a Recorrente tenha cortado a sua ligação existencial a Macau. Pelo contrário, aliás. Durante os anos em causa, a Recorrente terá aproveitado dias de férias ou de descanso para se deslocar a Macau em cada um dos anos em causa, incluindo no ano de 2020, que, é facto notório, foi um ano atípico em matéria de deslocações transfronteiriças em virtude da situação pandémica que se verificou.
A situação da Recorrente, se bem vemos, apresenta especificidades em relação a outras situações aparentemente similares que, a nosso humilde ver, permitem o seu enquadramento na previsão da norma do n.º 3 do artigo 4.º da Lei 8/1999. Na verdade, a ausência temporária da Recorrente da Região, atendendo às concretas circunstâncias do caso a que já aludimos, nomeadamente, que a ausência se ficou a dever a razões profissionais, em especial, a uma determinação da sua entidade patronal [alínea 1) do n.º 4 do artigo 4.º da Lei n.º 8/1999], que a Recorrente manteve em Macau a sua residência [alínea 2) do n.º 4 do artigo 4.º da Lei n.º 8/1999], que a Recorrente é trabalhadora de uma sociedade comercial com sede em Macau [alínea 3) do n.º 4 do artigo 4.º da Lei n.º 8/1999] e que o seu núcleo familiar se encontra em Macau [alínea 4) do n.º 4 do artigo 4.º da Lei n.º 8/1999], não determinou que a mesma tenha deixado de residir habitualmente em Macau, uma vez que ela aqui manteve os tais vínculos pessoais legalmente relevantes que antes referimos e que permitem a conclusão de que Macau nunca deixou de ser o centro efectivo da sua vida pessoal.
Tudo para concluir, portanto, que a Administração, ao considerar que a Recorrente, no período temporal situado entre 1 de Janeiro de 2017 e 31 de Julho de 2020 não residiu habitualmente na RAEM e, com esse fundamento, ao indeferir o pedido de renovação de residência temporária da Recorrente, incorreu em violação de lei implicante, de acordo com o disposto no artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo, da anulabilidade do acto recorrido (segundo a melhor doutrina, a violação de lei, «é o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis», abrangendo, portanto, entre outras situações, «o erro de direito cometido pela Administração na interpretação, integração ou aplicação das normas jurídicas»: assim, por todos, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito administrativo, Volume II, 3.ª edição, Coimbra, 2017, pp. 345-347).
(iii.)
Com a conclusão que antecede fica prejudicada, se bem vemos, a pronúncia sobre os demais fundamentos do recurso invocados pela Recorrente, em especial, a alegada violação dos princípios da cooperação e do inquisitório (artigos 126 a 135 da petição inicial), a alegada violação do princípio da não retroactividade (artigos 136 a 142 da petição inicial) e a errada aplicação do artigo 18.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005 e do artigo 43.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 16/2021 (artigos 143 a 156 da petição inicial).
Em todo o caso, por dever de ofício, não deixaremos de dizer, quanto a tais fundamentos, que, em nosso modesto entendimento, nenhum deles merece proceder. Muito sinteticamente, pelas razões seguintes.
(iii.1.)
O princípio da colaboração entre a Administração e os particulares entre nós encontra-se consagrado no artigo 9.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) - «Os órgãos da Administração Pública e os particulares devem actuar em estreita cooperação recíproca (…)» - e encontra um muito relevante afloramento na norma do artigo 60.º do CPA que impõe o específico dever aos órgãos administrativos no sentido de que na condução do procedimento, devem os mesmos ordenar e promover «tudo o que for necessário ao seguimento do procedimento e à justa e oportuna decisão».
Quanto ao princípio do inquisitório, resulta o mesmo, em especial, do artigo 59.º do CPA, o qual confere à Administração poderes para procederem às diligências que considerem convenientes para a instrução procedimental e do artigo 86.º, n.º 1 do mesmo diploma legal que impõe à Administração o dever de averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento.
No caso, parece-nos evidente, pela simples leitura dos elementos procedimentais mais relevantes, que a Administração não incorreu na violação de nenhum destes princípios. Na verdade, no exercício da discricionariedade procedimental que a lei lhe confere, sobretudo por via da norma do artigo 59.º do CPA, a Administração procedeu à instrução nos termos que se lhe afiguraram convenientes, tendo em vista a recolha dos elementos de facto necessários à prolação da decisão sobre o pedido formulado. Não nos parece que, nessa actuação a Administração tenha actuado de forma desrazoável ou manifestamente errónea susceptível de se repercutir na legalidade do acto.
(iii.2)
Quanto à alegada violação do princípio da não retroactividade da lei, cremos tratar-se, salvo o devido respeito, de um manifesto equívoco da Recorrente. A Administração, como se impunha, aplicou a lei em vigor, tanto no momento da prática do acto, como no momento da formulação do próprio requerimento de renovação da autorização, ou seja, o Regulamento Administrativo n.º 3/2005, cujo artigo 23.º remete subsidiariamente para «o regime geral de entrada, permanência e fixação de residência na Região Administrativa Especial de Macau», o qual se encontra consagrado na Lei n.º 16/2021, que entrou em vigor em 14 de Novembro de 2021 (90 dias após a sua publicação em 16 de Agosto de 2021, segundo o disposto no respectivo artigo 106.º), antes, portanto, da data da prática do acto recorrido (27 de Janeiro de 2023).
De resto, a nova Lei, no que tange ao conceito de residência habitual, se alguma coisa de novo trouxe foi no sentido ampliativo, tal como decorre do n.º 5 do respectivo artigo 43.º.
Manifestamente improcedente, pois, segundo nos parece e sem necessidade de maiores considerandos, a invocação, neste contexto, da violação do princípio da não retroactividade.
(iii.3)
Quanto ao último fundamento do recurso (artigos 143 a 156 da petição inicial), diremos apenas que a sua evidente impertinência resulta da circunstância de a Recorrente, com o devido respeito, ter interpretado mal o acto recorrido. Com efeito, a norma do artigo 18.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005 não serviu de justificação legal do acto recorrido. Este fundou-se, exclusivamente, na consideração, por parte da Administração, de que a Recorrente, no período legal relevante, não teve residência habitual em Macau e na aplicação subsidiária da norma da alínea 3) do n.º 2 do artigo 43.º da Lei n.º 16/2021.
3.
Face ao exposto, deve o presente recurso contencioso ser julgado procedente com a consequente anulação do acto recorrido.
É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público.».
Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta, entendemos que o acto impugnado enferma do vício de violação de lei, pelo que, nos termos do artº 124º do CPA é o mesmo anulável, sendo de proceder o recurso com a consequente anulação do mesmo, ficando prejudicada a apreciação dos demais vícios e pedidos invocados.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso anula-se o acto recorrido.
Sem custas por delas estar isenta a Entidade Recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 07 de Fevereiro de 2024
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(1º Adjunto)
Ho Wai Neng
(2º Adjunto)
Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto)
208/2023 REC CONT 66