Processo nº 527/2023
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 18 de Abril de 2024
ASSUNTO:
- Recurso contencioso
- Vício de forma
- Degradação de formalidade essencial em não essencial
SUMÁRIO:
- Resultando dos autos que a solução configurada no acto administrativo não era a única legalmente possível é inviável a neutralização do efeito invalidante do vício procedimental por omissão de audiência prévia.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 527/2023
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 18 de Abril de 2024
Recorrentes: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Segurança
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Segurança de 17.05.2023 que declarou a nulidade da sua autorização de residência, formulando as seguintes conclusões:
1. A Recorrente Contenciosa com fundamento de reagrupamento familiar com seu padrastro B, foi concedida pela PSP em 24/11/2009 a “Autorização de Residência”, devido a essa autorização, a Recorrente Contenciosa obteve em 17/12/2009 o Título de Residência nº 3242/2009. (Docs. 1 e 2)
2. Em 12/06/2023, a Recorrente Contenciosa recebeu notificação nº 100362/SRDARPNT/2023P emitida pelo DARP da PSP, na qual o Exmº Sr. Secretário para a Segurança com base no parecer do relatório nº 200053/SRDARPA/2023P, proferiu despacho, declarando a nulidade da sua "Autorização de Residência" concedida em 24/11/2009. (Doc. 3)
3. No entanto, desde do início ao fim, face à pretensão de declarar a nulidade da sua “Autorização de Residência”, nunca a Recorrente Contenciosa recebeu qualquer notificação emitida pela PSP para realizar audiência escrita.
4. A PSP face à pretensão de declarar a nulidade da "Autorização de Residência" da Recorrente Contenciosa, nunca antes realizou processo de audiência nos termos da lei
5. A Recorrente Contenciosa entende que o acto praticado pelo Exmº Sr. Secretário para a Segurança com base no parecer do relatório nº 200053/SRDARPA/2023P elaborado pelo DARP da PSP, de ter declarado a nulidade da sua “Autorização de Residência” padece de vício de violação da lei, nos termos legais tem legitimidade para interpor recurso contencioso.
6. Em 15/06/2023, o advogado representante da Recorrente Contenciosa requereu à PSP a consulta do processo, tendo a PSP notificado em 16/06/2023 de que o processo original não estava na altura na entidade em causa, e que por enquanto não podia autorizar a consulta do processo. Posteriormente, em 20/06/2023, o advogado representante foi notificado da autorização da consulta do processo e, em 23/06/2023, dirigiu-se ao DARP da PSPM para consultar o processo e requerer a cópia do mesmo. (Docs. 4 e 5)
7. A PSP em 26/06/2023 notificou o advogado representante da Recorrente Contenciosa para comparecer à entidade em causa levantar a cópia do respectivo processo.
8. Nos termos do artº 110º, nº 1 do CPAC: 1, a partir da data do pedido para consulta do processo, suspende-se a contagem do prazo para interposição do recurso contencioso.
9. Após contagem, o prazo legal para a Recorrente Contenciosa interpor recurso judicial é até 13/07/2023.
10. A Recorrente Contenciosa interpôs tempestivamente o presente recurso contencioso, e dentro do prazo legal.
11. De acordo com o artº 37º do “CPAC”, a entidade recorrida tem legitimidade passiva.
12. Nos termos do artº 36º, nº 8, da Lei de Bases da Organização Judiciária, "Compete ao TSI julgar em primeira instância dos recursos contenciosos dos actos administrativos praticados por Secretários".
13. Portanto, o TSI tem competência para julgar o presente caso.
14. Nos termos do art. 93º do CPA, a decisão do Exmº S. Secretário para a Segurança de pretender declarar a nulidade da "Autorização de Residência" da Recorrente Contenciosa, deve, nos termos da lei, realizar audiência da interessada (ou seja, a Recorrente Contenciosa).
15. A Recorrente Contenciosa antes de receber a declaração da nulidade da sua "Autorização de Residência" emitida pelo Exmº Sr. Secretário para a Segurança, nunca foi notificada por escrito pela PSP para realizar processo de audiência escrita sobre a pretensão de declaração da nulidade da "Autorização de Residência" da Recorrente Contenciosa, quer dizer, a Recorrente Contenciosa não obteve o direito de audiência atribuído por lei.
16. Quanto desta vez, subitamente, recebeu a notificação nº 100362/SRDARPNT/2023P emitida pelo DARP da PSP de que foi declarada a nulidade da sua "Autorização de Residência", a Recorrente Contenciosa ficou muito inconcebível e incompreensível, razão porque antes disso, ela nunca recebeu nenhuma notificação de declaração da nulidade da sua "Autorização de Residência", e a PSP sobre a pretensão de declarar a nulidade da sua "Autorização de Residência", também nunca antes, nos termos legais, realizou audiência da Recorrente Contenciosa.
17. Dado que a Recorrente Contenciosa nunca recebeu qualquer notificação do DARP da PSP para realizar audiência, bem como nunca a Recorrente Contenciosa foi ouvida, pelo que o acto praticado pelo Exmº Sr. Secretário para a Segurança de decidir declarar a nulidade da "Autorização de Residência" da Recorrente Contenciosa baseada no parecer do relatório nº 200053/SRDARPA/2023P elaborado pelo DARP da PSP padece de vício.
18. A Recorrente Contenciosa veio em 13/2/2023 requerer ao vosso Tribunal procedimento cautelar de suspensão da eficácia do despacho de declaração da nulidade da "Autorização de Residência" emitido pelo Exmº Sr. Secretário para a Segurança.
19. Relativamente aos pontos 7 e 8 da contestação do Exmº Sr. Secretário para a Segurança contra o procedimento cautelar de suspensão da eficácia requerida pela Recorrente Contenciosa, a Recorrente esclarece o seguinte.
20. Refere no ponto 7 da contestação supracitada que a PSP de acordo com o acórdão do proc. nº CR3-20-0162-PCC decretado pelo Juízo Criminal do TJB, enviou em 14/11/2022 ofício de notificação da audiência nº 100393/SRDARPNT/2022P ao endereço sito na XXX, Macau, o endereço em causa é igual ao endereço constante na procuração assinada pela Recorrente Contenciosa, que corresponde com o artº 13º da Lei nº 16/2021 “Regime jurídico do controlo de migração e das autorizações de permanência e residência na Região Administrativa Especial de Macau” “As notificações postais são efectuadas ao interessado, ou ao seu representante legal ou mandatário constituído, no lugar da sua sede, no lugar da sua residência habitual ou do domicílio escolhido para o efeito de as receber, conforme os casos”.
21. Salvo o devido respeito por opinião diferente, a Recorrente Contenciosa não pode concordar com a supracitada declaração do Exmº Sr. Secretário para a Segurança.
22. Nos termos do artº 68º do CPAM, a PSP antes da pretensão de declarar a nulidade da "Autorização de Residência" da Recorrente Contenciosa devia realizar processo de audiência, tinha obrigação de notificar a Recorrente Contenciosa, sendo obrigatória a notificação.
23. Tal como o teor constante no acórdão do TSI de Macau nº 810/2016, se a parte interessada (ou seja, o Recorrente Contencioso) não tiver sido notificada, e devendo a respetiva notificação ser feita nos termos da lei, o respetivo acto administrativo não irá produzir os devidos efeitos legais.
24. No caso em apreço, como a Recorrente Contenciosa nunca recebeu notificação da PSP para procedimento de audiência sobre a decisão da pretensão de declarar a nulidade da sua “Autorização de Residência”, pelo que a respectiva notificação de audiência não produz efeito legal, a contagem da audiência nunca foi iniciada.
25. De acordo com o artº 13º, nº 2 da Lei nº 16/2021 "“Regime jurídico do controlo de migração e das autorizações de permanência e residência na Região Administrativa Especial de Macau", a notificação postal emitida pela autoridade administrativa à interessada (ou seja, a Recorrente Contenciosa) deve ser enviada para a sua residência habitual ou domicílio escolhido para receber as notificações.
26. No início, a mãe e o pai da Recorrente Contenciosa, C e D, nunca receberam notificação de audiência da PSP sobre a pretensão de declarar a nulidade da “Autorização de Residência” das duas, até que, respectivamente em 28/10/2022 e 21/11/2022, quando C e D saíram separadamente das fronteiras, foram abordados pela polícia e receberam cada um notificação de audiência (docs 6 e 7), nas notificações dos dois nunca referiram que sua filha tinha de realizar audiência escrita, sendo assim, não tendo a Recorrente contenciosa sido notificada, nunca podia saber que também foi exigida para realizar audiência escrita.
27. Por outro lado, devido à gravidez, a Recorrente Contenciosa mais ou menos em Setembro de 2022 mudou para a casa do marido sita no XXX em Macau para viver com ele e sua familia, portanto já tinha deixado de residir na XXX, Macau. Durante este período, nunca recebeu qualquer notificação de audiência nº 100393/SRDARPNT/2022P emitida pela PSP em 14/11/2022.
28. Após o nascimento da filha, a Recorrente Contenciosa decidiu voltar a residir na XXX, Macau juntamente com o marido e a filha recém-nascida para recuperar-se e ser cuidada pela sua mãe C, que por sua vez na procuração preencheu o endereço de contacto sito na XXX, Macau.
29. De facto, quando a Recorrente Contenciosa fez o pedido de reagrupamento familiar com seu padrasto B e emitido o Título de Residência n.º 3242/2009, tinha preenchido o endereço sito na XXX, Macau no pedido de autorização de residência para residentes da RPC e no requerimento emitido pela Subdivisão de Permanência do DARP da PSP, e não o endereço sito na XXX, Macau. (Docs. 2, 1 e 8)
30. Obviamente, a PSP devia, pelo menos, enviar a notificação da audiência ao endereço sito na XXX, Macau.
31. Tendo em vista que a autoridade administrativa nunca enviou a notificação da audiência nº 100393/SRDARPNT/2022P à residência habitual declarada pela Recorrente Contenciosa e ao domicílio escolhido para receber as notificações, portanto a Recorrente Contenciosa ainda não recebeu a notificação da audiência nº 100393/SRDARPNT/2022P emitida pela PSP.
32. Até que em finais de Abril de 2023, é que a Recorrente Contenciosa voltou a residir na XXX, Macau e recebeu em 12/06/2023 a notificação nº 100362/SRDARPNT/2023P emitida pela PSP, na qual o Exmº Sr. Secretário para a Segurança com base no Parecer do relatório nº 200053/SRDARPA/2023P, declarou a nulidade da "Autorização de Residência" da Recorrente Contenciosa.
33. Além disso, no ponto 8 da contestação refere que, de acordo com o artº 13º da Lei n.º 16/2021, a notificação postal considera-se feita no terceiro dia posterior ao do registo, entretanto a Recorrente Contenciosa não apresentou evidências para comprovar que foi por razões imputáveis aos serviços postais para ilidir a supracitada presunção.
34. Salvo o devido respeito por opinião diferente, a Recorrente Contenciosa também não pode concordar com o declarado pelo Exmº Sr. Secretário para a Segurança.
35. Nos termos do artº 13.º, nºs 3 e 5 da Lei nº 16/2021 "Regime jurídico do controlo de migração e das autorizações de permanência e residência na Região Administrativa Especial de Macau", como a autoridade administrativa nunca enviou a notificação da audiência nº 100393/SRDARPNT/2022P à residência habitual declarada pela Recorrente Contenciosa e domicílio escolhido para receber as notificações, assim sendo não tendo a Recorrente Contenciosa recebido qualquer notificação, a data de recepção da notificação nos termos do artº13º, nºs 3 e 5 da Lei nº 16/2021 "Regime jurídico do controlo de migração e das autorizações de permanência e residência na Região Administrativa Especial de Macau" não surgiu.
36. Posto isto, a situação a que se refere pelo Exmº Sr. Secretário para a Segurança nos artºs 20º e 33º da conclusão não deve servir de fundamento para a autoridade administrativa presumir-se que a Recorrente Contenciosa já tinha recebido a notificação da audiência nº 100393/SRDARPNT/2022P emitida em 14/11/2022, de facto, antes de receber a notificação desta vez nº 100362/SRDARPNT/2023P emitida pelo DARP da PSP, a Recorrente Contenciosa, palavra de honra, nunca recebeu qualquer notificação de audiência sobre a declaração da nulidade da sua “Autorização de Residência” ou qualquer outra notificação.
37. Dado que foi erro da entidade recorrida, a Recorrente Contenciosa não participou no acto administrativo acima referido, o acto administrativo recorrido violou o princípio previsto no artº 10º do CPAM.
38. Nos termos do artº 124º do CPAM, uma vez que a decisão emitida pela entidade recorrida de pretender declarar a nulidade da "Autorização de Residência" da Recorrente Contenciosa carece de procedimento de audiência nos termos legais, pelo que o acto praticado pelo Exmº Sr. Secretário para a Segurança de decidir declarar a nulidade da "Autorização de Residência" da Recorrente Contenciosa concedida em 24/11/2009 baseada no parecer do relatório nº 200053/SRDARPA/2023P elaborado pelo DARP da PSP violou a lei.
39. Como a decisão emitida pela entidade recorrida de pretender declarar a nulidade da "Autorização de Residência" da Recorrente Contenciosa carece de procedimento de audiência nos termos legais, pelo que o acto praticado pelo Exmº Sr. Secretário para a Segurança de decidir declarar a nulidade da "Autorização de Residência" da Recorrente Contenciosa baseada no parecer do relatório nº 200053/SRDARPA/2023P elaborado pelo DARP da PSP deve ser anulado.
Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Segurança contestar, não apresentando, contudo, conclusões.
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, veio a Recorrente fazê-lo.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer nos seguintes termos:
«1.
A, melhor identificada nos autos, veio instaurar o presente recurso contencioso do acto administrativo praticado pelo Secretário para a Segurança que declarou a nulidade da sua autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM), pedindo a respectiva anulação.
A Entidade Recorrida, devidamente citada, apresentou douta contestação na qual pugnou pela improcedência do recurso contencioso.
2.
Se bem vemos, colocam-se no presente recurso contencioso duas questões: (i) a primeira, colocada pela Recorrente, é a de saber se o acto recorrido está inquinado por vício procedimental em virtude de, como vem alegado, a Recorrente não ter sido ouvida previamente à prática do mesmo; (ii) a segunda, introduzida pela Entidade Recorrida, é de saber se, a verificar-se esse vício, ainda assim será de concluir pela respectiva irrelevância invalidante em virtude do facto de o acto recorrido corresponder a uma actuação legalmente vinculada.
(i)
Segundo o n.º 1 do artigo 93.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), «[s]alvo o disposto nos artigos 96.º e 97.º, concluída a instrução, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta».
Como aponta a melhor doutrina, através da audiência do interessado, procuram-se assegurar funções subjectivas, evitando-se decisões-surpresa e facultando ao particular a possibilidade de fazer valer a sua posição, e funções objectivas, auxiliando a Administração a decidir melhor (nestes termos, MARCELO REBELO DE SOUSA - ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, tomo III, Lisboa, 2007, p. 127).
No caso, alega a Recorrente que não foi notificada pela Administração para exercer a audiência prévia uma vez que a carta para esse efeito foi enviada para uma morada que não era a sua.
Vejamos.
Com efeito, está demonstrado nos autos (concretamente, a fls. 78-80 dos autos do processo administrativo instrutor) que, (i) a Administração enviou uma carta registada que endereçou à Recorrente, contendo um ofício comunicando-lhe a possibilidade de exercer por escrito, e no prazo de 15 dias, o direito de audiência a que se refere o artigo 93.º do CPA, e que, (ii) essa carta foi devolvida à Administração por não ter sido reclamada pela Recorrente.
Em procedimento administrativo, na falta de disposição especial, as notificações são feitas nos termos previstos na norma do artigo 72.º do CPA, de acordo com a qual, devem as mesmas ser feitas pessoalmente ou por ofício, telegrama, telex, telefax, ou por telefone, consoante as possibilidades e as conveniências.
Como se vê, a partir da simples leitura da citada norma legal, o legislador confere à Administração uma margem muito ampla de escolha quanto ao modo de proceder à notificação. De entre aqueles que estão legalmente previstos e se mostrem possíveis, a Administração escolherá aquele que, em cada caso, se mostre o mais conveniente, de acordo um juízo de discricionariedade procedimental que, como se sabe, só em termos limitados o tribunal poderá sindicar.
A opção da Administração de usar a carta registada para notificar a Recorrente para, querendo, se pronunciar sobre a projectada declaração de nulidade da autorização de residência, não é, pois, merecedora de qualquer censura.
Aliás, de acordo com a norma do artigo 13.º da Lei n.º 16/2021, que, como se sabe, contém o regime jurídico do controlo de migração e das autorizações de permanência e residência na RAEM, as notificações são efectuadas nos termos do CPA, observando-se ainda as disposições especiais ali (no artigo 13.º da Lei n.º 16/2021) previstas.
O ponto está em que, comprovadamente, a carta enviada para notificação da Recorrente foi devolvida ao remetente e, portanto, não lhe foi entregue. Ora, como é bom de ver, a devolução da carta impede que se considere que a Recorrente foi notificada, uma vez que, nem do artigo 72.º do CPA, nem mesmo do artigo 13.º da Lei n.º 16/2021, resulta que a notificação se considera efectuada mesmo quando carta seja devolvida ao remetente, não sendo aplicável procedimento administrativo a regra, certamente excepcional, que se consagra no n.º 3 do artigo 201.º do Código de Processo Civil.
Não desconhecemos que, de acordo com o n.º 3 do artigo 13.º da Lei n.º 16/2021, «a notificação postal considera-se feita no terceiro dia posterior ao do registo, ou no primeiro dia útil seguinte quando aquele o não for (…)», todavia, essa presunção tem o seu âmbito circunscrito à determinação do momento da notificação, no pressuposto, portanto, de que a carta chegou ao seu destino. Se a carta foi devolvida, demonstrado fica que a notificação não ocorreu. É o que resulta, inequivocamente, do n.º 5 do mesmo artigo 13.º (aí se preceitua: «a presunção prevista no n.º 3 só pode ser ilidida pelo notificando quando a recepção da notificação ocorra em data posterior à presumida, por razões imputáveis aos serviços postais»), em que apenas se admite a possibilidade de ilidir a presunção, demonstrando que a notificação ocorreu em data posterior à presumida, mas não, quando a notificação não tiver ocorrido.
Assim, somos a concluir que a Recorrente não foi notificada para se pronunciar, querendo, sobre a intenção da Administração de declarar a nulidade da autorização de residência previamente à decisão final que constitui o acto recorrido. Significa isto que, este acto sofre do vício procedimental decorrente da violação do disposto no artigo 93.º do CPA, gerador, como se sabe, da respectiva anulabilidade.
(ii)
Apesar da apontada ilegalidade, parece-nos que não se deve produzir o respectivo efeito anulatório sobre o acto recorrido.
Na verdade, constitui, entre nós, entendimento pacífico o de que, «sempre que, no exercício de poderes vinculados por parte da Administração, o tribunal conclua, através de um juízo de prognose póstuma, que a decisão administrativa tomada era a única concretamente possível, a falta de audiência do interessado, prevista no artigo 93.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, degrada-se em formalidade não essencial do procedimento administrativo» (assim, por exemplo e entre outros, o acórdão do Tribunal de Última Instância de 25.04.2012, processo n.º 11/2012). Por isso, apesar da invalidade, deve aproveitar-se o acto, não o anulando. Justifica-se, aí, o aproveitamento em desfavor da anulação do acto, por uma questão de elementar economia de meios, na medida em que, se essa anulação tivesse lugar, a Administração, em execução do julgado, teria de praticar outro acto com os mesmos efeitos (utile per inutile non vitiatur).
No caso em apreço, o acto recorrido não podia, segundo cremos, ter outro conteúdo senão o que teve, ou seja, a declaração de nulidade de autorização de residência da Recorrente. Pelo seguinte, em síntese.
O fundamento dessa autorização de residência consistiu no chamado reagrupamento familiar da Recorrente e da sua mãe, C, com o marido desta e padrasto da Recorrente, o residente permanente da RAEM, B. Acontece que, como ficou demonstrado no processo criminal que correu termos no 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base sob o n.º CR3-20-0162-PCC, o casamento entre a mãe da Recorrente e B foi simulado, tendo daí resultado a condenação daquela na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos. Deste modo, os actos de autorização de residência em Macau de que beneficiaram, quer a mãe da Recorrente, quer esta, são nulos por caírem na previsão da alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do CPA (segundo o que aí se estabelece, são nulos «os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime»). Com efeito, de acordo com a que nos parece ser a melhor interpretação desse preceito legal, extensiva em relação à sua letra, deve considerar-se que na sua previsão estão incluídas todas as situações que envolvam, decisivamente, a prática de um crime, e bem assim, aquelas em que se conclua que que o acto administrativo, sem o facto criminoso, não teria sido praticado com o mesmo conteúdo, tal como, no caso, manifestamente, aconteceu, porquanto, como vimos, a Recorrente beneficiou da autorização de residência com base num reagrupamento familiar que, por sua, se fundou decisivamente num facto criminoso, o casamento simulado entre a mãe da Recorrente e o residente de Macau, B. Sem a consideração desse casamento, afinal simulado, a dita autorização não teria sido concedida pela Administração (veja-se, neste sentido, e a propósito de situação idêntica, o acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 16.07.2020, processo n.º 1099/2019. Diga-se ainda o seguinte: o facto de a Recorrente não ter sido arguida no processo crime acima mencionado não constituía obstáculo a que a Administração, confrontada com a sentença condenatória nesse processo, extraísse as consequências devidas, uma vez que ficou definitivamente provado que o acto de autorização de residência se fundou, nos termos que vimos, num facto criminoso que o inquina de modo irremediável: nestes termos, cfr. os acórdãos do Tribunal de Última Instância de 25.04.2012, processo n.º 11/2012 e de 25.07.2012, processo n.º 48/2012).
Verificando-se ser nulo o acto de autorização de residência, estava a Administração vinculada a declarar essa nulidade (neste sentido, para além dos acórdãos do Tribunal de Última de Instância referidos no parágrafo anterior, na doutrina, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3.ª edição, Coimbra, 2017, p. 404 e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, 3.ª edição, Coimbra, 2015, pp. 352-353). Significa isto, para concluirmos, que, a nosso modesto ver, a decisão administrativa correspondente ao acto recorrido era a única concretamente possível, pelo que, a demonstrada falta de audiência da Recorrente, prevista no artigo 93.º, n.º 1, do CPA, não projectou o seu efeito anulatório sobre esse acto.
3.
Face ao exposto, o presente recurso contencioso deve ser julgado improcedente.
É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público.».
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
A factualidade com base na qual foram praticados os actos recorridos consiste no seguinte:
a) Por despacho do Senhor Secretário para a Segurança datado de 17.05.2023 foi declarada a nulidade da autorização de residência de A que lhe havia sido concedida em 24.11.2009 de acordo com o parecer da Informação do Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência do CPSP nº 200053/SRDARPA/2023P, cujo teor se transcreve:
1. Em 2009, a interessada, C, (titular do Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º XXX), deslocou-se ao CPSP com a sua filha A (titular do salvo conduto para deslocação a Hong Kong e Macau), para requerer a fixação da residência em Macau, pelo fundamento do agrupamento familiar com o cônjuge / padrasto B. No mesmo ano, foram-lhes emitidos os certificados de residência.
2. Em 5 de Fevereiro de 2021, o Tribunal Judicial de Base julgou que C tinha cometido quatro crimes de falsificação de documento, condenou-a na pena conjunta de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na execução por 3 anos. A sentença acima referida transitou em julgado no dia 4 de Março de 2021. O tribunal de Macau deu como provado que C contraiu um casamento falso com um residente de Macau B, para ajudar a si e à sua filha a obterem os bilhetes de identidade de residente de Macau.
3. Uma vez que a interessada adquiriu a residência em Macau através da contracção do “casamento falso” com um residente de Macau, e cometeu o acto criminoso no procedimento do requerimento da fixação da residência, este Departamento pretende declarar a nulidade da “autorização da residência” que foi concedida pelo CPSP à interessada e à sua filha, pelo que é emitida uma notificação da audiência escrita às C e A, nos termos do disposto nos art.º 93.º e art.º 94.º do CPA.
4. Em 14 de Novembro de 2022, este Departimento recebeu as alegações escritas entregues pelo advogado constituído por C. E, até à data em que foi submetida a presente Informação, nunca recebeu qualquer parecer escrito entregue pela A relativo ao conteúdo da audiência.
5. Após a consideração integral, a relação matrimonial entre C e B é o requisito e o factor essencial antes que a Administração aprove a autorização de residência da interessada e da sua filha, mas, o tribunal de Macau determinou que a relação matrimonial entre C e B é falsa, pelo que o acto administrativo que foi concedida a autorização de residência às C e A padece do vício de erro, bem como C cometeu os actos criminosos referidos no ponto 2 durante o procedimento de realização deste acto administrativo. Pelo exposto, sugere-se declarar a nulidade das autorizações de residência que foram concedidas às C e A em 14 de Dezembro de 2009 e 24 de Novembro de 2009, respectivamente, nos termos do disposto no art.º 122.º, n.º 2, al. c) do CPA.
b) Em 14.11.2022 pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública foi remetida carta endereçada A agora Recorrente comunicando-lhe a possibilidade de exercer por escrito, e no prazo de 15 dias, o direito de audiência, carta essa que foi devolvida à Administração por não ter sido reclamada pela Recorrente – cf. fls. 78 a 80 do PA apenso -.
b) Do Direito
Tal como o Ilustre Magistrado do Ministério Público enuncia no seu Douto Parecer as questões a decidir nestes autos consistem em saber se foi preterido o direito de audição prévia do interessado nos termos doa artº 93º e 94º do CPA e a confirmar-se a preterição dessa formalidade essencial se a mesma redundou em não essencial uma vez que o acto não podia ter outro sentido que não aquele em que a administração decidiu uma vez que se trata de acto legalmente vinculado.
No caso em apreço à Recorrente havia sido concedida autorização de residência na RAEM com o fundamento na reunião familiar uma vez que a mãe da agora Recorrente havia casado com um residente de Macau.
Por sentença crime veio a mãe da agora Recorrente em 2021 a ser condenada por crime por esse casamento contraído com um residente de Macau ser falso.
Em momento algum se deduz oposição a que não haja sido dado cumprimento ao disposto no artº 93º e 94º do CPA pelo que, se tem por assente que foi preterida a audição prévia, formalidade essa que é essencial como é pacificamente entendido pela Doutrina e Jurisprudência e que como tal, a sua omissão fora dos casos legalmente admissíveis determina a anulabilidade do acto nos termos do artº 124º do CPA.
Matéria esta que sendo do conhecimento geral torna desnecessário tecer outras considerações.
A verdadeira questão a decidir prende-se com o Princípio do Aproveitamento do Acto Administrativo.
Do que resulta dos autos sustenta-se que o casamento celebrado entre a mãe da Recorrente e o residente de Macau é falso porquanto do que se alega parece ter sido celebrado o casamento não com o propósito dos cônjuges terem vida em comum como marido e mulher mas apenas com o propósito da cônjuge mulher e filha adquirirem por via do casamento o estatuto de residentes de Macau.
Porque tal actuação constitui crime conclui-se ser nulo o acto que concedeu a autorização de residência à Recorrente de acordo com o disposto na alínea c) do nº 2 do artº 122º do CPA, pelo que é vinculado o acto que declara nula a autorização de residência, redundando assim em não essencial a preterição de formalidade essencial de audição prévia do interessado.
Discordamos completamente de tal afirmação pelas razões que passamos a expor.
Sobre o Princípio do Aproveitamento do Acto Administrativo veja-se a dissertação de Inês Ramalho apresentada em Tese de Mestrado, consultada em Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, Centro de Investigação de Direito Público, a qual pela sua clareza e objectividade é esclarecedora quando aos actos que podem ser aproveitados.
Como aquela Autora refere na obra indicada «O Supremo Tribunal Administrativo português tem adoptado o princípio do aproveitamento dos actos administrativos, ou teoria dos vícios inoperantes, segundo o qual a anulação de um acto viciado não será pronunciada quando seja seguro que o novo acto a emitir, isento desse vício, não poderá deixar de ter o mesmo conteúdo decisório que tinha o acto impugnado.
(…)
Na nossa opinião, o Princípio do Aproveitamento apenas poderá ser considerado e aplicado perante um acto vinculado. E ainda assim é uma afirmação condicionada, não sendo de todo absoluta.».
Na tese de mestrado indicada, apreciando-se um universo alargado de situações e de acordo com aquele que tem vindo a ser o entendimento generalizado da Doutrina e da Jurisprudência a preterição de formalidade essencial apenas se degrada em não essencial quando no caso dos actos discricionários há redução a zero da discricionariedade e no caso de acto vinculado, «quando nenhuma outra decisão se impunha ao caso concreto» -ob. cit. a pág. 31 -.
Ou seja, do que dali se conclui é que não basta que o acto seja praticado no exercício de poderes vinculados, mas também, que não haja a possibilidade de uma qualquer outra solução legal.
Neste sentido em Jurisprudência comparada vejam-se Acórdão do STA Português de 12.12.2006 proferido no processo 0685/06 «Constitui Jurisprudência firme deste Supremo Tribunal Administrativo que a dispensa da audiência prévia dos interessados nos procedimentos administrativos que lhes digam respeito, só pode ter lugar nos casos previstos no artigo 103, do Código de Procedimento Administrativo, e a sua omissão tem carácter invalidante da decisão final, salvo se através de um juízo de prognose póstuma o tribunal possa concluir, sem margem para dúvidas, que a decisão tomada era a única concretamente possível, não bastando, no entanto, que a decisão seja cometida no exercício de poderes vinculados para se concluir, sem mais, pelo carácter não invalidante da violação do disposto no nº1, do artigo 100º, do CPA – cfr. neste sentido os acórdãos do Pleno de 9-02-99, Proc.º n.º 39.379, de 15-10-99, in Ap DR de 21-06-2001, pág.1155, e de 12-12-2001, Proc.º n.º 34.981» e também, do mesmo Tribunal Acórdão de 29.05.2008 proferido no processo 0779/07 «Como é jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, o princípio do aproveitamento dos actos administrativos, negando efeitos invalidantes de vício detectado no acto recorrido, só poderá relevar no âmbito de actividade vinculada da Administração e apenas quando for possível afirmar, com inteira segurança, que o novo acto a praticar pela Administração em execução do julgado anulatório só poderá ter um conteúdo decisório idêntico ao do acto anulado (ac. de 24. 10.01- Rº 47433)».
No caso sub judice entende-se que o acto impugnado é vinculado porque se fundamenta na verificação de pressupostos que determinam a nulidade da concedida autorização de residência.
Se se concluir pela verificação desses pressupostos que determinam a nulidade, então a Administração está vinculada a declará-lo.
Tal é o caso sem dúvida da alínea c) do nº 2 do artº 122º do CPA, quando o objecto do acto constitua um crime.
Numa redundância absurda se o acto constituir em consentir que um funcionário pratique actos que integrem o crime de peculato esse acto é nulo.
Sendo o seu objecto a prática de um crime, por força da disposição legal citada a Administração perante estes elementos não pode deixar de fazer outra coisa que não seja declarar a nulidade do acto, ou seja, está vinculada a declarar a nulidade não sendo possível outra solução em direito.
Sendo a declaração de nulidade a única solução em direito admissível, tal como vem a ser sustentado pela Doutrina – Veja-se Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 4ª Edição, pág 321 – e Jurisprudência, quando o tribunal conclua de igual modo, o exercício da formalidade essencial preterida em nada iria alterar a solução, redundando aquela em não essencial.
Ora, no caso em apreço pretende-se sustentar que o acto praticado é de conteúdo vinculado.
Porém, assim não é.
O acto praticado e cuja nulidade se pretende declarar não tem por objecto um crime, mas conceder a autorização de residência a alguém, que não consta dos autos que haja cometido crime algum nem antes nem depois da prática do acto.
A conclusão para esta invocada nulidade no caso em apreço resulta de jurisprudência onde é feita uma interpretação extensiva da lei, numa situação de facto que em nada se equipara à dos autos, não se tratando de Acórdão de uniformização de jurisprudência, pelo que, a possibilidade de interpretação e integração do direito diversa da apontada é perfeitamente possível.
Logo, não é a única solução legalmente admissível.
Para que se opere a degradação de formalidade essencial em não essencial é necessário que o acto seja praticado no exercício de poderes vinculados ou como ensina Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha na Obra supra indicada que “a apreciação do caso concreto permita «identificar apenas uma solução como legalmente admissível»”.
No caso em apreço a conclusão da Administração pela nulidade do acto resulta do entendimento de na génese do acto estar a prática de um crime.
Sobre matéria idêntica à destes autos já tivemos oportunidade de nos pronunciarmos no Acórdão de 16.06.2022 proferido no processo 809/2021:
«Um dos fundamentos do acto administrativo impugnado é a nulidade decorrente da alínea c) do nº 2 do artº 122º do CPA de que o crime de falsas declarações quanto à paternidade da recorrente foi o pressuposto do acto.
Na parte que releva para estes autos dispõe o artº 122º do CPA:
Artigo 122.º
(Actos nulos)
1. São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.
2. São, designadamente, actos nulos:
a) …
b)…
c) Os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime;
d)…
e)…
f)…
g)…
h)…
i)…
Sobre esta questão já se pronunciou o Tribunal de Última Instância no seu Acórdão de 30.05.2018, Processo nº 29/2018:
«Relativamente à interpretação desta alínea, dissemos o seguinte nos acórdãos de 25 de Abril e 25 de Julho de 2012, respectivamente, nos Processos n. os 11/2012 e 48/2012:
«O objecto do acto administrativo é a produção de efeitos jurídicos no caso concreto1, é o efeito jurídico criado ou declarado2.
No caso dos autos, o objecto do despacho de … não constitui qualquer crime, pelo que, em termos literais, poderia parecer não ter aqui aplicação a alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo.
Contudo, a doutrina tem feito uma interpretação extensiva da norma, que é totalmente justificável.
MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS3 sustentam que:
“A expressão «actos administrativos que impliquem a prática de um crime»tem que ser objecto de interpretação extensiva: não estão em causa apenas as situações em que o acto administrativo em si preenche um tipo penal, mas todas aquelas em que o acto administrativo envolva, na sua preparação ou execução, a prática de um crime.
Exemplos de actos administrativos que implicam a prática de crimes: um acto administrativo de conteúdo difamatório para o seu destinatário; um acto praticado sob extorsão; uma ordem dada por um superior a um subalterno para que exerça violência física injustificada sobre pessoas”.
E MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM4 escrevem:
“Consideramos abrangidos na parte final desta alínea c) – mesmo se parece estranho o facto do legislador se referir apenas ao «objecto» do acto administrativo – também aqueles que, não sendo crime por esse lado, o são pela sua motivação ou finalidade, quando esta seja relevante para a respectiva prática. Diríamos, portanto, serem nulos não apenas os actos cujo objecto (cujo conteúdo) constitua um crime, mas também aqueles cuja prática envolva a prática de um crime.
Estão nessas circunstâncias, por exemplo, os actos que se fundem em documentos administrativamente falsificados (actas ou convocatórias forjadas, etc) ou os actos que sejam praticados mediante suborno ou por corrupção”».
Pois bem, tendo o despacho do Chefe do Executivo, de 26 de Dezembro de 2000, que autorizou a residência temporária da 2.ª recorrente e os despachos do Secretário para a Economia e Finanças, de 6 de Abril de 2004, que renovou a autorização de residência temporária da 2.ª recorrente, por 3 anos e de 16 de Fevereiro de 2007, que renovou a autorização de residência temporária da 2.ª recorrente até 31 de Maio de 2008, sido proferidos com base em documentos de identificação de uma interessada que eram falsos, com nome falso, com data de nascimento e identidade do pai que não coincidiam com os verdadeiros elementos de identificação da 2.ª recorrente, podemos dizer que tais actos administrativos apenas foram produzidos porque tinham na sua base a prática de crimes, por parte da 2.ª recorrente.
E pergunta-se, se a 2.ª recorrente tivesse exibido a sua verdadeira identidade, tais actos ter-lhe-iam concedido a residência de Macau? Não sabemos. Provavelmente, não, já que tendo a 2.ª recorrente de nacionalidade chinesa, residente no Interior da China, face ao disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º14/95/M, de 27 de Março, vigente ao tempo, teria de entregar documento comprovativo da autorização para requerer a fixação de residência em Macau, emitido pelas autoridades competentes da República Popular da China, o que não seria possível, porque tal documento nunca foi emitido.
Ou seja, a 2.ª recorrente obteve a residência em Macau usando uma identidade falsa, por razões não inteiramente claras e que em si não são relevantes, mas que provavelmente estão relacionadas com o que se disse atrás. Quando já era residente permanente, veio, então, pretender regressar à sua identidade verdadeira, pedindo a alteração do nome no seu bilhete de identidade de residente. Parece evidente que não pode ser.
Afigura-se-nos que o acto recorrido interpretou devidamente a alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo.»
Como expressamente se diz no trecho citado o entendimento seguido resulta de que «a doutrina tem feito uma interpretação extensiva da norma».
Na situação do Acórdão citado a falsificação dos documentos foi cometida pelo destinatário do acto, ou seja, a beneficiária da actuação da administração levou a que esta praticasse um acto que lhe era favorável e constitutivo de direitos com base em pressupostos de facto falsos e criminalmente puníveis. Nos dois Acórdãos que ali se citam a situação subjacente à prática do acto administrativo que veio a ser julgado nulo era uma situação de corrupção passiva cometida também com o objectivo de conduzir à prática do acto que veio a ser julgado nulo.
Dúvidas não assistem de que a solução Doutrinária adoptada é a melhor interpretação para o preceito em causa.
Contudo, a essa interpretação extensiva não é alheia os princípios fundamentais que enfermam o nosso sistema jurídico o qual assenta no que à responsabilidade concerne no princípio da culpa e na protecção de terceiros de boa-fé, havendo as formas de responsabilidade objectiva que ser expressamente previstas na lei.
Ora, aquilo que a Doutrina sustenta é que choca à sensibilidade do jurista que um acto praticado com base em pressupostos de facto forjados, numa actuação que é criminalmente punida, pudesse gerar quaisquer efeitos havendo que ser sancionado com a nulidade.
Porém, no caso que nos ocupa o destinatário do acto é um terceiro totalmente alheio à actividade criminosa que levou a que o pressuposto de facto que eventualmente conduziu à prática do acto administrativo fosse forjado. Concretizando, o sujeito a favor de quem os actos administrativos anulados foram constitutivos de direito era uma criança recém nascida que sem necessidade de qualquer outra prova é manifestamente alheia às falsas declarações que a mãe haja prestado a seu favor.
Destarte, se é correcta a interpretação no sentido de a actividade criminal prevista na letra da lei tanto pode ser a que se resulta da prática do acto – como expressamente resulta da disposição legal – como também, aquela que haja estado na sua génese, também porque a expressão usada é “crime” nada autoriza que a interpretação extensiva vá tão longe que possa entender que ainda que os sujeitos envolvidos na prática do acto – administração pública e cidadão sujeito do acto - actuem de boa-fé, a actuação crimonosa de terceiros possa vir a inquinar o acto de tal forma que o fira de nulidade.
O que a lei diz é que são nulos: Os actos cujo objecto seja impossível, os actos cujo objecto seja ininteligível, os actos cujo objecto constitua crime. A interpretação literal do preceito não pode ser outra que não esta, o que se pretende acautelar é que o objecto do acto administrativo possa constituir crime, contudo, alguma doutrina veio a fazer uma “interpretação extensiva” do preceito no sentido de considerar que quando os pressupostos do acto foram forjados de forma que constitua crime, também ai aquele é cominado com a nulidade, mas há que pressupor que essa actuação criminosa tenha uma conexão com os sujeitos a quem o acto se dirige.
Salvo melhor opinião, em nenhum dos Acórdãos do TUI a questão “sub judice” tem por objecto sujeitos que sejam alheios à actividade criminosa que levou à prática do acto, pelo que, em situações como aquela que ocorre nestes autos haverá que ponderar também o princípio da protecção dos sujeitos de boa-fé não levando a interpretação extensiva a um ponto que nos parece já estar – no caso de desconsiderar os interesses de sujeitos de boa-fé – num nível muito para além daquele que resulta da letra da lei.
Destarte, se este fosse o único fundamento do acto impugnado na nossa opinião haveria de proceder o recurso.».
Como dali resulta entendemos que no caso em apreço não é certo que a única solução jurídica do caso sub judice seja a declaração de nulidade do acto de concessão da autorização de residência da Recorrente uma vez que esta é completamente alheia e irresponsável no que concerne à prática do aludido crime que supostamente justifica a declaração de nulidade e que em momento algum é o objecto do acto!
Por outro lado, como também já foi por nós sustentado no Acórdão proferido em 14.01.2021 no Processo que correu termos sob o nº 1013/2019 ainda que o acto seja nulo nada obsta que se reconheçam efeitos putativos ao acto nulo, pelo que, a declaração de nulidade e irradicação do acto da ordem jurídica não é a única solução possível.
Destarte, seja porque o acto em causa não constitui um crime, seja porque o entendimento de que estando na génese de um acto legal a prática de um crime determina a nulidade deste resulta de uma interpretação extensiva da lei que no caso sub judice entendemos que não se aplica, seja porque os efeitos da nulidade podem ser afastados pelo efeito putativo do acto, não é evidente que no caso “sub judice” a declaração de nulidade seja a única legalmente possível.
Termos em que, pelos fundamentos expostos não podemos acompanhar o entendimento de que no caso em apreço a preterição de formalidade essencial do direito de audição prévia se degradou em não essencial.
Assim se concluindo e uma vez demonstrado que foi preterido a audição prévia da interessada sem que para tal haja fundamento legal violando-se o disposto nos artº 93 e 94º do CPA, de acordo com o disposto no artº 124º do mesmo diploma legal impõe-se decidir em conformidade anulando-se o acto impugnado por vício de forma.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso anula-se o acto impugnado.
Sem custas por delas estar isenta a Entidade Recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 18 de Abril de 2024
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(1º Adjunto)
Ho Wai Neng
(2º Adjunto)
(vencido nos termos constantes do parecer do MºPº)
Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto)
1 MARCELLO CAETANO, Manual..., I vol., p. 481
2 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Lisboa, Almedina, 1980, p. 441.
3 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito..., Tomo III, p. 162.
4 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo, Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 1997, p. 645.
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527/2023 REC CONT 66