Processo n.º 880/2023
(Autos de recurso cível)
Data: 2/Maio/2024
Assuntos:
- Recurso extraordinário de revisão
- Preterição de caso julgado
- Inadmissibilidade de recurso de revisão
SUMÁRIO
Contra a decisão proferida pela primeira instância (objecto do presente recurso de revisão) foi interposto recurso ordinário, primeiro ao TSI e depois ao TUI, tendo a questão de preterição do caso julgado sido suscitada em ambas as instâncias recursais, e julgada improcedente.
Uma vez que a alegada questão de preterição do caso julgado foi devidamente apreciada em recurso ordinário, tendo a decisão sobre a qual se interpôs recurso transitada em julgado, a (mesma) questão agora levantada (no recurso de revisão) já se encontra definitivamente resolvida, pelo que não há possibilidade de impugnar novamente a referida decisão.
O Relator,
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Tong Hio Fong
Processo n.º 880/2023
(Autos de recurso cível)
Data: 2/Maio/2024
Recorrente:
- Companhia de Desenvolvimento A, Limitada (recorrente)
Objecto do recurso:
- Despacho que indeferiu o requerimento do recurso de revisão
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Companhia de Desenvolvimento A, Limitada, com sinais nos autos (doravante designada por “recorrente”), interpôs junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM recurso de revisão, com fundamento na alegada violação do caso julgado formal.
Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base, foi indeferido o recurso por entender que não há fundamento para o tal recurso.
Inconformada, recorreu a recorrente jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. O presente recurso tem por objecto a decisão do Tribunal a quo que indeferiu liminarmente o recurso extraordinário de revisão nos termos do disposto no artº 660º, n.º 2 do CPC.
II. Outro, no entanto, podia e devia ter sido o sentido da aliás douta decisão ora recorrida.
III. Primeiro, porque o requerimento de interposição do recurso de revisão foi tempestivo, dado a decisão a rever só se ter tornado recorrível após o seu trânsito em julgado em 23 de Fevereiro de 2023, e respeitar a uma decisão recorrível, dado o fundamento que lhe serve de base se encontrar previsto na alínea g) do art.º 653º do CPC, pelo que não se verifica nenhuma das situações previstas no art.º 594º, n.º 1, ex vi do art.º 660º, n.º 2, 1ª parte, ambos do CPC.
IV. Segundo, porque fundamento de indeferimento liminar do recurso extraordinário de revisão não se inscreve na hipótese prevista no art.º 654º do CPC, nem em nenhuma das hipóteses previstas no art.º 594º, n.º 1 e 2 e no art.º 660º, n.º 2, ambos do mesmo diploma.
V. Terceiro, porque se o fundamento do recurso extraordinário de revisão for julgado procedente, é revogada a decisão ora revidenda, bem como todos os actos subsequentes que dela dependam absolutamente, incluindo o acórdão do TUI, de 8 de Fevereiro de 2023, conforme resulta do disposto no art.º 662º do CPC, não se colocando, portanto, a questão da eventual contradição de julgados prevista no art.º 580º, n.º 2 do CPC.
VI. Quarto, porque as normas processuais devem ser interpretadas sem perder de vista a sua função instrumental, pelo que em caso de dúvida ou controvérsia sobre o seu sentido e alcance, deverá optar-se pelo que assegure a apreciação dos direitos invocados pelas partes por força do princípio «in dubio pro habilitate instanciae» ou «in dubio pro favoritate instanciae».
VII. Quinto, porque a posição sufragada pelo tribunal a quo na decisão recorrida de que a violação do caso julgado formado anteriormente entre as partes só constitui fundamento de recurso extraordinário de revisão se ela não foi conhecida na acção anterior, não tem fundamento legal por não ter sido adoptada no CPC da RAEM.
VIII. O mesmo se diga das soluções adoptadas noutras jurisdições, como por exemplo a solução plasmada na alínea (5), última parte, do art.º 395º do “Codice di Procedura Civile” da República Italiana de que a recorribilidade da decisão contrária a outra que constitua caso julgado para as partes pressupõe que ela não se haja pronunciado sobre a excepção em causa.
IX. Esta solução não é aplicável ao caso sub judice, pelas seguintes razões:
X. 1ª razão: porque ela não foi adoptada na RAEM, ou seja, porque não se trata de uma solução de direito constituído (“de jure condito”) por não estar prevista na lei adjectiva, designadamente por não estar prevista na alínea g) do art.º 653º, nem no art.º 654º, ambos do CPC.
XI. 2ª razão, porque a alínea g) do art.º 653º, do CPC da RAEM não contém norma jurídica igual ou semelhante à que expressamente consta da alínea (5), última parte, do art.º 395º do “Codice di Procedura Civile” da República Italiana,
XII. pelo que o entendimento do tribunal a quo viola o disposto no art.º 8º, n.º 3 do Código Civil e, nessa medida, não tem fundamento legal, conforme resulta do disposto no art.º 8º, n.º 2 do mesmo diploma.
XIII. 3ª razão: porque a doutrina, pese embora o seu inestimável valor e autoridade, é uma fonte mediata do direito, não se substituindo à lei.
XIV. 4º razão: porque das normas previstas nos art.ºs 653º, alínea g) e 654º ambos do CPC, não se pode extrair um sentido que a sua letra não comporta, tendo aqui plena aplicação o cânone hermenêutico de que «onde a lei não distingue não cabe ao intérprete distinguir», sob pena de violação do disposto no art.º 8º, n.º 2 do Código Civil.
XV. 5ª razão: por a eventual dúvida ou controvérsia na interpretação da alínea g) do art.º 653º do CPC não poder ser resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema, por tal situação não configurar uma lacuna carecida de regulação, conforme resulta, a contrario sensu, do disposto no art.º 9º, n.º 1 e 3 do Código Civil.
XVI. 6ª razão: porque o entendimento do tribunal a quo sufragado na decisão recorrida derrota o propósito do recurso extraordinário de revisão tal como ele se encontra configurado na RAEM, ou seja, como a última válvula de escape do sistema.
XVII. Isto porque, em todos os casos em que seja procedente, o recurso extraordinário de revisão implicar sempre o sacrifício das relações jurídicas já “definitivamente” estabelecidas por decisão anterior, com todas as consequências legais e os transtornos daí advenientes.
XVIII. 7ª razão: porque, por se tratar de uma questão controvertida de direito impeditiva do conhecimento do objecto recurso, o conhecimento da excepção dilatória do caso julgado formal prevista no art.º 575º e 580º, n.º 2, ambos do CPC, logo na decisão liminar do objecto do recurso, pressupunha a audição das partes nos termos do disposto no art.º 625º, n.º 1 do CPC aplicável ao caso “sub judice” por força do disposto no art.º 3º, n.º 3 do CPC e do princípio da cooperação a que alude o artigo 8º, n.º 2 do mesmo diploma.
XIX. Logo, só após ouvidas as partes na fase rescindente do recurso extraordinário de revisão podia o tribunal a quo ter decidido que o caso julgado formado no acórdão do TUI, de 8 de Fevereiro de 2023 sobre a questão da violação do caso julgado formal da decisão de reenvio do TSI de 4 de Abril de 2019 impedia que a mesma questão voltasse a ser reapreciada nos presentes autos.
XX. Assim, por violação dos referidos preceitos legais, deverá a aliás douta decisão recorrida ser revogada, devendo o processo baixar ao TJB para que retome os seus termos até final.
Nestes termos e com o mais que V. Exas., muito doutamente, não deixarão de suprir, deve o presente recurso ser julgado procedente, com as legais consequências.”
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Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
A recorrente insurge-se contra a seguinte decisão proferida pelo juiz de primeira instância:
“A Recorrente vem interpor este recuso de revisão, visando impugnar a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base no dia 22 de Abril de 2020 (cfr. fls. 743 a 745 dos autos principais, doravante designada por “sentença a rever”), que foi parcialmente revogada pelo acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 18 de Março de 2021 (cfr. fls. 797 a 806 dos autos principais), entretanto, não se conformando com esta decisão veio ora Recorrente a interpor recurso dela ao Tribunal de Última Instância, o qual lhe negou provimento pelo acórdão de 8 de Fevereiro de 2023 (cfr. fls. 853 a 870 dos autos principais), confirmando integralmente a decisão recorrida. Portanto, a decisão final na acção principal acabou por transitar em julgado no dia 23 de Fevereiro de 2023.
Para sustentar o pedido de revisão, alega a Recorrente a sentença a rever violar o caso julgado por não ter cumprido o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 4 de Abril de 2019, no sentido de reconhecer à Recorrente o direito a indemnização.
Antes de mais, cabe ao tribunal a que é dirigido este recurso de revisão apreciar a tempestividade do recurso interposto, porque o prazo para a interposição do recurso de revisão é de 60 dias, ao abrigo do disposto no art.º 656º do CPC, a contar, no caso em apreço, da data em que a Recorrente tomou conhecimento do facto que serve de base ao recurso de revisão, i.e. a suposta violação do caso julgado ocorrida na sentença a rever.
Compulsados os autos, após a prolação da sentença a rever, dela a ora Recorrente interpôs recurso ordinário e, na sua alegação de recurso, a Recorrente argumentou pela violação do caso julgado pelo tribunal a quo por entender que o tribunal a quo não tinha cumprido o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 4 de Abril de 2019, que, na óptica da Recorrente, no acórdão do Tribunal de Segunda Instância contém uma decisão implícita no sentido de que se reconhece à Recorrente o direito a indemnização devido à revogação/cessação dos contratos-promessa, violando, assim, o caso julgado formado no acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 4 de Abril de 2019, quando o Tribunal a quo julgou improcedentes todos os pedidos subsidiários formulados pela Recorrente.
Em seguida, pelo acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 18 de Março de 2021, foi negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente, o mesmo Tribunal até pronunciou que “no caso, o que foi decidido anteriormente foi mandar baixar os autos para apreciação ex novo de um dos pedidos subsidiários, que até essa data estava prejudicado, mas que cumpria apreciar na medida em que a decisão anterior foi revogada, apreciação que este Tribunal não fez, nessa sede, por não se encontrar no objecto do recurso ali em causa” (cfr. fls. 804 dos autos principais). Não se conformando com esta decisão, dela a Recorrente interpôs recurso para o Tribunal de Última Instância, o qual culminou com a prolação da decisão que negou provimento ao recurso interposto pela ora Recorrente, considerando, em síntese, que não houve lugar à alegada violação do caso julgado da sentença a rever.
Ora, como é bom de ver, quando a Recorrente foi notificada da sentença a rever, deveria a mesma tomar conhecimento do facto de o Tribunal a quo lhe ter negado o direito a uma indemnização pela revogação dos contratos-promessa, que no entender da Recorrente tal direito se tivesse reconhecido pelo Tribunal de Segunda Instância por acórdão de 4 de Abril de 2019, isto quer dizer, pelo menos, na data em que a Recorrente apresentou as suas alegações de recurso, ou seja, em 30 de Junho de 2020 (cfr. fls. 754 a 760 dos autos principais), é que a Recorrente tomou conhecimento da ocorrência da suposta violação do caso julgado na sentença a rever, uma vez que nas suas alegações de recurso a Recorrente chegou a referir o seguinte: “[n]a decisão recorrida o Tribunal a quo … interpretou erradamente a decisão do TSI proferida em 04.04.2019, violando o caso julgado formal entretanto formado quanto ao direito de indemnização que assiste à Autora” – cfr. fls. 758v dos autos principais, por isso, o prazo previsto no art.º 656º do CPC para a interposição do recurso de revisão devia iniciar-se na data da notificação da sentença a rever.
No entanto, como se sabe, o recurso de revisão visa impugnar a decisão judicial transitada em julgado, repare-se que a sentença a rever só transitou em julgado em 23 de Fevereiro de 2023, quer dizer a data em que a Recorrente teve conhecimento do facto que serve de base ao recurso de revisão é muito antes da data do trânsito da sentença a rever, isso excede já o âmbito da tempestividade/ intempestividade do recurso, mas nos remete para a questão de saber se a Recorrente podia, por meio do recurso de revisão, obter uma nova oportunidade de impugnar a decisão judicial com fundamento na violação do caso julgado, que a Recorrente tinha invocado no recurso ordinário supra mencionado onde os Tribunais ad quem consideraram não ter ocorrido a alegada violação do caso julgado, na medida em que antes da prolação da sentença a rever, o Tribunal de Segunda Instância nunca se pronunciou sobre os pedidos subsidiários da Recorrente, não lhe reconheceu – nem lhe negou – o seu direito a indemnização, portanto, somos de opinião que a questão da violação do caso julgado já foi devidamente abordada e decidida pelos Tribunais ad quem no recurso ordinário.
Dispõe o artigo 581º, n.º 1 do CPC:
“1. Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que transitou em julgado em primeiro lugar.”
Admitindo o presente recurso de revisão interposto pela Recorrente, implicaria logo aceitar a hipótese de formar uma outra decisão que seja antagónica ao acórdão do Tribunal de Última Instância, de 8 de Fevereiro de 2023, que versa também a mesma questão concreta. Assim sendo, não por intempestividade é que leva à rejeição do presente recurso de revisão, mas por caso julgado formado no acórdão do Tribunal de Última Instância, de 8 de Fevereiro de 2023, onde tinha conhecido da mesma questão que a Recorrente suscitou no presente recurso de revisão.
Nesse sentido, VIRIATO LIMA defende que “o presente fundamento de recurso pressupõe que na acção anterior não foi conhecida da questão do caso julgado. Se foi, a decisão faz caso julgado que impede a reapreciação da mesma questão.” - cfr. «Manual de Direito Processual Civil», CFJJ, 2018, 3ª ed., p. 677v.
Como o fundamento que serve de base ao presente recurso de revisão chegou a ser o objecto do recurso ordinário na acção principal, isso vai impedir a reapreciação da mesma questão nos presentes autos por força do caso julgado ali formado. Aqui chegados, determina-se que seja indeferido, de imediato, o recurso de revisão interposto pela Recorrente nos termos do disposto no artigo 660º, n.º 2 do CPC.
Custas pela Recorrente.
Notifique e Registe.”
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Sem embargo de melhor opinião, louvamos a acertada e perspicaz decisão que antecede, com a qual concordamos e entendemos que nela foi dada a melhor solução ao caso, pelo que, considerando a fundamentação de direito aí exposta, cuja explanação sufragamos inteiramente, remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC e, em consequência, negamos provimento ao recurso.
Apenas mais uma achega para realçar que a posição assumida pelo juiz de primeira instância está correcta.
Tal como se encontra citado na decisão recorrida, observou Viriato de Lima que “o presente fundamento de recurso (leia-se “preterição de caso julgado”) pressupõe que na acção anterior não foi conhecida da questão do caso julgado. Se foi, a decisão faz caso julgado que impede a reapreciação da mesma questão.”
No mesmo sentido, dizem José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes1 o seguinte:
“A verdade é que a lei exige, após o trânsito em julgado das duas decisões, que seja rescindida a mais recente, através deste recurso (leia-se recurso de revisão) e antes de decorrido o prazo de caducidade para a sua interposição. Se não houver ainda trânsito, a violação de caso julgado pode ser deduzida por excepção dilatória ou recurso ordinário.
Como é evidente, só pode verificar-se este fundamento se a questão de preterição do caso julgado anterior não tiver sido suscitada no processo e julgada improcedente por decisão já transitada em julgado.”
No caso dos autos, contra a decisão proferida pela primeira instância em 22.4.2020 (objecto do presente recurso de revisão) foi interposto recurso ordinário, primeiro ao TSI e depois ao TUI, tendo a questão de preterição do caso julgado sido suscitada em ambas as instâncias recursais, e julgada improcedente.
A nosso ver, a interpretação defendida pela recorrente é abusiva e contraria claramente o espírito do legislador. Admitindo a tese da recorrente, estaria a conceder-lhe uma nova oportunidade de ser a mesma questão apreciada novamente por todas as instâncias, o que certamente não é concebido pelo legislador para evitar decisões contraditórias.
Na realidade, existem duas opções: ou a recorrente opta pela interposição do recurso ordinário, como ocorreu no caso presente, ou, deixando a decisão transitar em julgado, posteriormente interpõe o recurso de revisão.
Uma vez que a questão de eventual preterição do caso julgado foi devidamente apreciada em recurso ordinário, tendo a decisão sobre a qual se interpôs recurso transitada em julgado, a (mesma) questão agora levantada já se encontra definitivamente resolvida, pelo que não há possibilidade de impugnar novamente a referida decisão.
Termos em que deve negar-se provimento ao recurso interposto pela recorrente, confirmando a decisão recorrida.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, o Colectivo de Juízes deste TSI acorda em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pela recorrente Companhia de Desenvolvimento A Limitada e, em consequência, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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RAEM, 2 de Maio de 2024
(Relator)
Tong Hio Fong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Segundo Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong
1 Código de Processo Civil Anotada, Volume 3.º, página 199, Coimbra Editora
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Recurso Cível 880/2023 Página 9