Processo nº 685/2023
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 09 de Maio de 2024
ASSUNTO:
- Autorização de residência
- Crime
- Efeitos putativos de acto
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 685/2023
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 09 de Maio de 2024
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Segurança
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Segurança de 02.08.2023 que indeferiu o pedido de renovação da autorização de fixação de residência, formulando as seguintes conclusões:
1. A Revogação da autorização de residência da Recorrente viola o disposto no artº 122º, nº 2, c) do CPA,
2. Segundo o despacho, a autorização de residência Recorrente está envolvida com o crime praticado pelo seu pai B, pelo que nos termos do artº 122º, nº 2, al. c) do CPA, declarou a nulidade da autorização de residência da Recorrente. A Recorrente respeita quanto a isto, mas não concorda.
3. De facto, o pai da Recorrente B por ter contraído casamento falso, foi condenado o crime de falsificação de documento.
Quanto à Recorrente foi por motivo de seu pai B ter vindo para Macau unir-se com a família, obteve autorização de residência em Macau e o BIRM.
4. Mas deve ter em atenção que embora a Recorrente obteve autorização de residência com base no crime praticado pelo seu pai B, contudo, a Recorrente obteve autorização de residência não estava envolvida no acto criminoso.
5. Nos termos do artº 122º, nº 2, al. c) do CPA, nº 2, são actos nulos, os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime;
6. A Recorrente entende que se o acto em causa somente está envolvido com o “objecto” do acto administrativo que tinha sido seu pai B ter praticado crime, pois o seu pedido de autorização de residência não tinha participação no crime em causa.
7. A Recorrente foi trazida pelo seu pai para Macau e sempre aqui viveu, até ter sido declarada a nulidade da sua residência, nunca esteve envolvida em qualquer acto criminoso.
8. Entende a Recorrente que não devia pura e simplesmente por causa da autorização de residência do B ter baseada na prática de crime, originou que a autorização de residência da Recorrente também fosse envolvida.
9. Ela obteve autorização de residência não envolvia em qualquer acto criminoso, não devia por interpretação extensiva do artº 122º, nº 2, al. c) do CPA aplicar essa disposição.
10. Assim sendo, o acto da entidade recorrida nos termos do artº 124.º do CPA padece de vício que pode ser anulado.
11. O supracitado acto administrativo violou o Princípio da proporcionalidade previsto no artº 5º e o princípio da boa-fé previsto no artº 8º do CPA.
12. A Recorrente veio para Macau fixar residência, passou a considerar Macau como seu centro de vida, estudou e trabalha em Macau.
13. Ela tem, em vários aspectos, ligação íntima com Macau, esta ligação é muito maior com o seu país de origem.
14. Caso declarar a nulidade da sua autorização de residência, ela irá perder o seu emprego e rendimento, bem como a relação e estado criado durante mais de dez anos em Macau.
15. Nos termos do artº 5º, nº 2 do CPA “As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar.”
16. O princípio da proporcionalidade, significa que quando a entidade administrativa pratica actos, designadamente actos que limitam ou prejudicam os direitos e interesses legais dos particulares, só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar.
17. O acto recorrido “extinguiu” a situação jurídica e factual estável estabelecida pela Recorrente em Macau ao longo dos anos, afectando directamente a confiança e as expectativas da Recorrente quanto à estabilidade da lei e dos factos, assim como, a decisão relevante prejudicou de forma desproporcional as expectativas razoáveis da Recorrente;
18. Se for declarada a nulidade da autorização de residência inicialmente concedida à Recorrente, isso impossibilitará a Recorrente de continuar a residir e viver em Macau, causando a perda do emprego da Recorrente e dificuldades económicas, assim como a “extinção” da situação estabelecida pela Recorrente em Macau ao longo dos anos, pelo que o acto recorrido relevante é contra a razão humanitária, o princípio da proporcionalidade e o princípio da boa-fé.
19. Posto isto, de acordo com o disposto no artº 124.º do CPA, o acto administrativo padece de vício que pode ser anulado, portanto, é anulável.
20. Se o Mmº Juiz é de opinião distinta, considera que deve declarar a nulidade da autorização de residência da Recorrente, a Recorrente ainda pretende apresentar os seguintes fundamentos do recurso:
21. O acto recorrido violou o artº 123.º, n.º 3 do CPA, em conjugação com os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da equidade, da isenção e da boa-fé previstos nos artºs 5.º, 7.º e 8.º da mesma lei, devendo atribuir efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos
22. Em primeiro lugar, a Recorrente obteve autorização de residência em 26 de Novembro de 2009, desde então fixou residência em Macau até à presente data, residindo há cerca de 14 anos em Macau. (Documento 1)
23. Daí se vê que aos 16 anos de idade a Recorrente passou a viver em Macau e desde Julho de 2010 a Julho de 2013 frequentou o ensino secundário complementar na Escola Secundária HOU KONG de Macau, durante os três anos de frequência escolar era das melhores alunas e obteve muitos prêmios “de mérito, académicos e de serviços" etc. (Documento 2)
24. Durante a fase escolar, por possuir classificação excelente, foi escolhida várias vezes para representar a turma e a escola como “Chefe da Turma e Líder de Cursos de Formação, participando em Competições de Debate, Exame de Conhecimento da Cultura geral da China (Padrão Popular) e Competição de Física Aplicada para Escolas Secundárias Elementares da China, divisão de Macau”, assim como, tem frequentado o curso de língua japonesa para abundar os seus conhecimentos em língua estrangeira.. (Documentos 3 e 4)
25. Posteriormente, após concluir o ensino secundário, a Recorrente foi para a Universidade de educação do Sul da China para frequentar o curso de graduação (educação) de língua e literatura e concluiu o curso com classificação de bom (Documento 5).
26. Durante a frequência escolar, participou em várias actividades extracurriculares e exames, incluindo “Exame Nacional de Proficiência em Informática para Ensino Superior”, Nota do exame de inglês universitário nível 4, Certificado do teste de proficiência Putonghua, Educação em Saúde Mental nas Escolas Primárias e Secundárias da Província de Guangdong "Formação nível C", obteve Prêmio de Excelência no 3º Concurso de Simulação em Sala de Aula da Associação de Pesquisa em Educação Infantil, a Equipa de literatura, obteve o Prêmio Individual de Prática Social de Verão 2014 do Grupo de Trabalho de Construção partidária da faculdade de literatura, obteve o Prémio de Excelência no 6º Concurso de Design de Programas da Faculdade de Literatura com título de "Cinco Montanhas na Mente, Descreve-se o Universo", obteve o Prêmio de Excelência no Concurso Criativo "Recitação de Poesia Antiga Chinesa" 2014, organizado pelo Departamento de Cultura, Rádio, Televisão, Imprensa e Publicação do Distrito de Guangzhou Tianhe, obteve o Primeiro Prêmio do Grupo A do Performance Artístico da 4ª Exposição de Arte de Estudantes Universitários da Província de Guangdong, obteve o Terceiro Prêmio do 10º Concurso Nacional de Obras Literárias para Estudantes Universitários, o Prêmio de Excelência do 5º Concurso de Redacção “Eu e o Chá” em 2014, obteve Bolsa de Terceiro Prêmio para Activistas em Actividades Comunitárias do Ano Acadêmico de 2013 a 2014 e 2014 a 2015, obteve o 2º classificado na 9ª Competição de Basquete Feminino "Taça de Boas-vindas" da Faculdade de literatura da Universidade de Educação do Sul da China, obteve o Terceiro Classificado na 9ª Competição de Basquete Feminino "Taça de Despedida" da Faculdade de Literatura da Universidade de Educação do Sul da China, obteve o Quinto lugar na competição de revezamento misto 4X100 metros no 9º Jogo de Atletismo da Faculdade de Literatura da Universidade de Educação do Sul da China, o Primeiro Prêmio no 6º Festival de Cultura do Dormitório da Faculdade de Literatura da Universidade de Educação do Sul da China - Concurso de Canção do Dormitório, obteve o Prémio de Excelência no Primeiro Concurso de Fotografia Micro Story da União Estudantil da Faculdade de Administração Pública da Universidade de Educação do Sul da China, obteve o Prêmio de Excelência no concurso Especial de Pesquisa da Faculdade de Literatura da Universidade de Educação do Sul da China 2014, obteve o Segundo prêmio no "Concurso de Simulação de Vendas Top Sale" da Associação de Eloquência na área da Universidade de Educação do Sul da China, obteve o Prêmio de Excelência do Concurso de Recitação de Poesia "Taça Juvenil" com tema "Herdar os clássicos e ecoar a juventude" da Faculdade de Literatura da Universidade de Educação do Sul da China, obteve o Segundo Prêmio no Primeiro Concurso de Dublagem da Associação de Discurso e Comunicação da Universidade de Educação do Sul da China, obteve o Prêmio de Excelência do "Concurso de Conhecimento Cultural de Lingnan" organizado pela Associação Juvenil de Cultura de Lingnan da Universidade de Educação do Sul da China. (Documento 6)
27. Ganhou vários prêmios em concursos e foi escolhida ou contratada pela universidade como ministro de diversas comissões ou conselheira externa e recebeu uma série de certificados de mérito: (Documento 7)
28. Durante o estágio, foi reconhecida pela Escola Secundária Jialun, cidade de Kaiping, província de Guangdong e Escola primária suburbana de Huicheng, distrito de Xinhui, cidade de Jiangmen, a sua capacidade educacional. (Documento 8)
29. Posteriormente, a Recorrente concluiu o curso de licenciatura e regressou para Macau trabalhar, foi contratada pela Escola Fong Chong da Taipa, exercendo funções de professora do ensino secundário. Durante o período de docente dedicou-se com todo o empenho na formação dos alunos que foi reconhecida pela escola. (Documento 9)
30. Ganhou também o segundo prémio para o Projecto Pedagógico nos anos letivos 2018/2019 e 2020/2021 e vários certificados emitidos pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude. (Documento 10)
31. Além disso, a Recorrente continua a estudar para concluir o curso de "Introdução às Finanças" organizado pelo Instituto de Formação Turística de Macau, curso de Introdução aos Clássicos Chineses (Avançado) e curso de formação de leitura de um livro completo – Cinco crianças e um monstro organizados conjuntamente pela Universidade da Cidade de Macau e pelo DSEJM. "Curso de Formação Profissional Contínua de Educação de Macau - Certificação de Educação Integrada" organizado pela Universidade de Educação de Hong Kong e o curso "Estratégia de Protecção de Dados Pessoais no Campus" organizado pelo Centro Internacional de Treinamento e Testes, etc. para aperfeiçoar as suas próprias capacidades de ensino e melhor ensinar os alunos. (Documento 11)
32. Durante o período lectivo, a Recorrente treina os alunos para participar nos concursos de recitais estudantis de Macau e em vários concursos de redacção, ela sempre manteve bom relacionamento com os alunos, fazendo-lhes companhia para que os alunos possam desfrutar com alegria a vida escolar, tal sempre foi a maior motivação da Recorrente como professora.
33. Com base nisto, a Recorrente em 2021 foi tirar o curso de mestrado em educação na faculdade de Ciências de Educação da Universidade de Educação do Sul da China, com duração de 3 anos. (Documento 12)
34. A Recorrente encontra-se actualmente no terceiro ano do curso e está na fase da elaboração da tese, a Recorrente tem deslocado frequentemente ao CAEP de Macau para discutir e pedir orientações ao professor sobre a elaboração da tese.
35. Se a Recorrente não puder regressar agora para Macau, não poderá concluir o curso de mestrado.
36. A Recorrente para além de trabalhar arduamente, nos tempos livres, voluntariamente participava em vários tipos de serviços de apoio e dadiva de sangue, tendo entre 16 de Junho a final de Setembro de 2022, em representação da Escola Fong Chong da Taipa participado no trabalho voluntário do teste massivo de ácido nucleico na Estação de Testes de Ácido Nucleico à beira do Lago da Taipa, a fim de cumprir as diversas obrigações sociais e também tem cumprido a obrigação como residente de Macau pagar anualmente impostos. (Documento 13)
37. A Recorrente foi também convidada pela Comissão de Desenvolvimento de Quadros Qualificados da RAEM a registar-se na base de dados dos quadros qualificados e é um dos membros da Associação de Educação de Macau. (Documento 14)
38. Em termos de vida privada, a Recorrente adquiriu em 13 de Setembro de 2021, um apartamento no Xº andar X do bl. 4 do edf. XXX da Rua de XXX nº 71, Macau, como residência de família, na esperança de constituir família com o seu noivo. (Documento 15)
39. Com vista a adquirir o apartamento acima referido, a Recorrente teve que requerer ao Banco Luso Internacional, S.A., Macau (adiante designado por banco) hipoteca voluntária para obter um crédito caucionado no montante de MOP$3,485,000.00 para pagamento do imóvel. Presentemente a Recorrente necessita de pagar uma contribuição mensal de aproximadamente MOP$12.565,46 ao banco. (Documento 16)
40. A fim de garantir a sua vida futura em Macau, a Recorrente também adquiriu seguro médico relevante, pensão de aposentação privada e participou no plano de previdência central não obrigatório para preparar a aposentação da sua vida futura em Macau.
41. Face à apólice de seguro supracitada, a Recorrente tem de pagar anualmente à companhia de seguros um total de USD$7.445,48, equivalente aproximadamente MOP$60,010.56. (Documento 17)
42. De acordo com o plano de aposentação privada adquirida pela Recorrente, ela tem de contribuir durante 18 anos consecutivos para poder recuperar o principal e os juros. Se houver interrupção no pagamento, ela não poderá recuperar os juros, nem o capital; A Recorrente efectuou contribuições durante 6 anos consecutivos no valor cerca de USD$27.870,48, equivalente a aproximadamente MOP$224.636,06.
43. Além disso, dado que em 21 de Agosto de 2023, aquando assinou o recebimento do despacho do Exmº Sr. SPS emitido em 2 de Agosto de 2023, foi confiscado o seu BIRM, por isso não pôde regressar a Macau trabalhar, pelo que não teve outra opção em pedir à escola para primeiro demitir o seu cargo de professora.
44. A decisão de declaração da caducidade da autorização de residência da Recorrente, sem dúvida irá causar à Recorrente a perda da fonte principal do rendimento, escassez de dinheiro e até interrupção das contribuições. Implicará que o banco poderá intentar acção de execução contra a Recorrente para vender o seu apartamento, ficando a Recorrente impossibilitada de recuperar o principal do seguro por interrupção da contribuição, resultando danos patrimoniais irreparáveis.
45. Além disso, de acordo com os factos supracitados demonstram também que a Recorrente se adaptou e integrou-se totalmente na vida de Macau nos últimos 14 anos, ela considera Macau a sua residência permanente e no futuro passará a sua vida de reforma em Macau.
46. Para além das contribuições fixas acima mencionadas, a Recorrente também precisa de sustentar os seus pais, portanto, as contribuições relevantes só podem ser mantidas com o rendimento da Recorrente.
47. Se a Recorrente perder a autorização de residência em Macau, a sua família ficará sem rendimentos, o que irá certamente causar um grande impacto à sua situação económica, tal como foi referido, ela não irá conseguir pagar as contribuições, o que irá perder o capital da contribuição do seguro pago durante os últimos seis anos e até perder o apartamento que adquiriu, isto sem dúvida irá resultar a redução do seu nível de vida.
48. Salienta-se ainda que a Recorrente vive e trabalha em Macau há 14 anos e tem uma ligação profunda com Macau, pelo que se a Recorrente for imediatamente exigida a sair da cidade onde cresceu sem qualquer preparação, isto sem dúvida irá causar prejuízos psicológicos irreparáveis.
49. Se declarar a nulidade da autorização de residência da Recorrente, sem dúvida que a Recorrente perderá a sua capacidade de ganhar a vida porque não tem residência nem emprego na RPC.
50. No acórdão do TSI nº 833/2021 de 19/05/2022 indica claramente:
"Perante a decisão da declaração da nulidade da emissão do BIRM, objecto deste recurso contencioso, deve chamar-se à colação os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e da proporcionalidade, para além de a situação poder e dever ser enquadrada na previsão do nº. 3 do artº 123º do CPA.
0 reconhecer ou não efeitos ao acto nulo nos termos do n. º3 do artº 123º do CPA implica o exercício dum poder discricionário, o que pode ser sindicado pelo tribunal de acordo com os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da confiança e imparcialidade. (...)" (o carregado é nosso)
No qual, nas fls 50, demonstra na anotação o entendimento unânime dos estudiosos Lino Ribeiro e José Candido de Pinho sobre o artº 115.º, n.º 3 do CPA, aprovado pelo DL n.º 35/94/M (correspondente ao artº 123.º do CPA vigente):
“O disposto nº 23º do artigo 115º. veio consagrar um regime de nulidade que a doutrina e a jurisprudência já admitia, sobretudo a propósito dos agentes putativos. Como acontece em muitas situações jurídicas, reconhece-se que o tempo é um facto natural produtor de efeitos jurídicos. Assim, um acto nulo, que desde a sua emanação não produz quaisquer efeitos jurídicos (mas que os produz de facto) pode, pelo simples decurso do tempo, vir a produzi-los.
A intenção do legislador é temperar o rigor que constitui a destruição total de situações de facto constituídas à sombra do acto nulo. A transformação de situações de facto em situações de direito pelo decurso do tempo chama-se, sobretudo no direito privado, usucapião. Como se vê, este instituto também desempenha um papel, embora menor, no Direito Administrativo.
No entanto, o decurso do prazo não é suficiente para que o acto nulo venha a produzir efeitos jurídicos. Como a lei expressamente refere, tal só deve acontecer «de harmonia com os princípios gerais de direito». Faz-se apelo a princípios como os da protecção da confiança, da boa fé, da igualdade, da imparcialidade, da proporcionalidade, da justiça, do não enriquecimento sem causa, da realização do interesse público. Estes princípios, que são vinculativos para a Administração, podem ser chamados a resolver situações de injustiça derivadas da nulidade dum acto administrativo.
0 caso mais tratado pela doutrina e jurisprudência é o dos agentes putativos, circunstância que normais, administrativo, que são pessoas que actuando, em circunstâncias normais, como titulares de um órgão administrativo, não o são de direito, quer porque o seu provimento resulta de um acto inválido, quer porque já cessou o efeito do acto do seu provimento legal.
(...).
Ora, por razões de protecção da boa fé e da estabilidade da função pública, a doutrina e a jurisprudência admitem que os funcionários providos em virtude dum acto nulo possam, pelo decurso do tempo, adquirir o direito ao lugar e que os actos administrativos por si praticados não serão inválidos por esse facto.
As relações entre o agente putativo (aquele que se acreditar) e a pessoa colectiva em que está inserido levam a que ao fim de determinado tempo aquele se torne agente de direito. A lei nada diz quanto ao período de tempo necessário para que ocorra aquela transformação. O professor Marcello Caetano, por analogia com a situação prevista no artigo 1298. 2, alinea b) do Código Civil, fazia referência ao prazo de dez anos. Mas os tribunais administrativos portugueses eram mais benevolentes e, em certos casos, admitiam mesmo prazos inferiores, pouco excedentes a três anos. Mas além do decurso dum prazo suficiente, exige-se ainda que o exercício das funções públicas seja pacífico, continuo e público, e que o facto que originou a situação não tenha sido gerado de forma dolosa ou erro grosseiro do interessado. (o carregado é nosso)
No qual, nas fls. 58 cita-se a teoria do estudioso Vieira de Andrade:
"0 rigor do regime legal da nulidade pode em muitas circunstâncias revelar-se excessivo, designamente quanto à impossibilidade aparentemente absoluta de ratificação, de reforma e até de conversão (artigo 137º, nº 21 do CPA) e quanto ao regime imprescritibilidade do poder de declaração da nulidade por qualquer autoridade administrativa ou judicial. (artigo 134º, nº 22 do CPA). A moderação desse rigor resulta da possibilidade de reconhecimento jurídico de efeitos de facto produzidos pelo acto nulo, com base no decurso do tempo e com fundamento em principio jurídico fundamentais (designadamente, os princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança legitima ou o principio da proporcionalidade) prevista no nº3 do artigo 134.º do CPA- Cit. Vieira de Andrade, Liçães de Direito Administrativo, pag. 201- (o carregado é nosso)
51. Ou seja, conforme o acórdão e a teoria acima mencionados, quanto à impossibilidade de retificação, de reforma e de conversão de actos administrativos nulos e até mesmo de natureza “rigor” que podem ser invocados a todo o tempo por qualquer interessado, o legislador estabeleceu um mecanismo de excepção que atribui às autoridades administrativas o poder discricionário para tomar decisões.
52. Mesmo perante a nulidade dum acto administrativo, não impede que o órgão administrativo, de acordo com as circunstâncias do caso, pelo decurso do tempo e conforme os princípios gerais de direito, o poder de atribuir efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos relevantes.
53. No qual salienta-se também que a intenção original do legislador é temporar o rigor que constitui a destruição total de situações de facto constituídas à “sombra” do acto nulo.
54. A transformação de situações de facto em situações de direito pelo decurso do tempo chama-se, sobretudo no direito privado, usucapião, o legislador deseja aqui através do decurso do tempo, proteger os direitos privados e a confiança dos cidadãos em relação aos órgãos administrativos.
55. Posto isto, as autoridades administrativas podem atribuir efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos relevantes de acordo com o disposto no artº 123.º, n.º 3 do CPAM.
56. Além disso, é também necessário citar o entendimento do Manual de formação de direito administrativo de Macau (pág. 180 do Centro de Formação Jurídico e Judiciário 2008 traduzido por Kuan Kun Hong): “Tendo em conta que embora os actos nulos não podem produzir efeitos jurídicos, contudo podem produzir efeitos factuais, e para balancear as consequências extremas provenientes da nulidade, a lei permite, de acordo com os princípios gerais de direito, pelo decurso do tempo, atribuir determinados efeitos jurídicos (“ efeito presumido”) a situações de facto decorrentes de actos nulos.”
57. Portanto, a Recorrente entende que deve neste caso exercer o poder discricionário, continuando a atribuir o efeito jurídico de autorização de residência à Recorrente nos termos do artº 123.º, n.º 3 do CPAM.
58. No acórdão TSI nº 83/2022 de 4 de Novembro de 2022 indica: “Quanto à atribuição de efeitos jurídicos se deve ou não aplicar o disposto no artº 123º, nº 3º, entendemos que se enquadra no âmbito da discricionariedade da administração, devendo ser a autoridade administrativa a ponderar a situação do caso em concreto e exercer o seu poder discricionário para tomar decisão, porque esta disposição atribui ao órgão administrativo competente um poder que permite ao órgão administrativo “preservar” determinados efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos,(...)”.
59. No âmbito do exercício da discricionariedade das autoridades administrativas devem cumprir os princípios gerais do CPA.
60. Então, de acordo com o princípio da proporcionalidade previsto no artº 5.º, n.º 2 do CPA: “As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar.”
61. Nomeadamente quando se praticam actos que limitam ou prejudicam os direitos individuais e os interesses legais, tais actos têm de ser adequados e necessários para atingir os objectivos visados.
62. De acordo com a pág. 17 do “Código de Procedimento Administrativo Anotado”, editado pela Associação de Direito, Administração Pública e Tradução de Macau em 1995, da autoria de Dr. Chu Wai Kon, Dr. Lam Sio Wan, Dr.Tou Wai Fong, Dr. Wong Wai Wa, Dr. Vong Hin Fai e Dr. Lai Kin Hong: “O "princípio da proporcionalidade" é aplicável a todos os actos e decisões da Administração, nomeadamente aqueles que limitem e prejudiquem os direitos individuais e interesses legais, esses actos e decisões são adequados e necessários para atingir os objectivos visados. (…)”
63. O princípio da proporcionalidade quer dizer que quando as autoridades administrativas praticam actos, quando se praticam actos que limitam ou prejudicam os direitos individuais e os interesses legais, tais actos têm de ser adequados e necessários para atingir os objectivos visados.
64. Conforme o supracitado, a Recorrente não foi acusado de qualquer crime e nunca foi julgada na China continental ou em Macau, não há indícios de que a Recorrente tenha afetado a segurança pública ou a segurança de Macau.
65. Assim sendo, uma vez que a Recorrente reside em Macau há 14 anos, o efeito jurídico da sua autorização de residência manteve-se há mais de 14 anos, bem como, tal como referido, a Recorrente nunca cometeu qualquer crime durante esses 14 anos e sempre cumpriu a lei de Macau, exercendo trabalho legítimo e contribuiu para a economia de Macau.
66. E porque fixou residência em Macau há 14 anos, tem ligação profunda com Macau, considera Macau como local de residência habitual e definitiva para si e para sua família.
67. Portanto, se não for atribuído o respectivo efeito jurídico presumido à Recorrente, e se anular a sua autorização de residência, tal sem dúvida irá violar a aplicação do princípio da proporcionalidade; ou seja, se não for atribuído o efeito jurídico presumido relevante, os prejuízos causados aos direitos da Recorrente serão muito maiores aos prejuízos causados aos interesses legalmente protegidos do público.
68. Por outro lado, de acordo com o artº 7.º do CPA: “No exercício da sua actividade, a Administração Pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação.”.
69. De acordo com a pág. 18 do “Código de Procedimento Administrativo Anotado”, editado pela Associação de Direito, Administração Pública e Tradução de Macau em 1995, da autoria de Dr. Chu Wai Kon, Dr. Lam Sio Wan, Dr. Tou Wai Fong, Dr. Wong Wai Wa, Dr. Vong Hin Fai e Dr. Lai Kin Hong: "O princípio da justiça" exige que a administração coordene os conflitos entre os interesses públicos e os direitos e interesses dos cidadãos, o princípio da justiça em sentido amplo abrange os princípios da igualdade e proporcionalidade, qualquer situação que viole os princípios da igualdade ou proporcionalidade é contra o princípio da justiça, as decisões tomadas pelas autoridades administrativas que violam o princípio da justiça são ilegais, que por sua vez são inválidas." (o carregado é nosso e ponto-chave da presente audiência escrita)
70. Além disso, de acordo com o artº 8.º do CP, o legislador formulou o princípio da boa-fé na esperança de que as autoridades administrativas e os particulares possam estabelecer uma relação de confiança mútua nas atividades administrativas, de modo a atingir os objetivos pretendidos das atividades administrativas relevantes.
71. Faz-se referência aqui ao acórdão do TSI nº 686/2012 de 7 de Maio de 2015, no qual destaca “Uma das razões para o legislador introduzir o princípio da boa-fé nas actividades administrativas é evitar ou impedir que, nas actividades administrativas, Administração ou os particulares possam eventualmente fazer com que a outra parte tenha expectativas legítimas ou confiança num determinado assunto com base na nos seus actos ou decisões. e, de repente, muda a sua posição original, fazendo com que a outra parte sofra danos por causa da confiança ou expectativa que tinha depositado nos seus actos ou posição anterior, ou fazendo com que a autoridade administrativa por ter sido induzida em erro, ter tomado decisões ineptas ou mesmo ilegais. Portanto, um dos valores básicos que o princípio da boa-fé pretende proteger é a confiança ou a expectativa legítima entre as partes na relação administrativa."
72. Ao mesmo tempo, no acórdão do TSI nº 974/2012 de 7 de Novembro de 2013, também refere a respeito do princípio da boa-fé: “Entre as ricas doutrinas e jurisprudências sobre o princípio da boa-fé, o consenso geralmente reconhecido é: a honestidade e a lealdade são a sua essência. (Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, J. Pacheco de Amorim: Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª ed., pp. 108-109).”
73. Isto é, conjugado com o acima exposto, uma vez que a família da Recorrente reside em Macau há 14 anos consecutivos e tem uma ligação profunda com Macau, caso a autoridade opte por declarar a nulidade da sua autorização de residência e negar a situação de facto dos 14 anos sem atribuir o devido efeito jurídico não só irá abalar a confiança e a estabilidade do público em relação às decisões tomadas pelas autoridades administrativas, mas também violará os princípios da igualdade, proporcionalidade, justiça, isenção e de boa-fé consagrados nos artº 5.º, 7.º e 8.º, assim como o disposto no artº 123º, nº 3 do CPA.
74. Posto isto, quer se baseie em razões humanitárias ou no tempo de residência da Recorrente em Macau, a autoridade deverá continuar a conceder a autorização de residência e os devidos direitos à Recorrente, em conformidade com o disposto no artº 123.º, n.º 3 do CPA, atribuir os devidos efeitos jurídicos.
75. Pelo exposto, o acto praticado pela entidade recorrida padece do vício disposto no artº 124.º do CPA que é anulável, de resto, o acto recorrido sem dúvida é manifestamente incorrecto e irracional.
Contra-alegando veio a Entidade Recorrida pugnar para que fosse negado provimento ao recurso, não apresentando, contudo, conclusões.
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, ambas silenciaram.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer com o seguinte teor:
«1.
A, melhor identificada nos autos, veio instaurar o presente recurso contencioso do acto administrativo praticado pelo Secretário para a Segurança que declarou a nulidade da sua autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM), pedindo a respectiva anulação.
A Entidade Recorrida, devidamente citada, apresentou douta contestação na qual pugnou pela improcedência do recurso contencioso.
2.
(i)
Começa a Recorrente por alegar no presente recurso o vício de violação de lei. Em seu entender, não podia o acto que autorizou a sua residência na RAEM ser declarado nulo com fundamento no artigo 122.º, n.º 2, alínea c), do Código do Procedimento Administrativo (CPA), porquanto, segundo alega, não teve qualquer participação no crime em cuja verificação se fundou o acto recorrido.
Parece-nos, com o devido respeito, que não tem razão. Pelo seguinte.
O fundamento que justificou a autorização de residência da Recorrente consistiu no chamado reagrupamento familiar dela e do seu pai, B, com a madrasta da Recorrente, e residente permanente da RAEM, C. Acontece que, como ficou demonstrado no processo criminal que correu termos no 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base sob o n.º CR4-22-0049-PCC, o casamento entre o pai da Recorrente e a referida C foi simulado, tendo daí resultado a condenação daqueles na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
Deste modo, os actos de autorização de residência em Macau de que beneficiaram, quer a mãe da Recorrente, quer esta, são nulos por caírem na previsão da alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do CPA (segundo o que aí se estabelece, são nulos «os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime»). Com efeito, de acordo com a que nos parece ser a melhor interpretação desse preceito legal, extensiva em relação à sua letra, deve considerar-se que na sua previsão estão incluídas todas as situações que envolvam, decisivamente, a prática de um crime, e bem assim, aquelas em que se conclua que o acto administrativo, sem o facto criminoso, não teria sido praticado com o mesmo conteúdo, tal como, no caso, manifestamente, aconteceu, porquanto, como vimos, a Recorrente beneficiou da autorização de residência com base num reagrupamento familiar que, por sua, se encontrou fundamento essencial ou decisivo num facto criminoso, o casamento simulado entre o pai da Recorrente e a residente de Macau, C. Sem a consideração desse casamento, afinal simulado, a dita autorização não teria sido concedida pela Administração (veja-se, neste sentido, e a propósito de situação idêntica, o acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 16.07.2020, processo n.º 1099/2019).
O facto de a Recorrente não ter sido arguida no processo crime acima mencionado não constituía obstáculo a que a Administração, confrontada com a sentença condenatória nesse processo, extraísse as consequências devidas, uma vez que ficou definitivamente provado que o acto de autorização de residência se fundou, nos termos que vimos, num facto criminoso que o inquina de modo irremediável (nestes termos, cfr. os acórdãos do Tribunal de Última Instância de 25.04.2012, processo n.º 11/2012 e de 25.07.2012, processo n.º 48/2012).
(ii)
Alegou também a Recorrente que o acto administrativo impugnado violou os princípios da proporcionalidade, da boa fé e da igualdade.
Trata-se, no entanto, também aqui, de uma alegação que, a nosso modesto ver, não pode proceder.
Os princípios gerais da actividade administrativa funcionam como limites ao exercício da discricionariedade e, portanto, é nesse domínio que encontra a sua justificação. Constituindo um limite da margem de livre decisão administrativa, tais princípios apenas podem bloquear a adopção de uma conduta administrativa com eles incompatível na medida em que tal conduta se encontre naquele espaço de livre decisão (assim, MARCELO REBELO DE SOUSA – ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 2.ª edição, p. 221).
É esse, de resto, o sentido que a nossa jurisprudência tem vindo a apontar de modo uniforme: a violação dos princípios gerais da actividade administrativa só tem relevância autónoma no âmbito da actividade discricionária da Administração, não quando está em causa o exercício de uma actividade vinculada (assim, entre muitos outros, os acórdãos do Tribunal de Última Instância de 03.04.2020, processo n.° 7/2019 e de 27.11.2020, no processo n.° 157/2020).
No caso, estando em causa um acto de autorização de residência que sofre de vício gerador da respectiva nulidade, é consensual, se não estamos em erro, que a Administração se encontrava legalmente vinculada a declarar essa nulidade (neste sentido, para além dos acórdãos do Tribunal de Última de Instância referidos no parágrafo anterior, cfr., na doutrina, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3.ª edição, Coimbra, 2017, p. 404 e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, 3.ª edição, Coimbra, 2015, pp. 352-353).
Significa isto, portanto, que, não podia a prática daquele acto administrativo declarativo da nulidade ser concretamente neutralizada pela invocação dos falados princípios da proporcionalidade, da boa fé e da igualdade.
(iii)
O terceiro e último fundamento do recurso alegado pelo Recorrente é o da violação do n.º 3 do 123.º do CPA.
Também este fundamento, segundo nos parece, não pode proceder. Em apertada síntese, pelo seguinte.
Segundo o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 123.º do CPA, «o acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade», e, além disso, a nulidade não só invocável, mas, também, susceptível de ser declarada a todo o tempo por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal. Porém, de acordo com o preceituado no n.º 3 do mesmo artigo, isso «não prejudica possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito».
A consagração desta norma do n.º 3 do artigo 123.º do CPA parte do reconhecimento por parte do legislador de que, ao abrigo de actos nulos, é possível que se constituam e consolidem situações de facto e/ou que se produzam determinados efeitos materiais que podem reclamar, em determinadas situações e perante certos pressupostos, um tratamento jurídico diverso daquele que resultaria de uma aplicação pura e simples do regime, reconhecidamente radical nas suas consequências, da nulidade. Do que se trata é, pois, da previsão de uma válvula de escape à rigidez genética do regime da nulidade dos actos administrativos (assim, ANDRÉ SALGADO DE MATOS, A invalidade do acto administrativo no projecto de revisão do Código do Procedimento Administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 100, Julho/Agosto 2013, p. 56).
Todavia, importa salientar que esta jurisdicização das situações de facto constituídas à sombra de atos nulos ao abrigo da previsão normativa do n.º 3 do artigo 123.º do CPA, não consubstancia o afastamento ou sanação da ilegalidade geradora da nulidade do acto à sobra do qual nasceu a situação de facto, mas sim a atribuição de efeitos autónomos a essa situação de facto (veja-se, neste sentido, na jurisprudência portuguesa, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28.06.2011, processo n.º 0512/11, disponível em linha).
Daqui decorre, pois, que, não relevando para o efeito da legalidade do acto de declaração de nulidade a existência ou não de uma situação a que devam ser reconhecidos efeitos putativos, essa matéria estará fora do âmbito do recurso contencioso, tendo em conta que este é, como sabemos, de mera legalidade e tem por objecto a declaração da nulidade ou da inexistência de um acto administrativo ou a respectiva anulação, tal como resulta do disposto no artigo 20.º do CPAC (cfr., entre outros, a propósito de situação idêntica, o acórdão do Tribunal de Última Instância de 4.11.2022, processo n.º 83/2022 e, na jurisprudência portuguesa, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28.06.2011, processo n.º 0512/11).
Assim, por esta razão, cremos não ser legalmente viável, no quadro de um recurso contencioso, como o presente, invalidar o acto administrativo de declaração de nulidade de um acto administrativo com fundamento na não atribuição de efeitos jurídicos à situação de facto gerada na sequência do acto nulo, independentemente da questão de saber se, em concreto, se justificava ou não tal atribuição.
3.
Face ao exposto, o presente recurso contencioso deve ser julgado improcedente.
É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público.».
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
A factualidade com base na qual foram praticados os actos recorridos consiste no seguinte:
a) Por Despacho do Senhor Secretário para a Segurança datado de 02.08.2023, foi declarada a nulidade da autorização de residência concedida à Recorrente, com os fundamentos constantes da informação nº 200071/SRDARPG/2023P, o qual consta de fls. 143 a 145 do PA e com o seguinte teor:
«1. 利害關係人B於2009年11月23日持有廣東省簽發第Q0037XXXX號之《前往港澳通行證》,同時偕行其女兒A【持有由廣東簽發第Q0037XXXX號之《前往港澳通行證》】到原出入境事務廳申辦居留許可,理由是與配偶/繼母C【持有第129XXXX(X)號之《澳門永久性居民身份證》】在澳門團聚,二人之居留許可申請於2009年11月26日獲得批准,現分別持有第150XXXX(X)號及第150XXXX(X)號之《澳門永久性居民身份證》。
2. 因本局及身份證明局於2021年接獲舉報信函,故出入境管制廳對利害關係人及配偶之婚姻關條作出調查,根據第209/CIRDCF/2021P號調查報告所載(文件106-111),利害關係人B及依附配偶C均承認支付/收取不法利益締結虛假婚姻,且二人從未於內地或澳門以夫妻形式共同生活,目的為使B及A取得澳門居民身份;同時經突擊家訪顯示利害關係人B與前妻D共同生活。
3. 由於經調查後發現利害關係人B、依附配偶C及前妻D涉嫌觸犯一項【偽造文件罪】、B及依附配偶C涉嫌觸犯一項【關於身份的虛假聲明罪】,三人於2021年9月21日被送交檢察院偵訊。檢察院於2022年1月11日就上述行為對三人以【偽造文件罪】作出控訴 (檢察院卷宗編號: 9533/2021,文件112-114)。
4. 根據初級法院刑事法庭判決書 (卷宗編號:CR4-22-0049-PCC,文件122-132) 所載,B、C及D互相合作,達成共同意願和約定,向內地有權限當局作出締結婚姻的虛假聲明,從而獲得與事實不符的結婚登記,導致法律上之重要事實不實地登載於相關官方公文書上,並且使用該結婚登記瞞騙內地及本澳有權限當局,以夫妻團聚為由提出申請,目的在於為B騙取進入、逗留或許可居留於澳門所需法定文件; 合議庭宣告檢察院在本案的控訴理由成立,並對依附配偶C、利害關係人B及前妻D以直接共同正犯和既遂方式觸犯第6/2004號法律第18條第2款結合第1款所規定及處罰之一項偽造文件罪,各判處二年三個月徒刑,緩刑二年執行,有關裁決已於2022年7月28日轉為確定。
5. 鑒於利害關係人獲批給的居留許可是基於與事實不符的結婚證而作出,且過程中所牽涉的犯罪行為是本局批給其居留許可的關鍵因素,而偕行女兒A獲批的居留許可又是基於其父親B與繼母C的婚姻關係而作出的,為此,本廳按照《行政程序法典》第122條第2款c)項之規定,擬宣告利害關係人及其偕行女兒的居留許可無效,依法對二人進行書面聽證程序,並於2022年12月5日將擬宣告居留許可無效之意見正式通知了利害關係人B及已成年之偕行女兒A(詳閱第100569/SRDARPNT/2022P號及第100570/SRDARPNT /2022P號《書面聽證通知書》,文件149-153) ,二人可於接收通知後的十五天內,對聽證內容以書面方式表達意見。
6. 本局於2022年12月19日收到二人分別提交的書面陳述及相關文件:
- 利害關係人B之書面陳述內容大致為 (文件157-158) :
a) 本人B知道錯了,希望透過這封信表達自己的想法,不要取消我的居留許可;
b) 當年為了讓女兒有更好的生活,自把自為決定用一個錯誤的方法申請我和女兒來澳門生活; 本人讀書少,在澳門經人介紹入行學做建築裝修,期間也報讀了政府職業技能培訓課程,每日努力工作換來與女兒安穩的生活;
c) 這麼多年看見女兒完成學業,成績很好畢業後更成為一名老師作育英才,她也參加很多慈善義工活動;
d) 說實話多年來都很擔心事情被揭發,後來我被警察拘留我向女兒坦白,女兒不但沒有埋怨和責怪,反而鼓勵我勇於承認錯誤,我真的知錯,所以最終我在法庭上如實交代了真相,接受法律的懲罰;
e) 收到要取消身份證的通知時,雖然很愕然,但我知道我的報應終於來了,自從我來澳門生活至今已十三年,我早就視這裡是我的家,如果要取消我的證件我就無家可歸,請給我們一次機會不要取消我們證件,讓我用餘生為澳門服務;
f) 還有最令我內疚和不安的是我做錯事會連累到女兒,我女兒全不知情,她也沒有做錯,她快要結婚了,也在澳門買了屋落地生根,她過去最寶貴日子在澳門渡過,現在和以後的生活也決定在澳門,如果取消她的證件不但男家會取消婚禮,她一生也就完了;
g) 請例外批准讓我們繼續留在澳門生活,我承諾日後一定更加嚴格遵守法律,奉公守法,不做任何違法的事,幫助他人為澳門出力。
- 利害關係人B同時提交了在澳門職業培訓課程證書、過往及現時在澳工作證明、利害關係人澳門刑事記錄、駕駛執照及社保供款咕 (存於其個人檔案文件袋內) ;
- 成年女兒A之書面陳述內容大致為 (文件154-156) :
a) 大約12歲時父母告訴我要離婚,爸爸堅決帶我到澳門生活,初時很不適應,幸好在中學老師幫忙和教導下我漸漸適應澳門的生活,也越來越愛澳門,除了學習外我積極參加不同類型比賽,也立志成為一名教師,為澳門培養人才;
b) 我現在是氹仔坊眾學校的中學老師,每日盡心教導學生,為了提升教育水平,我利用工餘時間報讀教育學碩士研究生,過去十多年我一直種積極參與澳門各項志願服務活動回饋社會,近月有幸成為澳門人才儲備成員,肯定我過去為澳門作出的貢獻;
c) 我和未婚夫在澳購買單位、醫療保險,參與央積金及私人退休金計劃,保障在澳門的生活,我在澳門生活了十三年多,很珍惜和感恩在澳門的生活,早已視澳門為家鄉,憧憬未來能夠繼續在澳門安穩地生活;
d) 爸爸做錯了,不該和繼母結婚,但請原諒他,他是為了我的將來才這樣,事實上爸爸被控告前我不知道其與繼母的婚姻是不實的;
e) 這段時間我查閱相關資料看到《公民權利和政治權利國際公約》是這樣說「... 所有人民都有自決權決定生活的地方...」,澳門就是我選擇定居的地方; 明年將是我在澳門生活的第十四年,遠遠超過澳門《基本法》規定在澳門連續居住滿七年可成為永久性居民的要求,如果要我離開澳門,我真的不知可去哪裡生活;
f) 我的一生尤其在澳門生活的期間都奉公守法,希望可以人道理由不要註銷我的澳門居留。
- 偕行女兒A同時提交了中學和大學畢業證書、在職證明、獎狀、培訓證書、 參與公益活動證明、在澳購買物業及儲蓄計劃證明、澳門刑事記錄及生活照片 (存於其個人檔案文件袋內) 。
謹呈上級審閱».
b) Do Direito
No caso em apreço à Recorrente havia sido concedida autorização de residência na RAEM com o fundamento na reunião familiar uma vez que o seu pai havia casado com uma residente de Macau.
Por sentença crime veio o pai da agora Recorrente em 2022 a ser condenado por crime de falsificação de documento por esse casamento contraído com um residente de Macau ser falso.
Porque tal actuação constitui crime conclui-se ser nulo o acto que concedeu a autorização de residência à Recorrente de acordo com o disposto na alínea c) do nº 2 do artº 122º do CPA.
O acto praticado e cuja nulidade se pretende declarar não tem por objecto um crime, mas conceder a autorização de residência a alguém, que não consta dos autos que haja cometido crime algum nem antes nem depois da prática do acto.
Sobre matéria idêntica à destes autos já tivemos oportunidade de nos pronunciarmos no Acórdão de 16.06.2022 proferido no processo 809/2021:
«Um dos fundamentos do acto administrativo impugnado é a nulidade decorrente da alínea c) do nº 2 do artº 122º do CPA de que o crime de falsas declarações quanto à paternidade da recorrente foi o pressuposto do acto.
Na parte que releva para estes autos dispõe o artº 122º do CPA:
Artigo 122.º
(Actos nulos)
1. São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.
2. São, designadamente, actos nulos:
a) …
b)…
c) Os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime;
d)…
e)…
f)…
g)…
h)…
i)…
Sobre esta questão já se pronunciou o Tribunal de Última Instância no seu Acórdão de 30.05.2018, Processo nº 29/2018:
«Relativamente à interpretação desta alínea, dissemos o seguinte nos acórdãos de 25 de Abril e 25 de Julho de 2012, respectivamente, nos Processos n. os 11/2012 e 48/2012:
«O objecto do acto administrativo é a produção de efeitos jurídicos no caso concreto1, é o efeito jurídico criado ou declarado2.
No caso dos autos, o objecto do despacho de … não constitui qualquer crime, pelo que, em termos literais, poderia parecer não ter aqui aplicação a alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo.
Contudo, a doutrina tem feito uma interpretação extensiva da norma, que é totalmente justificável.
MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS3 sustentam que:
“A expressão «actos administrativos que impliquem a prática de um crime»tem que ser objecto de interpretação extensiva: não estão em causa apenas as situações em que o acto administrativo em si preenche um tipo penal, mas todas aquelas em que o acto administrativo envolva, na sua preparação ou execução, a prática de um crime.
Exemplos de actos administrativos que implicam a prática de crimes: um acto administrativo de conteúdo difamatório para o seu destinatário; um acto praticado sob extorsão; uma ordem dada por um superior a um subalterno para que exerça violência física injustificada sobre pessoas”.
E MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM4 escrevem:
“Consideramos abrangidos na parte final desta alínea c) – mesmo se parece estranho o facto do legislador se referir apenas ao «objecto» do acto administrativo – também aqueles que, não sendo crime por esse lado, o são pela sua motivação ou finalidade, quando esta seja relevante para a respectiva prática. Diríamos, portanto, serem nulos não apenas os actos cujo objecto (cujo conteúdo) constitua um crime, mas também aqueles cuja prática envolva a prática de um crime.
Estão nessas circunstâncias, por exemplo, os actos que se fundem em documentos administrativamente falsificados (actas ou convocatórias forjadas, etc) ou os actos que sejam praticados mediante suborno ou por corrupção”».
Pois bem, tendo o despacho do Chefe do Executivo, de 26 de Dezembro de 2000, que autorizou a residência temporária da 2.ª recorrente e os despachos do Secretário para a Economia e Finanças, de 6 de Abril de 2004, que renovou a autorização de residência temporária da 2.ª recorrente, por 3 anos e de 16 de Fevereiro de 2007, que renovou a autorização de residência temporária da 2.ª recorrente até 31 de Maio de 2008, sido proferidos com base em documentos de identificação de uma interessada que eram falsos, com nome falso, com data de nascimento e identidade do pai que não coincidiam com os verdadeiros elementos de identificação da 2.ª recorrente, podemos dizer que tais actos administrativos apenas foram produzidos porque tinham na sua base a prática de crimes, por parte da 2.ª recorrente.
E pergunta-se, se a 2.ª recorrente tivesse exibido a sua verdadeira identidade, tais actos ter-lhe-iam concedido a residência de Macau? Não sabemos. Provavelmente, não, já que tendo a 2.ª recorrente de nacionalidade chinesa, residente no Interior da China, face ao disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º14/95/M, de 27 de Março, vigente ao tempo, teria de entregar documento comprovativo da autorização para requerer a fixação de residência em Macau, emitido pelas autoridades competentes da República Popular da China, o que não seria possível, porque tal documento nunca foi emitido.
Ou seja, a 2.ª recorrente obteve a residência em Macau usando uma identidade falsa, por razões não inteiramente claras e que em si não são relevantes, mas que provavelmente estão relacionadas com o que se disse atrás. Quando já era residente permanente, veio, então, pretender regressar à sua identidade verdadeira, pedindo a alteração do nome no seu bilhete de identidade de residente. Parece evidente que não pode ser.
Afigura-se-nos que o acto recorrido interpretou devidamente a alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo.».
Como expressamente se diz no trecho citado o entendimento seguido resulta de que «a doutrina tem feito uma interpretação extensiva da norma».
Na situação do Acórdão citado a falsificação dos documentos foi cometida pelo destinatário do acto, ou seja, a beneficiária da actuação da administração levou a que esta praticasse um acto que lhe era favorável e constitutivo de direitos com base em pressupostos de facto falsos e criminalmente puníveis. Nos dois Acórdãos que ali se citam a situação subjacente à prática do acto administrativo que veio a ser julgado nulo era uma situação de corrupção passiva cometida também com o objectivo de conduzir à prática do acto que veio a ser julgado nulo.
Dúvidas não assistem de que a solução Doutrinária adoptada é a melhor interpretação para o preceito em causa.
Contudo, a essa interpretação extensiva não é alheia os princípios fundamentais que enfermam o nosso sistema jurídico o qual assenta no que à responsabilidade concerne no princípio da culpa e na protecção de terceiros de boa-fé, havendo as formas de responsabilidade objectiva que ser expressamente previstas na lei.
Ora, aquilo que a Doutrina sustenta é que choca à sensibilidade do jurista que um acto praticado com base em pressupostos de facto forjados, numa actuação que é criminalmente punida, pudesse gerar quaisquer efeitos havendo que ser sancionado com a nulidade.
Porém, no caso que nos ocupa o destinatário do acto é um terceiro totalmente alheio à actividade criminosa que levou a que o pressuposto de facto que eventualmente conduziu à prática do acto administrativo fosse forjado. Concretizando, o sujeito a favor de quem os actos administrativos anulados foram constitutivos de direito era uma criança recém nascida que sem necessidade de qualquer outra prova é manifestamente alheia às falsas declarações que a mãe haja prestado a seu favor.
Destarte, se é correcta a interpretação no sentido de a actividade criminal prevista na letra da lei tanto pode ser a que se resulta da prática do acto – como expressamente resulta da disposição legal – como também, aquela que haja estado na sua génese, também porque a expressão usada é “crime” nada autoriza que a interpretação extensiva vá tão longe que possa entender que ainda que os sujeitos envolvidos na prática do acto – administração pública e cidadão sujeito do acto - actuem de boa-fé, a actuação crimonosa de terceiros possa vir a inquinar o acto de tal forma que o fira de nulidade.
O que a lei diz é que são nulos: Os actos cujo objecto seja impossível, os actos cujo objecto seja ininteligível, os actos cujo objecto constitua crime. A interpretação literal do preceito não pode ser outra que não esta, o que se pretende acautelar é que o objecto do acto administrativo possa constituir crime, contudo, alguma doutrina veio a fazer uma “interpretação extensiva” do preceito no sentido de considerar que quando os pressupostos do acto foram forjados de forma que constitua crime, também ai aquele é cominado com a nulidade, mas há que pressupor que essa actuação criminosa tenha uma conexão com os sujeitos a quem o acto se dirige.
Salvo melhor opinião, em nenhum dos Acórdãos do TUI a questão “sub judice” tem por objecto sujeitos que sejam alheios à actividade criminosa que levou à prática do acto, pelo que, em situações como aquela que ocorre nestes autos haverá que ponderar também o princípio da protecção dos sujeitos de boa-fé não levando a interpretação extensiva a um ponto que nos parece já estar – no caso de desconsiderar os interesses de sujeitos de boa-fé – num nível muito para além daquele que resulta da letra da lei.
Destarte, se este fosse o único fundamento do acto impugnado na nossa opinião haveria de proceder o recurso.».
Mas, se ainda assim não se entendesse, como também já foi por nós sustentado no voto de vencido proferido no Acórdão de 21.01.2021 no Processo que correu termos sob o nº 1013/2019 ainda que o acto seja nulo nada obsta que se reconheçam efeitos putativos ao acto nulo.
Reiteramos o que ali dissemos com as necessárias adaptações.
Sendo o acto nulo não produz efeitos, pelo que, segundo o purismo dos conceitos nada mais haveria a discutir a não ser retirar da nulidade as consequências devidas.
É tradicionalmente aceite pela Jurisprudência e Doutrina que o reconhecimento por banda da Administração da nulidade do acto é um acto vinculado.
Contudo, o nº 3 do artº 123º do CPA, a propósito da não produção de efeitos jurídicos do acto nulo, consagra que não fica prejudicada «a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito».
Veja-se a este respeito José Carlos Vieira de Andrade em “A Nulidade Administrativa essa Desconhecida” na obra supra indicada a pág. 776:
«O panorama apocalíptico associado ao regime legal da nulidade compreender-se-á numa perspectiva histórica, na medida em que o regime foi elaborado tendo em mente os actos da “administração agressiva” (e, entre nós, da administração local) e com base numa enumeração, taxativa e concreta, das situações ou dos vícios geradores de nulidade – mas é excessivamente radical e não responde em termos adequados à realidade dos tempos de hoje, em que se impõe a consideração das relações jurídicas estabelecidas pelos actos administrativos.
Por um lado, o regime puro não funciona bem perante o alargamento do conceito e das espécies de acto administrativo, agora muitas vezes actos constitutivos de direitos e interesses legalmente protegidos, que exigem a produtividade ou merecem a estabilidade da situação de facto originada pelo acto. Por outro lado, não se coaduna com a definição qualitativa das nulidades por natureza e com o consequente carácter problemático da qualificação da invalidade – menos ainda entre nós, quando a definição legal de nulidade substancial se refere à falta de elementos essenciais, em termos que abrangem uma diversidade relevante de situações.
Como vimos, a questão da invalidade dos actos administrativos e dos respectivos efeitos constitui um problema, a resolver através da ponderação entre os valores da legalidade, de um lado, e os da segurança jurídica e da estabilidade das decisões, por outro lado – sendo especialmente relevante a protecção da boa fé e da confiança dos cidadãos quando estejam em causa decisões que lhes sejam favoráveis.».
A questão tem normalmente sido abordada a propósito dos agentes putativos e de questões de urbanismo, contudo não se limita a essas situações, podendo a aplicabilidade da norma abranger outras situações de facto que hajam sido geradas por actos que se venha apurar ao fim de determinado espaço de tempo que são nulos.
Sendo certo que, no caso dos actos putativos não se trata do aproveitamento do acto nulo (o que por força da nulidade é impossível) mas do aproveitamento dos efeitos (do acto) – veja-se Inês Ramalho em “O Princípio do Aproveitamento do Acto Administrativo”, Tese de Mestrado, Faculdade Direito de Lisboa em CJP, CIDP.
Relativamente ao anterior Código do Procedimento Administrativo de Macau aprovado pelo Decreto-Lei nº 35/94/M de 18 de Julho, Lino Ribeiro e José Cândido de Pinho em anotação ao nº 3 do artº 115º5 escreviam que:
«O disposto no n.º 3 do artigo 115.º veio consagrar um regime de nulidade que a doutrina e a jurisprudência já admitia, sobretudo a propósito dos agentes putativos. Como acontece em muitas situações jurídicas, reconhece-se que o tempo é um facto natural produtor de efeitos jurídicos. Assim, um acto nulo, que desde a sua emanação não produz quaisquer efeitos jurídicos (mas que os produz de facto) pode, pelo simples decurso do tempo, vir a produzi-los.
A intenção do legislador é temperar o rigor que constitui a destruição total de situações de facto constituídas à sombra do acto nulo. À transformação de situações de facto em situações de direito pelo decurso do tempo chama-se, sobretudo no direito privado, usucapião. Como se vê, este instituto também desempenha um papel, embora menor, no Direito Administrativo.
No entanto, o decurso do prazo não é suficiente para que o acto nulo venha a produzir efeitos jurídicos. Como a lei expressamente refere, tal só deve acontecer «de harmonia com os princípios gerais de direito». Faz-se apelo a princípios como os da protecção da confiança, da boa fé, da igualdade, da imparcialidade, da proporcionalidade, da justiça, do não enriquecimento sem causa, da realização do interesse público. Estes princípios, que são vinculativos para a Administração, podem ser chamados a resolver situações de injustiça derivadas da nulidade dum acto administrativo.
O caso mais tratado pela doutrina e jurisprudência é o dos agentes putativos, que são pessoas que actuando, em circunstância normais, como titulares de um órgão administrativo, não o são de direito, quer porque o seu provimento resulta de um acto inválido, quer porque já cessou o efeito do acto do seu provimento legal. (…).
Ora, por razões de protecção da boa fé e da estabilidade da função pública, a doutrina e a jurisprudência admitem que os funcionários providos em virtude dum acto nulo possam, pelo decurso do tempo, adquirir o direito ao lugar e que os actos administrativos por si praticados não serão inválidos por esse facto.
As relações entre o agente putativo (aquele que se faz acreditar) e a pessoa colectiva em que está inserido levam a que ao fim de determinado tempo aquele se torne agente de direito. A lei nada diz quanto ao período de tempo necessário para que ocorra aquela transformação. O professor Marcello Caetano, por analogia com a situação prevista no artigo 1298.º, alínea b) do Código Civil, fazia referência ao prazo de dez anos. Mas os tribunais administrativos portugueses eram mais benevolentes e, em certos casos, admitiam mesmo prazos inferiores, pouco excedentes a três anos. Mas além do decurso dum prazo suficiente, exige-se ainda que o exercício das funções públicas seja pacífico, contínuo e público, e que o facto que originou a situação não tenha sido gerado de forma dolosa ou erro grosseiro do interessado.».
Em sentido idêntico já sustentava o Prof. Marcello Caetano em Manual de Direito Administrativo, Vol. I, pág. 517.
Mais recente, Luiz S. Cabral de Moncada6 em anotação ao nº 3 do artº 162º do Código do Procedimento Administrativo Português, diz:
«2. Os efeitos do acto nulo
2.1. Segundo a doutrina tradicional, o acto nulo não gera efeitos. Parte-se do princípio segundo o qual o acto nulo não gera efeitos. O princípio é lógico mas não corresponde à realidade. Trata-se um belo exemplo da metodologia hermenêutica da jurisprudência dos conceitos e do «método da inversão» dela própria que consiste em deduzir as consequências dogmáticas apenas das abstracções conceituais desprezando os dados empíricos. Apenas se admite que do acto nulo resultem efeitos «putativos», que a Administração poderá resguardar, se for caso disso, em homenagem a determinados valores, como vimos, valendo o acto como se fosse válido. Ora, se assim é, também os efeitos do acto nulo, mesmo que só envergonhadamente «putativos», poderão ter de ser retroactivamente destruídos para garantir a reconstituição de uma situação hipotética actual favorável a um beneficiário, precisamente porque o prejudicaram, mesmo que só putativamente para não chocar os mais ortodoxos, tal como sucede se o acto for apenas anulável. A final, tendo em conta razões de justiça material, os regimes do acto nulo e do acto anulável, este à frente versado, aproximam-se em vez de se afastarem.
E há outro argumento, à frente exposto; é que os actos nulos são agora susceptíveis de reforma ou conversão, de acordo com o n.º 2 do art. 164.º. E porquê? Por não terem efeitos? Não certamente.
Nesta conformidade se entende agora a ampla possibilidade de atribuir efeitos a situações de facto resultantes de actos nulos não apenas pelo decurso de tempo mas em atenção aos princípios gerais de direito administrativo.
2.2. Desconhecer os efeitos do acto nulo é não querer ver que o acto administrativo até à declaração da respectiva nulidade ou à sua desaplicação com esse fundamento beneficia de uma presunção de legalidade, relativa evidentemente, mas que gera efeitos como se válido fosse, ficando ainda apoiados nos poderes de hierarquia de que o superior faz uso para impor actos nulos quiçá por ele próprio praticados. O direito de resistência a actos nulos, salvo nos casos em que co-envolvem a prática de um crime, é fraco paliativo para tais efeitos tema, contudo, que aqui não pode ser desenvolvido.».
Como tem vindo a ser desenvolvido pela Doutrina mais recente subjacente ao aproveitamento dos efeitos putativos do acto nulo subjazem os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e proporcionalidade com base nos quais se tem vindo a sustentar que se aceite a produção de efeitos decorrido que seja determinado espaço de tempo.
Ora, no caso em apreço o que aconteceu é que a Recorrente veio viver para Macau com o pai em 2009 tendo-lhe sido atribuído o estatuto de residente permanente de Macau.
Nascida em 1993 a Recorrente tinha 16 anos ao tempo que passou a ser residente de Macau sendo alheia a toda a situação que levou à concessão da residência.
Embora o objecto desta acção seja um acto administrativo isso não nos pode impedir de ver para além disso e ponderar as consequências que dele decorrem que na prática são a perda do estatuto de residente da RAEM a alguém que aqui terminou o seu processo de crescimento e de educação e onde tem as suas raízes e está culturalmente ligada sem que tenha contribuído em nada, seja para beneficiar desse estatuto, seja para as razões que agora se invocam para o perder.
Chamando à colação os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e da proporcionalidade parece-nos que a situação pode e deve ser enquadrada na previsão do nº 3 do artº 123º do CPA.
Sobre a relevância dos princípios da boa-fé e da confiança, com consagração legal no artº 8º do CPA e a sua relevância para o reconhecimento dos efeitos putativos do acto é abundante a Doutrina e Jurisprudência a respeito, nada havendo a acrescentar, remetendo-se, pela sua clareza, para o trabalho de Ana Gouveia Martins em “Responsabilidade da Administração com Fundamento na Declaração de Nulidade ou Revogação de Actos Inválidos”, in Colecção de Estudos, Nº1, Instituto do Conhecimento AB.
Reconhecendo-se, com base em tudo antes exposto, a boa-fé da Recorrente, a questão que agora se coloca é como é que se torna efectiva a produção dos efeitos putativos do acto nulo.
Para o Professor Doutor Marcello Caetano a tutela dos efeitos putativos do acto era feita com recurso às regras da usucapião.
Vieira de Andrade vem dar mais relevância aos interesses em causa deixando a fixação do período tempo necessário para a produção de efeitos para o intérprete.
«O rigor do regime legal da nulidade pode em muitas circunstâncias revelar-se excessivo, designadamente quanto à impossibilidade aparentemente absoluta de ratificação, de reforma e até de conversão (artigo 137º, n.º 1 do CPA) e quanto ao regime de imprescritibilidade do poder de declaração da nulidade por qualquer autoridade administrativa ou judicial (artigo 134.º, n.º 2 do CPA). A moderação desse rigor resulta da possibilidade de reconhecimento jurídico de efeitos de facto produzidos pelo acto nulo, com base no decurso do tempo e com fundamento em princípios jurídicos fundamentais (designadamente, os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima ou o princípio da proporcionalidade) – prevista no n.º 3 do artigo 134.º do CPA.» - Cit. Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, pág. 201 -.
Entre a exigência de instauração de uma acção para o efeito, a possibilidade de serem reconhecidos os efeitos do acto em sede de execução, a necessidade de juridificação do reconhecimento dos efeitos ou a possibilidade de ser a própria a administração a fazê-lo, entre as mais sugeridas soluções, tem a Doutrina e a Jurisprudência procurado soluções para um direito que consagrado na lei cabe encontrar como o reconhecer numa jurisdição que começando a ser de anulação tem vindo a evoluir no sentido da plena jurisdição.
Segundo Vieira de Andrade na já citada obra “A nulidade Administrativa essa Desconhecida” a pág. 780/781, «Nas situações em que se ponha o problema do reconhecimento jurídico da situação de facto decorrente do acto nulo o juiz não pode alegar que a sua tarefa é meramente hermenêutica, que só visa aplicar uma solução previamente definida na lei – ele não se limita a conhecer, decide a solução do caso concreto e é juridicamente responsável por ela, devendo, para além de evitar injustiças extremas e situações de impraticabilidade (…), respeitar a proibição do excesso, pois só atendendo aos efeitos reais da decisão se alcança a paz social que a justiça almeja.».
Como vem sendo esclarecido o que está em causa não é a produção de efeitos de um acto nulo, o qual por força da nulidade nunca poderia produzir efeitos.
O que está em causa é reconhecerem-se efeitos jurídicos às situações de facto geradas pelo acto nulo.
Ora este efeito tanto pode ser conseguido através da administração e aqui no exercício de um poder discricionário ou pelo tribunal.
No caso em apreço está em causa o estatuto de residente da RAEM.
No que concerne aos princípios fundamentais de direito da proporcionalidade, da boa-fé e da confiança consagrados nos artº 5º e 8º do CPA demandam o reconhecimento da situação – o estatuto de residente – a quem ao longo de um longo período da sua vida usufruiu do estatuto de residente de Macau e adequou a sua vida a Macau como resulta dos sinais dos autos.
Entendemos também, que na senda do que tem vindo a ser sustentado pela Doutrina mais hodierna, neste tipo de situação não importa tanto o tempo decorrido desde a prática do acto, mas sim a situação existente no momento em que se conclui pela nulidade, sendo certo que, o comando contido no nº 3 do artº 123º do CPA manda dar relevância ao tempo.
Porém, se a pessoa a quem foi concedido o estatuto de residente da RAEM quando se vem a apurar que o acto é nulo ainda é menor e os progenitores não sejam residentes de Macau, por força da dependência destes, do exercício do poder paternal e a guarda que lhe está associada, antes de atingida a maioridade nada justifica que se reconheçam efeitos ao acto independentemente do tempo que haja decorrido.
No entanto, se entretanto tiver atingido a maioridade, entendemos que devem ser reconhecidos efeitos ao acto, havendo aqui, por força da exigência feita no nº 3 do artº 123º do CPA de fixar um espaço de tempo que se entenda razoável para o efeito, o qual entendemos poder ser igual aos 7 anos exigidos pela lei para a atribuição do estatuto de residente permanente – Lei nº 8/1999, artº 1º, nº 1, 2) -, contados desde a prática do acto que se tem por nulo.
Destarte, em face da factualidade apurada e tendo em consideração os princípios supra indicados que no caso em apreço se verificam, haveria de, nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA ter sido reconhecido efeitos aos actos de atribuição de estatuto de residente da RAEM mantendo-o.
Não tendo sido feito como concluir?
Aqui chegados e sem prejuízo do reconhecimento da nulidade ser um acto vinculado o certo é que, o nº 3 do artº 123º do CPA atribui à administração um campo de discricionariedade que lhe permitiria ter actuado de outra forma.
O reconhecer ou não efeitos ao acto nulo nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA implicando um poder discricionário pode ser sindicado pelo tribunal de acordo com os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da confiança e imparcialidade.
Ao não reconhecer à Recorrente o estatuto de residente não actuou a Administração de acordo com o princípio da proporcionalidade, da confiança e da boa-fé os quais já antes analisados se entendeu que justificavam que fosse reconhecido o respectivo estatuto.
Nada tendo feito a Administração, num contencioso de anulação ficaria o tribunal impossibilitado de corrigir a situação reconhecendo efeitos ao acto.
A solução encontramo-la no já citado trabalho “Responsabilidade da Administração …” de Ana Gouveia Martins, a pág. 67/68 com a figura da supressão do poder de declarar a nulidade:
«Todavia, uma vez declarada a nulidade, nada obsta a que, com base no princípio da tutela da confiança, sejam atribuídos efeitos putativos às situações de facto decorrentes de actos nulos, se, por força do decurso de tempo, os princípios gerais impuserem a sua consolidação (art. 134.º, n.º 3 do CPA). Indispensável para tanto é que seja praticado um acto que, reconhecendo e declarando a nulidade, justifique a atribuição desses efeitos putativos e declare quais os efeitos que se devem considerar consolidados pelo decurso de tempo.
Acresce que, apesar de a boa-fé não ter, em geral, por efeito neutralizar a ilegalidade cometida, convalidando o acto ilegal, tem-se admitido a título excepcional que quando a administração considerou, «durante um longo espaço de tempo, uma dada situação conforme ao direito (apesar de ilegal), mas pretender agora, porque a manutenção dela já não lhe aproveita, invocar a sua nulidade», que a boa-fé obste à declaração dessa nulidade. Com efeito, o princípio da boa-fé proíbe actuações que consubstanciem um «venire contra factum proprium (ou proibição de comportamento contraditório) – de acordo com a qual se veda (ou impõe) o exercício de uma competência ou de um direito, quando tal exercício (ou não exercício) entra em flagrante e injustificada contradição com o comportamento anterior do titular, por este ter suscitado na outra parte uma fundada e legítima expectativa de que já não seriam (ou o seriam irreversivelmente) exercidas – a supressio ou verwirkung (que da anterior se distingue pelo facto de a dimensão temporal ganhar uma relevância autónoma), etc.».
Com efeito, em determinadas e circunscritas constelações de casos o princípio da boa-fé pode obstar à revogação ou à declaração da nulidade de actos administrativos ilegais por consubstanciar um exercício inadmissível de direitos. Nomeadamente é possível invocar a figura da supressio que determina a paralisação ou redução do conteúdo de certas posições jurídicas em função do seu não exercício durante um amplo lapso temporal, in casu, uma supressão de competências.».
Ou seja, tudo se reconduziria a que por força do tempo decorrido os efeitos do acto (nulo) se haviam consolidado na esfera jurídica do particular não produzindo a nulidade todos os seus efeitos.
Ao não se ter optado pela figura da supressão do poder de declarar a nulidade reconhecendo efeitos aos actos (nulos) de acordo com os princípios da boa-fé e da confiança, é o acto impugnado anulável impondo-se que se decida em conformidade.
Não se podendo argumentar em sentido contrário que o acto de declaração de nulidade é um acto vinculado e como tal não é susceptível de ser apreciado em função dos indicados princípios, pois o que está em causa não é a declaração de nulidade mas o reconhecimento dos efeitos fácticos do acto os quais demandavam uma abstenção de agir a que não se obedeceu em violação dos referidos princípios, e nesta parte já estamos no domínio da discricionariedade.
A não se entender assim nunca o acto de reconhecimento de efeitos putativos do acto nulo poderia ser objecto de decisão e apreciação do tribunal uma vez que não pode ser objecto de acção para a prática do acto administrativo devido porque não é um acto vinculado mas discricionário. O que levaria a que só haveria possibilidade de apreciar os efeitos putativos do acto se a administração o reconhecesse e desse acto fosse interposto recurso para o tribunal, mas se nada reconhecer já não haveria acção judicial para o efeito.
Logo não se aceitando que esta questão possa ser apreciada através do instituto da supressão do poder de declarar a nulidade, seria o mesmo que declarar que ao direito consagrado no nº 3 do artº 123º não corresponde acção judicial alguma o que viola o princípio do acesso à justiça consagrado no artº 14º do CPA.
Em igual sentido veja-se e-Pública: Revista Electrónica de Direito Público, Vol. 1, nº 2, Lisboa Junho 2014 “Os efeitos putativos da nulidade dos actos urbanísticos: entre a tutela da confiança e o interesse público”: «Todavia, não excluímos que mesmo em sede de acção administrativa especial de impugnação do acto, o juiz possa atribuir efeitos jurídicos à situação de facto, desde que os requisitos que acima elencámos se encontrem cumpridos, em particular o decurso do tempo.».
Destarte, se se concluísse pela nulidade do acto de concessão da autorização de residência e se no caso em apreço a administração não se abstivesse de declarar a nulidade desse acto reconhecendo à Recorrente o estatuto de residente da RAEM, enfermaria o acto impugnado do vício de violação de lei por violação do princípio da boa-fé e da confiança, o que determinaria a sua anulabilidade nos termos do artº 124º do CPA.
Concluindo, perante todo o exposto, seguimos a primeira das posições apontadas, sendo desnecessário recorrer à figura dos efeitos putativos do acto nulo, entendendo-se que no caso em apreço não está verificado o pressuposto da al. c) do nº 2 do artº 122º do CPA, pelo que enferma o acto recorrido de erro nos pressupostos de facto e consequentemente do vício de lei sendo anulável nos termos do artº 124º do CPA.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso anula-se o acto impugnado.
Sem custas por delas estar isenta a Entidade Recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 09 de Maio de 2024
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(1º Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
(2º Juiz-Adjunto) (com declaração de voto vencido em anexo)
Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto)
卷宗編號:685/2023
投票落敗聲明
在尊重評議會多數意見下,本人認為應判處司法上訴不成立,維持被訴行為,理由如下:
- 本案的被訴行為是被訴實體宣告司法上訴人的居留許可無效。
- 司法上訴人在聽證程序中所請求的僅是不要取消其居留許可,並沒有要求被訴實體從無效行為中衍生之事實情況中賦予其擁有澳門居留權的法律效果。
- 申言之,本案的被訴行為並沒有就是否從無效行為中衍生之事實情況中給予其澳門居留權作出任何決定。事實上,在沒有任何請求下,被訴實體也沒有作出決定的義務。
- 根據《行政訴訟法典》第20條之規定,“在司法上訴中僅審理行為之合法性,其目的在於撤銷司法上訴所針對之行為,或宣告其無效或法律上不存在;但另有規定者除外”。
- 既然被訴行為並不包含是否從無效行為中衍生之事實情況中給予司法上訴人澳門居留權的決定,那在上述《行政訴訟法典》第20條所規定的目的下,法院只能審議被訴實體作出的無效宣告有否違法,不能主動替代被訴實體從無效行為中衍生之事實情況中給予司法上訴人澳門居留權的法律效果。
- 另一方面,要從無效行為中衍生之事實情況中給予司法上訴人澳門居留權的法律效果,必須存在一無效宣告的前提。因此,不能一方面撤銷被訴行為,另一方面卻從無效行為中衍生之事實情況中給予司法上訴人澳門居留權的法律效果。
- 在尊重不同見解下,本人認為若欲獲得從無效行為中衍生之事實情況中所給予澳門居留權的法律效果,須先承認行政當局的無效宣告是成立的,繼而向行政當局要求從無效行為中衍生之事實情況中所給予澳門居留權的法律效果。
- 在行政當局拒絶上述聲請時,可依法提起司法上訴。
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法官
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何偉寧
2024年05月09日
1 MARCELLO CAETANO, Manual..., I vol., p. 481
2 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Lisboa, Almedina, 1980, p. 441.
3 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito..., Tomo III, p. 162.
4 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo, Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 1997, p. 645.
5 A redacção daquele preceito corresponde hoje ao nº 3 do artº 123º do CPA.
6 Em Código de Procedimento Administrativo Anotado, 2ª edição, pág. 512.
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685/2023 REC CONT 66