Processo nº 826/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 30 de Maio de 2024
ASSUNTO:
- Despejo
- Pressupostos para sustar o despejo
SUMÁRIO
- Em matéria de execução de despejo a regra geral mostra-se consagrada no nº 1 do artº 936º do CPC sendo este executado seja quem for que esteja na detenção do prédio.
- Esta regra comporta, contudo duas excepções:
1ª – Se o detentor não tendo sido parte na acção tenha título de arrendamento emitido pelo exequente;
2ª – Se o detentor não tendo sido parte na acção tenha título de sublocação ou cessação da posição contratual e de haver documento comprovativo de ter sido requerida no prazo de 20 dias a notificação ao senhorio, ou deste ter autorizado ou reconhecido a sublocação ou a cessação.
____________________
Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 826/2023
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 30 de Maio de 2024
Recorrente: A Limitada
Recorrida: B Limitada
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A Limitada, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso do despacho de fls. 301 a 303 que ordenou a execução do despejo, reparando o despacho de fls. 196 onde havia sido ordenado que fosse sustado o mesmo.
Compulsados os autos apurou-se que:
Por despacho de fls. 196 foi mantido o despacho de fls. 166 no qual se mandava sustar o despejo caso se verificasse que no local já não se encontrava a Ré mas a Interveniente o que veio a verificar-se.
Daquele despacho veio a Autora B Limitada a interpor recurso apresentando as seguintes conclusões:
1. Salvo o devido respeito ao entendimento do tribunal a quo, a Recorrente, inconformada com o despacho recorrido proferido pelo tribunal a quo, que decidiu a sustação da execução do mandado de despejo, não concorda que o Contrato de alienação de centro médico, celebrado em 30 de Junho de 2021, seja título suficiente para a ocupação do locado, entendendo que se deve prosseguir o mandado de despejo, razão pela qual vem interpor recurso ordinário contra este despacho.
2. Até 11 de Março de 2022, data em que foi realizada pelo tribunal a penhora da empresa comercial C e das mercadorias, materiais, máquinas e equipamentos de produção, da sua pertença, a Recorrida D LIMITADA não chegou a comunicar à Recorrente o Contrato de alienação de centro médico, celebrado em 30 de Junho de 2021, com o terceiro/detentor, A LIMITADA, nomeadamente a cessão da sua posição de locatário para esta última empresa, nem obteve o consentimento da Recorrente quanto à cessão dessa posição.
3. Nos termos da alínea g) do artigo 983° do Código Civil, a Recorrida D LIMITADA, na qualidade de locatário, tinha a obrigação de comunicar ao locador (ou seja, a Recorrente B, LIMITADA), dentro de 15 dias a contar da data da cedência do contrato de arrendamento. Caso contrário, nos termos do n.° 2 do artigo 1006°, em conjugação com o artigo 418°, ambos do Código Civil, por falta de comunicação à Recorrente aquando da realização da cessão da posição contratual, nem obtido o seu consentimento quanto à cessão da posição de locatário, a cessão da posição do contrato de arrendamento em questão não produz quaisquer efeitos relativamente à Recorrente.
4. Em termos legais, ainda se deve considerar a Recorrida D LIMITADA locatária do contrato de arrendamento em questão.
5. Na altura em que a Recorrida alienou o C ao terceiro (30 de Junho de 2021), E era administradora da Recorrida D LIMITADA e simultaneamente sócia do terceiro, A LIMITADA, daí se pode presumir serem essas duas empresas efectivamente controladas pela mesma pessoa, com o intuito de impedir, de má fé, o despejo e recuperação do arrendado pela Recorrente.
6. Como atrás relatado, a Recorrida D LIMITADA nunca comunicou à senhoria a cessão da sua posição contratual, e por isso, ainda que tenha a Recorrida realizado a alienação, esta não produz quaisquer efeitos relativamente à Recorrente, nem reúne os requisitos para o requerimento da suspensão do despejo previstos na alínea b) do n.° 2 do artigo 936° do Código de Processo Civil.
7. Ademais, a Recorrida D LIMITADA transmitiu, mediante o contrato de alienação de centro médico celebrado em 30 de Junho de 2021, ao terceiro/detentor, A LIMITADA, o C e todos os seus bens tangíveis ou intangíveis, incluindo o contrato de arrendamento necessário para a exploração do centro médico, o que se traduz, na verdade, em subarrendamento do locado a terceiro, tendo violado gravemente o estabelecido na alínea (1) da cláusula 17ª do Contrato de arrendamento de imóvel que celebrou com a Recorrente, deve-se considerar inadimplemento, podendo a Recorrente, neste caso, exigir o cancelamento do contrato de arrendamento.
8. À luz do n.° 1 do artigo 1011° do Código Civil, “A sublocação caduca com a extinção, por qualquer causa, do contrato de locação ……” (sublinhado nosso).
9. O 3° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base proferiu, no dia 27 de Outubro de 2021, sentença no âmbito do processo principal de despejo, tendo declarado resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre a Recorrente e a Recorrida D LIMITADA, e por isso, desde que o Tribunal Judicial de Base declarou resolvido o contrato de arrendamento em questão, caducaram todas as relações de arrendamento ou subarrendamento dele emergentes, incluindo a cessão pela Recorrida da posição do contrato de arrendamento ao terceiro/detentor, A LIMITADA.
10. Ao mesmo tempo, independentemente de ter a Recorrida D LIMITADA subarrendado o locado à A LIMITADA ou lhe transmitido o centro médico juntamente com o contrato de arrendamento, esta primeira não chegou a comunicar à Recorrente, pela mesma razão acima suscitada, não só o subarrendamento é ineficaz relativamente à Recorrente, mas também extinguiram todas as relações de arrendamento emergentes do contrato de arrendamento do locado, celebrado entre a Recorrente e a Recorrida, logo após a declaração pelo Tribunal Judicial de Base da resolução desse contrato de arrendamento.
11. Pelo acima expendido, deve ser anulado o despacho recorrido pela violação do disposto na alínea b) do n.° 2 do artigo 936° do Código de Processo Civil e no n.° 1 do artigo 1011° do Código Civil.
Contra-alegando veio A Limitada, na qualidade de terceira interessada, apresentar as seguintes conclusões:
I. Excepção dilatória de irrecorribilidade - despacho recorrido proferido no exercício de poder discricionário
1. No dia 10 de Maio de 2022, a Recorrida apresentou ao tribunal a quo um requerimento de suspensão do mandado de despejo (vide fls. 156 a 159 e documentos seguintes dos presentes autos);
2. No dia 20 de Maio de 2022, a Recorrente pronunciou-se sobre este requerimento (vide fls. 174 a 175 e documentos seguintes dos presentes autos);
3. No dia 19 de Maio de 2022, a Recorrida intentou uma acção junto do Tribunal Judicial de Base (Processo n.°: CV1-22-0044-CAO) sobre a eventual vinculação do Contrato de alienação de centro médico em questão relativamente à Recorrente, e no dia 25 de Maio de 2022, foi requerida a junção aos presentes autos da petição inicial e os correspondentes documentos do referido processo;
4. Nos termos do n.° 4 do artigo 936° do Código de Processo Civil, as decisões judiciais de manter a suspensão do despejo ou autorizar a execução do mandado de despejo são considerados despachos proferidos no exercício de poder discricionário (segunda parte do n.° 4 do artigo 106° do Código de Processo Civil de Macau), consistindo na livre escolha pelo tribunal a quo, consoante a sua convicção, da solução para a presente causa, ou manter a suspensão ou executar o mandado;
5. O despacho recorrido proferido pelo tribunal a quo é considerado proferido no exercício de poder discricionário, ao abrigo do n.° 4 do artigo 936° do Código de Processo Civil;
6. Em conformidade com o disposto no artigo 584° do Código de Processo Civil, a Recorrente não pode recorrer do despacho recorrido proferido no exercício de poder discricionário junto do Tribunal de Segunda Instância.
7. O sumário do Acórdão n.° 13/2022, proferido pelo Tribunal de Última Instância em 1 de Junho de 2022, refere o seguinte:
“1. Os recursos são meios destinados a submeter a uma nova apreciação jurisdicional (certas) decisões proferidas pelos Tribunais, cabendo ao recorrente o “ónus de alegar” (de forma clara e explícita) as “razões” do seu inconformismo e do que entende ser o “desacerto da decisão recorrida”, devendo, concluir, (de forma sintética), pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”; (cfr., n.° 1 do art. 598° do C.P.C.M.).
2. Limitando-se o recorrente a repetir o que já tinha alegado em sede da sua petição inicial, e não dirigindo as suas alegações (e conclusões de recurso) à “decisão recorrida”, (imputando-lhe, concreta e objectivamente, qualquer “defeito” ou “desacerto”), acaba por não identificar nenhuma “questão” para apreciação e decisão, nada havendo a decidir.
3. Em sede de um recurso também não se podem suscitar “questões novas”, pois que, como se referiu, o recurso visa possibilitar a reapreciação de questões de facto e/ou de direito que no entender do recorrente foram mal decididas (ou julgadas) no Tribunal a quo, não se destinando (portanto) a conhecer e decidir questões que não tinham sido, (nem o tinham que ser, porque não suscitadas pelas partes), objecto da decisão recorrida.”
8. A questão controvertida sobre a eventual eficácia do Contrato de alienação de centro médico em questão relativamente à Recorrente será discutida no âmbito da acção declarativa n.° CV1-22-0044-CAO, intentada em 19 de Maio de 2022, não se deve, portanto, submeter ao tribunal superior uma outra apreciação de questões novas relacionadas com o mesmo litígio, evitando-se o desperdício de recursos judiciais e implicando assim a formação de um despacho susceptível de ser recorrido.
II. Excepção peremptória de apreciação oficiosa do abuso do direito de recurso e do direito de declaração de ineficácia do contrato
9. O MM.° Juiz do tribunal a quo proferiu, ao abrigo da lei, em 17 de Junho de 2022, despacho autorizando mantida a suspensão do mandado de despejo (vide fls. 196 dos autos, adiante designado por “despacho recorrido”);
10. A Recorrente manifestou oposição ao despacho recorrido com fundamento de ineficácia contra si de um contrato de alienação de centro médico, juntado em 10 de Maio de 2022 pela Recorrida A LIMITADA, baseada na violação por parte da Ré D LIMITADA da obrigação de comunicação prevista na alínea g) do artigo 983° do Código Civil, e pelo facto de ser a Sr.ª E administradora da Ré e simultaneamente única sócia da Recorrida, na qualidade de terceiro;
11. Relativamente a esta última causa, a Sr.ª E já deixou de ser administradora da Ré D LIMITADA, foi surgido à Recorrente este entendimento errado devido à lentidão verificada nas formalidades de registo comercial, assim sendo, fica já esclarecida essa dúvida da Recorrente de que a Sr.ª E conseguisse controlar simultaneamente a Ré e a Recorrida, na qualidade de terceiro;
12. Presentemente, a Ré D LIMITADA só tem um sócio, o Sr. F, que é simultaneamente seu administrador (vide doc. 1);
13. Mais a mais, o administrador da Parte B, a Recorrida, constante do Contrato de alienação de centro médico em questão era o Sr. G, e não a Sr.ª E;
14. Neste contexto, não foi possível à Sr.ª E controlar simultaneamente a Ré e a Recorrida, na qualidade de terceiro;
15. A Recorrente manifestou oposição ao despacho recorrido com fundamento de ineficácia contra si de um contrato de alienação de centro médico, juntado em 10 de Maio de 2022 pela Recorrida, baseada na violação por parte da Ré D LIMITADA da obrigação de comunicação prevista na alínea g) do artigo 983° do Código Civil, e pelo facto de ser a Sr.ª E administradora da Ré e simultaneamente única sócia da Recorrida, na qualidade de terceiro;
16. No dia 7 de Julho de 2015, a Recorrente, na qualidade de senhoria, e a Ré D LIMITADA, na qualidade de locatária, celebraram um contrato de arrendamento para fim comercial (nos termos dos artigos 969°, 970°, 1029° e 1045° do Código Civil), sendo objecto as duas fracções autónomas designadas por “C6” e “D6”, para fins de escritório, do edifício situado em Macau, na Avenida XX, n.° 810 (vide fls. 68 a 71 dos autos);
17. No dia 19 de Janeiro de 2021, a Recorrente e a Ré celebraram um contrato adicional a fim de prorrogar o prazo de arrendamento até 6 de Julho de 2021;
18. Ao mesmo tempo, a Recorrente não chegou a comunicar, por escrito, à Ré a denúncia do contrato de arrendamento em causa com a antecedência de 90 dias, como aludido na alínea b) do n.° 1 do artigo 1039° do Código Civil;
19. Até à presente data, a Recorrente nunca comunicou à Ré D LIMITADA ou à Recorrida A LIMITADA, na qualidade de terceiro, a denúncia por escrito, e por isso, o contrato renovou-se por períodos sucessivos (nos termos do n.° 1 do artigo 1038° do Código Civil);
20. No dia 30 de Junho de 2021, a Ré celebrou com a Recorrida, na qualidade de terceiro, o Contrato de alienação de centro médico supracitado, de modo a transmitir a posição de locatária, constante do contrato de arrendamento para fim comercial em causa, da Ré D LIMITADA para a Recorrida A LIMITADA (nos termos do n.° 1 do artigo 1047° do Código Civil de Macau);
21. No dia 27 de Outubro de 2021, a Recorrente intentou a presente acção de despejo em processo especial contra a Ré D LIMITADA;
22. A sentença constante de fls. 138 a 143v dos presentes autos, proferida pelo tribunal a quo, transitou em julgado em 22 de Novembro de 2021, não se esqueça, porém, que esta não é vinculativa para a Recorrida A LIMITADA, na qualidade de terceiro;
23. Nos termos do n.° 1 do artigo 574°, artigo 416° e artigo 417° do Código de Processo Civil, a Autora na presente acção é a Recorrente e a Ré é D LIMITADA;
24. Nesta conformidade, é obvio que a Recorrida A LIMITADA não está minimamente vinculada pela sentença transitada em julgado atrás referida, não havendo força de caso julgado contra si!
25. Na qualidade de terceiro, a Recorrida não tem obrigação de saber nem é capaz de saber se a Ré chegou a comunicar ao tribunal a quo ou à Recorrente o Contrato de alienação de centro médico supracitado;
26. No dia 19 de Maio de 2022, a Recorrida A LIMITADA intentou uma acção junto do Tribunal Judicial de Base (Processo n.°: CV1-22-0044-CAO) sobre a eventual vinculação do Contrato de alienação de centro médico em questão relativamente à Recorrente, e no dia 25 de Maio de 2022, foi requerida a junção aos presentes autos da petição inicial e os correspondentes documentos do referido processo;
27. A Recorrente bem sabia que o fundamento por si invocado, sobre a eventual eficácia do Contrato de alienação de centro médico em questão contra si, será discutido no âmbito da acção declarativa n.° CV1-22-0044-CAO, mesmo assim, interpôs o recurso em 31 de Agosto de 2022;
28. A ora Recorrente B, LIMITADA é parte na presente acção e simultaneamente Ré na acção comum declarativa n.° CV1-22-0044-CAO;
29. Importa salientar que, a Recorrente referiu no artigo 16° das suas alegações o seguinte: “A Recorrente nunca celebrou qualquer contrato de arrendamento/subarrendamento com o terceiro/detentor, A LIMITADA, nem recebeu qualquer prestação de renda devida”;
30. É verdade que a Recorrente não celebrou qualquer contrato com a Recorrida, na qualidade de terceiro;
31. No entanto, a Recorrida A LIMITADA, na qualidade de terceiro, pagou efectivamente à Recorrente B, LIMITADA rendas estipuladas no contrato de arrendamento em causa;
32. No dia 21 de Junho de 2022, a Recorrente apresentou ao tribunal a quo um requerimento de consignação em depósito, tendo mencionado ter constatado um depósito na sua conta bancária do montante de HKD200.000,00 (duzentos mil dólares de Hong Kong), e, após averiguação realizada pelo funcionário do banco, foi-lhe informado que a A LIMITADA tinha realizado tal depósito em 9 de Junho de 2022, a título de rendas (vide fls. 197 dos autos);
33. Nesta circunstância, a Recorrente violou o dever de lealdade proveniente do princípio da boa fé, pois imputou falsamente que a Recorrida A LIMITADA, na qualidade de terceiro, nunca lhe tivesse pago qualquer renda!
34. A Recorrida, na qualidade de terceiro, pagou, em 6 de Maio de 2022, 10 de Junho de 2022, 27 de Julho de 2022, 17 de Agosto de 2022, 22 de Setembro de 2022 e 13 de Outubro de 2022, à Recorrente, através da sua conta bancária aberta junto do Banco de H, Sucursal de Macau, com o n.° 180XXX436, as rendas mensais no valor de HKD96.300,00, HKD200.000,00, HKD100.000,00, HKD100.000,00, HKD100.000,00 e HKD100.000,00, respectivamente, tendo assim cumprido pontualmente a sua obrigação de pagar a renda, na qualidade de locatária (nos termos da alínea a) do artigo 983° do Código Civil) (vide docs. 2 a 7);
35. A Recorrente abusou do seu direito de recurso e de invocação de ineficácia contra si do Contrato de alienação de centro médico em causa, porque a Recorrida A LIMITADA, na qualidade de terceiro, pagou ao longo do tempo as rendas mensais à Recorrente, que as recebeu mas não admitiu a existência, entre si e a Recorrida, na qualidade de terceiro, de relação de obrigação emergente do contrato de arrendamento para fim comercial, tendo assim violado o dever de lealdade proveniente do princípio da boa fé e consubstanciado um venire contra factum proprium;
36. Nos termos do artigo 326° do Código Civil de Macau, “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”;
37. O Tribunal de Última Instância apresentou no Acórdão n.° 26/2007 uma brilhante descrição sobre o abuso do direito:
“2.2 Abuso do direito ……
Por sua vez, o recorrente sustenta que o acordo em causa é nulo por inobservância da forma prevista no art.º 410.º, n.º 2 do Código Civil de 1966 (CC) e deverá ser restituído tudo o que tiver sido prestado, salientando que esta norma tem em vista proteger os promitentes compradores e não foi alegado dano pela outra parte, a recorrida, pelo que não se pode recorrer excepcionalmente à figura do abuso do direito para obstar à invocação da nulidade por inobservância da forma legal do negócio celebrado.
Todos estão de acordo de que o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o recorrente e a recorrida, por revestir apenas a forma verbal, é nulo nos termos do art.º 220.º do CC por inobservância da forma escrita exigida pelo art.º 410.º, n.º 2 do mesmo Código.
E tal como foi referido, também entendemos que as condutas do recorrente consubstancia um venire contra factum proprium.
O venire contra factum proprium não é proibido genericamente por lei.
No entanto, prescreve o art.º 334.º do CC (de conteúdo igual ao art.º 326.º do CC de 1999):
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Preenchidos estes requisitos, o venire contra factum proprium é integrável na figura do abuso do direito prevista na norma referida. Aquele que deu causa a uma nulidade de forma e a alegue cometeu um facto ilícito por agir contra o princípio da boa fé.
Daí a questão da possibilidade de afastar a procedência de declaração de nulidade do negócio por vício de forma pedida por quem agiu com abuso do direito.
Na doutrina conhece a tendência de admitir essa possibilidade.
Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela mostraram a posição negativa ao considerar que o art.º 227.º do CC sobre a culpa na formação dos contratos é “aplicável ao caso de uma das partes induzir dolosamente a outra à inobservância da forma prescrita na lei para o contrato. Pretender aplicar ao caso a figura do abuso do direito é que parece expediente de todo o ponto inapropriado.”
Também o Professor Menezes Cordeiro entendia que “a doutrina encontra dificuldades para, em nome da boa fé, formular uma regra de restrição às nulidades formais.”
Outros autores pronunciam pelo sentido positivo.
Ainda nos trabalhos preparatórios do CC de 1966, o Professor Rui de Alarcão deixou as observações em relação à norma que comina com nulidade uma declaração negocial que carece da forma legal (art.º 220.º do CC):
“No tocante às consequências da inobservância da forma legalmente prescrita, importa ainda acentuar que, em virtude das regras sobre a culpa in contrahendo e dos princípios gerais da boa fé ou do abuso do direito, poderá em certos casos ter-se excluída a possibilidade de invocação da nulidade por vício de forma, ou, de todo o modo, reconhecer-se lugar a uma indemnização, ao menos pelo chamado interesse ou dano negativo ou da confiança.
Deixaremos a resolução do problema entregue àquelas regras e princípios, abstendo-nos, neste lugar, de lhe fazer qualquer referência.”
Manuel de Andrade admite a aplicação do regime do abuso do direito para obstar certas regras legais, evitando situações de injustiça clamorosa:
A doutrina geral do abuso de direito “torna-se imprescindível em qualquer sistema jurídico, para obstar a que as determinações abstractas da lei – incluindo as que apenas sancionam estipulações negociais – possam ser eficazmente invocadas até mesmo quando isso levaria, na espécie, a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar, se as tivesse vislumbrado.”
“Assim, por exemplo, nos casos de nulidade por vício de forma, quando ocorrida (essa nulidade) em circunstâncias que tornam a sua arguição verdadeiramente escandalosa. Suponha-se, v.g., que a nulidade é arguida por um contratante que a provocou, fazendo como que falsificar por outrem a sua própria assinatura (foi outrem, de acordo com ele, que exarou no documento, em jeito de assinatura, o nome desse contratante), ou induzindo dolosamente a outra parte a não insistir pela formalização do negócio; ou que o mesmo contratante procedeu em termos de criar no outro a espectativa de que a nulidade jamais seria arguida – aceitando, v.g., públicos, reiterados e dispendiosos testemunhos de gratidão por uma liberalidade feita, aliás, sem a necessária documentação.”
Vaz Serra aponta a necessidade de ponderar os interesses subjacentes à forma legal e de combater o abuso do direito:
“Um afastamento da imposição de forma é, de facto, justificado quando aquele que recusa o cumprimento de uma promessa alegando a inobservância da forma tinha impedido dolosamente a observância da forma. O princípio de que ninguém deve poder tirar da sua própria conduta dolosa uma vantagem jurídica tem aqui precedência sobre o princípio da forma. Além disso, devia-se prescindir da imposição de forma quando um contrato obrigacional bilateral foi cumprido no principal por ambas as partes.”
“Se a nulidade por falta de forma legal (Cód. Civil art.º 220.º) é de interesse e ordem pública, também o é a ilegitimidade do exercício do direito por abuso deste.
Não parece, pois, que a nulidade formal de um negócio jurídico deva ter sempre prioridade sobre a ilegitimidade do exercício do direito em consequência de abuso.”
Mota Pinto entende igualmente que “o intérprete, desde que lealmente aceite como boa e valiosa para o comum dos casos a norma que prescreve a nulidade dos negócios feridos de vício de forma, está legitimado para, nos casos excepcionalíssimos do artigo 334.º, afastar a sua aplicação, tratando a hipótese como se o acto estivesse formalizado.”
Menezes Cordeiro chama inalegabilidade formal “à situação em que a nulidade derivada da falta de forma legal de determinado negócio não possa ser alegada sob pena de se verificar um ‘abuso do direito’, contrário à boa fé. A ocorrência paradigmática seria a de um venire contra factum proprium específico: o agente convence a contraparte a concluir um negócio nulo por falta de forma, prevalece-se dele e, depois, vem alegar a nulidade.”
O Professor admite hoje que as próprias normas formais cedam perante o sistema, de tal modo que as nulidades derivadas da sua inobservância se tornem verdadeiramente inalegáveis, mas propondo certos requisitos para afastar as exigências de forma legal.
“No actual estádio de avanço da Ciência do Direito, teremos de partir do modelo da tutela da confiança. A inalegabilidade aproxima-se, assim, do venire, requerendo, como ele:
- a situação de confiança;
- a justificação para a confiança;
- o investimento de confiança;
- A imputação de confiança ao responsável que irá, depois, arcar com as consequências.
Todavia, tratando-se de inalegabilidades formais, teríamos de introduzir, ainda, três proposições:
- devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas; nunca, também, os de terceiros de boa fé;
- a situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar;
- o investimento de confiança apresentar-se-á sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via.”
Os quatros requisitos gerais são explicados na mesma obra a propósito da tutela da confiança:
“A situação de confiança pode, em regra, ser expressa pela ideia de boa fé subjectiva: a posição da pessoa que não adira à aparência ou que o faça com desrespeito de deveres de cuidado merece menos protecção.
A justificação da confiança requer que esta se tenha alicerçado em elementos razoáveis, susceptíveis de provocar a adesão de uma pessoa normal.
O investimento de confiança exige que a pessoa a proteger tenha, de modo efectivo, desenvolvido toda uma actuação baseada na própria confiança, actuação essa que não possa ser desfeita sem prejuízos inadmissíveis; isto é: uma confiança puramente interior, que não desse lugar a comportamentos, não requer protecção.
A imputação da confiança implica a existência de um autor a quem se deva a entrega confiante do tutelado. Ao proteger-se a confiança de uma pessoa vai-se, em regra, onerar outra; isso implica que esta outra seja, de algum modo, a responsável pela situação criada.”
Entendemos que é possível a invocação do abuso do direito para afastar as disposições legais sobre a forma desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que se torna válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo.
No presente caso, ficou provado que foi celebrado um acordo verbal entre o recorrente e a recorrida no ano 1995, tendo por objecto a transmissão do prédio a favor do recorrente;
Com base neste acordo, o recorrente entregou à recorrida 10% do preço acordado em Junho de 1995;
Foi preparada a minuta do contrato-promessa de compra e venda, mas o recorrente recusou a assiná-lo, invocando dificuldades financeiras. Para demonstrar interesse no negócio e dar valor ao acordo verbal, o recorrente começou a pagar 12 vezes de juros de mora à recorrida de Dezembro de 1995 a Outubro de 1999, altura em que o recorrente informou à recorrida de que os problemas financeiros não tinham sido ultrapassados;
Em Outubro de 2003, o recorrente escreveu ainda uma carta à recorrida para pedir mais oportunidade a fim de comprar o terreno em causa;
Em resposta a essa carta, a recorrida afirmou que esperava durante anos para o recorrente encontrara um comprador final, sem obter resposta da parte do recorrente.
Da matéria fáctica apurada evidencia que existe uma situação de confiança por parte da recorrida de que o acordo verbal iria ser cumprido, face ao pagamento do sinal e juros de mora pelo recorrente e a sua manifestação de manter sempre interesse na conclusão do negócio, aguardando um comprador final a ser recomendado pelo recorrente à recorrida.
Por seu lado, o recorrente realizou pagamentos durante quatro anos e manifestou interesse no cumprimento do acordo quatro anos depois do último pagamento, contribuiu essencialmente para a constituição da confiança da recorrida. Não há terceiros de boa fé relativos ao acordo.
O contrato não foi reduzido a escrito por causa do recorrente. Com a propositura da presente acção, este afirmou que perdeu interesse do negócio e suscitou a nulidade do acordo por inobservância da forma legal, o que mostra que o recorrente foi cumprindo o estipulado no acordo quando lhe convinha o cumprimento e veio pedir a nulidade quando o cumprimento já não lhe interessa. Agiu assim o recorrente em manifesta violação do princípio da boa fé que consubstancia no abuso do direito, determinante da inalegabilidade do vício formal do acordo.” (destacado, itálico e sublinhado nossos)
38. Assim sendo, a Recorrida A LIMITADA, na qualidade de terceiro, por total confiança da sua posição de locatária do contrato de arrendamento em causa, pagou as rendas mensais à Recorrente, que as recebeu e não restituiu, entretanto acabou por interpor recurso em virtude de não admitir essa relação de arrendamento, tendo assim violado o princípio da boa fé que consubstancia no abuso do seu direito de recurso emergente do direito de acção consagrado nos artigo 36°, n.° 1 do artigo 8° da Lei Básica de Macau, por remissão do n.° 1 do artigo 1°, n.° 1 do artigo 581° e artigo 583° do Código de Processo Civil;
39. A Recorrente recebeu as rendas mensais pagas pela Recorrida e não as restituiu nem procedeu à consignação em depósito, o que demonstra o seu reconhecimento da posição de locatária da Recorrida!
40. O Professor português Vaz Serra aponta expressamente no anteprojecto do Código Civil o fundamento de ser a falta de direito um efeito do abuso do direito: “O efeito do abuso do direito não parece que deva ser fixado de maneira uniforme para todos os casos. O abuso do direito é, na orientação proposta, um caso de falta de direito: quem abusa do seu direito utiliza-o fora das condições em que a lei o permite, e o efeito deve ser, portanto, em princípio, o que resultaria do exercício de um direito só apraente, isto é, da falta de direito.” (destacado, itálico e sublinhado nossos)
41. Os Professores portugueses Pires de Lima e Antunes Varela têm o seguinte entendimento sobre as consequências legais do abuso do direito: “A ilegitimidade do abuso do direito tem as consequência de todo o acto ilegítimo: pode dar lugar à obrigação de indemnizar; à nulidade, nos termos gerais do artigo 294.°; à legitimidade de oposição; ao alongamento de um prazo de prescrição ou de caducidade (vide Vaz Serra, na Rev. de Leg. E Jur., ano 107.°, pág. 25), etc.” (destacado, itálico e sublinhado nossos)
42. No Acórdão n.° 90/2021 proferido pelo Tribunal de Última Instância em 3 de Novembro de 2021, encontra-se exposto o fundamento de conhecimento oficioso do abuso do direito: “Tendo o período de execução contratual decorrido sem sobressaltos, e estando agora em causa o cumprimento de obrigações por parte do arrendatário, mais concretamente, a de restituição do imóvel livre de pessoas e bens ao senhorio, manifesto se apresenta que a invocação da nulidade do contrato de arrendamento por ilegitimidade do senhorio constitui um claro e flagrante “abuso de direito”, (o qual, como sabido é, é de conhecimento oficioso)”.
43. Por conseguinte, o exercício pela Recorrente do seu direito de recurso e de invocação de ineficácia contra si do Contrato de alienação de centro médico em causa, emergentes do direito de acção, constitui abuso do direito por violação do princípio da boa fé, daí que se deve considerar inexistentes e nulos esses direitos (nos termos dos artigo 326° e artigo 287° do Código Civil de Macau) e cabe ao conhecimento oficioso do tribunal superior!
III. Reconhecimento da Recorrente, por declaração tácita, quanto à posição de locatária da Recorrida
44. Nos termos do n.° 1 do artigo 209° do Código Civil, “A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro modo directo de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.”
45. O Dr. João Gil de Oliveira, ex-Juiz do Tribunal de Segunda Instância, e o Dr. José Cândido de Pinho, actual Juiz do mesmo Tribunal, têm o seguinte entendimento sobre a declaração tácita: “A qualificação de uma declaração negocial como tácita é questão de direito, havendo que atender aos usos e costumes do lugar onde ocorra, no caso de Macau, a sindicar pelo TUI, caso o caso caiba no âmbito do seu conhecimento – cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo I, Almedina, 2011, 543. 29. A declaração ‘é tácita quando do seu conteúdo directo se infere um outro, isto quando se destina a um certo fim, mas implica e torna cognoscível um autoregulamento sobre outro ponto’ (Mota Pinto, Teoria Geral do Negócio Jurídico, 1976, 336).” (destacado, itálico e sublinhado nossos)
46. Até à presente data, a Recorrente nunca requereu ao tribunal a quo a emissão de guia para a consignação em depósito de todas as rendas pagas pela Recorrida, na qualidade de terceiro, mais a mais, pelo facto de tê-las recebido, a Recorrente já antes reconheceu, por declaração tácita concretizada ou formada, a cessão da posição de locatária pela Ré, por meio do referido Contrato de alienação de centro médico, à Recorrida, e consequentemente, esta última, na qualidade de locatária do contrato de arrendamento em causa, tinha a obrigação de pagar a renda mensal à Recorrente (nos termos do n.° 1 do artigo 209° do Código Civil).
IV. Existência de vício de errada interpretação da lei – cessão da posição de locatária à Recorrida com base na alienação da empresa comercial
47. O fundamento de sublocação pela Ré D LIMITADA à Recorrida A LIMITADA, na qualidade de terceiro, suscitado nos artigos 31° a 37° das alegações, é uma errada interpretação da lei;
48. Como referem os Professores portugueses Pires de Lima e Antunes Varela sobre a distinção entre a sublocação e a cessão da posição contratual: “A distinção entre a cessão da posição contratual do locatário e a sublocação é especialmente versada na nota ao artigo anterior. Na sublocação, existem lado a lado dois contratos de locação: um, entre locador e locatário; outro, entre o locatário e o sublocatário. A sublocação, diria Pierre Catala (in Jean Néret, Le sous-contrat, Paris, 1979, Préface, pág. XVI), é uma operação que põe em cena três personagens em dois actos. Um dos contraentes originários, o intermediário substituinte – personagem central (pivot) – repassa (sous-traite) a um novo contraente (partenaire) toda a prestação ou parte dela, de que ele próprio é credor ou devedor. Por isso, o artigo 33.° do Decreto n.° 5411 preceituava que «o arrendatário ou sublocatário, que sublocar todo o prédio arrendado ou parte dele, poderá usar de todos os direitos concedidos ao senhorio e fica adstrito a todas as obrigações que a este são impostas». Supunha este artigo não só a possibilidade legal de um segundo arrendamento, mas de um terceiro, ou subsequente, quanto ao arrendamento concedido pelo subarrendatário (cfr. Estelita de Mendonça, Da sublocação, 1972, pág. 18). Não se opõe a nova lei a essa cadeia de sublocações, quando autorizadas (sublocações sucessivas ou sublocações em mais de um grau). Permitindo a lei uma, estão permitidas todas as subsequentes.” (destacado, itálico e sublinhado nossos)
49. Conforme a noção de cessão da posição contratual preceituada no artigo 418° do Código Civil, “No contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão.”
50. Nos termos do artigo 1007° do Código Civil, “A locação diz-se sublocação, quando o locador a celebra com base no direito de locatário que lhe advém de um precedente contrato locativo.”
51. Em conformidade com o disposto no artigo 1048° (sic) do Código Civil, “É permitida a transmissão da posição do arrendatário, sem dependência de autorização do senhorio, em caso de alienação da empresa comercial.”
52. No caso em apreço, a Recorrida adquiriu a posição de locatária, constante do contrato de arrendamento para fim comercial celebrado entre a Recorrente e a Ré, com base na alienação da empresa comercial e não na sublocação;
53. No presente caso, nunca aconteceu a sublocação, nem existiu o contrato de sublocação;
54. Nestes termos, o alegado no artigo 31° das alegações de que a Recorrida A LIMITADA violou o estabelecido na alínea (1) da cláusula 17ª do Contrato de arrendamento celebrado entre a Recorrente e a Ré D LIMITADA em 7 de Julho de 2015, é uma compreensão completamente errada das noções jurídicas de cessão da posição contratual e de sublocação.
55. É evidente que as alegações padecem de vício de errada interpretação da lei.
A fls. 302 e 303 veio a ser proferido o seguinte despacho:
«Proferiu-se despacho de fls. 196, na sequência de requerimento em que se pedia o despejo contra quem não foi identificado na sentença como visado pela decisão e por não ser inquilino.
Determinou-se que as questões suscitadas teriam de ser discutidas noutra sede.
Assim se decidiu por ausência de todos elementos que agora melhor se surpreendem.
De facto, se se apura dos documentos juntos título que legitimará1 a detenção do locado pela I (…)2, já não está claro que tenha ocorrido a notificação da cessão da posição contratual na locação e para aquela entidade, tudo por via de alienação do estabelecimento comercial em funcionamento no locado.
De fls.271 consta efectivamente um documento através do qual se procede à citada alienação, datada de 30.06.21.
Para além deste documento não consta nenhum daqueles a que se refere a 2ª parte do nº2 do artº936 do CPC, nomeadamente documento comprovativo de ter sido requerido no prazo de 20 dias a notificação da cessão ao senhorio – Cfr. artº1047 nº1 e 983 al.f) (a contrario) / artº 983 al.g) do CC.
Ora, não tendo sido exibido esse documento cremos que se impõe o prosseguimento do despejo e sem prejuízo da sua exibição, nos preliminares ou durante essa execução, e sustação ao abrigo do artº 936 nº2 do CPC.
Pelo exposto, ao abrigo do artº617 nº2, última parte, do CPC, reparando o despacho posto em crise, determina-se que fica o mesmo sem efeito e em sua substituição determina-se a continuação da execução do despejo, incluindo em relação à I (…).
Notifique.».
Não se conformando com este despacho veio a terceira interessada A Limitada interpor recurso deste despacho – cf. fls. 307 a 310 traduzido a fls. 358 a 360 -.
Por despacho de fls. 370 foi proferido despacho a remeter os autos a este Tribunal.
A fls. 374 a 392 veio a agora Recorrente A Limitada apresentar alegações de recurso e juntar documentos.
A fls. 468 e seguintes traduzidas a fls. 588/597 veio a Autora e agora Recorrida pugnar pela rejeição daquelas alegações apresentadas.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. QUESTÃO PRÉVIA
Das alegações apresentadas a fls. 374 a 392 pela agora Recorrente A Limitada.
No caso está em causa um despacho que não conhecia do mérito da causa – sustação do despejo – do qual tendo sido interposto recurso o Mmº Juiz veio a reparar o mesmo, mandando prosseguir com a execução do despejo.
Da leitura do artº 617º do CPC resulta que o despacho a sustentar ou a reparar a decisão recorrida é proferido depois de apresentadas as alegações ou contra-alegações de recurso ou findo o respectivo prazo (das contra-alegações pois se não houvessem sido apresentadas alegações seria julgado deserto).
Dispõe o nº 3 do artº 618º do CPC:
«3. Se o juiz proferir despacho a reparar a decisão, pode o recorrido requerer, dentro de 10 dias a contar da notificação do despacho de reparação, que o processo de recurso suba, tal como está, para se decidir a questão sobre que recaíram as duas decisões opostas; quando use desta faculdade, o recorrido fica tendo, a partir desse momento, a posição de recorrente.».
Daqui resulta que se a parte até então recorrida não se agradar com a decisão que reparou o despacho pode pedir que “o processo suba tal como está” para que o tribunal de recurso se pronuncie sobre as duas decisões tomadas, isto é, para que decida qual delas se mantém.
Mais se acrescenta que a Recorrente passa a ter a posição de Recorrida e a Recorrida de Recorrente.
Ora, assim sendo não há aqui um novo recurso da segunda decisão, nem tão pouco a possibilidade da parte que passou a ter a posição de Recorrente vir agora alegar novamente e a Recorrida contra-alegar.
Assim sendo, carecem de fundamento legal as alegações apresentadas a fls. 374 a 392 pela agora Recorrente A Limitada, pelo que, se impõe ordenar a final que sejam desentranhadas e devolvidas à parte bem como os documentos que as acompanham, com custas pelo incidente a cargo da Recorrente, ficando apenas nos autos uma cópia das mesmas com nota deste despacho por mera segurança.
III. FUNDAMENTAÇÃO
Transitada em julgado a decisão que decretou o despejo foi este ordenado passando-se os competentes mandados.
Reza o artº 936º do CPC sobre a execução do mandado de despejo:
«1. O mandado de despejo é executado seja qual for a pessoa que esteja na detenção do prédio.
2. O executor deve sobrestar, porém, no despejo, quando o detentor não tiver sido ouvido e convencido na acção e exibir algum dos títulos seguintes:
a) Título de arrendamento, ou de outro gozo legítimo do prédio, emanado do exequente;
b) Título de sublocação, ou de cessão da posição contratual, emanado do executado e documento comprovativo de ter sido requerida no prazo de 20 dias a respectiva notificação ao senhorio ou de o senhorio ter especialmente autorizado a sublocação ou a cessão, ou de o senhorio ter reconhecido o sublocatário ou cessionário como tal.
3. Das ocorrências a que se refere o número anterior é lavrada certidão, juntando-se os documentos exibidos e advertindo-se o detentor do ónus estabelecido no número seguinte; é também dado imediato conhecimento ao senhorio ou ao seu representante das ocorrências verificadas.
4. Cabe ao detentor, nos 10 dias subsequentes, requerer que a suspensão do despejo seja confirmada, sob pena de o mandado ser imediatamente executado; com o requerimento são apresentados os documentos disponíveis, e o juiz, ouvido o senhorio, decide logo se a suspensão deve ser mantida ou o mandado executado.».
A regra geral mostra-se consagrada no nº 1 do indicado preceito dali resultando que o despejo é executado seja quem for que esteja na detenção do prédio.
Esta regra comporta, contudo duas excepções:
1ª – Se o detentor não tendo sido parte na acção tenha título de arrendamento emitido pelo exequente;
2ª – Se o detentor não tendo sido parte na acção tenha título de sublocação ou cessação da posição contratual e de haver documento comprovativo de ter sido requerida no prazo de 20 dias a notificação ao senhorio, ou deste ter autorizado ou reconhecido a sublocação ou a cessação.
A sentença a declarar a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas e a condenar no despejo foi proferida em 27.10.2021 contra o originário locatário, tendo transitado em julgado.
Em 25.03.2022 foi ordenada a passagem dos mandados de despejo a requerimento do Autor – cf. fls. 150 a 152 -.
Em 10.05.2022 – cf. fls. 156 – a terceira interessada A Limitada vem invocar ter celebrado em 30.06.2021 um contrato de cessão da posição contratual juntando cópia do respectivo documento – cf. fls. 160 a 165 -.
Não se junta qualquer documento comprovativo de ter sido comunicado ao senhorio até ao dia 19.07.2021 a cessão contratual.
Apenas nas suas contra-alegações de recurso apresentadas em 16.11.2022 quanto ao despacho que sustou o despejo vem a então Recorrida e agora Recorrente juntar 6 documentos datados de 06.05.2022, 10.06.2022, 27.07.2022, 17.08.2022, 22.09.2022 e 13.10.2022 que diz serem referentes ao pagamento da renda através de depósitos ou transferências bancárias feitas para a conta da Autora/Recorrente e agora Recorrida.
Todos os ditos pagamentos são posteriores ao despacho de emissão do mandado de despejo não se podendo inferir daqueles que o senhorio autorizou e reconheceu a cessão da posição contratual, uma vez que os depósitos nos termos em que são feitos acontecem independentemente da vontade do senhorio.
Por outro lado dali não resulta que hajam sido pagas as rendas desde a data da cessão a qual aconteceu em Junho de 2021, o que aí sim, se poderia admitir que o senhorio desde então saberia da cessão caso dos pagamentos constasse quem estava a efectua-los.
No entanto sempre se dirá que os documentos de onde resulta ter sido comunicada a cessão ou ter sido autorizada ou reconhecida a cessão da posição contratual têm de ser apresentados no momento da execução do despejo nos termos do nº 4 do artº 936º do CPC.
No caso dos autos a alegada detentora veio apresentar o requerimento de fls. 156 sem que dele conste documento algum de onde resulte a comunicação da cessão da posição contratual no prazo legal ou a autorização ou reconhecimento do senhorio.
Foi tentada a execução do despejo em 13.05.2022 e sustada nos termos do despacho posteriormente reparado.
E só nas contra-alegações de recurso em 16.11.2022 vem a Recorrida agora Recorrente juntar os comprovativos dos alegados pagamentos de renda, muito para além dos 10 dias após a sustação do despejo, pelo que, se acaso esses documentos tivessem a virtualidade de demonstrar que o senhorio tinha reconhecido a cessão da posição contratual também foram apresentados para além do momento processual legalmente determinado, sendo extemporâneos, não podendo o despacho a proferir pelo Mmº Juiz “a quo” ter sido outro que não aquele que proferiu uma vez que, quando reparou o despacho a sustar o despejo e a mandar prosseguir o mesmo, não haviam sido juntos aos autos documentos alguns a demonstrar o pagamento de rendas, pelo que a questão do eventual reconhecimento pelo senhorio da cessão da posição contratual não se podia sequer colocar, como também, nem sequer havia sido invocada pela alegada detentora.
Por fim cabe dizer que em 21.06.2022, logo após se aperceber dos dois primeiros depósitos veio a Autora e senhoria requerer a fls. 197 traduzido a fls. 201 que a alegada detentora indicasse a sua conta bancária para lhe devolver o valor dos dois primeiros depósitos por não os aceitar, o que, se dúvidas houvessem exprime a vontade do senhorio em não reconhecer a cessão da posição contratual.
Destarte, em face de todo o exposto impõe-se confirmar o despacho que mandou prosseguir com o despejo e revogar a decisão que o sustou.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos:
- Desentranhe e devolva à parte as alegações apresentadas a fls. 374 a 392 pela agora Recorrente A Limitada, bem como os documentos que as acompanham, ficando nos autos uma cópia das mesmas com nota deste despacho por mera segurança.
- Nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão de fls. 302 e 303 que mandou prosseguir com a execução do despejo.
Custas a cargo da Recorrente A Limitada, seja pelo recurso seja pelo incidente fixando-se quanto a este a taxa de justiça em 2 Ucs.
Registe e Notifique.
RAEM, 30 de Maio de 2024
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(1o Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
(2o Juiz-Adjunto)
1 Os termos em que o mesmo foi conformado ultrapassa o conhecimento possível nesta sede.
2 Vide fls. 271
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
826/2023 CÍVEL 4