Processo n.º 758/2023
(Autos de recurso de decisões jurisdicionais do TA)
Relator: Fong Man Chong
Data : 30 de Maio de 2024
Assuntos:
- Cláusulas contratuais e factos concretizadores do incumprimento das mesmas
SUMÁRIO:
I - A causa de pedir é o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida pelo autor, que serve de fundamento à acção; não é o facto abstracto configurado na lei, mera categoria legal, também não são as cláusulas contratuais constantes dum contrato administrativo, mas o facto concreto invocado pelo autor, o acontecimento natural ou acção humana de que promanam, por disposição legal, efeitos jurídicos. Assim, a causa de pedir não pode ser o incumprimento do contrato porque o incumprimento não passa de uma categoria legal, mas poderá ser o facto concreto que porventura se traduziu em incumprimento (Cfr. Ac. S.T.J., de 24-5-83, BMJ. 327.°-653).
II – Para apreciar o pedido da responsabilidade contratual imputada à Ré (a RAEM), não basta selecionar apenas as clausulas contratuais constantes do contrato de concessão dum terreno identificado nos autos para apreciar todos os pedidos formulados pela Autora, já que tal conteúdo é insuficiente, eis uma défice da instrução do processo, já que o artigo 430º do CPC manda que o julgador deve selecionar a matéria de facto relevante segundo as várias soluções plausíveis da questão de Direito. Ao não assim actuar, verifica-se uma défice de instrução e justifica-se mandar os autos para eliminar este vício nos termos do artigo 629º/4 do CPC.
O Relator,
_______________
Fong Man Chong
Processo n.º 758/2023
(Autos de recurso de decisões jurisdicionais do TA)
Data : 30 de Maio de 2024
Recorrente : A Limitada
Recorrida : Região Administrativa Especial de Macau (澳門特別行政區)
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ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I - RELATÓRIO
A Limitada, devidamente identificada nos autos, não se conformando com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo, datada de 12/06/2023, veio, em 26/06/2023, recorrer jurisdicionalmente para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 231 a 277, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. Nos termos do artigo 556.°, n.º 2, do Código de Processo Civil, a matéria de facto deve especificar os factos provados e os não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para formar a convicção do julgador.
II. Porque está prevista esta diligência em momento prévio ao da sentença é que o artigo 562.°, n.º 2, do Código de Processo Civil se basta com a indicação dos factos provados relativamente aos quais haverá de fazer-se a subsunção jurídica.
III. Nos termos do artigo 571.°, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto que justificam a decisão. E, nos termos da respetiva alínea d), é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
IV. O Tribunal a quo não identificou factos não provados nem justificou a sua não indicação, e tais factos são essenciais ao bom julgamento da causa, pelo que a sentença recorrida é nula.
V. Nos termos do artigo 429.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, o Tribunal só pode conhecer o mérito da causa são o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação dos pedidos ou de excepção peremptória.
VI. Sucede que há matéria de facto que se mantém controvertida quanto ao julgamento realizado, pelo que o Tribunal a quo não podia ter proferido saneador-sentença, antes devendo ter prosseguido para a fase seguinte.
VII. Assim o impõe, igualmente, a referência feita no artigo 430.º, n.º 1, do Código de Processo Civil à selecção "da matéria de facto relevante, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito": quando haja várias soluções plausíveis de direito e matéria de facto controvertida, o Juiz deve fazer prosseguir os autos para a fase de instrução.
VIII. Efectivamente, um dos pressupostos da aplicação do artigo 429.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil é o de não existirem outras soluções plausíveis a carecer indagação rectius instrução, sendo este o resultado da interpretação sistemática deste inciso com o disposto no artigo 430.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
IX. Ao proferir saneador-sentença, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nos artigos 429.º, n.º 1, alínea b), n.º 3, e 430.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
X. Com assento em documentos integrados no processo e atendendo à posição assumida pela RAEM na contestação (cfr. artigos 31.º e 32.º da contestação), era forçoso que se desse como provada a factualidade alegada nos seguintes artigos da petição inicial: 17.º a 19.º, 23.º, 25.º, 26.º, 33.º, 40.º, 42.º, 65.º a 70.º.
XI. Nos termos do artigo 629.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, quando seja deficiente o julgamento da matéria de facto ou indispensável a ampliação da matéria de facto, o Tribunal de Segunda Instância anula a decisão proferida na primeira instância.
XII. Outra da matéria alegada na petição inicial e que ainda não se encontra provada nesta fase (artigos 15.º a 19.º,24.º a 32.º,34.º a 41.º, 43.º a 45.º, 50.º, 51.º, 53.º a 64.°, 66.º a 69.º da petição inicial) consta do processo administrativo instrutor, a que a Recorrente teve acesso no processo de recurso contencioso de anulação da decisão do Chefe do Executivo de declarar a caducidade da concessão, devidamente identificado nos Factos Provados.
XIII. A demais matéria de facto alegada na petição inicial deve ser objecto de requerimento probatório.
XIV. Nos termos dos artigos 430.° e 431.° do Código de Processo Civil, só após o Tribunal decidir qual a matéria assente e qual a matéria controvertida é que as partes são notificadas para requererem as provas.
XV. Em face de todo o referido, bem se vê que há matéria alegada na petição inicial que deveria ter sido julgada provada, dentro das várias soluções plausíveis de direito, e não o foi, assim o impondo o disposto no artigo 562.°, n.º 3, do Código de Processo Civil.
XVI. E havia matéria controvertida a carecer da parte do Tribunal a quo a sua identificação concreta, nos termos do artigo 430.°, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, o posterior requerimento de prova, nos termos do artigo 431.°, n.º 1, do Código de Processo Civil, e a ulterior instrução, nos termos dos artigos 433.° e ss. do Código de Processo Civil.
XVII. Ao assim não ter procedido, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto provada, em violação do disposto no artigo 562.°, n.º 3, da do Código de Processo Civil e, ao não identificar a matéria controvertida, em erro de julgamento com violação do disposto nos artigos artigo 430.°, n.º 1, alínea b), 431.°, n.º 1, e 433.° e ss. do Código de Processo Civil.
XVIII. Impõe-se a modificação da decisão de facto, nos termos do artigo 629.°, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, quanto aos factos alegados nos artigos 17.° a 19.°,23.°,25.°,26.°,33.°,40.°,42.°,65.° a 70.° da petição inicial e a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo para que proceda à selecção da matéria de facto e ulteriores passos processualmente previstos quanto à matéria de facto controvertida ainda carecida de prova, nos termos do artigo 629.°, n.º 4, do Código de Processo Civil, com vista à ampliação da decisão sobre a matéria de facto.
XIX. A actuação de uma das partes no contrato no decurso da vigência do contrato é uma actuação contratual.
XX. Se não há dúvidas de que os poderes conferidos pelo artigo 167.° do Código do Procedimento Administrativo configuram actos administrativos contratuais, fora do exercício desses poderes a relação contratual é "paritária, que se compõe de direitos e de deveres e que se desenrola segundo o esquema do consenso ou do pactum" .
XXI. O vínculo obrigacional é complexo, abrangendo o dever de prestar o que foi expressamente previsto no contrato (cfr. artigo 391.° do Código Civil), quer os deveres secundários de prestação (prestações autónomas com o fim de completar a prestação principal), quer os "deveres acessórios, impostos através do princípio da boa fé, que se destinam a permitir que a execução da prestação corresponda à plena satisfação do interesse do credor e que essa execução não implique danos para qualquer das partes" , entre outras.
XXII. Estes deveres, ancorados no princípio da boa fé, consubstanciam verdadeiras regras de conduta, positivadas no artigo 752.°, n.º 2, do Código Civil.
XXIII. Na execução do contrato de concessão celebrado, as partes estão sujeitas a deveres de boa fé por aplicação do artigo 50.° da Lei n.º 6/80/M, e do artigo 41.° da Lei n.º 10/2013, e também por aplicação do artigos 8.° e 173.°, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo).
XXIV. Verificando-se a sua inobservância "há fundamento de responsabilidade civil obrigacional.
XXV. O incumprimento dos deveres obrigacionais que lhe eram impostos por parte do concedente/RAEM dá, assim, lugar, à responsabilidade contratual como acima demonstrado, por violação do disposto no artigo 752.°, n.º 2, do Código Civil (e artigos 8.° e 173.°, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo)
XXVI. O artigo 477.°, n.º 1, do Código Civil, não pode ser interpretado de modo a abranger, ad nutum, o incumprimento contratual: o devedor que não cumpra integra, tecnicamente, a previsão de incumprimento do artigo 787.° do Código Civil e não a de violação ilícita do direito alheio.
XXVII. Não há duas RAEM, havendo uma só, do mesmo modo que havia um só Território de Macau, e não dois.
XXVIII. A RECORRENTE imputa actos ao concedente porque foi o concedente que os praticou.
XXIX. Ao assim não ter entendido e ter rejeitado a responsabilidade contratual, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nos artigos 394.°, n.º 1, alínea a), parte final, do Código de Processo Civil, 752.°, n.º 2, do Código Civil e artigos 8.° e 173.°, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo.
XXX. Nos termos do artigo 6.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 28/91M, de 22 de Abril, "o direito de indemnização por responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos, dos titulares dos seus órgãos e dos agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo o direito de regresso, prescreve nos termos do artigo 491.° do Código Civil".
XXXI. Nos termos do artigo 491.°, n.º 1, do Código Civil, "o direito de indemnização prescreve no prazo de 3 anos, a contar da data em que o lesado teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, embora com desconhecimento da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso".
XXXII. A prescrição não pode ocorrer antes de terem lugar os respectivos pressupostos: o facto voluntário do agente; a ilicitude; a culpa (imputação do facto ao agente a título de dolo ou mera culpa); o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. artigo 477.°, n.º 1, do Código Civil).
XXXIII. É também este o conteúdo do artigo 299.º, n.º 1, do Código Civil: "o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido", expressão que "tem de ser interpretada no sentido de a prescrição se iniciar quando o direito estiver em condições (objectivas) de o titular poder actuar, portanto, desde que seja possível exigir do devedor o cumprimento da obrigação".
XXXIV. Foi só com o acto de declaração de caducidade que a Recorrente pôde conhecer os pressupostos da responsabilidade civil da RAEM.
XXXV. Tendo em consideração as discussões que antecederam a aprovação e as circunstâncias da aprovação da Lei n.º 10/2013 e, bem assim, os Acórdãos do TSI, de 24/11/2016, processo n.º 1074/2015, de 02/03/2017, processo n.º 433/2015, e o Acórdão do TUI de 01/11/2016, processo n.º 55/2016 (que consideraram a caducidade como caducidade-sanção e não como caducidade-preclusão), a RECORRENTE não poderia adivinhar o entendimento jurisprudencial posterior que que as concessões terminam no termo do seu prazo e que a declaração de caducidade não produz qualquer efeito determinante dessa caducidade.
XXXVI. Esse entendimento só veio a ser expresso no Acórdão do TUI de 23/05/2018, processo n.º 7/2018 (irrelevante para efeitos do termo inicial do prazo de prescrição nos presentes autos), de que a RECORRENTE não foi parte.
XXXVII. Pelo que nunca a Recorrente podia ter conhecimento dos pressupostos constitutivos da indemnização em 20/06/2016, mas apenas a partir do momento em que foi declarada a caducidade do contrato de concessão, em 27/03/2017, através de acto publicado no Boletim Oficial n.º 14, II Série, de 05/04/2017, notificado à Recorrente em 18/04/2017.
XXXVIII. A todo o referido acresce o disposto no artigo 315.°, n.º 1, do Código Civil, segundo o qual a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence, voltando a contar-se com o trânsito em julgado da decisão proferida, nos termos do artigo 319.º, n.º 1, do Código Civil.
XXXIX. A impugnação judicial do acto, cujo prazo é mais curto, é um indicador preciso de que o impugnante pretende exercer o seu direito de ressarcimento, caso não obtenha uma completa reparação por via daquele meio impugnatório.
XL. Ao assim não ter entendido, tendo julgado a prescrição da acção na parte em que se funda em responsabilidade extracontratual, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nos artigos 299.°, n.º 1,315.°, n.º 1,491.°, n.º 1, do Código Civil e artigo 116.° do Código de Processo Administrativo Contencioso.
XLI. Houve uma prestação realizada pela RECORRENTE finalisticamente dirigida à obtenção do direito efectivo ao aproveitamento, que não obteve, do lado do concedente/RAEM a correspondente contraprestação, visto que o concedente/RAEM impediu, por diversas vias, o aproveitamento industrial e também não praticou os actos necessários a permitir o aproveitamento habitacional.
XLII. O que dá origem a uma situação de enriquecimento sem causa, nos termos do artigo 467.° do Código Civil.
XLIII. Ao assim não ter decidido, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto no artigo 467.° do Código Civil.
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Região Administrativa Especial de Macau (澳門特別行政區), representada pelo MP, ofereceu a resposta constante de fls. 281 a 299, tendo formulado as seguintes conclusões:
A. 原審法院依據《民事訴訟法典》第429條第1款b)項的規定,基於本案中無需更多證據即可審理本案的實體問題及被上訴人提出的永久抗辯而作出清理批示-判決(saneador-sentença)。
B. 這是基於即使上訴人主張的事實版本獲得證實,又或者按照訴辯書狀階段後雙方無爭議的事實事宜,以該等(已確定)事實作為事實依據足以對本案實體問題及永久抗辯作出決定。
C. 在無需進行調查證據及辯審和審判聽證階段下,在清理批示-判決中並不會亦不能指出哪些為不獲證實的事實。
D. 上訴人指稱被上訴判決絕對欠缺說明理由導致《民事訴訟法典》第571條第1款b)項規定的無效瑕疵不能成立。
E. 根據《民事訴訟法典》第430條第1款,只有當訴訟程序必須繼續進行,亦即法官仍未能依據《民事訴訟法典》第429條第1款的規定判處原告全部請求成立、又或裁定延訴或永久抗辯理由成立而駁回整個訴訟或駁回全部請求,才需要適用《民事訴訟法典》第430條第1款的規定,對訴訟雙方提出的法律問題之各個可予接受之解決方法篩選出重要之事實事宜,包括指出已證事實及調查基礎。
F. 被上訴判決所認定的事實事宜,正如原審法院指出,是基於被告/被上訴人於答辯狀中承認以及基於已刊登於公報上的各批示所載的明顯事實而認定,而上訴人對該等被認定為既證事實亦沒有爭議。
G. 對於本案的實體問題-上訴人主張的合同責任,按照被上訴判決的說明理由,清楚可見原審法院是基於原告損害賠償請求並不能適用合同責任制度下而駁回有關請求。
H. 此外,對於不當得利的問題,原審法院明確指出基於第10/2013號法律第168條規定的土地批給失效的效果-已支付的溢價金及在土地上作出的任何改善物一概歸澳門特區而承批人無權獲得補償或賠償,亦即是說,法律已明確規定被上訴人合法地保留上訴人所請求返還的溢價金及有開發土地所作出的開支費用,並不存在被上訴人不合理得利的原因,因而駁回此補充請求。
I. 最後,就關於主張非合同民事責任的問題,被上訴人於答辯中明確提出依據非合同民事損害賠償的時效已告屆滿的永久抗辯,原審法院在法律理據中說明了應以土地批給合同的租賃期屆滿之日為起算《民法典》第491條規定的三年時效,以及本案並不適用第28/91/M號法令第6條第2款規定的情況,按照被上訴判決所確定的既證事實,足以裁定上述永久抗辯成立。
J. 毫無疑問,一方面,原審法院駁回上訴人以合同責任及不當得利為名義的賠償請求以及裁定永久抗辯成立,所依據的既證事實足以作出上述決定;另一方面,即使上訴人聲稱本案尚有其他爭議的事實-尤其主張作為合同不履行的事實-獲得證實,亦無可避免地基於不適用合同責任制而最終亦是敗訴後果﹗
K. 原審法院並沒有忽略《民事訴訟法典》第430條第1款規定的“根據對有關法律問題之各個可予接受之解決方法(...)”,相反,原審法院已逐一分析了上訴人所主張解決本案實質問題(請求)的各法律方案,而且在無需進行調查證據和辯論及審判階段下,單純基於訴辯書狀後已無爭議的事實,足以對實質問題立即作出裁決。
L. 基於此,上訴人主張被上訴判決違反《民事訴訟法典》第429條第1款b)項及第430條第1款規定理由明顯不成立。
M. 本案被上訴判決根據《民事訴訟法典》第429條第1款b)項規定,直接對案件的實質問題及永久抗辯作出審理,而被上訴判決視為既證事實,足以作為直接審理該等問題的事實依據,為此,並不存在事實事宜不足。
N. 本案中,原審法院僅是基於訴辯書狀中毫無爭議的、以及對於其解釋及適用有關法律屬重要的事實確定為既證事實,嚴格而言,並不存在事實事宜審理,更不存在事實事宜審理存在錯誤。
O. 上訴人主張應視為既證事實或應獲得證實的事實,對於被上訴判決作出直接審理並不重要,又或即使獲得證實也不會改變原審法院的法律理據-尤其上訴人認為應界定為“合同不履行”的事實。
P. 無需贅言,上訴人主張事實事宜不足的理由亦不能成立。
Q. 本案中,上訴人主張被侵犯或妨礙行使-土地批給權利-是一項具對世效力的物權,倘若(純粹假設)認為存在上訴人所指稱的侵犯或妨礙,不論針對被上訴人還是第三人,應訴諸及適用《民法典》第1235及1240條規定的所有權保護之訴而排除該等侵犯,並就倘有的損害按照非合同民事損害賠償責任制度追討。
R. 相應地,對於上訴人的土地利用權的尊重及保護,並非因為存在土地批給合同下僅對被上訴人存在約束義務,而是一種普遍約束所有人的義務。
S. 本案中,上訴人主張被上訴人妨礙其行使上述的地上權(興建建築物的權能),並不能因為“剛好”與被上訴人存在土地批給合同關係而改變了該權利的屬性-物權,被上訴人如同第三人一樣,亦不會因此而將承擔的普通約束義務變更為相對性義務。
T. 其次,本案土地批給合同中,並沒有規定被上訴人承擔有關批給地段的基礎建設,又或者哪些基礎建設須由被上訴人承擔興建。事實上,上訴人只是籠統聲稱有關批給土地欠缺基礎建設,但沒有指明欠缺哪些具體的基礎建設而無法對土地進行利用、以及依據哪一合同條款規定哪些基礎建設應由被上訴人承擔。
U. 從上述上訴人一直以來的行為可見,即使(純粹)假設欠缺基礎建設,上訴人清楚知悉並非源於批給合同所產生的義務。而且,按照一般經驗法則及常理,基礎建設乃涉及一定範圍及規模的地區進行都市化建設,是行政當局追求公共利益所肩負的重要社會責任之一,受益的必須是普通市民大眾,不能僅僅因為“合同”才存在或產生該義務,相對享有利益狀況亦不可能僅為上訴人,履行該社會責任(城市規劃或基礎建設)不可能作為合同權利的標的,亦不會個別地針對單一土地進行所謂基礎建設。
V. 為此,即使(純粹)假設如上訴人主張存在欠缺基礎建設,不論從本案土地批給合同條款,還是作為行政當局追求公共利益的社會責任,均不能將基礎建設作為相對於上訴人才為權利人的合同義務。
W. 至於主張違反合同附隨義務方面,上訴人主張的一系列事實,諸如所圍繞的都是行政當局沒有對有關土地批給合同進行修訂、沒有核准有關路環都市規劃、又或遲延發出有關規劃條件圖等等,上訴人將之一律歸為善意及忠誠地履行合同的附隨義務。
X. 附隨義務本身是為著能執行合同目的而存在,相反,上訴人指稱被上訴人的上述一系列行為,根本與土地批給合同完全無關係,而且,上訴人的行為早已脫離了執行原土地批給合同。
Y. 上訴人自1993年12月向行政當局回覆表示願意將土地用途改為住宅用途後,即使在明知沒有獲得有權限實體(當時總督)作出有關修改批給合同的決定下,清楚表明已完全放棄了工業用途的利用。質言之,上訴人不斷聲稱行政當局一直拒絕修訂土地批給合同或不發出規劃條件圖的事實,又如何妨礙了土地利用-合同規定作工業用途的目的?
Z. 值得指出的是,雖然字面上表示“修訂”合同,但實際上一旦土地批給合同的土地用途改變-由原來的工業用途轉為住宅用途,其整個合同標的即有實質上的變更,所涉及合同內容諸如土地用途的方式、條件、期間、溢價金、特別負擔等等均完全不同,可見即為另一土地批給合同的法律關係-根本不可能如上訴人所主張被上訴人行使《行政程序法典》第167條a)項的權力。
AA. 既然合同的附隨義務目的是實現合同的目的,本案中,土地批給合同的目的一直是利用有關土地作工業用途,為此,上訴人主張一系行政當局如何違反善意及忠誠地拒絕修訂合同或不發出用作住宅用途的規劃條件圖,與實現合同本身的目的完全毫不相干,所謂的“附隨性”亦不存在。
BB. 無容贅言,上訴人主張違反合同善意及忠誠的附隨義務亦不能成立。
CC. 綜上所述,起訴狀中所主張的被上訴人的違反事實,並不能適用合同責任制度。
DD. 本案中,從起訴狀的內容可見,上訴人主張造成其損失的事實,簡言之,是土地批給合同期間屆滿以及行政長官作出宣告土地批給失效的決定之前,行政當局的作為及不作為事實導致產生所主張的損害。
EE. 明顯地,上訴人主張造成其損害的事實(factos danosos),是一些其聲稱於土地批給期間屆滿之前,由被上訴人作出的妨礙其未能在批給期限內完成對涉案土地的利用的行為;顯然該等行為是完全獨立於涉案土地的批給失效或行政長官作出土地批給合同失效的宣告。
FF. 無論如何,於本案土地批給合同屆滿之時,即於2016年06月20日,上訴人毫無疑問地知悉已無法對土地進行利用興建任何建築物,不論是工業還是住宅用途亦然,而且,上訴人所主張的損害亦是以當時已支付的溢價金、地租、為準備發展有關地段而已支付的開支、以及於批給期間內已建成建築物的所失利潤價值。
GG. 也就是說,至少自本案土地批給期間屆滿之時,即2016年06月20日開始,上訴人清楚知悉其所主張的損害事實(且已產生所主張的損害)存在及已發生。
HH. 儘管上訴人不斷力陳僅在行政長官作出宣告土地批給失效的決定才知悉損害的出現,然而,其理據只不過是針對宣告土地批給失效的法律分析,以其“法律上的認知”支持其尚未時效屆滿的觀點。
II. 綜上所述,根據第28/91/M號法令第6條第1款準用《民法典》第491條第1款規定,原告主張的損害賠償權利的時效,至少自本案土地批給合同期限屆滿之日(即2016年06月20日)起計三年,於2019年06月19日已告屆滿。
JJ. 為此,被上訴判決裁定被上訴人提出的時效已屆滿的永久抗辯理由成立,並無任何非議之處。
KK. 第10/2013號法律第168條的字面含義上,並沒有對應如上訴人主張那樣,只有在承租人不履行而宣告失效的懲罰性質。誠然,該條款明確規定失效的效果-支付的溢價金及任何改善物歸澳門特區所有。
LL. 對於土地批給失效情況下,法律已明確訂明解決方案-已支付的溢價金及任何改善物一律歸澳門特區,換言之,被上訴人因此得益是合法的,不存在“無合理理由”的不當得利前提。
MM. 上訴人主張違反《民法典》第467條規定的理據亦不成立。
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre analisar e decidir.
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II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS
São os seguintes elementos considerados assentes pelo TA, extraídos do processo principal e do processo administrativo com interesse para a decisão da causa:
- A Autora A LIMITADA, foi titular de uma concessão por arrendamento de um terreno, com a área de 5,980 m2, designado por lote SQ2, situada na Ilha de Coloane, na zona industrial de Seac Pai Van, destinado à construção de uma unidade de produção de asfalto e armazenamento de equipamento e materiais de construção.
- A dita concessão por arrendamento foi autorizada, com dispensa de hasta pública, pelo Despacho n.º 167/GM/89, publicado no n.º 4 do suplemento do Boletim Oficial de Macau, n.º 52, de 29/12/1989.
- Por escritura pública outorgada em 21/6/1991, e registada na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXX, o então Território concedeu à Autora por arrendamento o terreno acima referido.
- Fixou-se, no referido contrato, a cláusula segunda – Prazo do arrendamento, com o seguinte teor:
“1. O arrendamento é válido pelo prazo de 25 anos, contados a partir da data da outorga da escritura pública do presente CONTRATO.
2. O prazo do arrendamento fixado no número anterior, poderá, nos termos da legislação aplicável e mediante condições a acordar, ser sucessivamente renovado até 19 de Dezembro de 2049.”
- E a cláusula terceira – Aproveitamento e finalidade do terreno, tem o seguinte teor:
“O TERRENO será aproveitado para a instalação de uma unidade de produção de asfalto, ficando a área descoberta remanescente destinada a armazenamento de equipamento e de materiais e para a construção de uma casa para a residência dos guardas.
- E além disso, a cláusula quinta – Prazo de aproveitamento, tem o seguinte teor:
“1. O aproveitamento do TERRENO deverá operar-se no prazo global de 24 meses, contados a partir da publicação no Boletim Oficial do despacho que autoriza o presente CONTRATO.
2. Sem prejuízo do estipulado no número anterior, o SEGUNDO OUTORGANTE deverá, relativamente à apresentação dos projectos, observar os seguintes prazos:
a) 60 (sessenta) dias, contados da data da publicação do despacho mencionado no número anterior, para a elaboração e apresentação do anteprojecto de obra (projecto de arquitectura);
b) 90 (noventa) dias, contados da data da notificação da aprovação do anteprojecto de obra, para a elaboração e apresentação do projecto de obra (projecto de fundações, estruturas, águas, esgotos, electricidade e instalações especiais);
c) 45 (quarenta e cinco) dias, contados da data da notificação da aprovação do projecto da obra, para o início das obras.
3. Para efeitos do cumprimento dos prazos referidos no número anterior, os projectos só se considerarão efectivamente apresentados quando completa a devidamente instruídos com todos os elementos.
4. Para efeitos da contagem do prazo referido no número 1 desta cláusula entender-se-á que, para a apreciação de cada um dos projectos referidos no N.º 2, os Serviços competentes observarão um prazo de 60 (sessenta) dias.
5. Caso os Serviços competentes não se pronunciem no prazo fixado no número anterior, o SEGUNDO OUTORGANTE poderá dar início à obra projectada 30 (trinta) dias após comunicação por escrito à DSOPT, sujeitando, todavia, o projecto a tudo o que se encontra disposto no RGCU ou quaisquer outras disposições aplicáveis e ficando sujeito a todas as penalidades previstas naquele RGCU, com excepção da falta de licença. Todavia, a falta de resolução, relativamente ao anteprojecto de obra, não dispensa o SEGUNDO OUTORGANTE da apresentação do respectivo projecto de obra.”.
- Mais se estabeleceu a cláusula sexta – Encargos Especiais, com o seguinte teor:
“Constituem encargos especiais a suportar exclusivamente pelo SEGUNDO OUTORGANTE a desocupação do TERRENO e remoção do mesmo de todas as construções e materiais aí existentes.”.
- Por Despacho do Chefe do Executivo, de 27/03/2017, tornado público pelo Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 26/2017, publicado no Boletim Oficial n.º 14, II Série, de 5/4/2017, foi declarada a caducidade da concessão do terreno, com o seguinte teor:
“Através de escritura pública de 21 de Junho de 1991, exarada de fls. 50 e seguintes do livro 284 da Direcção dos Serviços de Finanças, em conformidade com o Despacho n.º 167/GM/89, publicado no 4.º Suplemento ao Boletim Oficial de Macau n.º 52, de 29 de Dezembro de 1989, foi titulada a concessão, por arrendamento e com dispensa de concurso público, do terreno com a área de 5 980 m2, designado por lote «SQ2», situado na ilha de Coloane, na zona industrial de Seac Pai Van, a favor da «A, Limitada», com sede em Macau, na XXX, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis com o n.º XXX a fls. XXX do livro C8.
A concessão foi registada na Conservatória do Registo Predial, adiante designada por CRP, ficando o terreno descrito sob o n.º XXX e o direito resultante da concessão inscrito a favor daquela sociedade sob o n.º 30 047F.
De acordo com o estipulado na cláusula segunda do contrato de concessão, o arrendamento do terreno é válido pelo prazo de 25 anos, contados a partir da data da outorga da respectiva escritura pública.
Segundo o estabelecido na cláusula terceira do mesmo contrato, o terreno seria aproveitado com a instalação de uma unidade de produção de asfalto, ficando a área descoberta remanescente destinada a armazenamento de equipamento e de materiais e para a construção de uma casa para a residência dos guardas.
O prazo de arrendamento do aludido terreno expirou em 20 de Junho de 2016 e este não se mostrava aproveitado.
De acordo com o disposto no artigo 44.º e no n.º 1 do artigo 47.º da Lei n.º 10/2013 (Lei de terras), aplicável por força do preceituado no artigo 215.º desta lei, a concessão por arrendamento é inicialmente dada a título provisório, por prazo que não pode exceder 25 anos e só se converte em definitiva se, no decurso do prazo fixado, forem cumpridas as cláusulas de aproveitamento previamente estabelecidas e o terreno estiver demarcado definitivamente.
As concessões provisórias não podem ser renovadas nos termos do n.º 1 do artigo 48.º da Lei n.º 10/2013 (Lei de terras).
Neste contexto, dado que a concessão em causa não se tornou definitiva, é verificada a sua caducidade pelo decurso do prazo.
Assim,
Usando da faculdade conferida pelo artigo 64.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau e nos termos do artigo 167.º da Lei n.º 10/2013 (Lei de terras), o Secretário para os Transportes e Obras Públicas manda:
1. Tornar público que por despacho do Chefe do Executivo, de 27 de Março de 2017, foi declarada a caducidade da concessão do terreno com a área de 5 980 m2, designado por lote «SQ2», situado na ilha de Coloane, na zona industrial de Seac Pai Van, descrito na CRP sob o n.º XXX, a que se refere o Processo n.º 45/2016 da Comissão de Terras, pelo decurso do seu prazo, nos termos e fundamentos do parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 20 de Setembro de 2016, os quais fazem parte integrante do referido despacho.
2. Em consequência da caducidade referida no número anterior, as benfeitorias por qualquer forma incorporadas no terreno revertem, livres de quaisquer ónus ou encargos, para a Região Administrativa Especial de Macau, sem direito a qualquer indemnização por parte da «A, Limitada», destinando-se o terreno a integrar o domínio privado do Estado.
3. Do acto de declaração de caducidade cabe recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância, no prazo de 30 dias, contados a partir da sua notificação, nos termos da subalínea (1) da alínea 8) do artigo 36.º da Lei n.º 9/1999, republicada integralmente pelo Despacho do Chefe do Executivo n.º 265/2004, e da alínea a) do n.º 2 do artigo 25.º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 26.º, ambos do Código do Processo Administrativo Contencioso, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M, de 13 de Dezembro.
4. A referida sociedade pode ainda reclamar para o autor do acto, Chefe do Executivo, no prazo de 15 dias, nos termos do n.º 1 do artigo 148.º e do artigo 149.º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/99/M, de 11 de Outubro.
5. O processo da Comissão de Terras pode ser consultado pelos representantes da mencionada sociedade na Divisão de Apoio Técnico da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, sita em Macau, na Estrada de D. Maria II, n.º 33, 18.º andar, durante as horas de expediente, podendo ser requeridas certidão, reprodução ou declaração autenticada dos respectivos documentos, mediante o pagamento das importâncias que forem devidas, nos termos do artigo 64.º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/99/M, de 11 de Outubro.
6. O presente despacho entra imediatamente em vigor.
30 de Março de 2017.
O Secretário para os Transportes e Obras Públicas, Raimundo Arrais do Rosário.”
- Dessa decisão recorreu a Autora para o Tribunal de Segunda Instância, que veio a julgar improcedente o recurso interposto, por Acórdão n.º 419/2017, de 18/10/2018.
- Seguidamente, por Acórdão do Tribunal de Última Instância n.º 16/2019, de 13/03/2019, foi negado provimento ao recurso interposto do referido Acórdão do TSI.
- Em 05/03/2020, a Autora intentou a presente acção no Tribunal Administrativo.
* * *
IV - FUNDAMENTOS
Como o presente recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo, importa ver o que este decidiu. Este proferiu a douta decisão com base nos seguintes argumentos:
I. Relatório
Autora A LIMITADA melhor id. nos autos,
Vem intentar a presente
Acção sobre Contratos Administrativos,
Contra
Ré, Região Administrativa Especial de Macau,
com base nos seguintes fundamentos constantes da petição inicial a fls. 2 a 82v dos autos:
- responsabilidade contratual, subsidiariamente,
- responsabilidade extracontratual, por factos ilícitos, e
- enriquecimento sem causa.
Concluiu pedindo que seja acção julgada procedente e a Ré condenada:
- no pagamento da quantia indemnizatória não inferior a MOP 175,910,998.00, e do montante do lucro cessante a apurar em execução da sentença, acrescidos de juros à taxa legal.1
*
Foi a acção contestada pela Ré a fls. 93 a 116 dos autos que veio a invocar a excepção da prescrição do direito de indemnização da Autora.
*
A Autora respondeu à referida excepção por réplica deduzida a fls. 189 a 202 dos autos.
*
Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade “ad causam”.
O processo é o próprio.
Inexistem nulidades, ou questões prévias que obstem a apreciação “de meritis”.
***
II. Fundamentação
1. De Facto
Para o efeito, considera-se provada a seguinte factualidade que interessa à decisão da causa:
(...)
*
A decisão sobre a matéria de facto baseou-se essencialmente nos factos reconhecidos pela Ré na contestação, os factos notórios que constavam dos despachos publicados no Boletim Oficial, e aqueles que o tribunal teve conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
*
2. De direito
1) Face ao que se alega, importa conhecer da excepção peremptória de prescrição deduzida pela Ré na contestação. Contudo, como se vê, a presente acção encontra-se estruturada, em primeira linha, no instituto da responsabilidade contratual (conforme se alega nos artigos 84.º a 177.º da petição inicial), e subsidiariamente, na responsabilidade extracontratual (conforme os artigos 178.º a 300.º) e no enriquecimento sem causa (conforme os artigos 315.º a 341.º), sendo que a prescrição invocada respeitava apenas à extracontratual. Como é natural, se se tratasse do caso da responsabilidade contratual, na aplicação do prazo ordinário de 15 anos, a prescrição do direito de indemnização de que a Autora se arroga ser titular poderia não ter sido ainda completada.
Para nós, adiantamos que não há senão uma única maneira de configurar a acção indemnizatória a propor: considerando os factos concretos alegados que integram a causa de pedir, a acção deve ser apenas fundamentada em responsabilidade extracontratual, enquanto a pretensão de responsabilizar contratualmente a Ré carece de qualquer fundamento.
Procuremos justificar esta afirmação.
2) Para sustentar a existência da responsabilidade contratual da Ré, alegou a Autora, nos artigo 99.º a 110.º da petição inicial, a prática por esta das sucessivas condutas activas ou omissivas ao longo da vigência do contrato de concessão, designadamente: fixar a cláusula contratual para o aproveitamento industrial do terreno apesar de ter reconhecido a inviabilidade dessa finalidade; prometer a alteração da concessão para fins habitacionais sem mais formalizar tal alteração mediante a modificação da escritura pública que titulava a concessão; sempre se absteve de responder às solicitações da Autora, e de rever o contrato de concessão; retardar propositadamente a emissão da Planta de Condições Urbanísticas (PCU) solicitada, na altura em que faltava apenas dois meses para o fim do prazo de concessão.
Concluiu, com base nisso, que a Ré enquanto concedente, incumpriu a obrigação contratual de execução das infra-estruturas para o aproveitamento industrial do terreno, violou os deveres contratuais de boa fé no âmbito da modificação contratual superveniente.
Em bom rigor, não se deveria afirmar a existência da responsabilidade contratual, relativamente à violação da boa fé, decorrente da frustração da expectativa na revisão da concessão para os fins habitacionais conforme havia sido prometida. Tal como reconheceu a própria Autora, a promessa da Administração sobre a alteração do aproveitamento (tal despacho de 30/8/1993 do SATOP, notificado através do ofício n.º 849/8119.1/SOLDEP/93 de 2/12/1993, conforme alegado no artigo 25.º da p.i) nunca chegou a ser formalizada com a modificação do título contratual inicial. Sendo assim, não se fala da existência do vínculo contratual quando na realidade não há nenhum contrato celebrado.
Certamente, do incumprimento por parte do promitente da promessa, depois de esta ter sido aceite pela contra-parte também pode decorrer a tutela ressarcitória, mas entende-se que as pretensões ressarcitórias por causa da quebra da vinculatividade da promessa devem ser fundadas na responsabilidade extracontratual 2. Para nós, o que se pretende aqui é fazer ressarcir os prejuízos derivados da violação de boa fé na fase de negociação para conclusão da revisão do contrato, conforme se prevê no artigo 219.º, n.º 1 do CCM, donde a prescrição da responsabilidade pela culpa in contrahendo não deixa de ser regida pela norma do artigo 491.º do CCM, aplicável por força do n.º 2 daquele artigo, que regula a prescrição da responsabilidade extracontratual, para onde remetemos para melhor exposição dos argumentos.
Quanto à responsabilidade contratual por referência ao contrato de concessão celebrado em 21/6/1991, não obstante terem sido especificados os vários actos consubstanciadores da violação do dever contratual, não foi identificada nenhuma cláusula contratual ínsita naquele contrato que se considera violada por uma série de actos da Ré. Tal dever que lhe caberia, de executar as infra-estruturas e viabilizar o aproveitamento carece da base contratual. E pelo contrário, resultava da cláusula sexta da escritura outorgada, que “Constituem encargos especiais a suportar exclusivamente pelo SEGUNDO OUTORGANTE a desocupação do TERRENO e remoção do mesmo de todas as construções e materiais aí existentes.”. Daí, parece ainda mais forçado concluir pela verificação do incumprimento contratual da Ré nos termos descritos na petição inicial.
O apuramento da existência do suposto dever contratual é a questão a ser analisada à parte. Outra questão diferente é saber se em tese, pode haver lugar ou não à responsabilidade contratual. A este respeito, parece-nos necessário descortinar o tipo de direito concreto que resultava para o concessionário daquele contrato alegadamente “incumprido” e que fora lesado pelas condutas faltosas da concedente.
Como se sabe, a responsabilidade civil contratual distingue-se da responsabilidade civil extracontratual, consoante o direito violado: a primeira “é originada pela violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico” e a segunda, “resulta da violação de um dever geral de abstenção contraposto a um direito absoluto (direito real, direito de personalidade) ”.3
No caso em apreço, poderemos reconhecer, sem grande esforço, que o conteúdo do direito que para a concessionária resultava da concessão por arrendamento do terreno, tem natureza real, sendo portanto ele um direito absoluto.
Desde logo, por força do artigo 1.º do DL n.º 51/83/M, de 26 de Dezembro, veio estabelecer-se que “O direito resultante da concessão por arrendamento ou subarrendamento de terrenos urbanos ou de interesse urbano abrange poderes de construção ou transformação, para os fins e com os limites consignados no respectivo título constitutivo, entendendo-se que as construções efectuadas se mantêm na propriedade do concessionário ou subconcessionário até expirar o prazo do arrendamento ou subarrendamento ou enquanto este não for rescindido; expirado o prazo ou operada a rescisão aplica-se o regime de benfeitorias consignado na Lei de Terras.”. (sublinhado nosso)
Como se vê, o direito de construir, constituído pela concessão por arrendamento apresenta a mesma estrutura do direito de superfície para edificar a que se refere no artigo 1417.º do CCM. Desse direito emergiria para o concessionário, um direito de propriedade sobre as construções efectuadas que “se mantêm na propriedade do concessionário ou subconcessionário até expirar o prazo do arrendamento ou subarrendamento.”.
Enquanto titular do direito de constituir, o concessionário, “proprietário das construções, tem o direito de as alienar, de constituir a propriedade horizontal em edifícios aprovados com esse fim, e de alienar ou onerar as respectivas fracções autónomas.” E além disso, “Pode ainda hipotecar não só o direito resultante da concessão que lhe dá o poder de construir sobre terreno alheio, mas também a propriedade dos edifícios (art. 1.º, 2 do cit. Dec.–Lei n.º 51/83/M)”4 .
Além disso, como sucede relativamente aos direitos reais limitados, o exercício do direito de constituir resultante da concessão por arrendamento, ao abrigo da citada norma do artigo 1.º do DL n.º 51/83/M, encontrava-se vinculado ao fim e os limites consignados no respectivo título constitutivo.
Assim sendo, deve-se afirmar que é um direito absoluto que temos no caso em apreço – o direito de construir no terreno concedido que para concessionária resultava da concessão por arrendamento. Como tal, é forçoso entender que a responsabilidade emergente da prática do acto lesivo desse direito é extracontratual. Acrescenta que é esse regime o aplicável ao caso concreto, não obstante a existência de uma relação contratual de concessão de que cada concessionário é titular.
É indiscutível que no quadro desse contrato, assim como frequentemente sucede em relação aos múltiplos contratos civis, impunha-se a cada outorgante o dever de colaborar com a sua contraparte na realização das prestações que lhe são adstritas, inclusivamente o de abster-se de condutas injustificáveis susceptíveis de perturbar o cumprimento pontual do contrato, e de lesar, por essa forma, o direito de crédito de outra parte. Contudo convém não ignorar que quando se trata de um direito real absoluto que foi violado, já não é somente um dever obrigacional de cooperação que vincula a parte contratual, é, mais do que isso, “uma obrigação passiva universal ou dever geral de abstenção que impende sobre todas as outras pessoas”5 .
Na situação vertente, não se contesta que a Ré no quadro de uma relação pautada pelo respeito por este princípio fundamental, tinha o dever de abster-se de condutas que impusessem obstáculos injustificados ao uso da concessão. Mas tal dever de abstenção não deixa de ser consumido por outro tipo de dever de alcance mais amplo, de dever geral de abstenção de toda e qualquer interferência indevida. Neste sentido, o alegado incumprimento contratual por parte da Ré deve decorrer, em última análise, da violação do dever geral de abstenção que se concretiza através dos actos que tivessem tornado impossível o exercício do poder de aproveitar o terreno, e que impedissem, por conseguinte, a conversão da concessão em definitiva dentro do prazo de concessão.
Por outro lado, também a Autora ao imputar a Ré os actos consubstanciadores da violação da boa fé (como por exemplo, a alegada falta da revisão do contrato de concessão conforme havia sido prometida, a falta da resposta tempestiva aos sucessivos pedidos da emissão da PCU, etc), não estava a dirigir-se contra a RAEM como contraparte do contrato. É óbvio que nenhum desses eventos, ainda que tivessem sido todos demonstrados, ocorreria no quadro daquela relação contratual da concessão, mas sim num contexto diferente – no âmbito do procedimento administrativo autónomo em que os órgãos administrativos actuariam, não como representante da RAEM no respectivo contrato, mas enquanto as autoridades administrativas que exercem a competência legalmente atribuída no relacionamento com o administrado, que deva ser igualmente pautado pelo respeito pelo princípio de boa fé e outros princípios fundamentais.
Pelo que a Ré apenas pode ser chamada à responsabilização mediante o instituto da responsabilidade civil extracontratual. É de concluir nesta conformidade que não pode haver lugar à indemnização com base na responsabilidade contratual da Ré, não sendo, por conseguinte, aplicável o prazo ordinário da prescrição.
3) Cumpre então saber se o invocado direito de indemnização fundado na responsabilidade civil extracontratual prescreveu por decurso do prazo previsto no disposto no artigo 491.º do CCM, ex vi o artigo 6.º, n.º 1 do DL n.º 28/91/M, de 22 de Abril.
Em entender da Ré, em síntese, que pelo menos até ao termo do prazo de arrendamento de 25 anos, em 20/6/2016, já tinham ocorrido todas as actuações alegadamente lesivas da Ré, sendo que naquele momento, a Autora estava perfeitamente ciente da impossibilidade da conclusão do aproveitamento do terreno e dos prejuízos que daí pudessem advir. Nesta linha, por ter-se verificado os requisitos de que depende o exercício do direito de indemnização em 20/6/2016, a acção de indemnização proposta em 5/3/2020 é manifestamente extemporânea, pelo decurso do prazo de 3 anos previsto no artigo 491.º do CCM.
Em contrapartida, contra-argumentou a Autora na sua réplica que os danos invocados não se concretizaria sem a prática do acto de declaração da caducidade por Chefe do Executivo em 27/03/2017 e o prazo prescricional não começa a correr antes de trânsito em julgado do processo relativo ao recurso contencioso referente ao acto do Chefe do Executivo.
Vejamos então.
3.1) A responsabilidade extracontratual por facto ilícito da entidade pública (RAEM e as demais pessoas colectivas públicas) emergente no domínio dos actos de gestão pública, encontra-se regulado pelo regime jurídico do DL n.º 28/91/M, de 22 de Abril.
De acordo com o artigo 6.º, n.º 1 do referido DL (com alteração do DL n.º 110/99/M), “O direito de indemnização por responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos, dos titulares dos seus órgãos e dos agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo o direito de regresso, prescreve nos termos do artigo 491.º do Código Civil.”.
Por sua vez, o artigo 491.º do CCM preceitua que “O direito de indemnização prescreve no prazo de 3 anos, a contar da data em que o lesado teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, embora com desconhecimento da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.” .
Ao estabelecer um curto prazo especial de 3 anos, o legislador pretendeu evitar, nas palavras do professor Vaz Serra, que “as circunstâncias do acto ou omissão danosos tenham de ser apreciadas judicialmente muito tempo após a prática desse acto ou omissão”6, e ainda determinou, sem descurar o interesse legítimo do credor em não ver prescrito o seu direito antes de poder exercê-lo, que este prazo só se conta a partir da data em que o lesado teve conhecimento ou – mais exigente do que consta da previsão normativa do Código Civil português – deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete 7 8 e da pessoa do responsável.
Numa tentativa de precisar o alcance que se deva atribuir à expressão imprecisa “teve conhecimento (e deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete)”, consideravam os autores portugueses ser suficiente que o lesado conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, ou seja, o facto ilícito, a culpa, o dano e a relação de causalidade entre o facto e o dano, soube ou deveria ter sabido ter direito de indemnização pelos danos que sofreu.9 Mais do que isso, ainda segundo esclarecido pela jurisprudência portuguesa, o dies a quo relevante para marcar o início do prazo de prescrição de três anos é aquele “em que sejam conhecidos do lesado os pressupostos da acção de indemnização, traduzidos nos seus elementos fácticos, e não do conhecimento judicial da verificação do facto lesivo e sua qualificação, v.g. como facto ilícito, em acção que, para este último efeito, tenha sido proposta.”10.
Uma outra nota que importa referir é que a lei tornou o início do prazo dependente do conhecimento do dano, mas não da sua extensão integral. A solução consagrada é justificada “não apenas pelo regime do CC quanto ao âmbito e natureza dos danos indemnizáveis e objecto da condenação” (cfr. artigos 558.º, n.º 2, primeira parte, quanto aos danos futuros previsíveis, 560.º, n.º 6 e 561.º do CCM), mas “ainda pela circunstância de o CC e o CPC permitirem ao lesado a dedução de um pedido genérico de indemnização” (cfr. artigos 563.º do CCM e 392.º, n.º 1, alínea b) do CPC), “a ampliação do pedido no decurso do processo” (cfr. artigos 563.º, segunda parte e 564.º, n.º 2 do CPC), e “o incidente de liquidação” (cfr. artigos 308.º a 310.º do CPC).11
Na RAEM, a jurisprudência mais recente do Tribunal de Última Instância tem-se inclinado no mesmo sentido quanto à prescrição do direito de indemnização, nos termos que se segue:
“Aqui, cabe salientar quando se determina que o prazo de prescrição se conta do momento em que o lesado teve conhecimento do seu direito, quer o preceito em causa significar (apenas) que tal prazo é contado a partir da data em que o lesado, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, soube ter direito a indemnização pelos danos que sofreu, e não – cabe sublinhar – da “consciência da possibilidade legal do ressarcimento”; (cfr., v.g., A. Varela in, “Das Obrigações em geral”, pág. 596).
Assim, evidente se apresenta que o lesado tem conhecimento do direito que invoca - para o efeito do início da contagem do prazo de prescrição – quando se mostra detentor dos elementos que integram a responsabilidade civil, não estando o início da contagem do prazo (especial de 3 anos) dependente do “conhecimento jurídico” pelo lesado do respectivo direito, supondo, antes, e apenas, que o lesado conheça os “factos constitutivos” desse direito, (ou seja, que saiba que o acto foi praticado, ou omitido, por alguém – saiba ou não do seu carácter ilícito – e que dessa prática, ou omissão, resultaram, para si, danos).” (veja-se o Acórdão do Tribunal de Última Instância, n.º 183/2020, de 29/9/2021, sublinhado nosso).
3.2) Na situação vertente, pelo que se referiu na alínea 2) supra, o direito de indemnização que a Autora invoca decorre, em última instância, da lesão do seu direito de construir, concretizada por sucessivas actuações culposas da Ré, que tornaram impossível a conclusão do aproveitamento do terreno dentro do prazo da concessão. Temos por certo que esses factos ilícitos constitutivos do direito deveriam ter ocorrido na vigência do prazo do contrato de concessão, de que a Autora teve efectivo conhecimento, segundo o que se afirmou.
Além do mais, disso ela não pôde deixar de estar ciente. Como se sabe, não tendo ainda a concessão sido convertida em definitiva por não se mostrar concluído o aproveitamento dentro do prazo fixado para este efeito, não era renovável a concessão provisória, ao abrigo das normas do artigo 48.º, n.º 1, ex vi o artigo 215.º da Lei n.º 10/2013 (Lei de Terras). Por consequência, deveria operar-se, no fim da vigência da concessão por arrendamento, automaticamente, ope legis, a caducidade da concessão pelo decurso do prazo (Neste sentido, entre outros, cfr. os Acórdãos do Tribunal de Última Instância, processo n.º 118/2019, de 29/11/2019, e do Tribunal de Segunda Instância, processos n.ºs 354/2017, de 7/5/2020 e 578/2018, de 21/3/2019).
É verdade que a referida Lei n.º 10/2013 exige que a caducidade das concessões seja declarada por despacho do Chefe do Executivo, mas é também isento de dúvida que este acto administrativo tem natureza meramente declarativa e não constitutiva, porquanto a causa de caducidade constitui um facto em si mesmo extintivo, realidade essa pré-existente inalterável por força da declaração posterior da Administração. Foi isso que se poderia constatar numa situação paradigmática de “caducidade-preclusão”, que depende “apenas do decurso do prazo e da constatação objectiva da falta de apresentação da licença de utilização do prédio por parte do concessionário” (Veja-se o Acórdão do Tribunal de Última Instância proferido no processo n.º 7/2018 de 23/5/2018). Aliás, quanto a isto, a jurisprudência do nosso Tribunal mais alto já é consolidada no sentido de qualificar a caducidade por decurso do prazo de arrendamento como caducidade-preclusão (cfr. e.g. o Acórdão do Tribunal de Última Instância proferido no processo n.º 145/2020, de 4/12/2020).
Voltamos ao caso em apreço:
Da cláusula segunda do contrato de concessão resultou que o arrendamento é válido pelo prazo de 25 anos, contados a partir da data da outorga da respectiva escritura pública (21/06/1991), isto é, até à data de 20/06/2016. Portanto, seria incontroverso que nesta última data, deveria ocorrer o efeito extintivo decorrente da caducidade da concessão. Por outras palavras, foi na data de 20/06/2016, e não na posterior data do despacho do Chefe do Executivo, que se tornou definitivamente impossível a conclusão do aproveitamento, devendo-se a partir dela, e não desse despacho, contar o prazo prescricional de 3 anos.
3.3) A que acresce que a prescrição se consumou, sem que se tenha verificado as causas que determinam sua suspensão ou interrupção, previstas nos artigos 311.º a 319.º do CCM.
Não se deve afirmar neste caso que a interposição do recurso contencioso do acto de declaração da caducidade da concessão tinha efeito interruptivo do prazo em curso. Quanto a isto, cremos que a norma do artigo 6.º, n.º 2 do DL n.º 28/91/M (com alteração do DL n.º 110/99/M) não seja aplicável ao caso concreto por modo a permitir ainda a propositura da acção de indemnização dentro dos seis meses a contar desde o trânsito em julgado da decisão do Tribunal de Última Instância, datada de 13/3/2019.
Conforme resulta explicitamente da referida norma do artigo 6.º, n.º 2 (“…Se o direito de indemnização resultar da prática de acto recorrido contenciosamente, a prescrição que, nos termos do n.º 1, devesse ocorrer em data anterior não terá lugar antes de decorridos 6 meses sobre o trânsito em julgado da respectiva decisão.”), e no sentido equivalente, do disposto no artigo 116.º do CPAC, “Não pode ser proposta acção para efectivação de responsabilidade civil extracontratual, por danos causados por acto administrativo ilícito de que tenha sido interposto recurso contencioso, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão”, a extensão do prazo de seis meses a partir do trânsito em julgado da decisão sobre o recurso contencioso interposto do acto aproveita apenas à acção indemnizatória fundada no acto administrativo ilegal que funciona como facto constitutivo da responsabilidade. Porquanto nesta situação se justificará a subsidiariedade da acção indemnizatória em relação ao recurso contencioso.
Portanto, o que se configura aqui é uma causa específica da interrupção do prazo de prescrição, ao lado das causas previstas nos termos gerais do artigo 315.º do CCM, que faz depender o exercício do direito de indemnização da prévia impugnação contenciosa do acto administrativo lesivo, porque pressupõe que o direito se pudesse ter extinguido, pelo decurso do prazo do seu exercício, na pendência do recurso contencioso ou logo depois do trânsito em julgado da sentença nele proferida.
Contudo, por natureza das coisas, se o direito de indemnização não tem por base a existência do acto administrativo ilegal, mas sim as operações materiais ou actuações físicas administrativas, o seu exercício já não depende da impugnação prévia do acto administrativo.
Na mesma linha do ensinamento dos professores Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadinha quanto à autonomia da acção de indemnização relativamente ao processo impugnatório “Com efeito, se o lesado puder exercer o direito de indemnização em processo autónomo, independentemente da averiguação prévia da legalidade do acto administrativo (como decorre, com toda a evidência, do disposto no artigo 38.º), não faz sentido que o prazo prescricional fique subordinado às vicissitudes do processo impugnatório, se este tiver sido também interposto, a ponto de se conferir ao lesado o benefício de prorrogação do prazo para além da decisão definitiva a proferir neste processo” 12 que apesar de não se reportar directamente ao caso dos autos, não deixaria de ser uma boa referência.
Considerando que a acção instaurada pode fundar-se tanto no acto administrativo ilegal como nas actuações administrativas materiais ilícitas que consubstanciam a prática do acto administrativo (A este propósito, veja-se o Acórdão do Tribunal de Última Instância, n.º 183/2020, de 29/9/2021, que considerou prescrito o direito de indemnização originado nos factos constitutivos autónomos face ao acto administrativo do Chefe do Executivo), parece não restar ao lesado nesta situação senão uma das duas opções quanto à selecção da causa de pedir – ou com base no acto administrativo que foi formalizado na data mais recente, mas que pudesse ser legal por vir a ser mantido pela decisão judicial proferida em sede da impugnação contenciosa, ou em virtude das sucessivas actuações administrativas lesivas anteriormente concluídas, o que contudo poderiam ser jamais idóneas para sustentar uma acção indemnizatória autónoma, por força da prescrição nos termos previstos no direito civil.
Neste processo, a Autora invocou a situação lesiva que fora criada pelas actuações materiais “irregulares” anteriormente verificadas, e não alegou nenhuma lesão concreta que possa ser imputada, de modo autónomo, ao acto administrativo do Chefe do Executivo da declaração de caducidade em 27/03/2017.
Bem se compreende que assim fosse. Se a acção tivesse sido configurada com base na responsabilidade extracontratual por facto ilícito, apenas as actuações ilícitas lesivas poderiam servir. E tal acto de declaração de caducidade da concessão de 27/3/2017 é pelo contrário lícito face ao teor do decisório do Acórdão do Tribunal de Última Instância, no processo n.º 16/2019 que portanto, nunca poderia fundamentar a pretensão indemnizatória deduzida nestes termos.
Assim, uma vez que era exigível o exercício do direito de indemnização mediante a propositura da acção autónoma, relativamente à impugnação contenciosa do acto administrativo final, tanto uma norma - o artigo 6.º, n.º 2 do DL n.º 28/91/M, como outra - artigo 116.º do CPAC, não tem aplicação no caso em apreço.
3.4) Recapitulando, consideramos que se verificaram, em 20/6/2016, todos os factos constitutivos da obrigação de indemnizar, e nessa data a própria Autora deveria ter tido conhecimento dos necessários elementos fácticos que integram os pressupostos da acção indemnizatória. Isto seria sempre assim, ainda que tivesse em vista, de forma analítica, a extensão dos danos alegadamente provocados pelas actuações ilícitas da Ré.
Como vimos, as pretensões indemnizatórias são discriminadas conforme se trata dos danos ocorridos no quadro do contrato de concessão celebrado em 1991 para fins industriais, ou por referência ao hipotético acordo da revisão contratual em 1993 para fins habitacionais (conforme se alega nos artigos 307.º a 314.º da petição inicial).
Como atrás referido, se aceitamos que a Autora tivesse introduzido uma causa de pedir distinta do impedimento do exercício do direito de aproveitamento do terreno, que é a frustração da sua expectativa legítima na futura revisão do contrato para finalidade habitacional, o que teríamos é nada mais do que a situação da responsabilidade pela culpa in contrahendo e o prazo de prescrição relativamente ao direito de indemnização invocado nesta parte é de 3 anos, a contar a partir do momento do conhecimento da existência desses despesas incorridas com esta finalidade específica (obter a revisão da concessão), momento esse deveria coincidir com o da ocorrência da impossibilidade definitiva do aproveitamento no âmbito da concessão titulada, o que implicaria a impossibilidade da revisão da concessão que se extinguiu por caducidade. E em relação às despesas que venham a ser realizadas depois desta data, estas já nunca serão ressarcíveis, pela ausência do nexo de imputação relevante do facto ao lesante.
A mesma se afirma relativamente ao montante dos lucros cessantes reclamados que teria resultado da efectivação do aproveitamento em função da concretização hipotética do aproveitamento do terreno para finalidade habitacional. Se o direito era fundado na possibilidade de “revisão das cláusulas contratuais”, que a Autora legitimamente esperava obter, então também a sua consciência da perda dos ganhos que daí lhe pudesse decorrer, nasceria à altura da extinção da concessão por caducidade, em 20/6/2016.
Por sua vez, no que concerne aos custos de desenvolvimento do terreno concedido, realizadas para o aproveitamento inicialmente projectado conforme a escritura outorgada em 1991, para além da prescrição do respectivo direito de indemnização, cujo prazo se inicia com o termo do prazo de concessão em 20/6/2016, a falta da sua ressarcibilidade também é evidente, tendo a acção fundada na violação do direito de aproveitamento do terreno concedido.
A razão é simples: se o princípio geral que se impunha na reparação dos danos causados for aquele de reconstituição natural no sentido de “reconstituir a situação que existiria, se não tivesse verificado o evento que obriga à reparação” nos termos do artigo 556.º do CCM, e se é também certo que o evento lesivo que tivesse ocasionado os danos peticionados nos termos descritos na petição inicial era, concretamente, a actuação impeditiva da conclusão do aproveitamento pela Autora no prazo de concessão, então caso não se tivesse verificado esse evento impeditivo, sendo-lhe, portanto, ainda possível concluir a construção projectada por modo a possibilitar a subsequente conversão da concessão do terreno em definitiva, todas as despesas aqui reclamadas, indispensáveis para a concretização do aproveitamento, teriam sido igualmente devidas e necessariamente efectuadas.
Em nosso entender, haveria lugar à indemnização nesta parte apenas quando a pretensão particular fosse a de destruir todos os efeitos decorrentes da própria concessão através da sua anulação – neste caso, o montante a ressarcir destina-se à cobertura dos danos que o lesado não sofreria sem aquela concessão titulada.
Se analisarmos as pretensões indemnizatórias deduzidas em coerência com a causa de pedir descrita – as actuações ilícitas culposas da Ré que constituíram factos impeditivos do aproveitamento do terreno, e por conseguinte, da conversão da concessão em definitiva dentro do prazo de concessão, são apenas indemnizáveis os danos configurados como lucros cessantes que se calcula em função da concretização hipotética do aproveitamento do terreno para finalidade industrial inicialmente aprovada. Mas pelo que fica dito atrás, a consciência da perda definitiva daquele “acréscimo patrimonial” sempre ocorreu em 20/6/2016, com a impossibilidade definitiva da conclusão da construção, que frustrou consequentemente qualquer expectativa de ganhar que pressupusesse a conclusão do aproveitamento.
Nestes termos, considera-se prescrito o direito de indemnização invocado nesta parte por ter exaurido o prazo de 3 anos a contar de 20/6/2016, na data de propositura da presente acção em 5/3/2020.
Uma vez completado o prazo prescricional, tem a Ré beneficiária “a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer forma, ao exercício do direito prescrito” (art.º 297.º, n.º 1 do Código Civil), desse modo, paralisando a pretensão da Autora credora, na configuração de excepção peremptória (art.º 412.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).
4) Por último, a Autora ainda fundamentou, de forma genérica, o pedido indemnizatório em enriquecimento sem causa pela Administração por conta de despesas efectuadas na sequência do investimento do prémio e custos de desenvolvimento que aumentam o valor patrimonial do terreno, em montante não inferior a MOP 175,910,998.00.
Em termos mais precisos, do que se trata aqui não é da pretensão indemnizatória, mas sim a restitutiva, fundada na obrigação daquele que sem causa justificativa, enriqueça à custa de outrem, de restituir aquilo com que injustamente se locupletou, conforme se prevê no artigo 467.º do CCM.
Independentemente da verificação dos pressupostos constitutivos da pretensão restitutiva no caso dos autos, a obrigação de restituir por parte da Administração aquilo que se locupletou, à custa dos investimentos realizados pela concessionária do terreno fica desde logo afastada pelas normas estatuídas na Lei n.º 10/2013.
Ao abrigo do artigo 168.º da referida Lei, a declaração da caducidade da concessão determina a reversão para a RAEM os prémios pagos e as benfeitorias que “por qualquer forma incorporadas no terreno, não tendo o concessionário direito a ser indemnizado ou compensado.” Aliás, como acabamos de referir em 3.4) supra, a hipótese de obter o ressarcimento das despesas suportadas pela concessionária seria configurável se a pretensão tivesse sido a de destruir todos os efeitos decorrentes da própria concessão através da anulação da concessão. Na pressuposição da concessão do terreno válida, e extinta por caducidade contratual, o reembolso das ditas despesas não é possível, quer por acção indemnizatória, quer por acção fundada no enriquecimento sem causa.
Assim sendo, improcede o fundamento relativo ao enriquecimento sem causa.
*
Tudo visto, não resta senão absolver a Ré de todos os pedidos formulados pela Autora.
***
III. Decisão
Face ao exposto, o Tribunal decide:
- Julgar procedente a excepção peremptória da prescrição, com a absolvição da Ré Região Administrativa Especial de Macau, dos pedidos formulados pela Autora A LIMITADA(A有限公司).
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Custas pela Autora
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Registe e notifique.
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Quid Juris?
Sobre a matéria semelhante este TSI já se pronunciou no processo nº 576/2024, com acórdão proferido em 29/02/2024 (em que o relator deste processo foi segundo-adjunto), cabendo aqui realçar que as duas acções estão estruturadas em modos diferentes, visto que os factos alegados são diferentes e a sua subsunção ao Direito é igualmente diferenciada, pois naquele processo o pedido principal consiste em responsabilidade extracontratual da Ré, enquanto este processo é a responsabilidade contratual como pedido principal da Autora, sendo igualmente muito diferentes os factos em discussão. Ora, bem vistas as coisas e melhor reflectidos sobre os argumentos invocados por cada uma das partes, passemos a analisar as questões deste processo sob as seguintes perspectivas.
*
Comecemos pela causa de pedir invocada pela Autora na sua PI.
Ela apresentou uma causa de pedir muito complexa, que consiste na ocorrência de um conjunto de factos concretos:
- Celebração dum contrato administrativo de concessão dum terreno devidamente identificado nos autos;
- Cumprimento e incumprimento de certas cláusulas contratuais pela Ré;
- Motivos que determinaram a impossibilidade de aproveitamento do terreno;
- Declaração da caducidade da concessão do terreno pelo Governo da RAEM;
- Prejuízos sofridos pela concessionária (Autora);
- Demais factos instrumentais pertinentes.
Em suma, a Autora apresentou uma causa de pedir complexa para fundamentar os seguintes pedidos:
- Responsabilidade contratual imputada à Ré (a RAEM) – artigos 84º a 177º da douta PI;
- Responsabilidade extracontratual imputada à Ré – artigos 178º a 300º da PI.
- Indemnização com base no enriquecimento sem causa.
A propósito de causa de pedir, é do entendimento dominante:
“são possíveis dois conceitos: a) a relação jurídica material, ou as relações jurídicas que legitimam a pretensão (o pedido): b) o próprio facto jurídico genético do direito, ou seja, o acontecimento concreto, correspondente a qualquer «fattispecie» jurídica que a lei admita como criadora de direitos, abstracção feita da relação jurídica que lhe corresponda. A primeira é a teoria da individualização ou da individuação; a segunda a da substanciação (A. Anselmo de Castro, Dir. Processual Civil Declaratório, ed.1981, 1.º-205). No CPC de 1961, como no de 1939, foi consagrada a segunda (ob.cit.,207).
Ao nível da jurisprudência, tem-se vindo a defender:
a causa de pedir é o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida pelo autor, que serve de fundamento à acção; não é o facto abstracto configurado na lei, mera categoria legal, mas o facto concreto invocado pelo autor, o acontecimento natural ou acção humana de que promanam, por disposição legal, efeitos jurídicos. Assim, a causa de pedir não pode ser o incumprimento do contrato porque o incumprimento não passa de uma categoria legal, mas poderá ser o facto concreto que porventura se traduziu em incumprimento (Ac. S.T.J., de 24-5-83, BMJ. 327.°-653).
O raciocínio exposto no último caso citado tem especial valor para o caso destes autos, já que, conforme o quadro factual considerado assente pelo Tribunal recorrido, foram selecionadas para o elenco dos FACTOS ASSENTES apenas as cláusulas constantes do contrato de concessão do terreno, o que não é suficiente para fundamentar a decisão em causa, tendo em conta os diversos pedidos formulados pela Autora, pois devem ser selecionados os factos concretos que se traduzem em incumprimento ou cumprimento das respectivas cláusulas! Estas não são factos em rigor das coisas e nos termos do raciocínio do aresto acima citado!
Eis um dos vícios detectados da decisão recorrida! Aliás, quando se lê a decisão, fica-se sem saber o que foi feito e o que se deixou de fazer e onde está a causa de actuar desta maneira!
*
Feitas estas notas preliminares, passemos a ver o que se passou concretamente neste processo.
1ª Parte: responsabilidade extracontratual:
A sentença recorrida julgou procedente a excepção peremptória de prescrição com base no artigo 6º/1 do DL nº 28/91/M, de 22 de Abril, com redacção introduzida pelo DL nº 110/99/M, de um modo geral concordamos com os argumentos invocados pelo Tribunal recorrido, pois, o prazo é de três anos e este prazo já passou.
Nesta parte, a sentença não merece censura, é de a confirmar nos termos do artigo 631º/5 do CPC.
*
2ª parte: Responsabilidade contratual:
Quanto à causa de pedir conducente à responsabilidade contratual, vários aspectos merecem atenção.
Entre os outros factos, a Autora invocou os seguintes:
“(...)
1993
25. Em cumprimento do despacho emitido em 30.08.1993 pelo Secretário-Adjunto para os Transportes e Obras Públicas, exarado na informação n.º 063/SOTSDB/93, de 6 de Agosto de 1993, a DSSOPT, através de oficio n.º 849/8119.l/SOLDEP/93, de 2 de Dezembro de 1993, comunicou à concessionária o seguinte:
"Sobre o aproveitamento do lote concedido a V. Exa. cumpre-nos informar que devido à sua localização e ao elevado custo e dificuldade na execução das infra-estruturas de uma zona com as características de Seac Pai Van, foi decidido por despacho do Exmo. Senhor Secretário-Adjunto para os Transportes e Obras Públicas, de 30 de Agosto de 1993, o seguinte:
1) Afectar o loteamento de Seac Pai Van à finalidade habitacional em vez de industrial; 2) Atribuir a obra de regularização e loteamento do terreno a uma empresa com capacidade técnica para a sua execução.
Assim, e porque a referida regularização do terreno, o tratamento paisagístico e comparticipação nos custos das infra-estruturas dos lotes concedidos, constituem encargos dos respectivos concessionários, torna-se necessário, a fim de se evitarem contratempos, obter um acordo, por escrito, de V. Exa., quanto à aceitação de revisão do contrato de concessão, face à nova finalidade do terreno o qual implicará, nomeadamente:
a) A definição de um novo prazo de aproveitamento compatível com o prazo previsto para a disponibilização do lote;
b) O ajustamento do montante do prémio.
Caso V. Exa. continue a ter preferência pela concessão com finalidade industrial, deverá igualmente informar esta Direcção de Serviços com vista à concessão, por troca, de um terreno equivalente, em local mais adequado a essa finalidade.
Tornando-se necessário programar rapidamente o início dos trabalhos, solicita-se uma resposta de V. Exa. até dia 20 de Dezembro de 1993.”
26. A concessionária, através da carta apresentada em 20 de Dezembro de 1993, manifestou aceitar a alteração da finalidade do terreno para fins habitacionais.
2006
27. A requerimento da concessionária em 22 de Junho de 2006 o então Director da DSSOPT, responde que:
"Sobre o assunto a que se refere o requerimento em referência informa-se V. Exas de que se mantém o despacho de 30 de Agosto de 1993, do Exmo. Secretário-Adjunto para os Transportes e Obras Publicas, o qual foi comunicado a V. Exa. pelo nosso ofício 849/8119.1/SOLDEP/1993, de 02 de Dezembro de 1993. Mais se informa que não foi ainda aprovado para aquele local qualquer plano de urbanização e que esta Direcção de Serviços dará conhecimento a V. Exas. e aos restantes concessionários daquela zona, do plano que vier a ser aprovado para efeitos dos contratos de concessão".
2010
28. Após ter concordado com a alteração da finalidade do terreno, a concessionária solicitou, várias vezes (conforme processo instrutor) desde 17 de Março de 2010, à DSSOPT a emissão de Planta de Alinhamento Oficial (PAO).
29. Porém, não tendo a revisão do "Plano Urbanístico para a Zona de Seac Pai Van de Coloane" sido aprovada pela Administração, a respectiva PAO nunca foi emitida e a concessionária ficou impedida de realizar o aproveitamento do terreno.
2011
30. Em 21 de Janeiro de 2011, a concessionária foi notificada pela Administração solicitando o empréstimo do lote "SQ2" até 30 de Junho de 2011 para depósito e guarda temporária das britas produzidas pelos rebentamentos de explosivos a realizar durante a construção do "Complexo de Habitação Pública de Seac Pai Van".
31. A concessionária aceitou emprestar o lote para os fins pretendidos.
32. Em reunião de 9 de Março de 2011, a DSSOPT informou os concessionários dos Lotes SQ1, SQ2, SQ3 e SL, que os limites e as áreas dos referidos lotes deveriam ser alterados como consequência da execução do Plano Urbanístico de Zona de Seac Pai Van, designadamente devido à execução das obras das infra-estruturas da 1ª Fase.
33. Em carta de 25 de Março de 2011, com o número de entrada 36926, a concessionária veio aceitar a alteração dos limites e área do lote, solicitando os novos parâmetros urbanísticos para o terreno em causa.
34. Através da CSI n° 513/DPU/2011, de 7 de Abril, o DPUDEP respondeu ao Departamento de Gestão de Solos que: "Do ponto de vista do planeamento urbanístico nada ter a opor à finalidade do terreno, à altura permitida do edifício e ao respectivo IUS; a altura do pódio não deve ser superior a 13,5m”.
35. A DSODEP remeteu o parecer referido no número anterior à concessionária através do ofício de 13 de Abril de 2011.
36. Em 14 de Dezembro de 2011 a concessionária deu entrada pelo requerimento n° 145733/2011 do projecto de arquitectura para Lote "SQ2" para construção de um complexo hoteleiro, comercial, habitacional e de estacionamento.
37. Através de uma informação de 15 de Dezembro de 2011, o Departamento de Gestão de Solos solicitou ao DPUDEP a emissão do parecer sobre o projecto de arquitectura apresentado.
2012
38. O DPUDEP elaborou a informação n° 778/DPU/2011 de 30 de Dezembro referindo que concordava com o projecto de arquitectura, tendo notificado a concessionária desse despacho em 18 de Janeiro de 2012.
39. Em 7 de Julho de 2012, foi emitida à concessionária a licença de terraplanagem do terreno.
40. Ainda em 2012, a concessionária requereu a devolução do terreno, tendo a Administração informado que iria limpar o local antes do final de Outubro de 2012.
(...)”
A este propósito, importa destacar o seguinte:
a) - Estes factos acima transcritos não constam do elenco dos factos considerado assentes pelo Tribunal recorrido;
b) – Estes factos, a provar-se, demonstram eventualmente a violação do princípio da boa fé em matéria de responsabilidade contratual (e não tal como o Tribunal a quo afirmou que este princípio vale apenas para a responsabilidade extracontratual), Pois, merece destacar aqui: foi pela Ré apresentada a proposta de alteração da finalidade do terreno (de uso industrial para habitacional) e tal proposta foi aceite pela Autora que ficava à espera dos procedimentos posteriores, nomeadamente o de revisão de cláusulas de concessão, mas pela vista tal não foi feito, importa apurar por que razões e quais consequências daí decorrentes.
c) – Estes factos igualmente demonstram que existem eventualmente conjunto de prestações de deveres principais e secundários incumbidos à Ré, enquanto concedente do terreno e que tem a responsabilidade de definir e aprovar o respectivo plano urbanístico;
d) – Ao desconsiderar tais factos, há défice de instrução do processo e mal decidido o pedido nestes termos formulado pela Autora.
*
Face ao expendido e perante a deficiência da instrução e da falta de factos, não resta ao Tribunal ad quem outra solução senão a de anular a decisão (à excepção da decisão que julgou procedente a prescrição invocada pela Ré) e mandar baixar os autos para cumprir o que está previsto no artigo 629º/4 do CPC que estabelece:
(Modificabilidade da decisão de facto)
1. A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 599.º, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
2. No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, o Tribunal de Segunda Instância reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham servido de fundamento à decisão de facto impugnada.
3. O Tribunal de Segunda Instância pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos em primeira instância que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto objecto da decisão impugnada, aplicando-se às diligências ordenadas, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na primeira instância e podendo o relator determinar a comparência pessoal dos depoentes.
4. Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
5. Se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode o Tribunal de Segunda Instância, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de primeira instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou escritos ou repetindo a produção da prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limita-se a justificar a razão da impossibilidade.
Julga-se assim procedente o recurso interposto pela Autora, anulando-se a decisão recorrida e mandando-se cumprir o que fica consignado neste aresto.
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Síntese conclusiva:
I - A causa de pedir é o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida pelo autor, que serve de fundamento à acção; não é o facto abstracto configurado na lei, mera categoria legal, também não são as cláusulas contratuais constantes dum contrato administrativo, mas o facto concreto invocado pelo autor, o acontecimento natural ou acção humana de que promanam, por disposição legal, efeitos jurídicos. Assim, a causa de pedir não pode ser o incumprimento do contrato porque o incumprimento não passa de uma categoria legal, mas poderá ser o facto concreto que porventura se traduziu em incumprimento (Cfr. Ac. S.T.J., de 24-5-83, BMJ. 327.°-653).
II – Para apreciar o pedido da responsabilidade contratual imputada à Ré (a RAEM), não basta selecionar apenas as clausulas contratuais constantes do contrato de concessão dum terreno identificado nos autos para apreciar todos os pedidos formulados pela Autora, já que tal conteúdo é insuficiente, eis uma défice da instrução do processo, já que o artigo 430º do CPC manda que o julgador deve selecionar a matéria de facto relevante segundo as várias soluções plausíveis da questão de Direito. Ao não assim actuar, verifica-se uma défice de instrução e justifica-se mandar os autos para eliminar este vício nos termos do artigo 629º/4 do CPC.
*
Tudo visto, resta decidir.
* * *
V - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em:
1) – Confirmar a decisão na parte respeitante à prescrição da responsabilidade extracontratual imputada à Ré, julgando-se improcedente o recurso nesta parte.
*
2) - Conceder provimento ao recurso, anulando-se a sentença recorrida do TA, mandando a baixa dos autos àquele Tribunal para proferir o saneador – selecionar os factos assentes e os quesitados – para seguir a tramitação processual ulterior nos termos legais, com vista a apurar a eventual responsabilidade contratual, imputada à Ré pela Autora, nos termos do pedido por esta última formulado, caso não exista outro obstáculo legal.
*
Custas pela parte vencida a conta final.
*
Notifique e Registe.
*
RAEM, 30 de Maio de 2024.
Fong Man Chong
(Relator)
Ho Wai Neng
(1º Adjunto)
Tong Hio Fong
(2º Adjunto)
1 Concretamente, são formulados os pedidos de indemnização do modo seguinte:
“1. Indemnização por incumprimento das obrigações emergentes do acordo de revisão do contrato de concessão de 21 de Junho de 1991, sendo-lhe exclusivamente imputáveis à RAEM as causas que motivaram a impossibilidade de aproveitamento do terreno concessionado para fins não industriais (habitação, hotelaria, comércio e estacionamento), conforme a Planta de Condições Urbanísticas aprovada e entregue à Autora, nomeadamente:
1.1 A título de Danos Emergentes:
1.1.1 Com os custos de desenvolvimento do terreno realizados, em montante não inferior a MOP 175,910,998.00 (cento e setenta e cinco milhões, novecentas e dez mil, novecentas e noventa e oito patacas), acrescidos de juros à taxa legal sendo presentemente de 9.75%;
1.1.2 Com custos associados a despesas com patrocínio judiciário e custas judiciais, acrescidos de juros à taxa legal sendo presentemente de 9.75%, a apurar em execução de sentença.
1.2 A título de Lucros Cessantes:
1.2.1 Montante indemnizatório necessário para colocar a Autora, lesada, na situação em que se encontraria se o aproveitamento do terreno para fins não industriais (habitação, hotelaria, comércio e estacionamento), conforme a referida Planta de Condições Urbanísticas, tivesse sido concretizado, pelo menos até à data do termo da concessão, acrescido de juros à taxa legal, a apurar em execução de sentença.
Alternativamente,
2. Indemnização por incumprimento das obrigações emergentes do contrato de concessão de 21 de Junho de 1991, sendo-lhe exclusivamente imputáveis à RAEM as causas que motivaram a impossibilidade de aproveitamento do terreno concessionado originariamente para fins industriais, nomeadamente:
1.1 A título de Danos Emergentes
1.1.1 Com os custos de desenvolvimento do terreno realizados, em montante não inferior a MOP 175,910,998.00 (cento e setenta e cinco milhões, novecentas e dez mil, novecentas e noventa e oito patacas), acrescidos de juros à taxa legal sendo presentemente de 9.75%;
1.1.2 com custos associados a despesas com patrocínio judiciário e custas judiciais de apresentação, acrescidos de juros à taxa legal sendo presentemente de 9.75%, a apurar em execução de sentença.
1.2 A título de Lucros Cessantes
1.2.1 Montante indemnizatório necessário para colocar a Autora, lesada, na situação em que se encontraria se o aproveitamento do terreno para fins industriais tivesse sido concretizado, pelo menos até à data do termo da concessão, acrescido de juros à taxa legal, a apurar em execução de sentença.
Dos pedidos subsidiários
Em caso de improcedência dos pedidos acima formulados, requer-se a condenação da RAEM em:
1.º Pedido Subsidiário de indemnização, com fundamento em responsabilidade extra-contratual da RAEM, pelos danos causados à Autora, derivados de conduta ilícita e culposa, em violação dos princípios da boa fé, da tutela da confiança e da igualdade, nomeadamente:
• A título de Danos Emergentes:
1. Com os custos de desenvolvimento do terreno realizados em montante não inferior a MOP 175,910,998.00 (cento e setenta e cinco milhões, novecentas e dez mil, novecentas e noventa e oito patacas), acrescidos de juros à taxa legal sendo presentemente de 9.75%;
2. Com custos associados a despesas com patrocínio judiciário e custas judiciais, acrescidos de juros à taxa legal sendo presentemente de 9.75%, a apurar em execução de sentença.
• A título de Lucros Cessantes
1. Montante indemnizatório necessário para colocar a Autora, lesada, na situação em que se encontraria se o aproveitamento do terreno para fins não industriais (habitação, hotelaria, comércio e estacionamento), tivesse sido concretizado, pelo menos até à data do termo da concessão, acrescido de juros à taxa legal, a apurar em execução de sentença ou
2. Montante indemnização necessário para colocar a Autora, lesada, na situação em que se encontraria se o aproveitamento do terreno para fins industriais tivesse sido concretizado, pelo menos até à data do termo da concessão, acrescido de juros à taxa legal, a apurar em execução de sentença.
2.º Pedido Subsidiário de indemnização, com fundamento em enriquecimento sem causa pela Administração por conta de despesas efectuadas pela autora na sequência de obras realizadas no terreno concessionado, a título de prémio e custos de desenvolvimento que aumentam o valor patrimonial do terreno e beneficiam directamente o património da Administração em montante não inferior a MOP 175,910,998.00 (cento e setenta e cinco milhões, novecentas e dez mil, novecentas e noventa e oito patacas), acrescidos de juros à taxa legal sendo presentemente de 9.75%.”
2 João Taborda da Gama, Promessas Administrativas da Decisão de Autovinculação ao Acto Devido, Coimbra Editora, pp. 263 a 265
3 Veja-se Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 137.
4 José Gonçalves Marques, Direitos Reais, pp. 94 a 95.
5 Carlos Alberto da Mota Pinto, obra. cit, p. 182.
6 Veja-se neste sentido, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, das Obrigações em geral, Universidade Católica Editora, pp. 374 a 375.
7 Neste ponto, tendo acolhido as propostas que haviam sido equacionadas por Vaz Serra, revelando-se “o facto de o desconhecimento se ficar a dever a culpa do credor, pois se ele não teve conhecimento da pessoa do responsável ou do seu direito, podendo tê-lo tido, não se justifica que esse tempo de inércia não conte prescritivamente.” (Código Civil de Macau, anotado e comentado, Livro II, Direito das Obrigações, Volume VII, CFJJ, 2020).
8 Veja-se neste sentido, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, das Obrigações em geral, Universidade Católica Editora, pp. 374 a 375.
9 Neste sentido, cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. 1, p. 626, Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 610.
10 Cfr. cit. Comentário ao Código Civil, p. 375.
11 Cfr. cit. Comentário ao Código Civil, p. 376.
12 Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2.ª edição revista, 2007, pp. 249 a 250.
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