Processo nº 109/2023(I)
(Autos de recurso jurisdicional relativo a uniformização de jurisprudência em processo penal)
(Incidente)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
I. Em sede dos presentes Autos de Recurso Jurisdicional Relativo a Uniformização de Jurisprudência em Processo Penal proferiu este Tribunal de Última Instância o seguinte Acórdão:
“Relatório
1. A (甲), B, e C (丙), com os restantes sinais dos autos, trazem o presente “recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência”, alegando que a solução jurídica adoptada no Acórdão (recorrido) do Tribunal de Segunda Instância de 19.10.2023, proferido nos Autos de Recurso Penal n.° 385/2023, está em oposição à por este mesmo Tribunal assumida no Acórdão de 30.11.2006, Proc. n.° 114/2006, (doravante designado Acórdão fundamento); (cfr., fls. 2 a 46, cujo teor se dá aqui como reproduzido para todos os efeitos legais).
*
Com o douto Parecer do Ministério Público a considerar que o presente recurso não deve prosseguir por inverificada estar a alegada “oposição de Acórdãos”, (cfr., fls. 144 a 144-v), e com os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, vieram os autos à conferência a que alude o art. 423° do C.P.P.M..
Cumpre decidir.
Fundamentação
2. Em causa estando um “recurso – extraordinário – para a fixação de jurisprudência”, mostra-se-nos desde já adequado recordar a seguinte consideração de Gama Lobo, no sentido de que:
“A legitimidade do Direito assegura-se também pela sua capacidade de julgar casos iguais ou semelhantes de forma igual ou semelhante. Por tal razão o ordenamento jurídico prevê este mecanismo de fixação de jurisprudência, que mais não visa do que uniformizar as interpretações jurídicas e a sua aplicação, garantindo a coerência e a estabilidade da jurisprudência. E se alguma critica há a fazer a este sistema é a de que devia haver mais decisões uniformizantes, para gerar mais tranquilidade dos operadores judiciários e credibilidade da Justiça. (…)”; (in “C.P.P. Anotado”, Almedina, pág. 878).
Isto dito, importa ter presente que – no Título II, dedicado aos “Recursos extraordinários”, Capítulo I, quanto à “Fixação de jurisprudência”, e sob a epígrafe “Fundamento do recurso” – prescreve o art. 419° do C.P.P.M. que:
“1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado”.
Resulta assim do teor do dispositivo em questão que no que toca ao presente “recurso para fixação de jurisprudência” acolhe o legislador quatro “matérias” distintas, ou seja, relativamente a:
- decisões de que cabe recurso;
- legitimidade para recorrer;
- tribunal competente; e seus,
- requisitos de admissibilidade.
Em causa estando agora aferir da verificação dos ditos “requisitos de admissibilidade”, sem mais demoras, vejamos o que nesta sede se mostra de decidir; (sobre a matéria, pode-se ver os Acs. deste T.U.I. de 11.03.2009 e de 31.03.2009, Proc. n.° 6/2009; de 25.04.2012, Proc. n.° 17/2012; de 23.09.2015, Proc. n.° 59/2015; 13.01.2016, Proc. n.° 78/2015; de 22.01.2016, Proc. n.° 81/2015; de 17.01.2017, Proc. n.° 65/2016; de 22.03.2017, Proc. n.° 15/2017; de 26.04.2017, Proc. n.° 13/2017; 24.01.2018 e de 25.04.2018, Proc. n.° 84/2017; de 31.07.2018, Proc. n.° 53/2018; de 03.04.2020, Proc. n.° 130/2019; de 17.12.2021, Proc. n.° 156/2021; de 12.01.2022, Proc. n.° 160/2021; de 23.02.2022, Proc. n.° 9/2022; de 11.03.2022, Proc. n.° 19/2022; de 08.04.2022, Proc. n.° 36/2022; de 28.09.2022, Proc. n.° 90/2022; de 08.02.2023, Proc. n.° 94/2022; de 03.05.2023, Proc. n.° 12/2023 e de 29.09.2023, Proc. n.° 77/2023).
Pois bem, estes ditos “requisitos” podem apresentar-se como sendo os seguintes:
- a “existência de uma oposição de acórdãos”;
- “sobre a mesma (ou idêntica) questão de direito”; e
- a “permanência do mesmo quadro legislativo”.
Pronunciando-se sobre o “primeiro” considera Manuel Leal-Henriques que o mesmo “repousa na exigência de que dois acórdãos proferidos por Tribunais Superiores tenham dado soluções diversas e opostas a uma concreta questão, (…)”.
Por sua vez, considera que se está perante uma (mesma ou idêntica) “questão de direito” quando se trata de “interpretar e aplicar normas jurídicas a uma qualquer situação concreta. (…)”.
E, finalmente, em relação ao último requisito, é de opinião que o mesmo exige que “entre a prolação do 1.° acórdão (o acórdão-fundamento) e o 2.° (o acórdão-recorrido) não tenha havido alteração essencial na legislação aplicável à concreta questão decidida”, acrescentando que, “aqui, o legislador teve necessidade de adiantar um elemento de ajuda ao aplicador da lei, indicando no n.° 3 que se consideram acórdãos proferidos no domínio da mesma legislação "quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida". (…)”; (in “Anotação e Comentário ao C.P.P.M.”, Vol. III, C.F.J.J., 2014, pág. 373 e 378).
Cabendo-nos reflectir e ponderar sobre a aludida “oposição de acórdãos”, vejamos.
Pois bem, cremos que adequado se mostra de ter que a “oposição de julgados” exige que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar “soluções” – “decisões” – diferentes para a “mesma questão fundamental de direito”, e que as decisões em oposição sejam “expressas”.
Com efeito, nem a mera “aparência” de decisões opostas, nem decisões “implícitas” ou “tácitas”, são suficientes para fundar o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.
Aliás, vale aqui a pena recordar o que neste mesmo sentido foi considerado nos Acórdãos de 11.03.2009 e 31.03.2009, Proc. n.° 6/2009, onde, nos respectivos sumários, se deixou consignado que:
“Para que se possa considerar haver oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito é necessário que:
- A oposição entre as decisões seja expressa e não meramente implícita;
- A questão decidida pelos dois acórdãos seja idêntica e não apenas análoga. Os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões, ou seja, os factos nucleares e necessários à resolução do problema jurídico, devem ser idênticos;
- A questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental. Ou seja, a questão de direito deve ter sido determinante para a decisão do caso concreto”; (cfr., v.g., o Ac. de 11.03.2009); e,
“Para que se possa considerar haver oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito é necessário que haja duas decisões diversas. Se uma referência, de um Acórdão, sobre uma questão jurídica, não se consubstancia numa decisão, nunca pode haver oposição de acórdãos conducente a uma decisão uniformizadora de jurisprudência por parte do Tribunal de Última Instância.
A parte preceptiva da decisão judicial é apenas a ratio decidendi, ou seja, a razão de decidir, a regra de direito considerada necessária pelo juiz para chegar à sua conclusão. Os obiter dicta (regras de direito que não são fundamentais para decidir, aquilo que é dito sem necessidade absoluta para tomar a decisão) não vinculam”; (cfr., v.g., o Ac. de 31.03.2009, podendo-se sobre a matéria ver também os Acs. de 17.12.2021, Proc. n.° 156/2021, de 23.02.2022, Proc. n.° 9/2022, de 08.04.2022, Proc. n.° 36/2022, de 08.02.2023, Proc. n.° 94/2022, de 03.05.2023, Proc. n.° 12/2023 e de 29.09.2023, Proc. n.° 77/2023).
No mesmo sentido, (e fazendo referência a variada jurisprudência do S.T.J. português), nota também P. P. de Albuquerque que:
“A oposição de acórdãos tem de ser expressa e não tácita, não bastando que um deles aceite tacitamente a doutrina contrária do outro. Os mesmos preceitos da lei devem ter sido interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos em ambos os acórdãos (acórdão do STJ, de 18.9.1991, in BMJ, 409, 664). A oposição deve respeitar à decisão e não apenas aos seus fundamentos (acórdão do STJ, de 3.4.2008, in CJ, Acs. do STJ, XVI, 2, 194, e acórdão do STJ, de 3.12.1998, in SASTJ, n.° 26, 74), a soluções de direito expressas e não implícitas, soluções tomadas a título principal e não acessório ou secundário (acórdão do STJ, de 12.11.2008, in CJ, Acs. do STJ, XVI, 3, 221). A concreta questão a decidir deve ser delimitada com precisão, devendo justificar-se a correspondente oposição de acórdãos (acórdão do STJ, de 20.1.2005, in CJ, Acs. do STJ, XIII, 1, 175)”; (in “Comentário do C.P.P.”, 4ª ed., pág. 1192, podendo-se ainda ver o recente Ac. do S.T.J. de 12.01.2023, Proc. n.° 11/20).
Aqui chegados, e clarificado nos parecendo estar o sentido e alcance (do requisito) da “oposição de acórdãos”, debrucemo-nos sobre a “situação dos presentes autos”.
Pois bem, como resulta do seu teor, o “Acórdão recorrido” – de 19.10.2023, Proc. n.° 385/2023 – é uma decisão proferida em sede de uma Recurso Penal de uma decisão do Tribunal Judicial de Base para o Tribunal de Segunda Instância, no qual, em causa estava “matéria criminalmente relevante”, e em que, os aí arguidos, ora recorrentes, viram confirmada a sua condenação no que toca à sua prática como co-autores de um crime de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 18°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 4 anos (…); (cfr., fls. 114 a 129).
Por sua vez, o “Acórdão fundamento” – de 30.11.2006, Proc. n.° 114/2006 – foi proferido em sede de um “Recurso Contencioso” de uma decisão administrativa do Secretário para a Segurança que negou a concessão de autorização (excepcional) de residência do filho menor do aí recorrente, e à qual, pelo recorrente, era assacada “ofensa do conteúdo essencial do direito de residência”, previsto, (nomeadamente), na Lei Básica da R.A.E.M., na Lei n.° 8/1999 e na Lei n.° 4/2003.
Ora, em face do que em apertada, mas em nossa opinião, adequada síntese se deixou consignado, e como cremos que – bem – se vê, evidente é assim a resposta para o presente recurso.
Com efeito, manifesto é que inexiste qualquer “oposição de Acórdãos”, pois que nem a “questão” tratada nas referidas decisões se pode considerar como a “mesma”, o mesmo sendo de dizer relativamente ao seu quadro legislativo, pois que nem tão pouco o “enquadramento jurídico-legal” das questões apreciadas se apresenta como “idêntico”, ou sequer “próximo”.
Nesta conformidade, mostra-se-nos pois de dizer que, nos termos em que vem motivado, o presente “recurso” apresenta-se-nos como um muito pouco sério e infeliz esforço de os recorrentes insistirem na sindicância do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 19.10.2023 que os condenou nos termos descritos, constituindo uma vã tentativa de contornar as regras do C.P.P.M. que regulam a matéria dos “recursos”, o que, de forma alguma, se mostra de acolher, (sendo até caso de consignar que raia a má fé processual).
E, dest’arte, ociosas sendo quaisquer outras considerações, (porque inúteis, e, então, ilícitas), resta decidir como segue.
Decisão
3. Em face do exposto, em conferência, acordam rejeitar o presente recurso.
Pagarão os recorrentes a taxa individual de justiça de 10 UCs.
Registe e notifique.
(…)”; (cfr., fls. 152 a 165 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Após notificados, vieram os recorrentes pedir que fosse declarada a “inexistência jurídica” do transcrito aresto; (cfr., fls. 171 a 180-v).
*
Adequadamente processados os autos, passa-se a decidir.
Fundamentação
II. Pedem os recorrentes, ora requerentes, que se declara a “inexistência jurídica” do Acórdão por este Tribunal de Última Instância prolatado e que atrás se deixou integralmente transcrito.
Percorrendo a peça processual apresentada, verifica-se que se limitam os requerentes a insistir que o seu “recurso” devia prosseguir porque, em sua opinião, existe o que alegavam constituir uma “oposição de acórdãos”.
Ora, em face do assim afirmado, e tendo presente o que se deixou consignado no referido aresto desta Instância, apresenta-se-nos de concluir e consignar apenas que os ditos requerentes não terão lido – ou entendido – o que sobre a aludida “oposição de acórdãos” se expôs no veredicto em questão, e que, em nossa opinião, se apresenta claro e adequado, nada mais se julgando de acrescentar para se decidir pela sua integral confirmação.
–– Porém, uma outra questão se apresenta de aqui tratar.
No dito Acórdão deste Tribunal de Última Instância consignou-se que o recurso pelos ora requerentes para esta Instância interposto apresentava-se como “um muito pouco sério e infeliz esforço de os recorrentes insistirem na sindicância do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 19.10.2023 que os condenou nos termos descritos, constituindo uma vã tentativa de contornar as regras do C.P.P.M. que regulam a matéria dos “recursos”, o que, de forma alguma, se mostra de acolher, (sendo até caso de consignar que raia a má fé processual)”; (cfr., pág. 8 deste aresto).
Nos termos do art. 385° do C.P.C.M.:
“1. Tendo litigado de má fé, a parte é condenada em multa.
2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé”.
Nas palavras de Rodrigues Bastos, “A parte tem o dever de não deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; de não alterar a verdade dos factos ou de não omitir factos relevantes para a decisão da causa; de não fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão; de não praticar omissão grave do dever de cooperação, tal como ele resulta do disposto nos arts. 266.º e 266º-A. Se intencionalmente, ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, a parte violar qualquer desses deveres, a sua conduta fá-lo incorrer em multa, ficando ainda sujeito a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má-fé”; (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. II, 3ª Edição, pág. 221 e 222, podendo-se, sobre o tema, ver também A. dos Reis in, “C.P.C. Anotado”, Vol. II, pág. 262 e segs.; J. L. Freitas e Isabel Alexandre in, “C.P.C. Anotado”, Vol. II, pág. 457; Menezes Cordeiro, in “Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo”, pág. 26 e segs.; e A. S. Abrantes Geraldes, P. Pimenta e L. F. Pires de Sousa in, “C.P.C. Anotado”, Vol. I, pág. 593).
Existe assim litigância de má fé, quando um sujeito processual, agindo a título de dolo ou negligência grave, tenha no processo, um comportamento desenvolvido com o intuito de prejudicar a outra parte ou para perverter o normal prosseguimento dos autos.
Mostra-se de considerar também que na verificação de tal má-fé, importa proceder com cautela, já que há que reconhecer o direito a qualquer sujeito processual de pugnar pela solução jurídica que, na sua perspectiva, se lhe parece a mais adequada ao caso.
Na verdade, a condenação de uma parte como litigante de má fé traduz um juízo de censura sobre a sua “atitude processual”, visando o respeito pelos Tribunais, a moralização da actividade judiciária e o prestígio da justiça.
Emergente dos princípios da “cooperação”, da “boa fé processual” e da “recíproca correcção”, (cfr., art°s 8°, 9°, e 10° do C.P.C.M.), a figura da má fé processual pretende cominar quem, dolosamente ou com negligência grave, ponha em causa tais princípios, que a eles tem subjacente a boa administração da Justiça; (cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 18.06.2021, Proc. n.° 200/2020-II, de 14.07.2023, Proc. n.° 137/2020 e de 19.12.2023, Proc. n.° 196/2020-I).
Aliás, foi no intuito de moralizar a atividade judiciária, que o citado preceito legal alargou o conceito de má fé à “negligência grave”, enquanto que, anteriormente, a condenação como litigante de má fé pressupunha uma atuação “dolosa”, isto é, com consciência de se não ter razão, motivo pelo qual a conduta processual da parte está, hoje, sancionada, civilmente, desde que se evidencie, por manifestações dolosas ou caracterizadoras de negligência grave (lides temerárias e comportamentos processuais gravemente negligentes).
Explica também António Geraldes que “é neste contexto, concerteza fruto da degradação dos padrões de actuação processual e do uso dos respectivos instrumentos que, a par do realce dado ao princípio da cooperação e aos deveres da boa fé e de lealdade processuais, surge a necessidade de ampliar o âmbito de aplicação do instituto, assumindo-se claramente que a negligência grave também é causa de condenação como litigante de má fé”; (in “Temas Judiciários”, Vol. I, Almedina, pág. 313).
O elemento subjetivo da litigância de má-fé foi, por conseguinte, ampliado pelo legislador, passando a sancionar não apenas o comportamento intencional, mas também aquele que, de modo “gravemente negligente”, não obedece aos deveres de cuidado impostos pelo dever de correção processual, acabando por não tomar consciência de factos que, de outro modo, teria conhecimento.
Portanto, passou a exigir-se dos litigantes, para que sejam considerados de boa fé, não apenas que declarem aquilo que subjetivamente consideram verdade, mas aquilo que considerem verdadeiro após cumprirem os mais elementares “deveres de prudência” e “cuidado”, impostos pelo princípio da boa fé processual.
Sobre as partes, recai, desta forma, um dever de “pré-indagação da realidade” em que fundam a sua pretensão ou defesa, tomando-se em conta os mais “elementares deveres de cuidado”, isto é: aqueles que só podem ser desrespeitados por um sujeito que atue de modo “gravemente negligente”, e que não obedeça a qualquer regra de prudência ou ponderação antes de recorrer ao processo…
In casu, atento ao “processado”, ao que se “decidiu”, assim como à “pretensão” agora apresentada, cabe – apenas – dizer que a mesma mais não é do que uma clara demonstração de uma total – e manifesta – falta de cuidado dos requerentes na análise do decidido, mostrando-se-nos constituir uma “pretensão manifestamente impertinente”, tornando, assim, (observado que foi o contraditório), imperativa a solução que segue; (cfr., art. 385°, n.° 1 do C.P.C.M., e art. 101°, n.° 2 do R.C.T., aprovado pelo D.L. n.° 63/99/M de 25.10).
Decisão
III. Nos termos de todo o expendido, em conferência, acordam indeferir o requerido, condenando-se os requerentes como litigantes de má fé na multa individual de 20 UCs.
Custas do incidente pelos requerentes com taxa de justiça (individual) que se fixa em 10 UCs.
Registe e notifique.
Dê-se observância ao estatuído no art. 388° do C.P.C.M..
Macau, aos 08 de Março de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 109/2023-I Pág. 8
Proc. 109/2023-I Pág. 7