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Processo nº 97/2022
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Nos Autos de Processo Comum Colectivo no 3° Juízo do Tribunal Judicial de Base registado como CR3-20-0213-PCC – e na parte que agora releva – decidiu o Colectivo julgar parcialmente procedente o “pedido de indemnização civil” enxertado nos autos, condenando a demandada civil “A”, (“甲”), a pagar ao demandante B (乙), a quantia total de MOP$24.643,10 e juros; (cfr., fls. 462 a 476-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado com o assim decidido, do mesmo recorreu o referido demandante, (cfr., fls. 492 a 512), interpondo, também, a dita demandada civil recurso subordinado; (cfr., fls. 584 a 594)

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Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 16.06.2022, (Proc. n.° 57/2022), concedeu-se parcial provimento ao recurso do demandante, (ao mesmo arbitrando-se uma indemnização no valor total de MOP$98.572,40), negando-se provimento ao recurso subordinado da aludida demandada; (cfr., fls. 625 a 650-v).

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Ainda inconformados, do assim decidido vieram ambos – demandante e demandada – apresentar novamente recurso principal e subordinado para este Tribunal de Última Instância; (cfr., fls. 659 a 679 e 727 a 734).

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Colhidos os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como “provados” (e “não provados”) os factos como tal elencados no Acórdão que proferiu, (cfr., fls. 464 a 466), que foram integralmente confirmados pelo Acórdão agora recorrido do Tribunal de Segunda Instância, e que, oportunamente, se fará adequada referência.

Do direito

3. Como se vê do que se deixou relatado, dois são os recursos trazidos a este Tribunal de Última Instância.

Um, “principal”, do demandante, e, o outro, “subordinado”, da demandada seguradora.

No primeiro, entende-se que a “decisão da matéria de facto” padece de “erro notório na apreciação da prova”, considerando-se, também, que a culpa do “acidente” dos autos deve-se, “única e exclusivamente”, ao condutor do autocarro onde o demandante sofreu uma queda que lhe causaram lesões, reclamando-se uma indemnização por danos “patrimoniais” e “não patrimoniais” no valor total de MOP$2.617.104,00, batendo-se a demandada seguradora (no seu recurso subordinado) pela atribuição da culpa exclusiva do mesmo acidente à conduta do próprio demandante, pugnando, assim, pela sua total absolvição do pedido de indemnização deduzido.

Nesta conformidade – e recordando-se desde já que o Tribunal Judicial de Base atribuiu 5% de culpa pelo acidente ao condutor do veículo segurado pela demandada e os restantes 95% (de culpa) ao demandante, tendo o Tribunal de Segunda Instância alterado tal proporção para 20% para o referido condutor e 80% para o dito demandante – vejamos que solução adoptar.

Pois bem, desde já, e antes de mais, cabe dizer que não existe o pelo demandante apontado vício de “erro notório na apreciação da prova”.

Com efeito, e como repetidamente temos afirmado:

“O “princípio da livre apreciação da prova” significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam (ou hierarquizam) o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” e “lógica” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo consagra-se um modo não (estritamente) vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante, pautado pela “razão”, pela “lógica” e pelos ensinamentos que se colhem da “experiência comum”, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da “legalidade da prova” e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção, e, de acordo com ela, determina os factos que considera “provados” e “não provados”.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado elemento ou conjunto de provas, em detrimento de outro ou outras, às quais não reconheça (nomeadamente) credibilidade.
O “acto de julgar”, é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera “opção voluntarista” sobre a certeza de um facto e contra a dúvida, (nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade), mas a conformação intelectual do conhecimento do facto – dado objectivo – com a certeza da verdade alcançada, (dados não objectiváveis).
Para a dita operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao “princípio in dubio pro reo”).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção.
O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos “traços do depoimento”, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza, ou sua falta, (que se revelam v.g., por gestos, comoções e emoções, voz etc…).
Por sua vez, importa ainda ter em conta que quando a atribuição de credibilidade, (ou falta de credibilidade), a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na “imediação” e na “oralidade”, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica sendo inadmissível face às regras da experiência comum, pois que, a censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, estar-se-ia a substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão…”; (cfr., v.g., entre outros, o Ac. deste T.U.I. de 02.07.2021, Proc. n.° 97/2021, de 11.03.2022, Proc. n.° 12/2022 e de 27.07.2022, Proc. n.° 71/2022).

De facto, não se pode olvidar que é na audiência de julgamento que se produzem e avaliam (todas) as provas, (cfr. art. 336° do C.P.P.M.), sendo da análise (global) do seu conjunto e no uso dos seus poderes de “livre apreciação da prova” conjugados com as regras da experiência, (cfr. art. 114° do mesmo código), que os julgadores adquirem a “convicção” sobre os factos objecto do processo.

Assim, visto estando que o “erro notório na apreciação da prova” nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que o Tribunal devia ter dado relevância a determinado meio de prova – sem “especial valor probatório” – para formar a sua convicção (e assim dar como assente determinados factos), visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da “livre apreciação da prova” e de “livre convicção” do Tribunal.

In casu, tendo presente o teor da decisão do Tribunal Judicial de Base, em especial, a fundamentação exposta em sede da exposição dos motivos de convicção no que toca à “decisão da matéria de facto”, (cfr., fls. 464 a 466), e ponderando, igualmente, no que pelo recorrente vem alegado, evidente se nos apresenta que incorre o mesmo em manifesto equívoco pois que o seu “inconformismo” em relação ao decidido em nada tem a ver com o “vício” em questão.

Em face do que se deixou consignado, (e que se tem como adequado), evidente se nos apresenta que nenhum “erro” existe, e que tão só pretende o demandante recorrente é sindicar a “convicção” que se formou sobre a “forma” como ocorreu o acidente, o que, como é bom de ver, não pode proceder.

Aqui chegados, e cabendo agora ver da discutida “percentagem de culpa pelo acidente”, sem mais demoras se passa a expor o nosso ponto de vista.

E, nesta conformidade, ponderando no que “provado” e “não provado” resultou da audiência de julgamento efectuada, (e que o Tribunal de Segunda Instância confirmou a decisão em questão), cremos que a razão está do lado da demandada.

Vejamos.

Na verdade, e em nossa opinião, as Instâncias recorridas incorrem em deficiente apreciação e enquadramento da factualidade provada, confundindo o momento do “início da marcha – ou «arranque» – do veículo” (após a sua paragem e entrada do demandante), com o da sua “desaceleração” e “travagem”, (após ter circulado e) em face da presença de peões a atravessar a passadeira, sendo este o (verdadeiro) “momento” em que (efectivamente) ocorreu a “queda” do referido demandante.

De facto, da matéria de facto dada como provada resulta, (com toda a clareza), que o autocarro segurado pela demandada parou na paragem em frente ao “n.° 41” da Rua da Ribeira do Patane, onde o demandante entrou, e que a queda que sofreu ocorreu – com a desaceleração e travagem do autocarro em que seguia – no momento da sua chegada à passadeira para peões situada em frente ao “n.° 61” da mesma via.

Assim, há que ter como (totalmente) irrelevantes as “apreciações” pelas Instâncias recorridas dirigidas à conduta do condutor relativamente ao “momento” do “arranque” ou (re)início da marcha do autocarro após a sua paragem em frente ao n.° 41, adequado se apresentando antes de se atentar no sucedido no “momento” em que ocorre a queda do demandante.

E, então, cremos que (bastante) explícita se apresenta a causa da aludida “queda”, pois que provado está que:
- “à chegada à dita passadeira para peões, o condutor desacelerou adequadamente o autocarro e parou normalmente”; que,
- “foi a força de desaceleração normal do autocarro que provocou a queda do ofendido que se encontrava de costas para o sentido de circulação”; que,
- “O demandante, depois de entrar no autocarro, deu dois ou três passos e ficou, de pé, junto a um primeiro corrimão do lado esquerdo do corredor do autocarro, a contar do lado de quem entra do veículo”; que,
- “De início o mesmo agarrou-se a esse corrimão, mas, depois, deixou-o ficando apenas com a mão apoiada na pega do carrinho de compras que trazia consigo, ficando de costas voltadas para a frente do autocarro”; e que,
- “foi nessa posição que o mesmo se encontrava, quando o 2.° demandado teve que começar a travar para reduzir a velocidade, quando se aproxima da passagem para peões e o demandante, sem estar agarrado ao referido corrimão, caiu desamparado de costas (…)”; (cfr., pontos 2°, 19°, 20° e 21° da matéria de facto).

Por sua vez, importa ter igualmente presente que do julgamento efectuado resultou “não provado” que:
- “Quando chegou à Zebra em frente ao número de polícia n.º 61, o arguido não desacelerou previamente, nesse momento, por haver peões a atravessar a Zebra, o arguido, de imediato travou o autocarro”; que,
- “A conduta do arguido de conduzir com a mão esquerda a palitar os dentes e a mão direita sobre o volante que afectava a segurança da condução, fez com que o ofendido caísse em direcção à porta frontal do autocarro e embatesse na caixa de moedas aí existente ao lado do assento do condutor, tendo sido a razão deste acidente”; e que,
- “O arguido violou o dever de cautela, não regulou adequadamente a velocidade do veículo conforme a situação da via, que por sua vez não conseguiu desacelerar o veículo com segurança, causando ferimentos ao ofendido”; (cfr., pontos 1°, 2° e 3° dos “factos não provados”).

E, em face do que se deixou consignado, pouco mais se mostra necessário dizer para se chegar à solução que se deixou adiantada.

Com efeito, se verdade é que no “contrato de transporte”, a obrigação (essencial) do transportador não se esgota num (mero) “resultado”, (ou seja, na deslocação de pessoas e/ou coisas de um lugar para outro), constituindo também uma “obrigação de garantia”, no sentido em que impende igualmente sobre o transportador o dever de zelar pela segurança do passageiro e/ou do objecto transportado, (de forma a evitar que qualquer dano lhe possa advir), cremos que na situação dos autos se impõe concluir que a “queda” e “lesões” que com ela sofreu o demandante, tão só a si próprio se devem, pois que (apenas) tem como causa a forma (totalmente) “desatenta”, “descuidada” e “desleixada” em que viajava no autocarro em que aquela se deu.

De facto, não se pode olvidar que aos passageiros do autocarro em questão era permitido que viajassem “em pé”, que no mesmo existiam pegas (nos respectivos lugares) para que se segurassem durante a viagem que, como é – absolutamente – normal, tem (sempre) um certo “balanço” próprio da circulação e movimento de qualquer veículo, devendo, (como é óbvio e natural), os passageiros que pretendessem seguir viagem de tal forma, (“em pé”), providenciar e assegurar – segurando-se para – que, em situações de “normal circulação do veículo”, não viessem a causar danos ou prejuízos a quem quer que seja.

Na verdade – e sem se pretender aqui entrar em (grandes) considerandos sobre “questão” para a qual não serão os presentes autos o local próprio – cremos que o que em boa verdade sucedeu foi tão só o resultado, próprio e natural, da “lei da inércia”, (também chamada “1ª Lei de Newton”), e que, em síntese, indica a normal “resistência à mudança” e a tendência ou qualidade que todo e qualquer corpo tem de “permanecer em seu estado de repouso ou movimento”, (ou seja, de se opor às “mudanças em sua velocidade”), e que, v.g., se pode sentir, quando se está dentro de um veículo em movimento: quando o veículo acelera, o corpo do passageiro é pressionado contra o assento, em movimento “para trás”, havendo a tendência de se continuar a seguir a mesma velocidade em que se estava a circular, fazendo-se um movimento “para a frente”, quando o veículo abranda, ou trava; (daí, aliás, a utilidade da almofada para a cabeça, assim como a necessidade dos “cintos de segurança” e “air-bags”).

In casu, o que sucedeu foi (exactamente) o normal resultado da “desaceleração do autocarro”.

E, por causa da “inércia”, o demandante projectou-se em continuação do movimento que vinha fazendo, e, como viajava sem estar deviamente seguro ou preso a qualquer pega, e de costas – totalmente descuidado – perdeu o equilíbrio, e, (infelizmente), caiu.

Dest’arte, e em face da facticidade apurada e definitivamente adquirida, imperativo se nos mostra de concluir que (totalmente) alheia ao acidente dos autos foi a “condução” pelo arguido imprimida ao veículo onde a queda do demandante se deu, motivos não existindo assim para se considerar que houve qualquer “defeito” na prestação do serviço em questão e, desta forma, para qualquer responsabilização da demandada seguradora que deve ser absolvida do pedido de indemnização deduzido.

Outra questão não havendo a apreciar – nem tão pouco, a referente à “junção de documentos” pelo demandante, porque totalmente prejudicada – resta decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam:
- negar provimento ao recurso principal do demandante;
- conceder provimento ao recurso subordinado da demandada; e,
- revogar o Acórdão recorrido, absolvendo-se a dita demandada do pedido de indemnização civil deduzido.

Custas pelo demandante recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 12 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 03 de Março de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

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