Processo nº 79/2023
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. “A”, (“甲”), intentou a presente acção declarativa sob a forma ordinária contra B (乙), pedindo que:
“a) seja anulado o registo concedido da marca mista, com o elemento nominativo “鼻特清 (PEI TAK CHENG), efectuado em nome da Ré na Direcção dos Serviços de Economia, sob o nº N/147173, para a classe 5 (produtos farmacêuticos), por reprodução e imitação da marcas notórias da Autora, nos termos conjugados, entre outros, dos artigos 230º, nº 1, alínea b) e 214º, nº 1, alínea b), todos do RJPI, ou, caso assim não se entenda, anulada a mesma marca registada da Ré nos termos gerais previstos no artigo 48º ex vi do artigo 230º, nº 1, do RJPI, por evidente e clara má-fé da Ré no registo dessa marca;
b) Consequentemente, seja, também, anulado o respectivo título de registo da marca N/147173 da Ré;
c) Em consequência dos pedidos constantes das alíneas a) e b) supra, seja, ainda, a Ré impedida e/ou proibida de utilizar em Macau, na sua actividade comercial, a referida marca.
Subsidariamente, para o caso de não procederem os pedidos supra,
d) Deve o registo e utilização da marca da Ré com o nº N/147173 num produto igual ao da Autora serem considerados ilegais;
e) Deve a Ré ser condenada a abster-se de utilizar tal marca com o n° N/147173 no medicamento que lançou no mercado;
f) Deve a Ré ser condenada a abster-se de usar no seu medicamento o nome em chines 鼻特清 (PEI TAK CHENG);
g) Deve a Ré ser ainda condenada a abster-se de conferir ao seu medicamento a mesma apresentação do medicamento da Autora,
por tais actos consubstanciarem actos de concorrência desleal, proibidos por lei, nos termos dos artigos 156º, 158º, 160º e 163º, nº 2, todos do Código Comercial.
Ainda e em qualquer caso,
h) Seja a Ré condenada em custas e procuradoria condigna”; (cfr., fls. 2 a 27 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, proferiu o Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base sentença de 28.04.2022, (CV1-20-0035-CAO), julgando procedente o recurso, anulando o registo e o respectivo título da marca registada pela R. sob o n.° N/147173, e proibindo-se a mesma de usar o sinal na sua actividade comercial em Macau; (cfr., fls. 595 a 608-v).
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Inconformada, a R. (B), recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 16.03.2023, (Proc. n.° 861/2022), concedeu provimento ao aludido recurso e, revogando a sentença recorrida, decidiu no sentido da concessão do peticionado registo; (cfr., fls. 756 a 790).
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Vim agora a A. – “A” – recorrer do referido Acórdão para este Tribunal de Última Instância.
Em sede das suas alegações, produz, a final, as seguintes conclusões:
“I. O presente recurso tem por objecto o acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância datado de 16/03/2023 que revogou a douta sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base ("TJB") de 28/04/2022 (a "Sentença do TJB") que tinha julgado procedente a acção movida pela Recorrente e, em consequência, anulado o registo da marca da Recorrida titulado na DSEDT sob o n° N/147173 e proibido o seu uso, por esta, na sua actividade comercial na RAEM.
II. Considerou a sentença do TJB em função da factualidade provada que, ao registar a Marca N/147173 e usá-la para a comercialização de produtos idênticos e aos quais conferiu o "trade dress" da Recorrente, apropriando-se desta imagem e transformando-a em marca/sinal própria/o, a Recorrida flagrantemente violou as normas e usos honestos da actividade económica, decidindo pela proibição de tal conduta no comércio de Macau, e procedendo à anulação daquela marca
III. O Acordão Recorrido deu provimento ao recurso da Recorrida na parte relativa à matéria de direito entendendo, em suma, que, encontrando-se a marca se registada a favor de um terceiro - e não da autora - que a esta renunciou, não era exigível à Ré ora Recorrida contactar a Autora ora Recorrente ou concluir-se que a Ré ou alguém estaria a usar a marca daquela, entendendo ainda que, tendo a Autora suspendido a comercialização e produção do seu medicamento entre 2015 e 2018, não poderia considerar-se que a Ré se aproveitou da imagem dada ao seu produto, e que, pela mesma razão, não poderia verificar-se qualquer desvio de clientela, ainda que potencial.
IV. O Acordão Recorrido parte de pressupostos de facto errados e nele se desconsideram por um lado, factos dados como provados e, por outro lado, se alcançam conclusões que não encontram o mínimo suporte na factualidade apurada nos presentes autos, decidindo assim, em violação do disposto nos artigos 156°, 158°, 159°, 160° e 163°, n° 2, 164° do Cod. Com.
V. Está provado e nem se discute nos presentes autos que todos os sinais (gráficos e nominativos) em discussão nestes autos são iguais entre si (ou muito semelhantes), servem para assinalar os mesmos produtos (ou muito semelhante) que têm a mesma composição química e destinam-se a serem comercializados para o mesmo consumidor final e no mesmo espaço económico concorrencial de Macau, pelo que o thema decidendum nos presentes autos se circunscreve à questão de saber se, em função da matéria de fado provada, os actos de registo e utilização pela ora Recorrida, da Marca N/147173 consubstanciam fundamento suficiente de anulação dessa marca tendo por base a prática de actos de concorrência desleal.
VI. No acórdão recorrido começou por se defender que a Ré ora Recorrida não se aproveitou de qualquer sinal da Autora ora Recorrente desde logo porque a marca em causa (marca N/100916) nunca foi titulada pela Autora, e, ademais, era titulada por um terceiro - a Sra. C - que a ela posteriormente renunciou, tendo esta renuncia implícita a intenção de a libertar e colocar novamente no mercado para quem dela se quiser apropriar.
VII. Sucede que não só a intenção com que a referida titular renunciou à marca nos presentes autos não foi objecto de prova nos presentes autos, como resulta claro, designadamente dos factos provados sob a alínea d) e w), que o referido registo por ser a referida C proprietária da empresa E, que foi a representante comercial da Recorrida em Macau, o que, a entender-se necessário extraírem-se suposições da matéria de facto sub judice, impunha-se a inversa à alcançada pelo douto tribunal a quo.
VIII. Por outro lado, o certo é que quer a questão de facto como a sua relevância jurídica são outras pois não está em causa a prevalência de direitos privativos de propriedade industrial mas tão só a questão de saber se a actuação da Ré configura concorrência desleal, nos termos do disposto nos artigos 156°, 158°, 159°, 160° e 163°, n° 2, 164°, do Cod. Com.
IX. A relevância do uso de uma marca ou de um sinal distintivo no comércio tanto é conferida pelo tratamento legal que o RJPI dá ao uso por terceiros de marcas livres e, não registadas, no artigo 202° desse diploma legal e, portanto, no âmbito dos direitos privativos da propriedade industrial, como, também, no âmbito da concorrência desleal, desaprovando e sancionando legalmente comportamentos comerciais desonestos, desleais na actividade económica, independentemente do seu registo industrial, o que constitui a vertente económica ou comercial do regime jurídico da propriedade industrial em Macau, constituindo uma defesa complementar em relação àquele, nos termos da boa doutrina e jurisprudência supra citada.
X. Contrariamente ao que se sustenta no Acórdão Recorrido, a Recorrida não requereu (inicialmente) o registo de uma marca livre, pois quando a Recorrida solicitou o pedido de registo da Marca N/147173 em 28/11/2018, ainda estava perfeitamente válida e vigente no registo a marca N/100916 à qual a respectiva titular só veio a renunciar em 27/06/2019.
XI. Ocorrendo a renúncia mais de 6 meses após o pedido de registo da Recorrida o pedido de registo da referida Marca N/147173 constituiu apenas mera, despudorada e servil cópia do sinal que constituía uma marca que ainda se encontrava validamente registada sob o N/100916.
XII. O Acórdão Recorrido sustenta-se ainda na circunstância de entre finais de 2015 e 2018, a Recorrente ter encerrado temporariamente os seus laboratórios a fim de modernizar e melhorar o seu equipamento, deixando de produzir, nesse período, quaisquer dos seus produtos farmacêuticos (facto provado sob a alínea x)).
XIII. Do facto da suspensão da produção o tribunal a quo extrai a conclusão que os produtos da autora não eram comercializados em Macau, pelo que imagem alguma da Autora restava suscetível de ser apropriada pela Ré, o mesmo se dizendo quanto à potencial clientela que pudesse ser desviada.
XIV. A conclusão da não comercialização dos produtos da Recorrente em Macau entre 2015 e 2018 é inteiramente nova e não se suporta em qualquer facto provado nos presentes autos, antes sendo contrariada por matéria efectivamente provada.
XV. O facto constante da alínea x) dos factos provados ("entre finais de 2015 a 2018 a Autora encerrou os seus laboratórios para efeitos de renovação e modernização de todo o seu equipamento, pelo que deixou de produzir, nesse período, qualquer dos seus medicamentos ou produtos farmacêuticos") apenas se refere à produção dos produtos farmacêuticos e tal não equivale a dizer que as dezenas de milhares de produtos que exportou para Macau em 2015 (cfr. alínea u) dos factos provados) ou as centenas de milhares de produtos que exportou ao longo dos anos e até então (cfr. alíneas p) a v) dos factos provados) tenham sido retirados dos postos de venda ou recolhidos aos respectivos consumidores finais e, assim, que então tenham deixado de ser vendidos ou conhecidos do publico de Macau.
XVI. Não se pode extrair do facto constante da aliena x) dos factos provados a conclusão extraída pelo douto tribunal a quo que a Recorrente cessou a comercialização dos produtos sub judice da em Macau entre finais de 2015 e 2018.
XVII. Resulta da experiência comum, designadamente quando se está perante um produto - medicamento - que é usualmente deixado em grande quantidade em stocks nos armazenistas e farmácias, os seus produtos anteriormente exportados para Macau, até final de 2015, aqui continuaram a ser vendidos por mais anos e, assim, a estarem disponíveis no" mercado, sendo escoados pelos respectivos distribuidores e disponibilizados aos consumidores de Macau ao longo dos tempos.
XVIII. Resultou igualmente provado que o medicamento da ora Recorrente se encontrava registado para ser comercializado em Macau (cfr. alínea n) dos factos provados) [junto dos serviços de Saúde de Macau], pelo que os respectivos sinais continuaram, também por essa via, a ser utilizados em Macau.
XIX. Ficou também provado (cfr. alínea y) que em finais de 2018, quando reabriu a sua fábrica, autorizou a sociedade de Macau a "D" a vender os seus produtos em Macau, autorização que constitui outra manifestação dos poderes de facto e contínua utilização dos sinais sub judice pela Recorrente.
XX. Tendo continuado a utilizar os sinais em Macau é evidente que existe o risco, ainda que potencial de desvio de clientela, tanto mais que, aquando a concessão da marca sub judice, já a Recorrente havia celebrado acordo distribuição dos seus produtos com sociedade de Macau (cfr. alínea y).
XXI. Em Maio de 2019 - momento em que a Recorrida não tinha ainda obtido o registo da Marca N/147173 - mantinha-se todo o status quo de uso pela Recorrente desse sinal, por tolerância ou acordo com a sua proprietária no registo, nos seus produtos em Macau, tal como vinha sucedendo desde 2015.
XXII. O ónus de prova desses factos - que nem sequer foram levados à selecção da matéria de facto - sempre recairiam sobre a Recorrida - e não sobre a Recorrente - o que não sucedeu.
XXIII. É jurisprudência do próprio Tribunal de Segunda Instância que "(…) pode haver concorrência desleal mesmo que um dos "concorrentes" não tenha marca registada na RAEM, da mesma maneira que a existência de um conflito entre marcas registadas não envolve necessariamente a ideia de concorrência desleal (…) […] Não se encontra, pois, a repressão da concorrência desleal subordinada necessariamente à existência de um direito privativo violado.
XXIV. Nos termos do disposto nos artigos 158.° e 159.° do Cod. Com. a concorrência desleal verifica-se se se preencherem os três requisitos de (i) a prática de um acto de concorrência, (ii) a desconformidade com normas e usos honestos e (iii) numa actividade económica.
XXV. Ficou provado que "aa) A ré sabia que a autora há muitos anos comercializava o medicamento identificado pelo sinal 鼻特清 (que romaniza PEI TAK CHENG)" (alínea aa), que "sabia também que a autora usava na comercialização desse medicamento um sinal que, além de outros elementos, incluía o sinal que constitui a marca que a própria ré veio posteriormente a registar e que se encontrava identificada na anterior alínea c)" (bb) e que a ré sabia que a autora não tinha efectuado o registo dessa sua marca em Macau, pois quem a tinha registado em seu nome era a Sra. C" (cc) (pessoa a quem pertencia a firma E, que foi, até 2015, representante comercial da Recorrente em Macau, em conformidade com o provado pela alínea w) dos factos provados).
XXVI. Ficou provado que a ora Recorrente exportou centenas de milhares dos seus produtos entre os anos de 2010 a 2015 (cfr. alínea p) a v) dos factos provados).
XXVII. Ficou também provado que quando a Recorrida requereu o registo da Marca N/147173, em 27/11/2018, os sinais não eram livres, pertenciam a um terceiro no registo da DSEDT e que eram há muito usados pela Recorrente no comércio dos seus produtos em Macau.
XXVIII. Ficou provado que os sinais em confronto - usados pela Recorrente e pela Recorrida - são iguais (ou muito semelhantes), aplicam-se aos mesmos produtos, têm a mesma composição química, destinam-se aos mesmos consumidores e actuam no mesmo espaço económico concorrencial de Macau (alíneas c), d), e), f), e z) dos factos provados)
XXIX. Em face da matéria de facto provada, é evidente a Recorrida, ao lançar no mercado de Macau um medicamento com o mesmo nome comercial, marca - no sentido de sinal distintivo - a mesma imagem do medicamento da Recorrente, com a mesma composição química, e para o mesmo público alvo, é evidente que cria no público consumidor a convicção de que se trata do mesmo medicamento da Recorrente, levando-o a adquiri-lo, convencido de que está a adquirir tal medicamento a esta, e passa a ilegitimamente beneficiar da reputação que a Recorrente granjeou (e granjeia) há vários anos em Macau, no específico mercado de medicamentos, sobretudo na área de medicamentos para gripes e afins, provocando, através destes actos de confusão dos consumidores.
XXX. O comportamento da Recorrida constitui uma clara desconformidade com normas e usos honestos na actividade económica, uma evidente actuação desleal, por idónea a criar confusão.
XXXI. O regime jurídico da concorrência desleal vigente em Macau não permite que a Recorrida, para vender os seus produtos ou serviços e desenvolver a sua actividade em Macau, o faça à conta da confusão que notoriamente cria no consumidor quanto à origem do mesmo produto ou serviço, que são nada mais do que o repugnante resultado da imitação do produto da Recorrente, pois ao direito repugnam as actuações parasitárias e servis em prejuízo dos concorrentes e dos consumidores, como a da ora Recorrida, o que a Sentença do TJB bem reconheceu e julgou.
XXXII. Ao abrigo do disposto no artigo 171° do CCom, o único meio oportuno para eliminar o efeito dessa concorrência desleal perpetrada pela Recorrida passa, necessariamente, pela proibição do uso pela Recorrida da Marca N/147173 no comércio em Macau por evidente confusão com o sinal usado pela Recorrente nos seus produtos, de onde tal tutela se tornará efectiva, anulando-se a referida marca no registo da DSEDT e proibindo a sua titular de usar tal sinal na sua actividade comercial na RAEM
XXXIII. Cumpre acrescentar que sempre a referida Marca Registada N/147173 seria de anular com fundamento na flagrante má-fe da Recorrida com esse registo, comprovada, entre outros, pela matéria que ficou provada nas alíneas aa), bb) e cc), à luz do disposto nos artigos 48°, n°s 1 e 4, 201°, n° 1 e 230°, n° 1, todos do RJPI, disposições legais que sempre fundamentariam e suportariam tal decisão.
XXXIV. Ao decidir como decidiu o Acórdão Recorrido violou as disposições constantes dos artigos 156°, 158°, 159°, 160° e 163°, n° 2, 164°, todos do Código Comercial, pelo que deve este Acordão ser revogado e, por conseguinte, manter-se a decisão que foi proferida pelo Tribunal Judicial de Base que havia decretado a anulação a referida Marca N/147173 no registo da DSET e proibido a Recorrida de usar esse mesmo sinal na sua actividade comercial na RAEM”; (cfr., fls. 798 a 830).
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Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre apreciar e decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal Judicial de Base (e Tribunal de Segunda Instância) foram considerados como “provados” os factos seguintes:
“a) A Autora é uma sociedade constituída segundo as leis de Hong Kong.
b) A Autora tem registado nos Serviços de Saúde Macau várias dezenas de medicamentos ou produtos farmacêuticos.
c) A seguinte marca mista, para a classe 5, produtos farmacêuticos, sob o nº N/147173, foi concedida à Ré em 11 de Dezembro de 2019, na sequência de um pedido datado de 28 de Novembro de 2018.
d) A seguinte marca mista, sob o nº N/100916 foi concedida à Sra. C em 11 de Dezembro de 2015, na sequência de um pedido datado de 19 de Junho de 2015.
e) A Sra. C pediu a renúncia da marca sob o nº N/100916 à DSE, que lhe foi concedida por despacho de 27 de Junho de 2019, publicado na 2ª Série do BO de 17 de Julho de 2019.
f) A Autora procedeu ao pedido de registo da marca mista sob o nº N/167018 na DSE em 23 de Março de 2020.
g) A autora é uma sociedade constituída em Abril de 1978, que se dedica ao fabrico e comercialização de medicamentos e produtos farmacêuticos. (Q. 1º)
h) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 2010, a autora começou a produzir um medicamento em forma de comprimidos, à base do fármaco betametasona, para alívio dos sintomas de rinite, rinite alérgica ou infecção das vias respiratórias superiores, designadamente, espirros e corrimento nasal, que identificou pelo sinal em inglês BETADEXIN, e em chines, 鼻特清 (que romaniza Pei Tak Cheng). (Q. 2º)
i) O medicamento foi aprovado pelas autoridades de Hong Kong e a autora encontra-se devidamente licenciada para o produzir e comercializar, conforme licença emitida pelas autoridades competentes de Hong Kong, presentemente válida até 7 de Fevereiro de 2021 e renovável por períodos de 5 anos. (Q. 3º)
j) O medicamento da autora que identificou com o sinal BETADEXIN鼻特清 (que romaniza Pei Tak Cheng) é comercializado em embalagens de 30, 60 e 90 comprimidos. (Q. 4º)
k) Nas embalagens de 60 comprimidos, a autora tem vindo usar, desde data não concretamente apurada, mas anterior a 2010, um sinal com a seguinte imagem: (Q. 5º)
l) No outro lado da embalagem, a autora usa o mesmo sinal, com a diferença de, em vez de usar os caracteres chineses, usa o nome comercial do medicamento em inglês, BETADEXIN, conforme resulta da seguinte imagem. (Q. 6º)
m) Nas embalagens de 90 comprimidos, a autora tem vindo a usar um sinal conforme o documento a fls. 377. (Q. 7º)
n) O medicamento da autora, identificado com o sinal BETADEXIN鼻特清, encontra-se registado para ser comercializado em Macau há muitos anos. (Q. 8º)
o) A autora exportou para Macau as quantidades constantes nas alíneas p) a v) do medicamento identificado por BETADEXIN鼻特清, o qual aqui foi colocado à venda. (Q. 9º)
p) A autora exportou para Macau, no ano de 2010, 7582 embalagens de 90 comprimidos, 3571 embalagens de 30 comprimidos e 2970 embalagens de 60 comprimidos. (Q. 11º)
q) No ano de 2011, exportou para Macau 3850 embalagens de 60 comprimidos, 8594 de 90 e 6461 de 30 comprimidos. (Q. 12º)
r) No ano de 2012 exportou para Macau 6050 embalagens de 60 comprimidos, 4878 de 90 e 3588 de 30 comprimidos. (Q. 13º)
s) Em 2013, exportou para Macau 9740 embalagens de 60 comprimidos, 16856 de 90 e 6008 de 30 comprimidos. (Q. 14º)
t) Em 2014 exportou para Macau 4885 embalagens de 90 comprimidos, 9240 embalagens de 60 comprimidos e 4009 embalagens de 30 comprimidos. (Q. 15º)
u) Em 2015 exportou 4456 embalagens de 90 comprimidos e 12650 de 60 comprimidos. (Q. 16)
v) Em Maio de 2019, após o reinício de produção, a autora exportou para Macau 3000 caixas de 60 comprimidos e 5116 caixas de 90 comprimidos. (Q. 17º)
w) Até 2015 a sua representante comercial em Macau era a firma E, localizada na [Endereço], Macau, pertencente a uma senhora chamada C. (Q. 18º)
x) Entre finais de 2015 a 2018 a autora encerrou os seus laboratórios para efeitos de renovação e modernização de todo o seu equipamento, pelo que deixou de produzir, nesse período, qualquer dos seus medicamentos ou produtos farmacêuticos. (Q. 19º)
y) Em finais de 2018, quando reabriu a sua fábrica, autorizou a sociedade de Macau, “D”, em chinês “丁” a vender os seus produtos em Macau, podendo, para o efeito usar as suas marcas. (Q. 20º)
z) Após obter o registo da marca N/147173, por volta do início de Fevereiro corrente ano, a ré começou a comercializar em Macau um medicamento com o nome em chinês鼻特清, em inglês Witt Cestasin, nas embalagens de 60 comprimidos e com princípio activo de betametasona. (Q. 21º)
aa) A ré sabia que a autora comercializava em Macau o medicamento identificado pelo sinal 鼻特清 (que romaniza Pei Tak Cheng). (Q. 22º)
bb) A ré sabia também que a autora usava na comercialização desse medicamento um sinal que, além de outros elementos, incluía o sinal que constitui a marca que a própria ré veio posteriormente a registar e que se encontra identificada na anterior alínea c). (Q. 23º)
cc) Sabia a ré também que a autora não tinha efectuado o registo dessa sua marca em Macau, pois quem a tinha registado em seu nome era a Sra. C. (Q. 24º)”; (cfr., fls. 596 a 597-v e 774-v a 776-v).
Do direito
3. Insurgindo-se contra o decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, pede a ora recorrente, “A”, a sua revogação, para ficar a valer a decisão do Tribunal Judicial de Base de 28.04.2022 que anulou o registo da marca n.° N/147173 pela ora recorrida, (B), antes efectuado.
No intuito de melhor compreender o que em causa está, vale a pena começar atentando-se nas razões da decisão recorrida.
Na parte que agora releva, assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância, (que, no seu Acórdão, transcreveu também a fundamentação jurídica do Tribunal Judicial de Base):
“2. DO DIREITO
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Considerações gerais
O núcleo da controvérsia dos presentes autos coloca a seguinte questão: quem merece melhor protecção através do direito de marca, aquele que primeiro usa o sinal para marcar os seus bens de comércio mas não o regista ou aquele que só mais tarde regista o mesmo sinal e passa a usá-lo?
A resposta há-de procurar-se no Direito da propriedade Industrial, formado por dois grandes sectores: os direitos privativos de propriedade industrial e a concorrência.
A autora usou nos seus produtos o sinal em litígio muito antes da ré, mas não o registou. A ré começou a usá-lo muito depois da autora, mas logrou registá-lo.
A autora disse que o sinal que usou já era notoriamente conhecido quando a ré o registou e que esta o registou de má-fé e para se aproveitar do sinal alheio. Conclui que o título de registo da autora deve ser anulado.
Os diversos regimes jurídicos em matéria de marcas baseiam a protecção dos sinais no primeiro uso ou no primeiro registo, havendo ainda sistemas que se podem designar de mistos.
O critério de protecção com base no uso apresenta-se como ontologicamente mais nobre por atribuir o direito ao criador e divulgador do sinal. Porém, apresenta-se também como menos seguro em face da dificuldade de apurar o início do primeiro uso relevante. Mais justo, mas menos seguro.
O critério de protecção assente no registo já se apresenta como mais seguro na determinação de quem primeiro se apresentou a registar, mas menos justo, pois que apenas atende ao “primeiro a requerer” sem se preocupar se o requerente do registo é o criador do sinal.
O nosso regime jurídico é claramente baseado no registo, embora o uso por vezes tenha alguns efeitos. Com efeito, dispõe o nº 1 do art. 15º que “salvo os casos previstos no presente diploma, o direito de propriedade industrial é concedido àquele que primeiro apresentar regularmente o pedido acompanhado de todos os documentos exigíveis para o efeito”.
De forma muito genérica e considerando globalmente o regime estabelecido pelos arts. 47º, 48º, 229º e 330º do RJPI1 pode afirmar-se que, tendencialmente, aos motivos absolutos de recusa do registo de marca correspondem causas de nulidade do mesmo registo e que aos motivos relativos de recusa correspondem causas de anulabilidade2.
Ainda de forma genérica pode afirmar-se que, tendencialmente, a nulidade dos títulos dos direitos de propriedade industrial tem origem em razões que respeitam ao conflito entre o direito de propriedade industrial titulado e o interesse comum ou geral (idoneidade do objecto, ordem pública, bons costumes, procedimento administrativo – art. 47º do RJPI). E pode também afirmar-se que a anulabilidade dos mesmos títulos tem origem em razões que respeitam ao conflito entre o direito de propriedade industrial titulado e interesses particulares, designadamente à disputa sobre a quem deve pertencer o direito titulado (art. 48º do RJPI).
No caso dos autos estamos em presença de um conflito que redunda em saber a quem deve pertencer o direito a ter um título de marca sobre um determinado sinal. A autora invoca que o direito a ter o título de registo de marca lhe advém de três factos: - do facto de ter utilizado previamente o sinal que a ré registou; - do facto de tal sinal ser notoriamente conhecido em Macau; - do facto de a ré se ter aproveitado de má-fé de um litígio que a autora mantinha com um terceiro que havia registado o mesmo sinal como marca e que acabou por renunciar ao registo.
A autora invocou, pois, como causas de anulabilidade do registo da marca da ré a imitação ou reprodução de marca notória anteriormente usada pela própria autora e a má-fé da ré na obtenção do registo da sua marca.
A imitação de marca notória.
Comecemos, pois, por verificar se ocorre a causa de invalidade reportada à marca notória.
Dispõe o art. 230º, nº 1, al. b) que “os registos de marca são anuláveis … quando o título for concedido em violação das normas contidas” na alínea b) do nº 1 do art. 214º.
E na alínea b) do nº 1 do referido art. 214º dispõe-se que “o pedido de registo é recusado quando … a marca constitua, no todo ou em parte essencial, reprodução, imitação ou tradução de outra notoriamente conhecida em Macau, se for aplicada a produtos ou serviços idênticos ou afins e com ela possa confundir-se, ou que esses produtos possam estabelecer ligação com o proprietário da marca notória”.
É anulável o registo concedido a sinais semelhantes a uma marca notória existente, se tal registo tiver sido concedido para assinalar bens também semelhantes aos que são assinalados com aquela marca notória.
A causa de anulabilidade em apreço depende da verificação dos seguintes requisitos cumulativos:
1 - Que haja semelhança entre os sinais que constituem as marcas;
2 - Que uma das marcas seja notoriamente conhecida em Macau antes de ser concedido o registo a outra semelhante;
3 - Que as marcas de destinem a assinalar produtos ou serviços idênticos ou afins;
Sendo requisitos cumulativos a semelhança entre as marcas, a notoriedade da marca anterior e a afinidade dos bens a assinalar com ambas, basta a falta de um desses requisitos para que não ocorra anulabilidade.
Comecemos então por aferir se a marca que a autora invoca é notoriamente conhecida em Macau.
Não é isenta de divergências a definição do que seja marca notoriamente conhecida ou marca notória3.
Crê-se que é maioritária a jurisprudência e a doutrina no sentido de a marca notória ser a que é conhecida de muitos e de forma imediata, aquela que é conhecida de uma grande parte do público consumidor como sendo aquela que distingue de uma forma imediata um determinado produto ou serviço 4.
A divergência adensa-se quanto a saber qual o público relevante onde deve aferir-se se a marca é maioritariamente conhecida de forma imediata. A generalidade do público consumidor ou o público consumidor dos produtos e/ou serviços cuja origem comercial a marca se destina a assinalar? E esta questão releva em casos como o dos autos que se reportam a um medicamento, designadamente se se tratar de um medicamento sujeito a receita médica.
A querela doutrinal foi resolvida pelo acordo TRIPS5. O seu art. 16º nº 2 é claro. “… A fim de determinar se uma marca é notoriamente conhecida, os Membros terão em conta o conhecimento da marca entre o público directamente interessado, …”.
Assim delimitado o conceito de marca notória, não parece haver dúvidas que não se provou que a marca invocada pela autora como reproduzida pela marca registada pela ré é marca notoriamente conhecida em Macau. De facto, não se provou a factualidade quesitada no quesito 10º, onde se questionava se “o medicamento da autora de marca BETADEXIN鼻特清, acabou tendo uma grande aceitação junto do público consumidor em Macau, está hoje perfeitamente sedimentado no mercado local, e é vendido pela maior parte das farmácias locais”. Por outro lado, o simples facto de se ter provado que a autora usou a marca para assinalar um medicamento do qual exportou para Macau considerável número de embalagens, embora com um hiato entre 2015 e 2018, não permite concluir que a marca (não o medicamento) é conhecida por muitas ou poucas pessoas e de forma imediata entre o público directamente interessado.
Dos factos provados não pode, pois, concluir-se que seja notoriamente conhecida na RAEM a marca que a recorrente invoca como marca notória. Falta, assim, um dos pressupostos cumulativos da anulabilidade pretendida pela autora, razão por que não procede a sua pretensão com fundamento nesta causa de pedir relativa à imitação de marca notória anterior.
A má-fé na obtenção do título de registo de marca.
Ficou dito que a anulabilidade do registo que titula direitos de propriedade industrial respeita tendencialmente a conflitos entre direitos privados e não a conflitos com o interesse comum. É anulável o registo concedido a uma pessoa com preterição ou ofensa dos direitos de outra (art. 48º, nº 1). Ou seja, em princípio, tem direito a obter um título de registo de um direito de propriedade industrial aquele que primeiro o pedir6, mas o registo é anulável se foi concedido com ofensa de direitos de terceiros. Parece, pois, que o interessado na anulabilidade de um título de registo de um direito de propriedade industrial tem, em primeiro lugar, de demonstrar que é titular de um direito que o registo concedido a terceiro não respeitou e deveria ter respeitado.
A acção de anulação tem de ser intentada em determinado prazo (art. 48º, nº 3, art. 230º, nº 5, entre outros). Porém, dispõe o nº 4 do art. 48º que “o direito de pedir a anulação de título obtido de má-fé não prescreve”.
Parece, portanto, que a obtenção do registo de má-fé, só por si, sem ofensa de direito alheiro, não gera anulabilidade do registo. Na verdade, contrariamente ao que se passa noutras jurisdições, nenhuma norma expressa existe no nosso ordenamento jurídico que faça da má-fé usada na obtenção do registo uma causa autónoma de nulidade ou de anulabilidade do mesmo registo ou do título de registo7. E também nenhuma norma expressa há que faça de tal má-fé um motivo de recusa do registo.
Tudo aponta para que só a ofensa ao direito alheio cause anulabilidade do registo, sendo que, se tal ofensa estiver acompanhada de má-fé do requerente aquando da solicitação do registo, a anulabilidade pode ser pedida a todo o tempo e pode ser determinada oficiosamente pelo tribunal em caso de a ofensa constituir infracção de natureza penal (art. 294º, nºs 1 e 2). A má-fé na obtenção do registo, só por si, não seria causa autónoma de anulabilidade, mas mero extensor do prazo. Para o prazo existir seria necessária uma ofensa de direito alheio e para o prazo alargar seria necessário que a concessão do registo tivesse sido conseguida através de má-fé daquele que requereu e obteve o registo.
Parece ser também isso que resulta do art. 6º bis (3) da Convenção da União de Paris, quer na redacção de 1925, quer na de 19678. Tal artigo começa por referir que os estados membros da União de Paris devem conceder dois níveis de protecção às marcas notórias de outros estados membros contra a “imitação” por marca posterior a registar ou que venha a ser registada: a recusa do registo e a invalidade do mesmo se for concedido. Acrescenta-se depois que no caso de ter sido obtido de má-fé o registo da marca que imita marca notória estrangeira, então não há prazo para invalidação da marca imitadora. É claro que está na base desta protecção a defesa da marca notória estrangeira9. E não há um desprendimento entre a actuação de má-fé conducente à obtenção do registo e a imitação “ofensiva” da marca alheia. A má-fé na obtenção do registo não configura uma causa autónoma de anulação em relação à concessão do registo com ofensa de direito alheio. É apenas uma razão de extensão do prazo para anulação da marca ofensiva. Portanto, do regime da União de Paris resulta que se alguém, inocentemente, regista num país membro da União uma marca notória apropriada por outra pessoa noutro país da União, há invalidade da marca mais recente, mas há um prazo para requerer a invalidação, a contar do registo. Resulta também que se a marca posterior foi registada de má-fé, então a invalidação pode ser pedida sem limite de tempo. Nunca se prescinde da “ofensa” ao direito anteriormente adquirido no estrangeiro em relação ao país de registo.
Mais recentemente, a questão da má-fé na obtenção do registo de marca ganhou outra coloração e autonomizou-se em algumas jurisdições como motivo absoluto de recusa do registo de marca e como causa de nulidade dos registos concedidos. Prescinde-se agora da ofensa de direito alheio e coloca-se a questão fora do âmbito da protecção da marca notória estrangeira, ficando também abrangidas as marcas nacionais, as marcas ordinárias e as marcas ainda não existentes que alguém queira registar.
Esta nova dimensão normativa é também a que determina a melhor solução para as situações mais características de má-fé na obtenção do registo de marca, precisamente os casos em que não são ofendidos direitos de terceiro, mas se solicita o registo da marca sem intenção de uso efectivo do sinal registado no comércio, mas apenas com intenção de impedir que o registo do sinal seja concedido a qualquer pessoa que posteriormente o pretenda obter ou com a intenção de transmitir especulativamente o direito decorrente do registo (“marcas defensivas”, “trademark squatting”)10 11.
É claro que é a nulidade e não a anulabilidade o instrumento mais apropriado a impedir estes comportamentos de bloqueio de marcas sem intenção de as usar e com intenção de impedir que sejam usadas por outrem ou de obrigar a pagar compensação especulativa pela autorização de uso. Com efeito, está em causa o interesse comum visando impedir que, aproveitando a regra “first to file”, o registo de marcas se transforme num cemitério de marcas que ninguém usa e onde “o primeiro a chegar” conserva registadas para esgrimir como trunfo especulativo contra quem “chegar mais tarde”. Por isso, as legislações que autonomizam a obtenção de má-fé como causa de invalidade do título de registo optam pela nulidade.
Mas também é certo que uma causa de anulabilidade que pode ser invocada a todo o tempo é, em essência, uma causa de nulidade, especialmente se for ampla a legitimidade para a invocar como acontece no nosso RJPI (art. 49º, nº 2). De facto, o que distingue a nulidade da anulabilidade, além da natureza da causa, é essencialmente o prazo de invocação e a amplitude daqueles que podem invocá-la.
Conclui-se, pois, que no nosso sistema jurídico a má-fé na obtenção do registo, desligada de qualquer ofensa a direito alheio, não é uma causa autónoma de anulabilidade dos títulos de registo de marca12. Isto, sem prejuízo do recurso à figura geral do abuso de direito que sempre permitirá declarar nulo um título de registo de marca requerido com a intenção de não usar o sinal registado mas de apenas especular ou bloquear terceiros legitimamente interessados em usá-lo, pois que em tal caso se estará em presença de uma situação onde são excedidos os limites impostos pela boa-fé e pelo fim social e económico do direito de marca (art. 326º do CC). Diga-se, porém, que se provou que a marca registada pela ré está a ser usada para distinguir bens, razão por que não haverá razões na factualidade provada para considerar excedido o fim económico e social do direito de marca (al. z) dos factos provados).
Conclui-se, pois que também não ocorre a causa de anulabilidade do título de registo de marca referente à má-fé na obtenção do registo.
Claro se afigura que a ré se aproveitou sem qualquer pudor de um sinal anteriormente criado e divulgado pela autora. Porém não está demonstrado que a autora tenha adquirido qualquer direito de exclusivo sobre tal sinal, pelo que o mesmo deve ser considerado livre para apropriação por outrem e só deve ver anulado o registo se foi pedido apenas para especular e não para usar no comércio assinalando os bens de determinada proveniência empresarial. De outra forma, o nosso sistema já não seria um sistema de aquisição do direito de marca com base no registo (registration-based system), mas com base no uso (use-based system)13.
Há agora que referir que a autora também não invocou qualquer direito seu como ofendido pelo registo. De facto, apenas alegou que usava e usa marca idêntica à que foi registada pela ré, mas não disse que adquiriu qualquer direito de marca sobre o sinal em causa. Com efeito, não alegou o registo de tal sinal como marca, não alegou o uso com indicação de qualquer jurisdição onde o uso concreto que fez é facto aquisitivo do direito de marca, nem alegou o depósito do sinal distintivo, nem alegou qualquer outro facto aquisitivo em qualquer jurisdição. Limitou-se a dizer que usou na RAEM e na RAEHK. Certo se afigura que na RAEM só o registo é verdadeiramente aquisitivo do título de registo de marca e do inerente direito de propriedade industrial14.
O uso invocado pela autora só provocaria anulabilidade do direito da ré em duas situações:
- Se aquele uso se tivesse iniciado há menos de seis meses em relação ao pedido de registo da ré, pois que, nesse caso, o registo concedido à ré seria concedido com preterição do direito de prioridade da autora (art. 202º, nº 1). Também não foi isso que ocorreu, uma vez que o uso do sinal pela autora se iniciou alguns anos antes de ter sido registado pela ré.
- Se o uso no exterior da RAEM tivesse levado à aquisição do direito de marca noutra jurisdição e esta marca fosse notoriamente conhecida na RAEM. Também esta situação não está demonstrada nos autos.
Esclareça-se neste ponto que se entende que a marca notória não apropriada (marca de facto) na RAEM ou no exterior, ainda que pelo uso nas jurisdições onde o uso é facto aquisitivo, não tem protecção na RAEM advinda do sistema de direitos privativos de propriedade industrial, podendo tê-la no âmbito da concorrência desleal que não está agora aqui em ponderação. Ressalva-se o direito de prioridade nos primeiros seis meses de uso. Faz-se este esclarecimento porque a autora invocou apenas marca notória de facto, nunca tendo dito que adquiriu qualquer direito sobre ela, quer advindo do registo, quer advindo de outro facto aquisitivo em qualquer jurisdição. O art. 214º, nº 1, al. b) não se refere a marca notória registada como faz a al. b) do nº 2 do mesmo artigo, porque este último normativo visa a marca local, seja ordinária, notória ou de prestígio, as quais só têm este nível de protecção se estiverem registadas. Já o nº 1, al. b) visa a marca do exterior que seja notoriamente conhecida em Macau mas aqui não esteja registada. Por isso não pode exigir o registo no exterior onde não é exigido. Mas não lhe pode recusar protecção por imposição da Convenção de Paris. É uma protecção à marca notória estrangeira imposta, como se viu, pela Convenção de Paris. Mas não pode conceder-se aqui protecção a marca estrangeira que não tem protecção no país de origem, como é evidente. Por isso, a autora teria sempre de invocar o facto aquisitivo da sua marca se a pretender defender dentro do sistema dos direitos privativos de propriedade industrial, que é diferente do sistema da concorrência que aqui não está em ponderação. Também é esta a opinião de Oliveira Ascensão15.
Conclui-se, portanto, que no nosso regime jurídico dos direitos de propriedade industrial o conflito entre o usuário de sinais distintivos ordinários (e até notórios não apropriados, mas de facto) e o titular do respectivo registo, salvo em casos de abuso do direito por parte deste último e em caos de direito de prioridade fundado no uso por tempo inferior a seis meses em relação ao registo, é vencido pelo titular do registo16.
A opção pelo sistema de registo constitutivo, mais seguro, mas menos justo, tem um preço. E esse preço é pago por aqueles que não registam e que, enquanto criadores de bens de propriedade industrial, designadamente sinais distintivos, seria justo que fossem reconhecidos como seus titulares.
A concorrência desleal.
Concluiu-se que a pretensão da autora de anulação da marca da ré não tem acolhimento nem no regime de protecção da marca notória nem no regime da má-fé na obtenção do registo. Por um lado não se provou que a marca invocada pela autora fosse notoriamente conhecida em Macau e por outro, não se demonstrou que a marca tivesse sido adquirida pela autora por qualquer meio e em qualquer jurisdição, pelo que não se pode considerar “ofendida” pelo registo da marca da ré, alegadamente obtido de má-fé.
Cabe agora apreciar se o regime da concorrência desleal oferece protecção à pretensão da autora. Esta pretensão já não é de anulação da marca, mas de impedimento do uso. É, no entanto, uma pretensão subsidiária, o que significa que a autora “prefere” a anulação.
A disciplina jurídica da propriedade industrial estrutura-se basicamente em duas vertentes: atribuindo direitos privativos que excluem terceiros de aceder a certos bens imateriais e impondo deveres de conduta no exercício da actividade económica17. Já vimos que os invocados direitos da autora, quer relativos a marca notória, quer relativos a marca ordinária, não impedem a ré de beneficiar do direito de marca que logrou registar a seu favor. Cabe agora saber se algum dever jurídico impede a ré de utilizar a referida marca, em todas as possibilidades de utilização, ou apenas em alguma delas. Estamos já no campo da concorrência desleal.
A relação entre os direitos de propriedade industrial e a concorrência desleal é complexa. Operam por vezes como círculos secantes, na expressão do Professor Oliveira Ascensão, mas não há contradição entre reconhecer a existência de qualquer daqueles direitos e reconhecer a ocorrência de concorrência desleal aquando do respectivo exercício.
A concorrência é a disputa de clientela visando aumentar a própria e/ou diminuir a alheia e será leal se tal disputa for exercida com instrumentos adquiridos com respeito pelas normas e usos honestos da actividade económica, de forma a garantir que o vencedor em qualquer acto de disputa de clientela vença por mérito seu e não por favor, aproveitamento do mérito alheio, confusão, engano, atentado à organização empresarial alheia ou ao mérito alheio, etc. (arts. 156º e segs. do C. Comercial18).
Não há dúvida que autora e ré se encontram em relação de concorrência comercial, pois, no âmbito do mesmo sector da actividade económica, ambas pretendem exercer o seu comércio perante a mesma clientela e através de bens destinados à satisfação das mesmas necessidades, pelo que disputam directamente a mesma clientela. Acresce que se verifica a presunção legal do nº 2 do art. 134º do Código Comercial.
A autora acusa a ré de concorrência desleal por ter registado como marca um sinal que a própria autora criou e divulgou e por a ré estar a utilizar o sinal para assinalar os produtos do seu comércio que são iguais aos que a autora vinha assinalando com o mesmo sinal. A ré, por sua vez, diz basicamente que o sinal não estava a ser utilizado quando requereu o registo.
O direito de marca é o direito à exclusividade de utilização de um sinal para assinalar bens (art. 219º). A função jurídica da marca é, pois, distinguir origens comerciais. Mas a marca tem também uma função económica: além de ser um bem económico em si mesmo é um instrumento de criação e de canalização de desejo de consumo (selling-power). É esta actuação psicológica das marcas uma importante função na concorrência pois a marca pode determinar o vencedor ou o quinhão de clientela de cada um dos que a ela concorrem. Com a utilização da marca pode determinar-se o destino da clientela, quer atraindo-a, quer repelindo-a em relação aos bens com ela assinalados, tudo dependendo da imagem que o público consumidor tem da marca e da reputação de quem a utiliza para assinalar.
A actuação concorrencial da ré consiste em registar e usar no seu comércio um sinal criado e usado pela autora, sendo que esta não o havia registado.
Esta actuação da autora é susceptível de provocar uma orientação de clientela que não se contenha dentro das normas e usos honestos da actividade económica?
Os contornos do que sejam tais normas e usos honestos vêm sendo recortados por dois critérios: a consciência ética de um empresário médio e o princípio da prestação.
A concorrência é incentivada. O sistema jurídico aceita que haja desvios de clientela, só não querendo que ocorram com deslealdade, ferindo as normas e usos honestos, parasitando, denegrindo e perturbando os concorrentes ou confundindo e enganando os consumidores.
A consciência ética de um empresário médio, por onde se aferem aqueles usos honestos, há-de ditar-lhe que não queira utilizar em seu proveito, os instrumentos criados por outrem, mas não lhe há-de impor que não aproveite eventuais instrumentos abandonados por aquele que os criou. É que a actividade empresarial e a concorrência comercial não são ofícios de abnegação e deferência elegante, mas de luta mercantil.
O mérito próprio, portanto, como fiel da balança no recorte do que sejam as normas e os usos honestos da actividade económica. Para lá disso está o mérito alheio, o parasitismo e o atentado.
“A ideia motriz da concorrência é a de que as prestações dos vários operadores económicos se devem defrontar no mercado com o mínimo de constrangimentos, para que vença o melhor. Fala-se da concorrência pelo mérito. Se a vitória for devida a outros factores, a concorrência é falseada. A este critério se chama o princípio da prestação”. A concorrência decide-se pelas prestações em presença do consumidor. Sendo a concorrência que se deseja uma concorrência de prestações, a empresa tem de vencer pela superioridade das suas prestações (Oliveira Ascensão, Concorrência Desleal, pgs. 97, 163 e 446). O mérito próprio outra vez como fiel da balança.
Dos elementos dos autos resulta que, desde antes de 2010, a autora tem vindo a usar, na embalagem de comprimidos medicinais que exporta de Hong Kong para Macau, o sinal que a ré registou como marca, sem alterações perceptíveis na ausência de exame atento ou confronto. Provou-se também que entre finais de 2015 e Maio de 2019 a autora não exportou aquele produto para Macau. Provou-se ainda que a ré sabia que a autora exportava com embalagem contendo o referido sinal, assim como sabia que a autora não havia registado tal sinal como marca. Está também provado que a ré requereu o registo do referido sinal como marca em 28/11/2018.
A atribuição à ré do exclusivo da marca que registou, contendo elementos muitíssimo semelhantes à embalagem que a autora vinha usando para acondicionar os seus produtos e que, devido a tal exclusivo, fica impedida de utilizar, não será conceder à ré um instrumento de concorrência atentatório das normas e dos usos honestos da actividade económica por poder ser causa de desvio de clientela a favor da própria ré que, com risco de confundir os consumidores, se aproveitaria da, pouca ou muita, reputação da autora, contra o que dita a consciência ética do empresário médio?
Como se disse, a concorrência desleal redunda em desvios de clientela em favor de um concorrente por razões diferentes do mérito deste e do normal e regular funcionamento do mercado segundo as normas e usos honestos da actividade económica.
O juízo que importa fazer aqui é um juízo de perigo19 ou de possibilidade de ocorrência de dano. Dano à concorrência que se quer leal e livre. Uma avaliação do risco de ocorrência de concorrência desleal devido à introdução na ordem jurídica de um novo instrumento jurídico de concorrência, o exclusivo de utilização de um sinal para assinalar a origem comercial de bens – um direito subjectivo. Risco de que a clientela se oriente para um concorrente por razões não ligadas ao mérito deste, mas transferindo-se ou desviando-se do caminho a que a conduziria o esforço lícito ou o mérito alheios ou o regular funcionamento do mercado. Um juízo de prognose, portanto. Mas não basta que o previsível desvio de clientela ocorra por razões do funcionamento espontâneo do mercado, é necessário que o desvio provenha do mérito alheio, seja por aproveitamento deste, por confusão com este, por denegrição deste, ou que provenha de erro ou engano relevante. O normal funcionamento do mercado aceita que o uso exclusivo de sinais distintivos seja garantido àquele que primeiro os ocupou, seja pelo registo, seja, em certos casos, pelo uso, mas já não aceita quando isso puder ser um factor de distorção da concorrência, pois, nesse caso, nas palavras de Oliveira Ascensão (Concorrência Desleal, p. 446) “a lei repudia o … direito do primeiro ocupante”.
Poderá aceitar-se no caso em apreço o referido critério do primeiro ocupante por não contender com as normas e os usos honestos da actividade económica nem distorcer a concorrência beneficiando ou prejudicando indevidamente, designadamente de forma parasitária ou atentatória? A ré não criou o sinal registado, o qual é bem atreito a ser confundido ou associado à autora e à sua “embalagem” que vem utilizando. A autora não protegeu o sinal que criou, não se deu ao trabalho de desencadear os procedimentos administrativos nem pagou as taxas a que a protecção daria lugar.
Atribuir à ré o direito de marca sobre o sinal registado, que lhe atribui o exclusivo da sua exploração, afastando os demais concorrentes, será atribuir-lhe, em exclusivo, um instrumento de disputa de clientela que poderá fazer com que quem o usa consiga “vitórias” não devidas ao mérito próprio, mas ao mérito alheio ou da autora?
Estamos no limite. Em 2018, quando a ré requereu o registo, a autora tinha a actividade de exportação para Macau parada. Os usos honestos e a consciência ética do empresário médio impunham à ré que, para se apropriar do sinal registado, tomasse outras diligências, designadamente que consultasse a autora, ou dispensavam-na de qualquer averiguação?
Há-de caber nas preocupações do empresário médio não confundir os consumidores20 e não se aproveitar, sem contrapartida, do esforço alheio21.
A ré não se aproveitou da qualquer direito de propriedade industrial da autora, pois que esta não adquiriu o direito de exclusivo sobre o sinal por não o ter registado como marca. A ré não se aproveitou do principal sinal distintivo, a marca. Já estamos na concorrência. Já não estamos no capítulo dos direitos privativos de propriedade industrial. Mas estaremos no âmbito de “trade dress”, do aspecto com que a autora apresentava o seu produto embalando-o em embalagem que é “a cara” do sinal registado pela ré. A ré aproveitou-se dessa imagem identificativa. No que respeita aos actos de confusão releva o aspecto com que os produtos são apresentados, pois que embora não se trate de os assinalar quanto à origem comercial, função da marca, trata-se da imagem com que muitas vezes são identificados pelo consumidor e que, portanto, pode ser factor de confusão de produtos e até de origens comerciais e, consequentemente, pode ser factor de desvio de clientela através de confusão.
O sinal registado pela ré e o referido “trade dress” da autora são confundíveis, possibilitando a canalização ou desvio de clientes que os confundam e que, assim, não se orientam pelo mérito das prestações. E a consciência ética do empresário médio rejeitará que a ré registe e use sem qualquer preocupação de evitar a confusão dos consumidores. Com efeito, ao requerer o registo, a ré apropriou-se do “trade dress” alheio e transformou-o em marca própria.
Conclui-se, pois, que há risco de, com a atribuição do exclusivo de marca à ré, ocorrerem desvios de clientela contra o que dita a consciência ética de um empresário médio e o princípio da prestação, ou seja, há risco de ocorrência de concorrência em violação das normas e usos honestos da actividade económica.
Conclui-se, em suma, que se verifica situação de concorrência desleal.
Em última análise, mesmo que a autora não tenha registado o sinal como marca, ao utilizá-lo na constituição da embalagem onde comercializava os seus produtos, elevou-o à categoria de “trade dress” e o aproveitamento deste pela autora, escorado pelo registo do sinal como marca, também não pode deixar de se considerar parasitário.
Contrariamente ao que entende a autora, considera-se que a concorrência desleal pode em certas situações ser causa de anulação da marca. Não que essa causa esteja expressa no RJPI, mas afigura-se que, em certas situações, pode caber na previsão abrangente do art. 171º do Código Comercial22 enquanto meio para eliminar os efeitos da concorrência desleal. Com efeito, a confirmação da prática de actos de concorrência desleal implica que seja determinada a cessação destes. Ora, no caso em apreço, qualquer utilização da marca da ré implica actos de concorrência desleal, pois que nenhuma se vê que não seja susceptível de causar confusão, pelo que não poderá determinar-se que cesse apenas uma determinada utilização da marca e que se possa continuar a fazer outra utilização. Se, por exemplo, a autora utilizasse a sua embalagem só para embalar frascos de comprimidos de 60 unidades e a ré tivesse pedido o registo para embalar comprimidos e outros medicamentos insusceptíveis de confusão, quer pela forma, quer pela função, tamanho e local de comercialização, então a marca poderia sobreviver para assinalar os outros medicamentos inconfundíveis.
Aqui chegados, cabe dizer que a única via de eliminar os efeitos da concorrência desleal causada pela marca da ré em actos de confusão e parasitários é a anulação da marca. E cabe também dizer que o tribunal não incorre em excesso de pronúncia se anular a marca com fundamento no facto de ser instrumento de concorrência desleal. Na verdade, apenas conhece dos factos alegados pelas partes e das pretensões por elas formuladas, não podendo haver dúvidas que a autora pretende a anulação e não podendo haver dúvidas que o tribunal apenas aplicou o Direito aos factos e às pretensões que as partes trouxeram aos autos, não configurando a anulação uma condenação em objecto diverso do pedido, mas apenas a aplicação de Direito diverso daquele que as partes entendem ser aplicável (arts. 564º, nº 1, 567º e 571º, nº 1, al. e), todos do CPC).
Obviamente que dentro do sistema dos direitos privativos de propriedade industrial a anulação da marca não implica, só por si, a impossibilidade de a ré continuar a utilizar o respectivo sinal como marca, excepto se tal sinal vier a ser apropriado por outrem enquanto objecto de direitos de propriedade industrial e não se tratar de sinal livre. Porém, já se concluiu que a utilização implica concorrência desleal por actos de confusão, pelo que, no âmbito da concorrência desleal, a ré não pode continuar a utilizar o sinal registado, não podendo, designadamente utilizá-lo para assinalar os produtos da sua actividade empresarial (art. 171º do Código Comercial). Isto, pelo menos, enquanto se mantiver a possibilidade de confusão e de apropriação.».
Sem prejuízo da Douta argumentação constante da sentença recorrida não a podemos acompanhar na conclusão que retira.
A marca que a Autora usou esteve registada a favor de um terceiro – alíneas d) e e) dos factos assentes – o qual era o legitimo proprietário da mesma.
Desconhecemos os contornos – por não constarem da matéria de facto – que permitiram à Autora o uso de marca que pertencia a terceiro, nem tal matéria é objecto aqui de decisão.
Contudo, esse terceiro a quem a marca pertencia e que, supostamente, seja expressa ou tacitamente, terá autorizado ou permitido que a Autora usasse a marca em causa renunciou à marca em 2019.
Note-se, porque este elemento é importante para o raciocínio aqui em causa que não estamos perante uma marca livre no sentido de que ela não pertence a ninguém.
A marca que a Autora usou tinha um dono, pertencia a alguém, e esse alguém nunca foi a Autora.
Em momento algum nestes autos se questiona a legitimidade da pessoa em causa para ser titular da marca.
Logo, não é correcta a colocação do problema no sentido de que alguém “está a aproveitar a marca da Autora” uma vez que a Autora usava a marca titulada por um terceiro que a ela renuncia posteriormente.
E esta renúncia não pode deixar de ser apreciada no sentido de que aquele que era efectivamente o titular da marca ao renunciar a ela tem implícita a intenção de a libertar e de a colocar novamente no comércio para livremente ser apropriada por quem o entender, renunciando a qualquer direito à mesma.
Logo, perante esta renúncia não faz sentido invocar de que era exigível que a Ré de acordo com as boas praticas do mercado contactasse a Autora para saber se a marca estava livre ou não.
A marca nunca foi da Autora, era uma marca registada, tinha um titular – sem prejuízo de ser a Autora a usa-la provavelmente por tolerância deste – e o titular renuncia expressamente à marca, pelo que, nada mais é exigido a um qualquer sujeito de boa-fé que queira usar a marca face à renúncia do seu titular.
Por outro lado, o que resulta da factualidade apurada é que a Autora comercializou o seu produto sob a marca em causa em Macau entre 2010 e 2015.
De 2015 a 2018 encerrou os seus laboratórios e deixou de produzir qualquer produto, nomeadamente este que comercializava sobre esta marca.
A Autora só volta a exportar para Macau o produto que usava esta marca em 2019, ano que o titular da marca a ela renuncia e em que a Ré pede e consegue o registo da marca.
Entende-se na decisão recorrida para concluir pela concorrência desleal que houve por parte da Ré um aproveitamento da imagem – trade dress – com que a Autora comercializava o seu produto.
Este raciocínio parece acertado numa primeira leitura mas depois de abordado os demais contornos da situação sub judice falece.
Para se poder falar de aproveitamento da imagem usada pela Autora era necessário que a Autora estivesse a usar essa imagem, o que, como resulta da factualidade apurada não acontecia nos últimos 3 anos – 2016, 2017 e 2018 -.
Por outro lado ao haver a renúncia da marca pelo seu legítimo titular no ano de 2019 a marca é devolvida expressamente à livre apropriação de quem a quiser vir a utilizar.
Nesse momento a Ré registou a marca a seu favor e passou a usá-la. No mesmo ano a Autora voltou a comercializar os seus produtos sob aquela marca e só mais tarde – após a Ré – veio a registar a marca.
Ora, como se analisa na decisão recorrida a Autora só teria direito a alguma protecção se usasse a marca – livre e não registada - há menos de seis meses de acordo com o disposto no artº 202º do RJPI, situação que está afastada uma vez que a marca em causa passou a ser livre em 27.06.2019 mas a Autora só pede o registo em Março de 2020.
Logo, se a Autora já não goza de prioridade de registo porque usou a marca por mais de seis meses sem a registar o que determina que o legislador nestes casos decidiu não atribuir a estas situações protecção alguma, não faz agora sentido que se venha a dar-lhe protecção por via da Ré estar a usar uma marca igual à sua, sendo certo que, como se analisa a Ré tem direito a pedir o registo da marca não gozando a Autora de prioridade alguma.
Por outro lado, vindo a ser entendimento da jurisprudência que “no quadro da concorrência desleal o acto só terá a natureza de desleal quando possa originar um prejuízo a outra pessoa, através da subtracção da sua clientela, efectiva ou potencial”23 e estando demonstrado nos autos que nos três anos anteriores àquele em que a Ré regista a marca e começa a comercializar o seu produto, a Autora nem sequer comercializava ou produzia o seu produto como resulta da factualidade apurada, não temos fundamento para admitir que pudesse haver uma qualquer possibilidade ainda que potencial de subtacção de clientela.
Destarte, não acompanhamos a decisão recorrida quando conclui pela existência de concorrência desleal, sendo de dar provimento ao recurso revogando a decisão recorrida, julgando-se a acção improcedente.
(…)”; (cfr., fls. 776-v a 790).
Aqui chegados, e ponderada a “questão” em apreciação, assim como os argumentos pela(s) Instância(s) recorrida(s) invocado(s) para a sua solução, eis o que se nos mostra de consignar, notando-se, desde já, que a mesma implica uma apreciação do instituto da “concorrência desleal” e da sua “relação com os direitos de propriedade industrial”.
Pois bem, tratando do tema da “concorrência desleal” por este Tribunal já foi (oportuna e nomeadamente) considerado o que segue:
“3. Concorrência desleal
Dispõe o artigo 158.º do Código Comercial que “Constitui concorrência desleal todo o acto de concorrência que objectivamente se revele contrário às normas e aos usos honestos da actividade económica”.
E acrescenta o artigo 159.º do mesmo Código:
“Artigo 159.º
(Actos de confusão)
1. Considera-se desleal todo o acto que seja idóneo a criar confusão com a empresa, os produtos, os serviços ou o crédito dos concorrentes.
2. O risco de associação por parte dos consumidores relativo à origem do produto ou do serviço é suficiente para fundamentar a deslealdade de uma prática”.
Ensina FERRER CORREIA24 que “… a defesa conferida pela proibição da concorrência desleal – nas diferentes formas que tal proibição reveste – é uma defesa complementar: complementar da legalmente assegurada pela tutela mais específica, mais rigorosa, mas por isso mesmo também mais circunscrita, desses vários elementos concretos (entre eles, os chamados sinais distintivos do comércio: marca, firma, nome e insígnia).25
Trata-se, pois, repetimos, de uma defesa complementar e, digamos, de segunda linha”.
Igualmente, explica CARLOS OLAVO26, referindo-se ao direito português, com normas semelhantes ao de Macau, que “… é hoje pacífico, quer na jurisprudência27, quer na doutrina28, que a protecção contra os actos de concorrência desleal tem, no nosso direito, um tratamento jurídico distinto da protecção dos direitos privativos da propriedade industrial, que permite considerá-la como constituindo um instituto autónomo.
Com efeito, enquanto que na violação de um direito privativo nos encontramos perante um ilícito meramente formal, independentemente da idoneidade ou inidoneidade do acto para provocar um qualquer prejuízo, no quadro da concorrência desleal o acto só terá a natureza de desleal quando possa originar um prejuízo a outra pessoa, através da subtracção da sua clientela, efectiva ou potencial”.
Referindo-se especificamente à possibilidade de concorrência desleal mediante a violação de sinais distintivos alheios não registados – que é o caso que nos ocupa – defende JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO29 que a “questão é particularmente relevante no domínio das marcas não registadas. A lei portuguesa silencia quanto a uma tutela geral, no domínio das marcas, da marca de facto, ao contrário do que acontece noutros países. Nesses, estabelecem-se critérios que balizam aquela protecção. Tudo isso falta no meio português, pelo que qualquer solução terá de ser procurada no âmbito da concorrência desleal.
O princípio geral, então, não pode deixar de ser o da liberdade. Tudo é livre, antes de o registo ter sido realizado. Se alguém não registou, podendo fazê-lo, não se pode queixar por outrem o ter ultrapassado nesse registo. O recurso à concorrência desleal não pode ser um sub-rogado, para obter o efeito que se não conseguiu ou não acautelou através da titularidade de um direito privativo.
Assim, nos termos do art. 171, caduca ao fim de seis meses o direito de prioridade no registo, baseado no pré-uso da marca.
Suponhamos que o usuário deixa passar o prazo. Aproveitando o facto, um concorrente pede o registo em seu benefício.
Poderá ser-lhe recusado com fundamento em concorrência desleal?
Se bastasse isso, a regra que estabelece a liberdade seria letra morta, praticamente. O registo só seria possível para quem ignorasse o pré-uso da marca e coincidisse na escolha da marca própria; e mesmo assim, com as limitações derivadas da novidade da marca.
Para o evitar, tem de acrescer algum elemento caracterizador da concorrência desleal, que permita falar de violação de normas e usos honestos.
O princípio é o da liberdade do uso por todos dos bens não reservados. A utilização de bens livres por terceiros tem de se presumir conforme aos usos honestos. Apenas se admite que circunstâncias particulares, como a constância e a difusão do uso, tornem a utilização por terceiros susceptível de indução em erro dos destinatários e, como tal, violadora das regras de leal concorrência.
Só se poderão pois excepcionar formas de deslealdade muito caracterizadas”»; (cfr., Ac. de 27.09.2018, Proc. n.° 36/2018, podendo-se, sobre o mesmo, tema ver também os Acs. de 18.09.2019, Proc. n.° 78/2016, de 31.07.2020, Proc. n.° 9/2018 e de 17.06.2022, Proc. n.° 49/2022).
Mais recentemente, no Acórdão desta Instância de 26.04.2023, (Proc. n.° 172/2020), considerou-se, também, que «“acto de concorrência” é aquele acto susceptível de, no desenvolvimento de uma dada actividade económica, prejudicar um outro agente económico que, por sua vez, exerce também uma actividade económica determinada, prejuízo esse que se consubstancia num desvio de clientela própria em benefício do (ou de um) concorrente, existindo “concorrência” não apenas entre atividades económicas que estejam numa relação de total identidade, (substituição ou complementaridade), mas ainda entre todas aquelas que se “dirigem ao mesmo tipo de clientela”.
De facto, um “acto de concorrência”, é, assim, e antes de mais, um acto destinado à obtenção ou desenvolvimento de uma “clientela alheia”, assentando, pois, em duas ideias fundamentais: a “criação e expansão de uma clientela própria” e a “idoneidade para reduzir (ou mesmo suprimir) a clientela alheia”, (seja ela, real ou meramente possível).
Porém, e por princípio, a “concorrência” é algo de salutar para o próprio mercado.
Além do mais, permite a qualquer pessoa aproveitar a oportunidade de desenvolver uma actividade lucrativa, estimula a competição entre os diversos agentes, e contribui para a diversidade da oferta, viabilizando, também, a procura de novos e/ou melhores produtos ou serviços, a melhores preços, e, assim, um melhor relacionamento entre a oferta e a procura.
Daí que haja todo um conjunto de normas legais destinado a regular (e incentivar) a concorrência.
Porém, por sua vez, e no que diz respeito à “concorrência desleal”, é a mesma particularmente nociva para o mercado (e mesmo para a própria concorrência), na medida em que, além do mais, perturba e adultera o funcionamento do mercado, gera “comportamentos parasitários” que a mera oportunidade de negócios não pode permitir, desincentiva o esforço de desenvolvimento e a criação de novos produtos para evitar que outros tirem proveito desse esforço, deslocando o proveito comercial do mérito próprio para o aproveitamento e exploração do mérito alheio, agravando as condições em que a procura consegue satisfazer as suas necessidades através do mercado; (cfr., v.g., Ana Clara Amorim in, “A Concorrência Desleal à luz da jurisprudência do S.T.J.: revisitando o tema dos interesses protegidos”, Revista Electrónica de Direito, Junho 2017, n.° 2, pág. 7, que considera que, “No modelo profissional, a disciplina da Concorrência Desleal visa garantir as posições adquiridas pelos agentes económicos nas suas relações recíprocas”, podendo-se também ver Vanessa Adelaide F. N. Amarantes Pereira in, “Trade Dress e a Concorrência Desleal”, Univ. de Aveiro, 2009, e Fernando A. M. G. Villas Boas in, “Concorrência desleal: Os actos de agressão e a visão europeia”, U.C.P., 2022).
Visa-se, assim, e como se viu, impedir “actos contrários aos usos honestos do comércio”, repudiados pela boa consciência dos agentes do mercado e capazes de causar prejuízos a concorrentes, em resultado não das competências próprias, mas do “aproveitamento”, “usurpação” ou “clonagem de competências alheias”, (ou, para usar a expressão de O. Ascensão, que um concorrente se “enfeite com as penas alheias de maneira a fazer-se passar por outro, levando a uma confusão no respeitante ao estabelecimento ou aos produtos”, in “Concorrência Desleal”, pág. 15).
E, quando tal se verificar em – termos “contrários às normas e usos honestos” (de qualquer ramo de atividade) – dá-se um acto de “concorrência desleal”, que é “ilícito”, na medida em que constitui um “abuso da liberdade de concorrência”, (valendo assim a pena salientar que o conceito de “concorrência desleal” é um conceito normativo destinado a emprestar a determinados “actos” ou “comportamentos” a natureza de “ilícitos” contra o são e regular funcionamento da concorrência entre os agentes do mercado).
Patrício Paúl – in “Concorrência desleal e direito do consumidor”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, Vol. I – defende uma “classificação que atende ao conteúdo do acto de concorrência desleal praticado”, em resultado da qual agrupa os actos de concorrência desleal nos seguintes tipos (principais): “actos de aproveitamento”, “actos de agressão” e “actos de indução do público em erro ou de falsa apresentação própria”.
Na verdade, o que se censura são os “meios” utilizados para actuar no mercado, e não os “concretos resultados” que derivam dessa actuação, pretendendo-se tutelar é a confiança legítima de todos os agentes do mercado de que as actuações concorrenciais se pautarão pela boa fé.
Por sua vez, (e como igualmente já se deixou referido), importa ter presente que o tratamento jurídico da protecção dos “direitos privativos da propriedade industrial”, (como, v.g., de uma “marca registada”), é diferente da protecção contra os “actos de concorrência desleal”, constituindo esta um “instituto autónomo”, (embora ambas tenham como escopo comum garantir a “lealdade da concorrência”).
Com efeito, a violação de direitos privativos constata-se “objectivamente”, (só por si), não significando necessariamente “concorrência desleal”.
Para que esta exista, e como se viu, é preciso que se verifiquem os “pressupostos” que a caracterizam, sendo pois necessário que o acto de concorrência seja “contrário às normas e usos honestos, referentes a qualquer ramo da actividade económica”».
Isto dito, vale ainda a pena atentar que, como nota Pedro Sousa e Silva:
“De um conceito centenário como a concorrência desleal poderia esperar-se uma noção relativamente estabilizada. Mas não é isso que se encontra, ao estudar o direito comparado e as obras de referência nesta matéria. Aliás, as divergências surgem logo em torno da noção de concorrência, que alguns definem de forma tão ampla que a conseguem vislumbrar, por exemplo, entre um restaurante e uma barbearia, partindo da ideia de que o preço de uma refeição já não será gasto para cortar o cabelo. Nessa óptica maximalista, até um mendigo é concorrente de um banco, pois quem dá uma esmola já não depositará esse valor numa instituição financeira…
O objectivo do legislador português, ao proibir a concorrência desleal, foi o de proteger o interesse dos concorrentes, bem como o interesse geral no regular funcionamento do mercado, impondo aos agentes económicos um dever de agir leal e honestamente, quando competem entre si. Por isso, só quando esta competição exista, ou possa existir, é que aquela disciplina se aplicará.
Por outro lado, importa frisar desde já que a concorrência desleal não visa impedir que os concorrentes se lesem uns aos outros, na luta concorrencial. Essa lesão é inevitável e típica da economia de mercado: se os concorrentes disputam a mesma clientela, o sucesso de um envolve o prejuízo de outro. A angariação de clientela à custa dos concorrentes, em si mesmo considerada, nada tem de censurável. Proibido é usar métodos desleais nessa angariação. Em rigor, desleal não será a concorrência, mas antes os meios usados nessa concorrência.
Por isso, a proibição da concorrência desleal tem que ser aplicada com muito discernimento, como se fosse um tempero. Ela existe, só existe, para travar os excessos da luta concorrencial. Num ordenamento jurídico governado pelo princípio constitucional da liberdade de iniciativa e de concorrência, não pode servir para subverter a regra e transformá-la em excepção”, referindo, também, o mesmo autor que, “Relativamente à natureza da concorrência desleal, prevalece entre nós uma concepção objectivista, que subscrevo, considerando que esta disciplina não atribui aos empresários um verdadeiro direito subjectivo, pessoal ou patrimonial, constituindo antes um dever geral de conduta. Também por isso, é maioritário o entendimento de que a concorrência desleal não integra o âmbito do Direito Industrial: enquanto este ramo do direito atribui direitos exclusivos, a disciplina da concorrência desleal não o faz, limitando-se a ordenar a conduta dos concorrentes”; (in “Direito Industrial”, 2ª ed, pág. 431 a 434).
E, (como se viu), tem-se normalmente considerado, (continuando-se a acompanhar o mesmo autor), que uma actuação em “concorrência desleal”, pressupõe:
“• Que seja praticado um acto de concorrência;
• que esse acto seja contrário às normas e usos honestos;
• de qualquer ramo de actividade económica”, devendo “acrescentar-se um quarto elemento, o dolo, visto que a concorrência desleal não é punível a título de negligência, enquanto contra-ordenação. (…)”, existindo “as mais diversas concepções de concorrência: (…) Deixando de lado teses extremas, constatamos que a concepção dominante entre nós é a que considera concorrentes as empresas que em concreto disputam a mesma clientela. A meu ver, tal apenas sucederá quando exista alguma afinidade de produtos ou de actividades. Tem de existir, no mínimo, alguma possibilidade de uso substitutivo dos produtos ou de semelhança entre as actividades, sob pena de não existir competição económica, por não haver clientela comum a disputar.
Como sublinhava Pinto Coelho, importa não confundir comércio desleal com concorrência desleal. Nem todas as práticas censuráveis ou abusivas dos empresários são actos de concorrência. Se um empreiteiro difundir notícias falsas sobre outro empreiteiro, referindo que este está prestes a falir, pratica um acto de concorrência desleal. Mas se a vítima da difamação for um comerciante de tintas, já não haverá concorrência desleal, sem prejuízo da eventual responsabilidade civil.
(…)
O acto de concorrência é considerado desleal quando colide com “as normas e usos honestos”. Esta cláusula geral tem as vantagens e inconvenientes dos conceitos relativamente vagos.
(…) A doutrina tem entendido esta última referência como respeitando, não a normas legais, mas sim a regras incluídas em códigos de conduta, crescentemente utilizados pelos mais variados sectores de actividade e geralmente adaptados pelos membros das associações empresariais. No que respeita aos usos, estão em causa padrões de comportamento considerados correctos no ramo de actividade em questão. Padrões esses que obedecem a critérios éticos, que delimitam aquilo que é considerado honesto, servindo para o julgador traçar a linha divisória daquilo que é leal e desleal.
(…) É o que sucede, por exemplo, quando um empresário faz passar os seus produtos pelos produtos de um concorrente bem sucedido: não tenta afirmar-se pelo mérito da sua prestação, mas sim pelo merecimento da prestação alheia. A inobservância do princípio da prestação, embora não seja um elemento do conceito de concorrência desleal, constitui uma espécie de “sinal exterior” da prática dessa infracção, revelando-se, por isso, um valioso auxiliar interpretativo”, acrescentando-se, ainda, que em todo o caso, “as várias modalidades de concorrência desleal podem agrupar-se num reduzido número de categorias principais, que não constituem, porém, classes estanques, pois certos actos relevam simultaneamente de mais do que uma delas”; (cfr., v.g., Pedro Sousa e Silva in, ob. cit., pág. 440 a 449).
Assim, e desconsiderando os “actos de agressão”, (que são irrelevantes para o presente caso), pode-se afirmar que a categoria dos “actos de indução em erro” envolvem a prática de actos susceptíveis de gerar confusão entre concorrentes, falsas indicações de crédito ou reputação, falsas descrições ou indicações sobre a natureza, qualidade ou utilidade dos produtos ou serviços, bem como a supressão, ocultação ou alteração, da denominação de origem ou indicação geográfica dos produtos ou da marca registada do produtor ou fabricante.
Por sua vez, os “actos de aproveitamento” assentam “num engano dos destinatários, provocado com mais ou menos subtileza, com o objecto de se “enfeitar com penas alheias”. Mas poderá não existir qualquer equívoco.
Entre os actos de aproveitamento pode também incluir-se a imitação servil de um produto ou da sua embalagem ou vasilha, embora certos autores prefiram qualificá-la como acto de confusão. A meu ver, este tipo de imitação não é censurável apenas quando haja risco de confusão dos consumidores relativamente à origem dos produtos. Ela constitui sempre uma apropriação abusiva do esforço alheio, pois o imitador servil aproveita, parasitariamente, todo o esforço de concepção, desenvolvimento e promoção realizado pelo concorrente lesado. Não está em causa a liberdade de imitar realidades pertencentes ao domínio público. A imitação servil vai para além da mera utilização das ideias alheias. Reproduz todas as características relevantes dos produtos ou serviços alheios. Por exemplo, um empresário copia um equipamento fabricado por um concorrente, evitando assim desenvolver um produto próprio, com os inerentes custos de projecto, de construção de protótipos, de testes e ensaios, bem como os gastos realizados com produtos menos bem sucedidos (que todos os empresários inovadores suportam e os imitadores conseguem evitar)”; (in ob. cit., pág. 450 a 454).
Feito este excurso pelo instituto da “concorrência desleal”, façamos agora uma reflexão sobre a sua “relação com os direitos de propriedade industrial”.
A respeito desta relação, considera José de Oliveira Ascensão que, sendo de rejeitar uma posição extrema que confunde os dois domínios, é também de rejeitar “uma separação radical dos dois domínios, atendendo ao objecto respectivo. O Direito Industrial regularia os direitos privativos; a concorrência desleal as posições concorrenciais que não fossem protegidas por direitos privativos.
A violação de direitos industriais não respeitaria nunca à concorrência desleal, porque esta deveria ser entendida como um resíduo. À medida que uma situação fosse autonomizada e atribuído um direito privativo, essa matéria ficaria ipso facto riscada do domínio da concorrência desleal. À concorrência desleal só pertenceriam pois as situações que ainda não tivessem sido configuradas como atributivas de direitos privativos.
A concorrência desleal seria um instituto meramente de recurso ou de segunda linha, que só interviria onde falhasse a tutela por um direito privativo.
(…)
A concorrência desleal implica um tipo autónomo de tutela, centrada no desvalor das condutas, e é independente da manifestação ou não de direitos embrionários. Não tem carácter fragmentário, nem é delimitada negativamente pelos direitos privativos”, vindo ainda a considerar que “a tutela por um direito privativo esgota a tutela que pudesse ser outorgada pela concorrência desleal”, e que, “A tutela pela concorrência desleal é uma tutela imprecisa, porque depende de uma valoração; a tutela pelo direito privativo é uma tutela taxativa, porque basta o preenchimento da descrição típica”, notando que “A concessão do direito privativo configura um direito exclusivo; a tutela contra a concorrência desleal só se cifra num interesse juridicamente protegido.
(…)
Em conclusão: ao conteúdo da concorrência desleal, mesmo penal, podem pertencer actos violadores de direitos privativos. Mas nesse caso a tutela pela concorrência desleal cede sempre, porque é subsidiária em relação à tutela pelo direito privativo”, e, assim, “que entre violação de direitos privativos e concorrência desleal medeia um concurso aparente, a resolver em termos de subsidiariedade. As normas valorativas da concorrência desleal cederão, na ausência de fundamento em contrário, perante as regras mais precisas da tutela dos direitos privativos”; (in “Concorrência Desleal”, pág. 75 a 77 e 348 a 352, podendo-se, sobre esta “a articulação da concorrência desleal com o Direito Industrial propriamente dito”, ver ainda Pedro Sousa e Silva in, ob. cit., pág. 437 e 438).
Isto dito, avancemos para a apreciação da “questão” colocada na presente lide recursória.
Pois bem, como resulta da matéria de facto dada como provada, a A., ora recorrente, usou, durante vários anos, (desde antes de 2010), um sinal distintivo que, após aquela cessar temporariamente a sua actividade, veio a ser registado, em primeiro lugar por C, e, posteriormente, após renúncia desta, pela R., ora recorrida.
E, uma vez mais, (tal como se consignou no Ac. deste T.U.I. de 27.09.2018, Proc. n.° 36/2018), vale aqui a pena atentar que em relação a “sinais registáveis, mas não registados”, já apontava Oliveira Ascensão que:
“A questão é particularmente relevante no domínio das marcas não registadas. A lei portuguesa silencia quanto a uma tutela geral, no domínio das marcas, da marca de facto, ao contrário do que acontece noutros países. Nesses, estabelecem-se critérios que balizam aquela protecção. Tudo isso falta no meio português, pelo que qualquer solução terá de ser procurada no âmbito da concorrência desleal.
O princípio geral, então, não pode deixar de ser o da liberdade. Tudo é livre, antes de o registo ter sido realizado. Se alguém não registou, podendo fazê-lo, não se pode queixar por outrem o ter ultrapassado nesse registo. O recurso à concorrência desleal não pode ser um sub-rogado, para obter o efeito que se não conseguiu ou não acautelou através da titularidade de um direito privativo.
Assim, nos termos do art. 171, caduca ao fim de seis meses o direito de prioridade no registo, baseado no pré-uso da marca.
Suponhamos que o usuário deixa passar o prazo. Aproveitando o facto, um concorrente pede o registo em seu benefício.
Poderá ser-lhe recusado com fundamento em concorrência desleal?
Se bastasse isso, a regra que estabelece a liberdade seria letra morta, praticamente. O registo só seria possível para quem ignorasse o pré-uso da marca e coincidisse na escolha da marca própria; e mesmo assim, com as limitações derivadas da novidade da marca.
Para o evitar, tem de acrescer algum elemento caracterizador da concorrência desleal, que permita falar de violação de normas e usos honestos.
O princípio é o da liberdade do uso por todos dos bens não reservados. A utilização dos bens livres por terceiros tem de se presumir conforme aos usos honestos. Apenas se admite que circunstâncias particulares, como a constância e a difusão do uso, tornem a utilização por terceiros susceptível de indução em erro dos destinatários e, como tal, violadora das regras de leal concorrência.
Só se poderão pois excepcionar formas de deslealdade muito caracterizadas. Mas a reacção do utente de facto tem de se fundar na impugnação do registo realizado, o que de novo nos afasta do nosso tema”; (in “Concorrência Desleal”, pág. 437 e 438, podendo-se também ver Pedro Sousa e Silva in, ob. cit., pág. 439 e 440).
Nessa mesma linha, em edição mais recente do seu “Manual de Direito Industrial”, (7ª ed., pág. 282), afirmava Luís Couto Gonçalves que:
“Não bastaria, por exemplo, provar que o titular do registo sabia ou devia saber que um terceiro utilizava, com anterioridade, um sinal confundível. Seria necessário, ainda, ter em conta a intenção do requerente no momento do registo.
Por tudo isto, saudamos, vivamente, que o CPI-2018, “ouvindo” os nossos reiterados apelos, em edições anteriores desta obra, tenha, finalmente, excepcionado esta proibição como causa de invalidade (cf. art. 260.º, n.º 1, parte final) e haja restringido a invalidade para a hipótese de o registo ter sido efectuado de má-fé (art. 231.º, n.º 6 e art. 259.º, n.º 1) em cumprimento de uma norma injuntiva da DM-2015 (art. 4.º, n.º 2).
Do ponto de vista jurídico é um fundamento bem diferente do da concorrência desleal. Os pressupostos de censura de um agente com base na má-fé são mais exigentes do que os pressupostos de censura por simples deslealdade objectiva. A má-fé, embora revestindo a censura de uma conduta, e nessa medida ser relevante em sentido subjectivo, deve ser sempre apreciada eticamente na perspectiva da desconformidade da actuação do titular do registo com regras de conduta concorrenciais sérias, correctas e leais. O valor da lealdade relevaria agora de modo positivo, enquanto regra de conduta imposta a todos os interessados no momento do registo da marca, e não de modo negativo, enquanto limite ao registo, como acontece com o instituto da concorrência desleal.
Por outro lado, o perigo da subversão do sistema, a que aludimos atrás, já não procede do mesmo modo na hipótese de invalidade com fundamento em má-fé. O propósito de invalidar o registo de uma marca efectuado de má-fé não é o de prejudicar o sistema de aquisição do direito baseado no registo. O propósito é o de garantir que a actuação do registante seja pautada pelos ditames da boa-fé. Se essa actuação for de manifesta e intencional deslealdade, em relação a outro concorrente ou à concorrência em geral, a deslealdade não actua como causa autónoma da invalidade, mas como expressão e prova de má-fé do titular da marca”.
Ora, ponderando sobre o que se deixou exposto, diríamos, a nosso ver, que não se pode olvidar – sendo mesmo de salientar – que o titular de um registo de marca é o “titular de um direito exclusivo” (de uso privativo), pelo que não parece que seria muito rigorosa a (eventual) acusação de (potencial) prática de actos de concorrência desleal pelo (“legítimo”) uso desse direito, (especialmente, contra quem não tem qualquer direito ao sinal em causa), sendo, até, (em nossa opinião), algo “chocante”, a invalidação do registo de uma marca apenas porque haveria a possibilidade de actos de concorrência desleal, (apesar de essa “potencialidade” não ter sido sequer detectada no próprio procedimento de registo).
Por sua vez, e salvo melhor opinião, não se pode deixar de tomar em consideração a “inércia” do usuário de um sinal distintivo, devendo ser devidamente apreciado o comportamento de um concorrente que decide aproveitar um bem imaterial que, no momento, se encontra disponível no “domínio público”.
De outro modo, existiriam (sérias) dificuldades que tornariam muito complexa a (desejável) conciliação harmoniosa entre a “concorrência desleal” e a “propriedade industrial”, (ao ponto daquela subverter as regras desta).
Ora bem, voltando ao caso dos autos, cabe notar que:
- a marca pela R., ora recorrida, registada, (com o n.° N/147173 para a classe 5 da classificação de produtos), é, visualmente, praticamente idêntica a uma marca anteriormente registada com o n.° N/100916 para a mesma classe 5, tendo sido pedida em 28.11.2018;
- esta marca registada sob o n.° N/100916 era titulada por C, que a ela renunciou, (cfr., despacho de 27.06.2019, e alínea e) dos factos assentes);
- a A. utilizou, desde data não concretamente apurada, mas anterior a 2010, (cfr., resposta ao quesito 5° da base instrutória), e até 2015, um sinal distintivo similar à dita marca com o n.° N/100916;
- tendo como sua representante comercial em Macau a firma E, (localizada na [Endereço]), pertencente a uma senhora chamada C, (cfr., resposta ao quesito 18° da base instrutória, apurado não estando se essa C é a mesma que foi titular da marca registada sob o n.° N/100916, aliás, a morada referida no título de registo da marca não coincide com a morada daquela representante comercial); porém,
- entre o final de 2015 a 2018, a A. encerrou os seus laboratórios para efeitos de renovação e modernização de todo o seu equipamento, deixando de produzir, nesse período, qualquer dos seus produtos farmacêuticos; (cfr., resposta ao quesito 19° da base instrutória).
E, nesta conformidade, destes factos resulta, claramente, que a A., ora recorrente nunca foi titular de qualquer direito de exclusivo sobre o “sinal”, (ou, melhor, sinal praticamente idêntico), que se encontra agora registado a favor da R., ora recorrida.
Com efeito, esse mesmo sinal, só veio a ser “registado”, (curiosamente), num momento, (em Dezembro de 2015), em que a mesma já tinha cessado temporariamente a sua actividade, sendo que, entretanto, em 28.11.2018, a R. veio a apresentar o pedido de registo de sinal praticamente idêntico ao que se encontrava registado a favor de C, (cfr., alínea c) dos factos assentes e resposta aos quesitos 22° a 24° da base instrutória), o que lhe veio a ser concedido na sequência da renúncia ao anterior registo por esta mesma C; (cfr., alíneas c) a e) dos factos assentes).
E, então, cabe perguntar: será tal bastante para se considerar verificada uma situação de “concorrência desleal”?
A nosso ver, e sem prejuízo de melhor opinião, não nos parece.
É certo que a R., ora recorrida, até conhecia o uso anterior de sinal praticamente idêntico por parte da A., ora recorrente; (cfr., respostas aos quesitos 22° a 24° da base instrutória).
Porém, isso não nos parece um “elemento suficiente” para determinar a anulação da marca que veio a ser por si registada (sob o n.° N/147173).
Importa ter presente que a recorrente já não operava no mercado da R.A.E.M. desde o final de 2015, pelo que, decorridos estavam cerca de 3 anos sem actividade comercial (local) no momento em que a R., recorrida, faz o pedido de registo de um sinal distintivo praticamente idêntico.
Por sua vez, cabe ainda notar, (não sendo de olvidar), que, em princípio, as marcas caducam (salvo justo motivo), por falta de “utilização séria” durante 3 anos, (cfr., art. 231°, n.° 1, alínea b) do R.J.P.I.), o que nos parece bastar para demonstrar que não se está propriamente perante uma “falta de uso (totalmente) irrelevante”, (em termos de actividade comercial).
Com efeito, se assim é para uma “marca registada”, menos – ou mesmo nenhuma – protecção deverá gozar uma (mera) “marca de facto”, que não é usada por três anos, não se podendo assim recorrer ao regime – de protecção complementar – oferecido pelo instituto da “concorrência desleal”.
Daí que se nos mostre acertada a consideração tecida pelo Tribunal de Segunda Instância, que no seu Acórdão recorrido consignou (nomeadamente) que:
“Por outro lado, vindo a ser entendimento da jurisprudência que “no quadro da concorrência desleal o acto só terá a natureza de desleal quando possa originar um prejuízo a outra pessoa, através da subtracção da sua clientela, efectiva ou potencial” e estando demonstrado nos autos que nos três anos anteriores àquele em que a Ré regista a marca e começa a comercializar o seu produto, a Autora nem sequer comercializava ou produzia o seu produto como resulta da factualidade apurada, não temos fundamento para admitir que pudesse haver uma qualquer possibilidade ainda que potencial de subtracção de clientela”, (sendo, de resto, a posição deste T.U.I. no Ac. de 31.07.2020, Proc. n.° 9/2018, e ainda de salientar que não parece ter qualquer relevo o facto de, no momento em que a R., recorrida, pede o registo da marca, estar a recorrente em “preparativos para o reinício da sua actividade comercial na R.A.E.M.” – cfr., resposta ao quesito 20° e confirmado pela resposta ao quesito 17° – uma vez que nada se alegou, ou demonstrou, quanto ao eventual conhecimento da R. dessas diligências provado, também, não estando, que em causa esteja um sinal que tem uma “grande aceitação junto do público” ou que é “especialmente conhecido”, cfr., resposta negativa ao quesito 10° da base instrutória).
Assim, cremos pois que a matéria de facto alegada, e, (principalmente), a dada como “provada”, não permite a pretendida invalidação do registo da marca por “concorrência desleal” (ao abrigo do regime estabelecido nos art°s 156° e segs. do C. Comercial).
–– A finalizar o seu recurso, defende também ora recorrente, que a marca em causa sempre seria anulável com fundamento na “má fé” da R., (o que resultaria das “alíneas aa), bb) e cc), à luz do disposto nos artigos 48.º, n.ºs 1 e 4, 201.º, n.º 1 e 230.º, n.º 1, todos do RJPI”).
Todavia, e ressalvado o devido respeito por melhor opinião, não nos parece que haja possibilidade de “reapreciação” deste “fundamento” pela A. invocado na acção movida junto do Tribunal Judicial de Base.
Com efeito, o Tribunal Judicial de Base pronunciou-se (expressamente) sobre este “fundamento” nos seguintes termos:
“Conclui-se, pois, que no nosso sistema jurídico a má-fé na obtenção do registo, desligada de qualquer ofensa a direito alheio, não é uma causa autónoma de anulabilidade dos títulos de registo de marca. Isto, sem prejuízo do recurso à figura geral do abuso de direito que sempre permitirá declarar nulo um título de registo de marca requerido com a intenção de não usar o sinal registado mas de apenas especular ou bloquear terceiros legitimamente interessados em usá-lo, pois que em tal caso se estará em presença de uma situação onde são excedidos os limites impostos pela boa-fé e pelo fim social e económico do direito de marca (art. 326.º do CC). Diga-se, porém, que se provou que a marca registada pela ré está a ser usada para distinguir bens, razão por que não haverá razões na factualidade provada para considerar excedido o fim económico e social do direito de marca (al. z) dos factos provados).
Conclui-se, pois que também não ocorre a causa de anulabilidade do título de registo de marca referente à má-fé na obtenção do registo”; (cfr., fls. 602-v).
E, assim, atento o estatuído no art. 590°, n.° 1 do C.P.C.M. – onde se preceitua que “Se forem vários os fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação” – clara se nos apresenta a solução.
Como nota a doutrina, “Este preceito foi aditado ao Código pela reforma processual de 95/96. O propósito foi o de resolver algumas questões que se punham quanto ao objecto de recurso, designadamente as que provinham do novo âmbito de cognição atribuído ao tribunal de 2.ª instância pela mesma reforma. (…)
Vamos supor que o autor intenta uma acção ordinária para o réu ser condenado a pagar-lhe certa importância, fundado no cumprimento de um contrato de compra e venda de coisas móveis, ou no princípio do enriquecimento sem causa. Na sentença final julga-se não se verificar o não locupletamento à custa alheia, mas sim o incumprimento de um contrato de compra e venda, e com esse fundamento julga-se a acção procedente e condena-se o réu no pedido. Recorre o réu sustentando que não chegou a haver contrato de compra e venda, por falta de requisitos essenciais deste negócio, pelo que não pode ser condenado a pagar um preço que se diz ter sido nele convencionado. O recorrido vê-se nesta situação: interessa-lhe que a questão do enriquecimento sem causa seja reexaminado pelo tribunal ad quem, mas não pode recorrer nessa matéria, porque não foi minimamente vencido na parte decisória do julgado. É então que se justifica que o recorrido lance mão do disposto no n.º 1 do preceito em anotação, requerendo ao tribunal que, no caso de se julgar procedente a argumentação do recorrente, antes de conceder provimento ao recurso, se entre na apreciação do outro fundamento em que se alicerçava o pedido, e que a 1.ª instância afastou. Esta possibilidade de ampliar o âmbito do recurso é inteiramente de aplaudir”; (cfr., v.g., Jacinto Rodrigues Bastos in, “Notas ao C.P.C.”, Vol. III, 3ª ed., 2001, pág. 230 e 231).
Havia, (reconhece-se), quem (diferentemente) entendesse que: “Seria absurdo que se considerasse caso julgado a rejeição da anulação por dolo (visto A não ter recorrido – não pode) – não há caso julgado sobre fundamentos. De outra forma, a situação de A, por ter ganho, e em recurso, era mais perigosa do que antes de haver vencido”; (cfr., v.g., Castro Mendes in, “Direito Processual Civil – Recursos”, pág. 13, apud pág. 713).
Porém, tendo presente a norma do transcrito art. 590°, n.° 1 do C.P.C.M., e como considera Viriato de Lima: “No exemplo dado por Castro Mendes, caberia ao autor, A, requerer, na sua contra-alegação, que o tribunal conhecesse do dolo alegado por si na petição inicial da acção, para o caso de dar razão a B, no recurso interposto por este.
Aqui temos, pois, uma impugnação da sentença pela parte vencedora”; (in “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., 2018, pág. 713 e 714).
Terá a A., ora recorrente, observado o comando do art. 590°, n.° 1 do C.P.C.M.?
Ora, a nosso ver, de sentido negativo é a resposta.
Assim, (e sob pena de se considerar, ao menos, implicitamente, que o Tribunal de Segunda Instância incorreu em “omissão de pronúncia”), impõe-se, (antes), considerar não poder agora este Tribunal de Última Instância reapreciar uma “questão” cuja reapreciação a própria recorrente não pediu nas suas contra-alegações em sede do recurso para o Tribunal de Segunda Instância, (sendo, de qualquer modo, de notar, que independentemente do demais, sempre seria de se entender que a simples “má fé” na obtenção do registo – que no caso dos autos, nem sequer está cabalmente demonstrada, visto que estava em causa um sinal, registado em nome de outrem que não a A., e que acabou por ficar livre e não era usado há 3 anos – não preenche a factualidade típica exigida pelo art. 294° do R.J.P.I., designadamente, a referente à obtenção de “título de propriedade industrial cujo direito lhe não pertença, face às disposições aplicáveis do presente diploma”, não sendo, igualmente, de invalidar o registo da marca em causa ao abrigo do art. 48°, n°s 1 e 4 do R.J.P.I.).
Dest’arte, e tudo visto, resta decidir como segue.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, com a taxa de justiça que se fixa em 12 UCs.
Registe e notifique.
Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 10 de Janeiro de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
1 Regime Jurídico da Propriedade Industrial, aprovado pelo Dec.-Lei nº 97/99/M de 13 de Dezembro, a que pertencem todos os artigos referidos sem menção de origem.
2 Em sentido semelhante e a propósito de regime com grande afinidade com o da RAEM, o regime português, Código da Propriedade Industrial Anotado, 2015, 2ª edição, obra colectiva com coordenação de António Campinos e Luís Couto Gonçalves, anotação aos artigos 265º e 266º.
3 Cfr. Pinto Coelho, RLJ ano 84°, pgs. 129 e ss. e Carlos Olavo, Propriedade Industrial, Vol. I, p. 97.
4 Acórdão do TSI de 17 Out. 2002, proferido no Processo nº 116/2002, e Luís M. Couto Gonçalves, Direito de Marcas, pág. 146.
5 O Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio («Acordo TRIPS», no acrónimo em inglês) está contido no Anexo 1C do Acordo OMC, publicado em língua portuguesa no Boletim Oficial de Macau n.º 9, I Série, de 26 de Fevereiro de 1996, através do Despacho n.º 9/GM/96, e em língua chinesa no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau n.º 20, I Série, de 19 de Maio de 2004, através do Aviso do Chefe do Executivo n.º 16/2004.
6 “Salvo os casos previstos no presente diploma, o direito de propriedade industrial é concedido àquele que primeiro apresentar regularmente o pedido acompanhado de todos os documentos exigíveis para o efeito” – art. 15º, nº 1.
7 Tal norma existe noutros ordenamentos jurídicos, designadamente nº art. 51º, nº 1, al. b) da lei espanhola de Marcas, Ley 17/2001, de 1/12, analisado profusamente em Javier Framiñan Santas, La nulidade de la marca solicitada de mala fe, Estudio del artículo 51.1.b) de la Ley 17/2001, de 7 de diciembre, de marcas, Editorial Comares, Granada 2007.
Também o Regulamento de Marca Comunitária da União Europeia dispõe no seu artigo 59º, nº 1, al. b), sob a epígrafe de “causas de nulidade absoluta”, que “a marca da UE é declarada nula
sempre que o titular da marca não tenha agido de boa-fé no acto de depósito do pedido de marca”.
8 “Não será fixado prazo para se reclamar a anulação das marcas registradas de má fé” - Art. 6º bis (3), redacção de 1925. “Não será fixado prazo para requerer o cancelamento ou a proibição de uso de marcas registradas ou utilizadas de má fé” - Art. 6º bis (3), redacção de 1967.
9 “Um dos assuntos constantes do programa de trabalhos da recente Conferência diplomática de Lisboa para a revisão da Convenção da União de Paris (1883) para a protecção internacional da Propriedade Industrial era … o da protecção da “marca notória”, isto é, da marca que num país da União é notoriamente conhecida como pertencente a um nacional de outro país da mesma União, no momento em que naquele é registada ou depositada para registo por um terceiro, que assim pretende usurpá-la ao verdadeiro titular. Essa protecção, …, foi consagrada pela primeira vez no artigo 6 bis da Convenção quando revista em 1925 na Haia” – José Gabriel Pinto Coelho, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 92º (1959), p. 3.
10 Bad Faid Case Study, (Final Version), 31/01/2003, Office for Harmonization in the Internal Market (Trade Marks and Designs), Alicante, acessível em: http://euipo.europa.eu/en/enlargement/pdf/ badfaithCS3101.pdf.
11 Trademarks And Bad Faith Registration, Simi Oyelude, acessível em: https://www.mondaq.com/ nigeria/trademark/753416/trademarks-and-bad-faith-registration.
12 Em sentido contrário, ao que parece, relativamente a sistema jurídico com quadro normativo semelhante ao da RAEM quanto à questão em apreço, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07/11/2013, proferido no processo nº 3607/10.4TJVNF.P2, acessível em http://www.dgsi.pt.
No sentido aqui seguido, ao que parece, relativamente ao referido sistema jurídico, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 01/02/1994, proferido no processo nº 082929, com o número convencional JSTJ00021968, acessível em www.dgsi.pt.
13 Em sentido semelhante obre o confronto entre os sistemas “registration-based” e “use-based”, embora para o caso de anulação do registo de marca com base em concorrência desleal entre o titular do registo e o anterior usuário não registado, André Sousa Marques, Da Aquisição Originária do Direito sobre a Marca (uso vs. registo), 2014, Edições Almedina.
14 Cfr., no entanto, quanto a regime jurídico semelhante ao da RAEM, Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Direito Industrial, Volume II, Lisboa 1988, p. 180, onde se conclui que o registo não é constitutivo, mas a sua falta tem efeitos resolutivos perante terceiros de boa-fé.
15 “A tutela da marca notoriamente conhecida parece, por imposição internacional, representar a prevalência do uso sobre o registo, mas a lei impõe … que tenha sido requerido o registo dessa marca notoriamente conhecida. Por isso se poderá falar ainda nesses casos de um direito de prioridade para registo de marca legitimamente adquirida no estrangeiro…” - Direito Comercial, Direito Industrial, Volume II, Lisboa 1988, ps. 173.
16 A título comparado, refiram-se duas posições doutrinárias opostas, ao que parece, a de Oliveira Ascensão (Direito Comercial, Direito Industrial, Volume II, Lisboa 1988, ps. 174 a 180) e a de André Sousa Marques (Da Aquisição Originária do Direito sobre a Marca (uso vs. registo), 2014, Edições Almedina, p. 91).
17 Carlos Olavo, Propriedade Industrial, Noções Fundamentais, Colectânea de Jurisprudência, Ano XII (1987), tomo I, p. 16.
18 “Constitui concorrência desleal todo o acto de concorrência que objectivamente se revele contrário às normas e aos usos honestos da actividade económica” – art. 158º do Código Comercial.
19 Carlos Olavo, Propriedade Industrial, Volume I, 2ª edição, p. 274.
20 Considera-se desleal todo o acto que seja idóneo a criar confusão com a empresa, os produtos, os serviços ou o crédito dos concorrentes – art. 159º, nº 1 do Código Comercial.
21 Considera-se desleal o aproveitamento indevido em benefício próprio ou alheio da reputação empresarial de outrem – art. 165º do Código Comercial.
22 A sentença que declare a existência de prática de actos de concorrência desleal determinará a proibição da continuação da referida prática e indicará os meios oportunos para eliminar os respectivos efeitos.
23 Veja-se o Acórdão do TUI de 31.07.2020 proferido no Processo 9/2018.
24 FERRER CORREIA, Propriedade Industrial, Registo do nome de estabelecimento, Concorrência desleal in «Estudos Jurídicos II – Direito Civil e Comercial, Direito Comercial, Direito Criminal», Coimbra 1969, p. 235.
25 Mario Rotondi, Diritto Industriale, pág. 420 (apud Ferrara, loc cit.)
26 CARLOS OLAVO, A Concorrência Desleal, em Concorrência Desleal, Textos de Apoio, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1996, p. 329 e 330
27 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Novembro de 1951, Bol. Min. Just., n.º 22, pág.347.
28 Cfr. Prof. A. Ferrer Correia, «Propriedade Industrial, Registo do nome de estabelecimento, Concorrência desleal» in «Estudos Jurídicos II – Direito Civil e Comercial, Direito Comercial, Direito Criminal», Coimbra 1969, págs. 235 e segs., Patrício Paul, «Concorrência Desleal», 1965, págs. 43 e segs.
29 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Concorrência Desleal, Coimbra, Almedina, 2002, p. 437 e 438.
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