Processo nº 23/2024
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 04 de Julho de 2024
ASSUNTO:
- Recurso contencioso
- artº 11º da Lei nº16/2021
- Residência
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 23/2024
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 04 de Julho de 2024
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Chefe do Executivo
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Exmº Senhor Chefe do Executivo de 27.11.2023 que indeferiu o pedido de concessão excepcional de autorização de residência, formulando as seguintes conclusões:
1. Contrariamente ao aventado no acto recorrido, não se verificam na situação vertente quaisquer dos pressupostos que poderiam porventura fundamentar a desnecessidade de o recorrente residir em Macau e a aventada possibilidade de o recorrente “poder regressar ao Interior da China e efectuar o registo domiciliário”.
2. O pai biológico do recorrente, Sr. B, não tem qualquer contacto com o recorrente desde há vários anos, tendo casado novamente e constituído uma nova família, inteiramente aparte do recorrente.
3. É o próprio pai biológico do recorrente que reconhece que nunca cuidou nem tratou o recorrente como sendo seu filho e que nunca anteriormente existiu - nem futuramente existirá - espaço na sua vida para o recorrente.
4. Entre o recorrente e o seu pai biológico, a única ligação ou conexão que existe é meramente “biológica” ou “sanguínea”, mas não qualquer laço efectivo, real, presente ou de apoio e enquadramento familiar verdadeiros, desde há vários anos, nada mas sendo o recorrente e o seu pai biológico senão dois desconhecidos entre si, duas pessoas que mutuamente se desconhecem e com quem não podem contar ou apoiar-se no que quer que seja.
5. Referir-se que o “pai” do recorrente existe, está e habita na China apenas equivale a dizer que uma pessoa - o progenitor biológico do recorrente - habita efectivamente na China, mas com isso não está em causa, in casu, a existência de alguém que ali tenha - ou possa e queira ter - qualquer vínculo ou nexo pessoal ou familiar, real e efectivo, com o recorrente.
6. O mesmo se diga em relação à mãe biológica do recorrente, Sr.ª C, pois que o seu paradeiro e situação concreta de vida é inteiramente desconhecida desde há vários anos pelo aqui recorrente.
7. Nada nem ninguém ligam o recorrente ao Interior da China.
8. A simples e mera existência, no território da China continental, de 2 pessoas que tão-somente geraram e deram à luz o recorrente, umas delas sem qualquer contacto com o recorrente e a outra cujo paradeiro se desconhece, não podem servir de alavanca ou fundamento para, com base neles, se poder concluir que o recorrente pode e deve mudar para o interior da China e aí se “inscrever”, “reinscrever” ou activar o seu “registo domiciliário / hukou / huji”.
9. O fundamento humanitário reside não só na ligação firme e perene do recorrente a Macau, mas, de igual modo, no polo oposto, na simétrica não-pertença ou ligação, mínima que seja, senão a formal ligação “sanguínea” acima referida, à China continental por parte do recorrente.
10. Determinar - ao não ser concedida a expecional autorização aqui peticionada - que o recorrente se mude definitivamente para a China continental equivale, no caso concreto do recorrente, a sancioná-lo com uma medida de “desterro” ou de “degredo” do seu local de pertencimento e real ligação - Macau.
11. Determinar ao recorrente que se mude definitivamente para a China continental equivalerá a uma determinação para que abandone para sempre Macau, local que tem sido o seu centro de vida e a sua residência habitual, para que vá para um outro local - in casu, o interior da China, mas poderia ser outro país - onde não tem qualquer vínculo ou ligação, senão a já mencionada e mera “conexão sanguíneo-biológica”.
12. A invocação desse vínculo meramente biológico sito no interior da China não pode servir validamente como pressuposto ou fundamento para a negação da necessidade de tutela do ordenamento da R.A.E.M. de que carece o aqui recorrente.
13. A negação de a.r. em Macau e o concomitante reencaminhamento quase-compulsório do recorrente para o interior da China afigura-se in casu como um acto arbitrário pois que transcende em muito a margem de apreciação própria do exercício legítimo de poderes discricionários, mesmo quando estes possam ser particularmente amplos tal qual se passa em sede de concessão excepcional de a.r.
14. Sobretudo no plano do exercício de uma discricionariedade ampla e alargada (como o é o da concessão excepcional de a.r.), devem ainda mais presidir aos actos decisórios momentos de estrita racionalidade, razoabilidade, justiça e objectividade, pois, a não ser assim - e, ressalvado o muito e devido respeito, não o é efectivamente o acto recorrido -, estará em causa um acto arbitrário em que se desvirtua a ratio da atribuição legal de poderes exorbitantes e excepcionalizantes ao Chefe do Executivo.
15. Por não existir qualquer outro substracto fáctico-circunstancial que possa fazer necessariamente ligar o “destino de vida” do recorrente à China continental senão essa mera e aleatória vicissitude de os seus biológicos progenitores serem de nacionalidade chinesa e aí viverem, então, assim sendo, uma decisão como a recorrida, que assente e se funde apenas nesse mero dado aleatório para negar a a.r. em Macau e para o “remeter” para o interior da China, frustra o grau de justificabilidade e racionalidade que seriam de exigir num acto de tamanha gravidade, exigência e alcance.
16. Os poderes excepcionais conferidos por lei ao Chefe do Executivo pressupõem que este possa e deva - enquanto poder-dever - fazer sair ou destacar do “conjunto geral e indiferenciado de casos” um ou outro determinado caso que, por razões não pensadas pela “lei geral” ou que, por “razões ponderosas e relevantes”, mereçam e clamem por uma solução decisória diferenciada.
17. Sabendo-se, por um lado, que o recorrente ninguém tem no interior da China que seja verdadeiramente alguém com quem conte e que o tenha tratado desde bebé e criança - ou vá de agora em diante passar a tratar - como “filho” . e, por outro lado, sabendo-se, em simultâneo, que o recorrente tem desde sempre ligação a Macau, aqui tendo diversos e “verdadeiros e efectivos” familiares que lhe deram e darão um “enquadramento de vida”, não se vislumbra qual o fundamento ou substrato fáctico-circunstancial atendível e razoável que possa dar “legitimação” ao indeferimento contido no acto recorrido.
18. O juízo que deve juridicamente subjazer aos mencionados poderes-deveres de excepcionalização cometidos por lei ao Chefe do Executivo devem-se aproximar de um “juízo de equidade” ou de “justiça no caso concreto e específico”, os quais não podem deixar de integrar quer o bloco de juridicidade a que está permanentemente vinculada a Administração apud art. 3.º, n.º 1, quer os imperativos de justiça e de “dever-ser” acolhidos no princípio da justiça sediado no art. 7.º, ambos do C.P.A.
19. Juízo que, assim, deverá valorar o que a “lei geral” não vislumbrou ou que o “aparelho administrativo” não tenha detectado e que, por substractos fáctico-circunstanciais objectivos, clamem por uma decisão ressalvatória fundada num imperativo de justiça no caso concreto.
20. Negar-se a a.r. a quem aqui viveu e cresceu e, do mesmo passo reenviar-se tal pessoa para um espaço geográfico com o qual se tem nenhum efectivo nexo de vida nem qualquer efectivo suporte familiar, vai contra o sentimento de justiça e de razoabilidade que devem presidir a um juízo de equidade e justiça particularizante, como o deve ser o exercício dos poderes-deveres excepcionais por lei entregues ao Chefe do Executivo.
21. A única pessoa com quem o recorrente alguma vez teve algum contacto, ligação e verdadeira conexão familiar na China continental foi o seu avô paterno, ou seja, o pai do seu pai biológico, tendo o mesmo morrido já há 25 anos, em 1999, e a sua viúva - a avó paterna do recorrente - reside e vive em Macau há vários anos.
22. Também a tia paterna do recorrente (a irmã mais velha do seu pai biológico) e o seu tio paterno (o irmão mais novo do seu pai biológico) residem e vivem em Macau desde há vários anos, tendo ambos BIR's permanentes pelo que a vida, parentes, família, vinculação e emprego do recorrente estão todos e apenas, desde há inúmeros anos, apenas em Macau.
23. Razões pelas quais o recorrente precisa, carece e merece a necessária tutela do ordenamento jurídico de Macau.
24. A decisão ora recorrida fez errada interpretação e aplicação do art. 11.º da Lei 16/2021 de 16 AGO e, bem assim, dos artigos 3.º, n.º 1, e 7.º, ambos do C.P.A. e, consequentemente, atentos esses vícios de violação de lei, a decisão a quo configura-se como um acto anulável, ex vi do art. 124.º do C.P.A., invalidades que aqui se invocam como fundamentos específicos para a sua revogação por V. Ex.as, conforme o permitem, entre outros, o art. 20.º e a al. d) do n.º 1 do art. 21.º do C.P.A.C.
Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Chefe do Executivo contestar, apresentando as seguintes conclusões:
1. O Recorrente era portador do bilhete de identidade de residente permanente da RAEM, e posteriormente, tendo sido verificado que os seus pais biológicos não são residentes de Macau ou não residiam legalmente em Macau à data do nascimento do Recorrente em Macau, o Recorrente não preencheu a qualidade para obtenção de bilhete de identidade, pelo que, a Direcção dos Serviços de Identificação cancelou o dito bilhete de identidade do Recorrente.
2. Após investigação, sabe-se que a mãe biológica do Recorrente procedeu ao registo de casamento com o falso pai, e por sentir arrependimento pelo seu acto de fingir ser pai do Recorrente, o falso pai apresentou-se à Polícia Judiciária, e o falso pai já faleceu em 2009. Por outro lado, o Recorrente referiu ter vivido com B desde pequeno e também confirmou que B é o seu pai biológico.
3. Em 10 e 12 de Maio de 2023, o advogado do Recorrente apresentou carta à entidade recorrida e à Direcção dos Serviços de Identificação, respectivamente, pedindo que a entidade recorrida autorizasse excepcionalmente a residência em Macau do Recorrente.
4. Após investigação, verificou-se que o Recorrente vivia no Interior da China desde pequeno, só veio a Macau para viver e trabalhar após 2010, e os pais biológicos do Recorrente são residentes do Interior da China, conforme as vigentes disposições legais do Interior da China, o Recorrente tem condições para fixar residência no Interior da China, de forma a organizar a sua vida futura com a qualidade legítima. Dado que o Recorrente não conseguiu provar que ele tem necessidade de residir em Macau, não tendo razões humanitárias para a autorização excepcional da residência em Macau, pelo que, a entidade recorrida decidiu não autorizar excepcionalmente a residência em Macau do Recorrente.
5. Porém, o advogado do Recorrente referiu que o Recorrente já não tem ligação com o pai biológico e a sua mãe biológica se encontra em paradeiro desconhecido, pelo que, com excepção do parentesco, a ligação entre o Recorrente e o Interior da China é muito pouca, sendo inviável a fixação de residência no Interior da China, e o Recorrente vive sempre em Macau, a não autorização da sua residência em Macau e a migração forçada do Recorrente no Interior da China equivalem, em certo nível, a exilar ou expulsar o Recorrente de Macau onde o Recorrente tem uma ligação efectiva, tal decisão de não autorização é um acto arbitrário, excedendo em muito o âmbito do exercício legal do poder discricionário, entendendo que tal decisão interpretou e aplicou erradamente o artigo 11.º da Lei n.º 16/2021, e o princípio da legalidade e o princípio da justiça previstos no artigo 3.º n.º 1 e no artigo 7.º do Código do Procedimento Administrativo.
6. A entidade recorrida não concorda com isso. Quanto às situações especiais da concessão excepcional da autorização de residência definidas no regime de entrada, permanência e autorização de residência, o legislador, através do artigo 11.º da Lei n.º 16/2021, permite à entidade recorrida julgar se existem razões humanitárias ou outros motivos excepcionalmente atendíveis e fundamentados e proferir a decisão conforme as situações concretas. Tratando-se de poder discricionário conferido à entidade recorrida pelo legislador, não podendo outros pedir o mesmo tratamento com fundamento na mesma situação ou nos motivos mais suficientes.
7. Face a isso, o Ministério Público havia-se pronunciado no Acórdão do Venerando Tribunal n.º 956/2009, de 14 de Outubro de 2010, referindo que a entidade recorrida tem amplo pode discricionário na matéria da autorização excepcional de residência em Macau da parte, tratando-se de poder a ser utilizado na falência ou impossibilidade de autorização pelos meios comuns, não imputável à parte e a conceder face a imperativos de cariz humanitário ou de iminente interesse público.
8. No que diz respeito à apreciação judicial do poder discricionário, nos termos do artigo 21.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Administrativo Contencioso, o referido acto só pode ter acesso ao tribunal quando se verifique erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poder discricionário.
9. A doutrina e a jurisprudência dominantes entendem que a apreciação pelo tribunal do acto praticado no exercício de poder discricionário por parte da Administração tem certa limitação, sendo, em princípio, insindicável pelo tribunal, só podendo ser objecto de apreciação judicial pelo tribunal quando se verifique erro manifesto ou grosseiro no exercício do poder discricionário, ou violação dos princípios fundamentais de direito, ou quando as decisões administrativas, de modo intolerável, o violem. (cfr. Acórdãos do TUI no Processo n.º 9/2000, de 3 de Maio de 2000, e no Processo n.º 13/2012, de 9 de Maio de 2012)
10. No acórdão proferido no Processo n.º 956/2009, o Venerando Tribunal também refere que o tribunal só pode intervir para exercer o poder judicial caso a entidade recorrida profira uma decisão manifestamente injusta no exercício do poder discricionário da autorização excepcional de residência em Macau da parte.
11. Pelo que, a entidade recorrida tem ampla discricionariedade na matéria da autorização excepcional de residência em Macau, sendo apenas judicialmente sindicável quando se verifique erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poder discricionário, mas, o que não é o presente caso.
12. No caso em apreço, os fundamentos principais com base nos quais o Recorrente pediu a autorização excepcional de residência em Macau por razões humanitárias são: O Recorrente nasceu em Macau, tem sempre o centro da vida em Macau, não tem qualquer ligação com o Interior da China nem tem qualidade que pode viver no Interior da China.
13. Porém, conforme os registos de entrada e saída de Macau do Recorrente e os elementos por si fornecidos, o Recorrente vivia no Interior da China desde pequeno, apesar de alegar ter frequentado o 5.º ano de escolaridade na Escola XX de Macau, o Recorrente voltou ao Interior da China para continuar o estudo depois de concluir o 5.º ano de escolaridade, e até 2010 só veio a Macau para viver e trabalhar, altura em que o Recorrente já tinha 17 anos de idade. Daí pode-se ver que os aludidos factos não correspondem à alegação do Recorrente de que ele tem sempre o centro da vida em Macau.
14. Além disso, o Recorrente referiu que já não tem ligação com o pai biológico, a sua mãe biológica encontra-se em paradeiro desconhecido, ele não tem qualquer ligação com o Interior da China, é inviável a fixação de residência no Interior da China. Porém, não é verdade que o Recorrente não tem ligação com o Interior da China, uma vez que para além de viver no Interior da China desde pequeno, os seus pais biológicos são residentes do Interior da China, conforme as vigentes disposições legais do Interior da China, a parte pode fixar residência no Interior da China, de forma a organizar a sua vida futura com a qualidade legítima. Para tal, a Direcção dos Serviços de Identificação também enviou ofício ao Departamento de Gestão Migratória da Directoria Provincial de Segurança Pública de Guangdong para pedir ajuda sobre a fixação de residência do Recorrente no Interior da China.
15. De facto, o Recorrente tem alegado ser inviável a fixação de residência no Interior da China, porém, o Recorrente não apresentou qualquer prova para comprovar que a sua fixação de residência no Interior da China foi recusada por órgão competente do Interior da China.
16. Além disso, o Recorrente alegou que não tem qualquer ligação com o pai biológico B e juntou à sua petição inicial uma declaração prestada pelo seu pai biológico onde declarou que já se casou novamente e não pode viver com o Recorrente. Porém, do registo de nascimento do Recorrente consta que B é o pai do Recorrente, pelo que, quer a nível jurídico, quer a nível fáctico, B ainda é o pai do Recorrente, a filiação entre eles não pode ser extinta por eles deixarem de viver juntos e por causa da declaração prestada por B, nem isso impede a fixação de residência do Recorrente no Interior da China.
17. Nestas circunstâncias, o Recorrente já é maior, tendo condições para continuar a viver no Interior da China. A entidade recorrida não entende que o Recorrente se encontra numa situação extremamente difícil, sem-abrigo e necessita de residir em Macau.
18. De facto, quanto aos casos em que o acto de emissão do BIRM foi declarado nulo por o BIRM ter sido obtido com base na falsa paternidade, devemos ponderar nomeadamente os fundamentos suscitados pela parte e se a autorização excepcional de residência em Macau da parte corresponde ao interesse público e se existem razões humanitárias atendíveis, incluindo ponderar o impacto que a autorização excepcional pode trazer para a ordem pública, a ordem jurídica, nomeadamente o regime de bilhete de identidade de residente da RAEM (cfr. Acórdãos do TUI no Processo n.º 53/2021, de 27 de Julho de 2022, e no Processo n.º 56/2021, de 21 de Setembro de 2022).
19. De facto, na maioria dos casos em que o acto de emissão do BIRM foi declarado nulo por o BIRM ter sido obtido com base na falsa paternidade, as partes não têm culpa, têm vivido, estudado e trabalhado em Macau há certos anos, porém, só estes factos não bastam para servir de motivos especial e excepcionalmente atendíveis, sob pena de provocar grande impacto para a ordem pública e a ordem jurídica de Macau, nomeadamente para o regime de bilhete de identidade de residente da RAEM.
20. Apesar de que o advogado do Recorrente salientou repetidamente que é inviável a fixação de residência do Recorrente no Interior da China, referindo que a não autorização excepcional de residência em Macau do Recorrente equivale, em certo nível, a exilar ou expulsar o Recorrente de Macau, porém, o Recorrente não forneceu qualquer prova para comprovar que o Recorrente tem dificuldade na fixação de residência no Interior da China, e a Recorrente não se encontra em situação de sem-abrigo.
21. O Recorrente não conseguiu comprovar que ele se encontra numa situação excepcional ou numa situação que necessita extremamente de residir em Macau, pelo que, a decisão da entidade recorrida que não autorizou excepcionalmente a residência em Macau do Recorrente não causa dificuldades para a vida do Recorrente. Daí pode-se ver que não se verifica erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício do poder discricionário nem viola os princípios orientadores das actividades administrativas, incluindo o princípio da legalidade e o princípio da justiça invocados pelo advogado do Recorrente.
22. De facto, a lei confere o poder discricionário à entidade recorrida, porém, isto não exige que a entidade recorrida deva proferir a decisão de autorização de residência em Macau, e mais ainda, no presente caso, o Recorrente não conseguiu provar que ele tem razões humanitárias suficientes para a sua residência em Macau, pelo que, não existe erro manifesto ou total desrazoabilidade na decisão de não autorização.
23. Nestes termos, o acto recorrido não enferma de qualquer vício nem se verifica erro na interpretação e na aplicação do artigo 11.º da Lei n.º 16/2021 invocado pelo advogado do Recorrente, e o princípio da legalidade e o princípio da justiça previstos no artigo 3.º n.º 1 e no artigo 7.º do Código do Procedimento Administrativo.
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, ambas silenciaram.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer pugnando pela improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
A factualidade com base na qual foram praticados os actos recorridos consiste no seguinte:
1. Por Despacho de S.Exª o Senhor Chefe do Executivo de 27.11.2023 foi indeferido o pedido de A de autorização excepcional de residência em Macau com os seguintes fundamentos:
«Governo da Região Administrativa Especial de Macau
Direcção dos Serviços de Identificação
Parecer:
Sua Ex.ª o Chefe do Executivo
Concordo com o conteúdo do parecer, propondo à Sua Ex.ª o Chefe do Executivo que seja indeferido o pedido formulado por A.
À consideração da Sua Ex.ª.
Secretário para a Administração e Justiça
(Assinatura vide o original)
Cheong Weng Chon
(ilegível)/11/2023
Despacho:
Concordo com os fundamentos e o proposto.
(Assinatura vide o original)
Chefe do Executivo
27/11/2023
Assunto: Pedido de autorização excepcional de residência em Macau formulado por A (concluída a audiência escrita)
Parecer N.º: 32/DAG/DJP/D/2023
Data: 03/11/2023
Exmo. Senhor Secretário para a Administração e Justiça
I. Informações básicas
Pelas carta de A (doravante designado por “parte”) recebida por esta Direcção em 12 de Maio de 2023, e carta da parte enviada a esta Direcção por esse Gabinete em 16 de Maio de 2023, foi solicitada à Sua Ex.ª o Chefe do Executivo a autorização excepcional da residência da parte em Macau.
A parte era titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM, mas agora esse documento está cancelado por esta não ser habilitada para aquisição do referido documento.
Em acompanhamento do presente caso, em 11 de Setembro de 2023, esta Direcção submeteu à Sua Ex.ª o Chefe do Executivo o Parecer n.º 26/DAG/DJP/D/2023, onde se propôs que se respondesse à parte sobre o indeferimento do pedido formulado pela mesma e a realização da audiência escrita. Pelo despacho de 20 de Setembro de 2023, a Sua Ex.ª o Chefe do Executivo concordou com a proposta em apreço (vide o anexo 1).
II. Objectivo
Face à decisão de indeferimento a proferir peal Sua Ex.ª o Chefe do Executivo, esta Direcção notificou o advogado da parte para efectuar a audiência escrita (vide o anexo 2); a seguir, em 19 de Outubro de 2023, recebeu as alegações escritas (vide o anexo 3) apresentadas pelo advogado da parte. O caso encontra-se na fase de decisão final, cumpre esta Direcção expor a análise e o parecer sobre o pedido formulado pela parte:
III. Análise
Nas alegações escritas, o advogado da parte afirmou que a parte já não tinha contacto com seu pai biológico e a mãe dela se encontra, presentemente, em paradeiro desconhecido, pelo que a parte não tinha ligação com o Interior da China, sendo impossível a fixação da sua residência no Interior da China, porém não apresentou especificação detalhada ou nova prova para demonstrar que a necessidade de fixação da residência da parte em Macau.
Com efeito, de acordo com aquilo que esta Direcção conhece sobre a parte, constata-se que a parte vivia com seu pai biológico no Interior da China quando era pequena (vide o ponto 8 do Parecer n.º 26/DAG/DJP/D/2023 desta Direcção), pois, não se deve concluir que haja necessidade de fixação da residência da parte em Macau, mesmo que ela não tenha, presentemente, contacto com seus pais biológicos. Os pais biológicos da parte são residentes do Interior da China, portanto, conforme as disposições vigentes no Interior da China, pode a parte fixar a sua residência no Interior da China, lá usando a identidade legal para organizar a sua vida futura. Deste modo, esta Direcção mantém a óptica da análise feita no Parecer n.º 26/DAG/DJP/D/2023, concluindo que não existe a necessidade de fixação da residência da parte em Macau, e não se verificam as razões humanitárias da parte.
Visando apoiar a parte na fixação da residência no Interior da China, pelo ofício n.º 5722/DSI-DIR/OFI/2023, esta Direcção solicitou à Direcção dos Serviços de Migração da Repartição de Segurança Pública da Província de Guangdong a prestação de auxílio (vide o anexo 4).
IV. Conclusão
Dado que a parte não possui o estatuto de residente permanente de Macau, esta Direcção procedeu, nos termos legais, ao cancelamento do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM emitido à mesma. Os pais biológicos da parte são residentes do Interior da China, e a parte vivia com seu pai no Interior da China quando era pequena, portanto, conforme as disposições vigentes no Interior da China, a parte tem condições para fixar a sua residência no Interior da China, lá usando a identidade legal para organizar a sua vida futura.
Nesta conformidade, esta Direcção não propõe à Sua Ex.ª o Chefe do Executivo que, nos termos do disposto no art.º 11º da Lei n.º 16/2021 (Regime jurídico do controlo de migração e das autorizações de permanência e residência na Região Administrativa Especial de Macau), por razões humanitárias, autorize excepcionalmente a residência da parte em Macau. Se a Sua Ex.ª o Chefe do Executivo concordar com a análise em apreço, esta Direcção procederá à resposta à parte com o conteúdo do parecer acima exposto, cuja minuta do ofício-resposta consta do anexo 5.
À consideração superior.».
- cfr. fls. 408 a 405 do PA traduzido a fls. 110 a 114 dos autos.
2. Após 01.01.1999 o Recorrente apenas entrou em Macau em 2010 – cfr. fls. 347 do PA -.
b) Do Direito
É do seguinte teor o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público:
«(i)
A, melhor identificado nos presentes autos, interpôs o presente recurso contencioso, pedindo a anulação do acto praticado pelo Chefe do Executivo que indeferiu o pedido por si formulado de concessão excepcional de autorização de residência em Macau.
A Entidade Recorrida apresentou contestação na qual concluiu no sentido da improcedência do recurso.
(ii)
(ii.1)
A única questão que vem colocada pelo Recorrente é a de saber se o acto que impugna padece do vício de violação de lei.
Salvo o devido respeito, parece-nos que não. Sinteticamente, pelo seguinte.
Resulta da norma contida no n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 16/2021, que «o Chefe do Executivo pode, por razões humanitárias ou por outros motivos excepcionalmente atendíveis e fundamentados, conceder autorizações de entrada, de permanência e de residência, e respectivas renovações ou prorrogações, com dispensa dos requisitos, condições e formalidades legalmente previstos».
Na norma que acabámos de transcrever é possível divisar que, na respectiva estatuição, o legislador, ao utilizar a palavra «pode», concede desse modo discricionariedade à Administração, na medida que lhe permite, na presença dos pressupostos tipificados na previsão da norma, escolher entre duas soluções alternativas: conceder ou não conceder a autorização de residência.
Além disso, na previsão dessa mesma norma, o legislador utilizou dois conceitos jurídicos indeterminados, o de «razões humanitárias» e o de «outros motivos excepcionalmente atendíveis», em cujo preenchimento, segundo cremos, a Administração disporá de margem de livre apreciação. Deste modo, só em caso de erro grosseiro ou de utilização de critério interpretativo manifestamente inadequado é que poderá o tribunal sindicar a actuação da Administração (neste sentido, a propósito de interpretação de norma idêntica, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31.10.2002, processo n.º 272/02, disponível em versão integral no sítio da dgsi.pt).
(ii.2)
Revertendo ao caso dos autos.
A Administração indeferiu o requerimento de autorização de residência com base na consideração de que o Recorrente pode regressar ao Interior da China e efectuar aí o seu registo domiciliário e, a partir daí, organizar a sua vida futura, pelo que não tem necessidade de residir em Macau. Por isso, ainda de acordo com a fundamentação do acto recorrido, não há razões humanitárias justificativas da concessão excepcional de residência em Macau.
Como se pode ver, a partir da leitura da fundamentação do acto recorrido, a Administração, em bom rigor, não chegou a exercer o poder discricionário conferido, nos termos que referimos, pela norma do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 16/2021, pois considerou que faltava a demonstração do pressuposto integrador da respectiva previsão ou hipótese, no caso, a existência de razões humanitárias.
Contra isto opõe o Recorrente que, «o fundamento humanitário reside, pois, não só na ligação firme e perene do recorrente a Macau, mas, de igual modo, no polo oposto, na simétrica não pertença ou ligação, mínima que seja, senão a formal ligação sanguínea acima referida, à China Continental por parte do recorrente» (cfr. artigo 19.º da petição inicial).
O ponto do dissídio é, portanto, apenas este: está ou não demonstrada a existência de razões humanitárias que pudesse ter constituído pressuposto ao exercício do poder discricionário que a lei confere à Administração através da norma do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 16/2011.
Cremos que não.
A referência da lei a razões humanitárias visa permitir a tutela de situações em que, sem a autorização excepcional de residência na RAEM, o interessado pode ver a sua situação pessoal comprometida em dimensão ou dimensões que envolvem valores ou princípios relevantes à luz do quadro constitucional e internacional-convencional em vigor na RAEM.
Ora, no caso, salvo o devido respeito, não nos parece que tal aconteça. Abandonando Macau, por não estar autorizado a aqui residir, o Recorrente, que é nacional chinês, está em condições regressar ao Interior da China e, aí, efectuar o seu registo domiciliário, ficando em condições de reorganizar a sua vida futura. Além disso, importa notar que o Recorrente nasceu em 1993. É, portanto, uma pessoa adulta e com capacidade para, autonomamente, prover ao seu sustento.
Em nosso modesto entendimento, no preenchimento do conceito indeterminado em causa, a Administração não actuou de modo grosseiramente errado nem utilizou um critério interpretativo que deva ter-se por manifestamente inadequado ou desrazoável.
Com isto, importa dizê-lo, não estamos a sofismar a penosidade que a situação certamente acarreta para o Recorrente. O que acontece é que ela não é de molde a integrar o pressuposto de aplicação da norma do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 16/2001 à luz da qual ele requereu a autorização excepcional de residência. Apenas isso.
Se, eventualmente, no caso, se demonstrasse que o Recorrente estava impossibilitado de se estabelecer legalmente no Interior da China (note-se, a este propósito que o ónus da prova é do Recorrente, por estar em causa uma posição subjectiva de conteúdo pretensivo), aí sim, poderiam estar em causa razões humanitárias justificativas de uma autorização excepcional de residência tal como a própria Administração, implicitamente, também o admitiu (ainda assim, mesmo nesse caso, caberia à Administração decidir discricionariamente se perante a verificação daquele pressuposto seria ou não de conceder a autorização). Mas, como vimos, não é esse o caso.
Uma última nota. Com todo o respeito, na perspectiva da aferição da legalidade do acto recorrido, parece-nos ser falacioso o argumento do Recorrente de que está a ser sancionado com uma medida de «desterro» ou de «degredo». Na verdade, o Recorrente não está a ser sancionado com o que quer que seja. O que acontece é que ele não dispõe de título jurídico que o habilite a permanecer ou a residir em Macau e que aqui se discute é, precisamente, a legalidade do acto da Entidade Recorrida que decidiu indeferir a concessão desse título.
(iii)
Face ao exposto, salvo melhor opinião, deve ser julgado improcedente o presente recurso.
É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público.».
Acrescentarmos apenas no que concerne às condições pessoais do Recorrente que este não só nasceu em 1993, como também segundo os registos de entrada e saída do mesmo em Macau após 01.01.1999 este apenas aqui entrou em 2010 de onde resulta ter sido criado e educado na China Continente.
Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual integralmente aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta, entendemos que o acto impugnado não enferma dos vícios que lhe são apontados, impondo-se negar provimento ao recurso.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso mantendo o acto recorrido.
Custas a cargo do Recorrente fixando a taxa de justiça em 6 UC´s.
Registe e Notifique.
RAEM, 04 de Julho de 2024
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(1o Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
(2o Juiz-Adjunto)
Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto)
23/2024 REC CONT 66