Processo nº 846/2023
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 04 de Julho de 2024
ASSUNTO:
- Recurso contencioso
- infracção disciplinar
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 846/2023
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 04 de Julho de 2024
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Segurança
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Segurança de 19.10.2023 que aplicou ao Recorrente por infracção disciplinar na pena de suspensão pelo período de 50 dias, formulando as seguintes conclusões e pedidos:
1. O recorrente contencioso entende que o acto administrativo recorrido padece dos seguintes vícios de violação de lei:
- Violação do princípio do inquisitório;
- Violação do ónus da prova;
- Erro notório na apreciação da prova;
- Violação do princípio da presunção de inocência;
- Erro na aplicação da lei;
- Falta de fundamentação.
2. Os elementos de vídeo referidos nos autos são apenas excertos dos autos do processo criminal. Dos autos não consta qualquer vídeo ou disco de vídeo.
3. As imagens de videovigilância do sistema de CCTV constantes dos autos abrangem apenas a paragem de autocarro. Não foi gravada a situação no interior do autocarro de matrícula MR-XX-X8, em que se encontravam o recorrente contencioso, B, C e D.
4. As pessoas nas gravações de vídeo constantes dos autos estavam desfocadas, sendo impossível identificar os rostos delas. Só era possível dizer, quanto muito, que um homem vestido de preto estava de pé atrás de duas mulheres.
5. Quanto aos depoimentos testemunhais, os autos de declaração são todos transcritos dos autos do processo criminal, e nenhum dos depoimentos testemunhais foi valorado ou admitido pelo tribunal.
6. O respectivo processo penal terminou na sequência da desistência da queixa. A entidade recorrida não investigou os motivos concretos nem inquiriu as testemunhas dos autos, pelo que os motivos mantêm-se desconhecidos.
7. A entidade recorrida não consegue excluir a possibilidade de a vítima desistir da queixa por ter descoberto que se tratava de um mal-entendido, ou porque, depois de o recorrente contencioso ter feito uma explicação detalhada à ofendida, esta fez uma análise desapaixonada e concluiu que o contacto entre os dois era normal e não se trava de importunação sexual.
8. O recorrente contencioso também nas suas alegações escritas, em pormenor, elencou as irracionalidades das declarações. A entidade recorrida deveria ter investigado as questões levantadas pelo recorrente contencioso, procedendo novamente à inquirição dos indivíduos em causa ou à averiguação dos factos do caso concreto.
9. No entanto, a entidade recorrida limitou-se a analisar de forma formalista, sem averiguar e responder às dúvidas levantadas pelo recorrente contencioso.
10. In casu, a entidade recorrida não tomou qualquer diligência para responder aos argumentos deduzidos pelo recorrente contencioso nem procedeu à investigação, assim violando claramente o disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 86.º do CPA.
11. No caso em apreço, a entidade recorrida ao considerar o recorrente contencioso como agente infractor violou as diligências probatórias.
12. Dos elementos dos autos resulta que não são cabais os dados que serviram para identificar o homem/agente em questão, pelo que é necessário proceder ao reconhecimento.
13. No entanto, o modo como se realizou o reconhecimento, tal como descrito de fls. 210 dos autos, violou o disposto no artigo 134.º, n.ºs 1 e 2 do CPP: apenas foi fornecida a B uma fotografia para a identificação do homem que praticou os actos em causa, sem se chamar pelo menos duas pessoas que apresentassem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar, nem se solicitar a B que descrevesse o homem, com indicação de todos os pormenores de que se recordava;
14. É claro que tal procedimento de reconhecimento não satisfaz as disposições legais, pelo que não pode servir de fundamento à convicção formada pela entidade recorrida.
15. No processo criminal, o MP apenas considerou que havia indícios de que o recorrente contencioso poderia ter importunado sexualmente uma pessoa, isto é, B, e só deduziu acusação em relação à importunação sexual dela.
16. No entanto, a entidade recorrida, sem nunca ter participado na investigação e sem nova prova, deu como provado que o recorrente contencioso importunou sexualmente duas estudantes - C e B. Razão não assistia à entidade recorrida.
17. A entidade recorrida quase não apresentou qualquer prova para sustentar a acusação de que o recorrente contencioso tinha importunado sexualmente as referidas duas estudantes.
18. Além disso, há várias partes dos depoimentos testemunhas que vão contra as regras da experiência comum.
19. Mas a entidade recorrida não procedeu, na fase do julgamento dos factos, à análise das dúvidas levantadas pelo recorrente contencioso.
20. Como já foi dito supra, resulta dos autos do processo administrativo que a convicção dos factos provados dos autos formou-se, essencialmente, com base nos elementos transcritos a partir dos autos do processo penal.
21. O processo penal já se encontra arquivado.
22. Os elementos e o conteúdo da acusação não foram examinados pelo Tribunal nem debatidos pelo recorrente contencioso.
23. Na ausência de quaisquer factos provados, a entidade recorrida transcreveu integralmente os respectivos elementos sem tomar quaisquer novas diligências instrutórias.
24. Assim, alicerçada nos supra referidos factos não provados, deu como provado que o recorrente contencioso cometeu importunação sexual contra duas pessoas (C e B).
25. O que obviamente violou o princípio da presunção de inocência.
26. Os fundamentos jurídicos do acto da entidade recorrida não contêm qualquer norma que estabeleça que a existência de meros indícios ou possibilidade da prática de crime basta para a aplicação da sanção.
27. Logo, o acto administrativo da entidade recorrida violou o princípio da presunção de inocência.
28. O recorrente também entende que o acto administrativo aplicou erradamente a lei. Os factos em questão ocorreram no dia 21 de Julho de 2019, altura em que vigorava a Lei n.º 7/2006, cujo artigo 22.º, al. 14) estabelecia que o pessoal do Corpo de Guardas Prisionais deve garantir junto da população prisional níveis elevados de confiança na sua seriedade, sobriedade e respeito.
29. Mas o despacho erradamente interpretou esta norma, confundindo, obviamente, o âmbito de aplicação desta com o do artigo 22.º(sic), al. 14) da alterada Lei n.º 7/2006, isto é, o público.
30. A alteração da referida lei visa alargar o seu âmbito de aplicação ao público em geral.
31. Os factos em causa ocorreram em 21 de Julho de 2019, altura em que a Lei n.º 7/2021 ainda não tinha entrado em vigor nem sequer tinha sido aprovada.
32. Assim, embora se afirme no Despacho que este se baseia na lei então em vigor, aplicou-se erradamente uma lei que não estava em vigor nessa altura. Por conseguinte, deveria ter sido aplicada a versão da Lei n.º 7/2006 que ainda não tinha sido alterada pela Lei 7/2021.
33. Além disso, mesmo que o recorrente contencioso tivesse cometido os actos de importunação sexual, a vítima renunciou ao exercício do seu direito de queixa.
34. O recorrente contencioso não tem de ser criminalmente responsabilizado de forma alguma. Ele não se vangloriou ou se gabou perante a população prisional dos factos aqui em causa, nem lhe propagar mensagens impróprias.
35. Acresce que, não há nada nos autos donde se possa constatar como o recorrente contencioso prejudicou a confiança da população prisional na sua seriedade, sobriedade e respeito enquanto pessoal do CGP.
36. Por outras palavras, o mesmo não fez nada que prejudicasse a confiança da população prisional na imagem de seriedade, sobriedade e dignidade do pessoal do CGP.
37. Portanto, a supramencionada lei não pode servir de fundamento à aplicação da sanção. O acto administrativo recorrido aplicou erradamente a lei.
38. Por último, a entidade recorrida não esclareceu por que razão o recorrente contencioso revelou culpa grave e demonstrativa de desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais. No dia dos factos o recorrente contencioso estava de folga e não estava no exercício das suas funções, pelo que claramente há erro (sic). A entidade recorrida também não explicou como é que o recorrente contencioso revelou culpa grave e demonstrativa de desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais.
39. Em segundo lugar, o recorrente contencioso recebeu um louvor colectivo pela Direcção dos Serviços Correcionais em 2019, pelo que lhe podia ser aplicada a circunstância atenuante prevista no artigo 1.º do DL n.º 60/94/M de 5 de Dezembro conjugado com o artigo 282.º, al. c) do ETAPM. No entanto, a entidade recorrida não explicou por que razão não lhe aplicou uma sanção mais leve, como a de repreensão escrita ou de multa, mas antes aplicou directamente a pena de suspensão.
40. Além disso, o recorrente contencioso não fez nada, quer antes quer depois dos factos em causa, que pudesse afectar a Direcção dos Serviços Correcionais ou Administração Pública. Convém mencionar que a ofendida desistiu da queixa, o que significa que renunciou à possibilidade de efectivar a responsabilidade criminal do recorrente contencioso.
41. Desistiu da queixa talvez porque descobriu que se tratava de um mal-entendido; ou porque, depois de o recorrente contencioso lhe ter feito uma explicação detalhada, ela fez uma análise desapaixonada e concluiu que o contacto entre os dois era normal e não se trava de importunação sexual; pode até ser que depois de se ter acalmado, considere que o que sucedeu não era muito grave e não deseje que os factos se agravem.
42. Seja qual for o caso, o comportamento do recorrente contencioso deixou de ser criminalmente censurável.
43. Assim se pode concluir que a sanção aplicada pela entidade recorrida ao recorrente contencioso não é proporcional ao comportamento deste, e que a sanção disciplinar viola o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 5.º do CPA.
44. Nem a gravidade, nem a perigosidade nem a censurabilidade dos actos do recorrente contencioso é proporcional à pena de suspensão que lhe foi aplicada. Tem a entidade recorrida de fundamentar a sua decisão.
45. Assim sendo, a falta de fundamentação gera a anulabilidade previsto no artigo 124.º, que impõe a anulação da decisão.
Face ao exposto, pede que se dê provimento ao presente recurso contencioso e que:
1. Seja anulada, por violação do disposto no artigo 134.º, n.º 2 do CPP e artigos 114.º, 115.º e 124.º, todos do CPA, a sanção administrativa imposta pelo Secretário para a Segurança de Macau no Despacho n.º 076/SS/2023;
2. Quanto à pena de suspensão que já produziu efeitos, seja ordenado à Direcção dos Serviços Correcionais que compense o recorrente contencioso dos vencimentos e das regalias, tais como férias e subsídios, devidos durante o período da suspensão.
Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Segurança contestar, não apresentando, contudo, conclusões.
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, veio o Recorrente fazê-lo.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer pugnando para que se julgasse improcedente o recurso.
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
Dos autos consta a seguinte factualidade com relevância para a decisão da causa:
1. Pelo Senhor Secretário para a Segurança em 19.10.2023 foi aplicada a pena de suspensão pelo período de 50 dias ao Recorrente tendo o respectivo despacho o seguinte teor:
«Despacho n.º 076/SS/2023
Assunto: processo disciplinar
Processo n.º 00014-PDD/DSC/2019 da DSC
Arguido: A, guarda de 3º escalão da DSC, n.º 6613, afecto à Divisão de Segurança e Vigilância da Prisão de Coloane
Os autos do presente processo disciplinar contêm elementos suficientes para dar como provados os factos de que vem acusado o arguido A, guarda de 3º escalão da DSC. Os factos apurados da respectiva acusação aqui se dão por integralmente reproduzidos e são resumidos como segue:
No dia 21 de Julho de 2019, o arguido estava de folga. Por volta da 1h00 desse dia, este e dois colegas foram a um bar na Zona Dinastia para se divertirem. Os dois colegas saíram cerca das 2h00. Por volta das 5h00, o arguido e um amigo que também se encontrava no mesmo estabelecimento foram a uma discoteca na Doca de Pescadores para se divertirem. Cerca das 7h30 do mesmo dia, o arguido apanhou um táxi para levar o amigo para a Praça das Portas do Cerco.
Em 21 de Julho de 2019, às 8h23, uma estudante, C, e a sua colega da escola, D, estavam à espera de autocarro na paragem Sede da Unidade Especial de Polícia na Praça das Portas do Cerco, quando o arguido, que se encontrava atrás de C, avançou e tocou na nádega direita dela com o joelho direito. C notou e evitou imediatamente o arguido. Depois de C e D entrar no autocarro, o arguido, que estava sentado atrás delas, fez várias tentativas, infrutíferas, de lhes tocar com as mãos.
Mais tarde, durante a viagem de autocarro, o arguido estendeu a mão direita ao lado do seio direito de B, uma estudante sentada à sua esquerda, e tocou-lhe na alça do sutiã com a ponta dos dedos, tendo-se B virado imediatamente para evitar o toque. O arguido pôs então a mão esquerda na coxa direita de B, perto do joelho dela. B levantou-se imediatamente do seu lugar e pôs-se de pé, e o arguido seguiu-a e pôs-se imediatamente atrás dela. Quando o autocarro travou para parar em paragem, o arguido aproveitou-se para cair em direcção a B e tocou-lhe no seio esquerdo e nas nádegas com as mãos, pelo que ela se dirigiu imediatamente para a parte de trás do autocarro para evitar o arguido.
No decurso da investigação do presente caso, apesar da negação do arguido, existiam provas suficientes, com base nas declarações das vítimas e testemunhas e nas gravações de videovigilância, de que o arguido cometeu actos de importunação sexual contra as duas estudantes.
Nos termos do artigo 22.º, al. 14) da então vigente Lei n.º 7/2006 (Estatuto do Pessoal da Carreira do Corpo de Guardas Prisionais), o pessoal do CGP está sujeito aos deveres gerais definidos no regime geral da Função Pública e ainda ao dever especial de manter, mesmo fora do âmbito de exercício efectivo de funções, um comportamento cívico adequado à sua qualidade de agente de autoridade de um serviço público, por forma a garantir junto da população prisional níveis elevados de confiança na sua seriedade, sobriedade e respeito.
A conduta do arguido violou o supra referido dever especial.
Tendo o arguido recebido, em 2019, um louvor colectivo pela Direcção dos Serviços Correcionais, pode ser-lhe aplicada a circunstância atenuante prevista no artigo 1.º do DL n.º 60/94/M de 5 de Dezembro conjugado com o artigo 282.º, al. c) do ETAPM. Para além disso, não lhe são aplicáveis quaisquer outras circunstâncias atenuantes, agravantes e dirimentes, e normas de exclusão da responsabilidade disciplinar às quais alude o artigo 1.º do DL n.º 60/94/M de 5 de Dezembro, conjugado com o disposto no ETAPM.
Nos termos do artigo 316.º, n.º 1 do ETAPM, as penas graduar-se-ão de acordo com as circunstâncias atenuantes ou agravantes que no caso concorram e atendendo nomeadamente ao grau de culpa do infractor e à respectiva personalidade.
Considerando criticamente a infracção disciplinar praticada pelo arguido, as circunstâncias concretas e o grau de culpa dele, atendendo nomeadamente que ele faz parte do pessoal do CGP, para quem as exigências do cumprimento da lei são mais elevadas, mas o arguido, depois de consumir bebidas alcoólicas, não exerceu um controlo adequado sobre o seu próprio comportamento e praticou actos de importunação sexual contra as duas vítimas, tendo a sua conduta afectado gravemente a reputação da DSC e a imagem de dignidade e profissionalismo do pessoal do CGP. Ao abrigo do disposto no artigo 12.º, n.º 1 do DL n.º 60/94/M de 5 de Dezembro e artigo 316.º do ETAPM, o arguido pode ser punido com a pena de suspensão.
Nestes termos, e no exercício das competências que me foram delegadas pelo artigo 1.º do DL n.º 60/94/M de 5 de Dezembro, conjugado com o artigo 322.º da ETAPM, e artigo 1.º da Ordem Executiva n.º 182/2019, alterada pelas Ordens Executivas n.ºs 20/2021 e 86/2021, e tendo em conta o disposto no artigo 316.º do ETAPM, decido, nos termos do disposto no artigo 12.º, n.º 1 do DL n.º 60/94/M de 5 de Dezembro, aplicar ao arguido a pena de suspensão pelo período de 50 dias.
Notifique o arguido para, querendo, recorrer contenciosamente do presente despacho para o TSI, no prazo de 30 dias.»
– cf. fls. 22 e 23 traduzido a fls. 56 a 59 -;
b) Do Direito
É do seguinte teor o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público:
«1.
A, melhor identificado nos autos, interpôs o presente recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Segurança, que, em processo disciplinar, o puniu com a pena de suspensão de 50 dias, pedindo a respectiva anulação.
Foi apresentada douta contestação pela Entidade Recorrida na qual se concluiu no sentido da improcedência do recurso.
2.
(i)
O primeiro fundamento do recurso consiste na violação do princípio do inquisitório a que se refere o artigo 86.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), na violação de disposições legais em matéria de procedimentos instrutórios e no erro notório na apreciação da prova.
Salvo o devido respeito, parece-nos que o Recorrente não tem razão.
De acordo com o preceituado no referido artigo 86.º do CPA, no decurso do procedimento administrativo, «o órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito». Do mesmo modo, em matéria de processo disciplinar, do artigo 329.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM) consagra amplos poderes instrutórios tendentes ao apuramento dos factos.
Daqui resulta, portanto, que a Administração está legalmente vinculada ao esclarecimento tão exaustivo quanto possível dos pressupostos de facto da decisão disciplinar, de tal modo que insuficiência na instrução, na medida em que possa reflectir-se na insuficiência da base factual indispensável à justa e legal decisão do procedimento não pode deixar de se repercutir de modo invalidante nessa decisão.
A verdade, porém, é que, ao menos nosso ver, no caso dos autos, a Administração desenvolveu, como se lhe impunha, uma actividade instrutória com um suficiente grau de exaustão. De tal modo que a mesma lhe permitiu, com segurança, fixar os pressupostos de facto indispensáveis à prolação do acto administrativo que nos presentes autos foi impugnado. Isso basta, parece-nos, para se considerar observado o falado dever inquisitório.
No exercício da discricionariedade procedimental que a lei lhe confere, em especial no artigo 59.º do CPA, a Administração procedeu à instrução nos termos que se lhe afiguraram convenientes, tendo em vista a recolha dos elementos de facto necessários à prolação da decisão disciplinar. Não nos parece que, nessa actuação a Administração tenha actuado de forma desrazoável ou manifestamente errónea, e isso é bastante para afastar a existência, neste particular, de qualquer vício.
(i.2)
Também não ocorre, segundo nos parece, a violação lei em matéria de procedimentos probatórios, nomeadamente, a norma do artigo 134.º do Código de Processo Penal que o Recorrente invoca, pela simples razão de que, segundo nos parece, ela não é aplicável no âmbito do procedimento disciplinar, o qual, como sabemos, pela sua natureza, não é tão formalizado como o processo penal, como se extrai do disposto no n.º 1 do artigo 293.º do ETAPM. De resto, em matéria de instrução, os n.ºs 1 e 2 do artigo 329.º também consagram uma grande amplitude e abertura no que tange às diligências a que o instrutor pode proceder tendo em vista a prolação de uma decisão fundamentada.
(i.3)
Quanto ao erro na apreciação da prova diremos o seguinte.
Os tribunais administrativos, com excepção dos casos em que estão legalmente impedidos de o fazer, não só podem, como devem reapreciar o julgamento de facto realizado pela Administração em toda a sua extensão, ou seja, devem reapreciar todos os elementos de prova que foram produzidos nos autos (cfr. neste mesmo sentido, na jurisprudência comparada, o muito recente acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29.10.2020, processo n.º 0301/14.0BEBRG0147817, disponível para consulta em linha).
Além disso, o ónus da prova dos factos constitutivos da infracção disciplinar recai sobre a Administração, pelo que, em situação de dúvida sobre a realidade dos factos, é contra ela que deve decidir-se.
Isto dito, estamos convencidos, no entanto, de que a prova produzida no procedimento disciplinar permitia, como efectivamente permitiu à Administração, concluir com a indispensável segurança que aqui se exige (para além de qualquer dúvida razoável) pela prova positiva dos elementos objectivos e subjectivos da infracção disciplinar imputada ao Recorrente, nomeadamente, que o Arguido praticou actos que são susceptíveis de subsunção ao tipo legal de crime previsto no artigo 164.º-A do Código Penal – importunação sexual – relativamente a duas estudantes, tal como ficou plasmado na decisão disciplinar recorrida.
Não nos parece, assim, que haja lugar a imputar ao acto recorrido o vício do erro nos pressupostos de facto (como sabemos, o erro nos pressupostos de factos ocorre quando existe uma divergência entre os pressupostos de que o autor do acto partiu para proferir a decisão administrativa final e a sua efectiva verificação na situação em concreto, divergência essa que resulta da circunstância de se terem considerado na decisão administrativa factos não provados ou desconformes com a realidade) em virtude de uma errada apreciação da prova, nem violação do princípio da presunção de inocência por parte da Entidade Recorrida.
Uma última nota. Parece-nos que a circunstância de o processo penal ter sido arquivado em virtude da desistência de queixa não assume, neste contexto, qualquer relevância, dada a legalmente afirmada autonomia do procedimento disciplinar que de forma cristalina se resulta da norma do n.º 1 do artigo 287.º do ETAPM.
(ii)
O segundo fundamento invocado pelo Recorrente é o erro na aplicação da lei.
Não nos parece que o acto recorrido sofra do alegado vício.
Vejamos.
De acordo com a disposto na norma expressamente invocada na decisão recorrida, a contida na alínea 14) do artigo 22.º da Lei n.º 7/2006, na redacção vigente à data da prática dos factos, um dos deveres especiais do pessoal do Corpo de Guardas Prisionais, era o de «manter, mesmo fora do âmbito de exercício efectivo de funções, um comportamento cívico adequado à sua qualidade de agente de autoridade de um serviço público, por forma a garantir junto da população prisional níveis elevados de confiança na sua seriedade, sobriedade e respeito».
Da leitura interpretativa da norma transcrita parece-nos que dela se pode extrair, com alguma segurança, que o dever que nela se consagra é, apenas, o de manter, mesmo fora do âmbito de exercício efectivo de funções, um comportamento cívico adequado à sua qualidade de agente de autoridade de um serviço público. A segunda parte da norma corresponde, apenas, ao enunciado de um objectivo, ou de uma finalidade, a atingir com o cumprimento do referido dever. Este tem, todavia, um valor em si, autónomo, que se impõe, como não pode deixar de impor, atenta a respectiva formulação legal, ao pessoal do Corpo de Guardas Prisionais. Esse dever, no caso, foi manifestamente infringido.
Estamos modestamente em crer, pois, que o acto recorrido não sofre de vício de violação de lei resultante do errado enquadramento jurídico-disciplinar dos factos praticados pelo Recorrente.
(iii.)
A última questão a apreciar no presente recurso, é a respeitante à pena disciplinar aplicada pela Entidade Recorrida.
Da leitura da douta petição inicial resulta que o Recorrente não se conforma com o acto recorrido em relação a dois aspectos: por um lado, considera que a Entidade Recorrida não explicou por que razão o Recorrente actuou com culpa grave e demonstrativa de desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais, e, por outro, considera que a sanção aplicada não é proporcional ao seu comportamento.
(iii.1)
Quanto ao primeiro aspecto, parece-nos que a alegação não colhe.
De acordo com a que a que consideramos ser a boa interpretação da norma do n.º 1 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 60/94/M, de 5 de Dezembro (segundo o aí preceituado, «a pena de suspensão é aplicável aos guardas que revelem culpa grave e demonstrativa de desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais»), a culpa demonstrativa de desinteresse pelo cumprimento dos deveres funcionais está associada a condutas dolosas, em que, portanto, o trabalhador, ciente dos seus deveres, ainda assim actua de modo revelador de desinteresse pelo seu cumprimento (neste sentido, PAULO VEIGA MOURA – CÁTIA ARRIMAR, Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, 1.º volume, Coimbra, 2014, p. 557).
No caso, como resulta abundantemente da decisão recorrida, a actuação do Recorrente foi dolosa e já por isso expressiva de um intolerável desinteresse pelo cumprimento, por parte do mesmo, do dever funcional aqui em causa. Por isso, cremos poder dizer-se que a decisão contém a justificação da escolha da pena disciplinar de suspensão, não sofrendo, pois, de qualquer falta ou insuficiência de fundamentação.
(iii.2)
Quanto ao segundo aspecto do acto recorrido relativamente ao qual o Recorrente manifesta a sua discordância, também nos parece que esta é infundada.
É certo, que o princípio da proporcionalidade, que encontra assento normativo no artigo 5.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo (CPA) - «As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar» - é mobilizável enquanto parâmetro de controlo da legalidade de actos administrativos praticados, como no caso, no exercício de poderes discricionários.
No entanto, importa ter presente que ao tribunal, chamado a pronunciar-se em recurso contencioso, não compete dizer se, no caso concreto colocado perante si, aplicaria ou não a pena disciplinar que tenha sido aplicada pela Administração. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente a esta. O papel do Tribunal é outro, é o de aferir se houve ou não violação intolerável, flagrante, evidente do princípio da proporcionalidade (também assim, Ac. do TUI de 19.11.2014, processo n.º 112/2014 e Ac. do TUI de 5.12.2018, processo n.º 65/2018). Para isso, «há que pôr em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto administrativo restritivo ou limitativo e os bens e interesses individuais sacrificados por esse acto, para aferir da proporcionalidade da medida concretamente aplicada» (assim, por exemplo, Ac. do TUI de 5.12.2018, processo n.º 65/2018).
No caso em apreço, enquadrando-se a conduta do Recorrente na previsão normativa do n.º 1 do artigo 316.º do ETAPM, não se vislumbra o que haja a censurar na decisão da Administração na escolha da sanção disciplinar de suspensão, porquanto é a própria lei que habilita prevê essa sanção para o tipo de comportamento o em causa, sem que, por outro lado, se vislumbre motivo de atenuação especial que possa justificar, nos termos do n.º 2 do artigo 317.º do ETAPM, a aplicação de uma pena de escalão inferior.
No que concerne à concreta medida, em nosso modesto entender, uma pena disciplinar de 50 dias de suspensão, situada, pois, no ponto médio da moldura, não viola, muito menos de modo flagrante e intolerável, o princípio da proporcionalidade.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que o recurso contencioso deve ser julgado improcedente.».
Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual integralmente aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta entendemos que o acto impugnado não enferma dos vícios que o Recorrente lhe assaca, sendo de negar provimento ao recurso contencioso.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, negando-se provimento ao recurso mantém-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente fixando a taxa de justiça em 6 UC´s.
Registe e Notifique.
RAEM, 04 de Julho de 2024
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(1o Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
(2o Juiz-Adjunto)
Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto)
846/2023 REC CONT 1