Processo nº 24/2023
(Autos de recurso jurisdicional)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), devidamente identificado nos autos, recorreu para o Tribunal de Segunda Instância da decisão do SECRETÁRIO PARA A ADMINISTRAÇÃO E JUSTIÇA datada de 11.10.2021 que, em sede de anterior recurso hierárquico necessário, manteve a decisão da Direcção dos Serviços de Identificação que declarou a nulidade do acto de emissão do seu Bilhete de Identidade de Residente de Macau (B.I.R.M.) n.° XXXXXXX(X), e sucessivas renovações, cancelando-o, assim como do seu Passaporte da R.A.E.M. n.° MBXXXXXXX; (cfr., fls. 2 a 33-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, por Acórdão de 27.10.2022, (Proc. n.° 972/2021), julgou-se procedente o recurso, anulando-se o acto administrativo recorrido; (cfr., fls. 269 a 303).
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Do assim decidido, traz agora a entidade administrativa então recorrida o presente recurso jurisdicional, alegando para, a final, produzir as seguintes conclusões:
“1. Salvo o devido respeito, o ora Recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal a quo que julgou procedente o recurso interposto pelo recorrente no processo a quo, anulando o acto recorrido, cujos fundamentos se seguem:
2. O erro na interpretação do Decreto-Lei n.º 49/90/M cometido pelo acórdão recorrido constitui erro no julgamento: Apontou o Tribunal a quo que o recorrente no processo a quo nasceu em Macau e os pais dele habitavam legalmente em Macau aquando do seu nascimento, pelo que o aludido recorrente reuniu os requisitos legais para a aquisição do direito à residência em Macau, ou seja, goza do direito à residência.
3. É imprescindível indicar que “permanecer” e “habitar legalmente” são dois conceitos jurídicos diferentes. No que concerne à detenção de título de permanência temporária pelos pais do recorrente no processo a quo, nos termos do art.º 1º do Decreto-Lei n.º 49/90/M, de 27 de Agosto, vigente na altura, e do n.º 3 do Despacho n.º 48/GM/90, de 30 de Abril, o título de permanência temporária é o documento de mera natureza provisória concedido aos indivíduos identificados em 1990 na “Operação Indocumentados/90”, válido por um ano, renovável.
4. O título de permanência temporária é concedido aos indivíduos indocumentados que se encontram clandestinamente em Macau, a fim de lhes permitir a trabalhar em Macau, pelo que, face aos direitos dos titulares do referido documento, do n.º 1 do art.º 4º do Decreto-Lei supracitado se vislumbra que o legislador indica expressamente que os aludidos titulares têm o direito de permanecer no Território.
5. O n.º 2 do art.º 4º do mesmo Decreto-Lei restringe o efeito do sobredito documento, prevendo que aos portadores de Título de Permanência Temporária não é reconhecida a qualidade de residente, ou seja, o Título de Permanência Temporária não confere ao seu titular o estatuto de residente de Macau, e, por seu turno, o titular deste documento apenas usufrui parte dos direitos do residente de Macau. Face a isto, esse Tribunal também defende a mesma opinião (cfr. o acórdão proferido por esse Tribunal no processo de recurso contencioso n.º 115/2014).
6. Portanto, nos termos tanto do efeito como da natureza, o título de permanência temporária apenas confere ao seu titular o direito de permanecer legalmente em Macau e não o direito de residir em Macau.
7. Pelo exposto, a concessão do título de permanência temporária tem como objectivo permitir aos indivíduos indocumentados que estavam ilegalmente em Macau trabalhar em Macau, título esse tem mero carácter provisório, e aos portadores deste não é reconhecida a qualidade de residente de Macau, pelo que, até à atribuição de bilhete de identidade de residente aos pais biológicos do recorrente no processo a quo ao abrigo do Despacho n.º 46/GM/96, o período em que os mesmos eram ainda portadores de título de permanência temporária é considerado como período de mera permanência em Macau e não como período de residência ou habitação legal em Macau (o TA também defende a mesma óptica, cfr. a sentença proferida pelo mesmo Tribunal no processo n.º 147/11-RDILP). Isto é, aquando do nascimento do recorrente no processo a quo, os pais biológicos dele encontravam-se em estado de mera permanência, por conseguinte, não se pode aceitar que o recorrente no processo a quo goze do direito à residência como referido pelo Tribunal a quo.
8. Mesmo no regime jurídico do direito de residência ora vigente, ou seja, na alínea 3) do n.º 2 do art.º 4º da Lei n.º 8/1999 se prevê expressamente que não se considera residência em Macau a autorização de permanência em Macau.
9. Assim sendo, tanto no nascimento do recorrente no processo a quo como na situação actual do mesmo, este não reúne os requisitos legais para obter a qualidade de residente de Macau.
10. Pela análise acima exposta, entende o ora Recorrente que o Tribunal a quo cometeu erro na interpretação do Decreto-Lei n.º 49/90/M, o acórdão recorrido enfermando do vício de erro no julgamento.
11. Além do mais, o ora Recorrente também não se conforma com a óptica do Tribunal a quo e do MºPº que assinalaram que, mesmo que não houvesse a prestação de falsos dados de identificação paterna, o recorrente no processo a quo poderia adquirir o título de permanência temporária e, em consequência, o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM, por seus pais biológicos serem portadores de título de permanência temporária.
12. Na verdade, não obstante o título de permanência temporária se encontrar em estado de transição cujos fim e objectivo consistem na “legalização”, e o n.º 1 do art.º 6º do Decreto-Lei n.º 49/90/M prever que “o título de permanência temporária será substituído por documento de identificação emitido pelos Serviços competentes do Território, nos termos e nos prazos a definir por despacho do Governador.”, o aludido despacho só foi publicado em 1996, pelo que os portadores de título de permanência temporária não eram capazes de prever quando seria publicado o despacho de substituição do título de permanência temporária por bilhete de identidade de residente nem saber antecipadamente em que data exacta se tornariam residentes de Macau. Daí se vislumbra que a questão de aquisição do Bilhete de Identidade de Residente de Macau pelo recorrente no processo a quo era cheia de incertezas.
13. Certamente, mesmo que não houvesse a prestação de falsos dados de identificação paterna, ao recorrente no processo a quo seria atribuído o título de permanência temporária por causa dos seus pais, aquando do seu nascimento em Macau no ano de 1991. Contudo, o Tribunal a quo ignorou o momento em que se ocorreu o facto criminoso de prestação de falsos dados de identificação paterna praticado deliberadamente pelos pais do recorrente no processo a quo, por pretenderem que seu filho adquirisse directamente o Bilhete de Identidade de Residente de Macau.
14. Com efeito, a prestação de falsos dados de filiação é um crime altamente oculto que é dificilmente descoberto pela Administração, ou só será descoberto aquando da maioridade do interessado.
15. No caso sub judice, embora seja impossível a instauração do procedimento criminal por ter sido decorrido o prazo de prescrição aquando da descoberta do acto de prestação de falsos dados de identificação paterna praticado pelos pais do recorrente no processo a quo, nos termos do diploma legal vigente na altura, o acto de prestação de dados falsos constituiu crime (Lei n.º 2/90/M). Deveriam ser retirados os títulos de permanência temporária aos pais do recorrente no processo a quo, se o acto de prestação de dados falsos tivesse sido descoberto na dada altura (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 49/90/M).
16. Nessas circunstâncias, ao recorrente no processo a quo não seria atribuído o título de permanência temporária por causa dos seus pais. Por cima, seria cancelado o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa do recorrente no processo a quo, se tivesse sido descoberto o crime na dada altura.
17. Por outro lado, mesmo que os títulos de permanência temporária dos pais do recorrente no processo a quo tivessem sido substituídos por Bilhetes de Identidade de Residente de Macau, tal facto foi ocorrido depois da aquisição do Bilhete de Identidade de Residente de Macau pelo recorrente no processo a quo, pelo que não se pode concluir que seja legal a aquisição do estatuto de residente de Macau pelo recorrente no processo a quo com fundamento no facto de aquisição do Bilhete de Identidade de Residente de Macau pelos seus pais biológicos.
18. É de salientar que o recorrente no processo a quo nunca foi portador de título de permanência temporária, por isso, não lhe é aplicável o procedimento de substituição de título de permanência temporária por Bilhete de Identidade de Residente de Macau. Actualmente, a legislação reguladora de título de permanência temporária já foi revogada, portanto, a questão de posse ou não do estatuto de residente de Macau pelo recorrente no processo a quo só pode ser apreciada em conformidade com o diploma legal ora vigente.
19. Na verdade, aquando do nascimento do recorrente no processo a quo, podiam os pais deste declarar verdadeiramente a paternidade, substituindo os títulos de permanência temporária por Bilhetes de Identidade de Residente de Macau, porém os pais dele optavam por prestar falsos dados de identificação paterna, com vista a permitir, por forma ilegal, que o dito recorrente adquirisse directamente o Bilhete de Identidade de Residente de Macau e, em consequência, o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM.
20. Deste modo, improcede a óptica do acórdão recorrido que defende que, mesmo que não houvesse a prestação de falsos dados de identificação paterna, o recorrente no processo a quo poderia adquirir o Bilhete de Identidade de Residente de Macau através do requerimento de título de permanência temporária. No entendimento do ora Recorrente, o erro na interpretação do Decreto-Lei n.º 49/90/M cometido pelo Tribunal a quo constitui erro no julgamento.
21. O erro na interpretação da alínea c) do n.º 2 do art.º 122º do Código do Procedimento Administrativo cometido pelo acórdão recorrido constitui erro no julgamento: O ora Recorrente não se conforma com a óptica do Tribunal a quo que citou o parecer emitido pelo MºPº onde se indicou que a sentença condenatória proferida contra a mãe do recorrente no processo a quo desencadeou meramente a nulidade parcial do registo de nascimento do aludido recorrente, não lhe causando a perda do estatuto de residente permanente de Macau.
22. Como referiu o ora Recorrente nos pontos 73 a 81 da contestação, o recorrente no processo a quo adquiriu os documentos de identificação por crime, pelo que a DSI deveria declarar, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 2 do art.º 122º do Código do Procedimento Administrativo, a nulidade de uma série de actos de concessão de documentos ao recorrente no processo a quo.
23. No que concerne à alínea c) do n.º 2 do art.º 122º do Código do Procedimento Administrativo, de acordo com a jurisprudência e doutrina em apreço, na aplicação da alínea c) do n.º 2 do art.º 122º do Código do Procedimento Administrativo, a expressão “actos que constituem um crime” tem que ser objecto de interpretação extensiva, não estão em causa apenas as situações em que o acto administrativo em si preenche um tipo penal, mas todas aquelas em que o acto administrativo envolva, na sua preparação ou execução, a prática de um crime. Tais situações devem ser consideradas como actos nulos (cfr. os acórdãos proferidos por esse Tribunal nos processos n.ºs 29/2018 e 11/2012).
24. In casu, a DSI praticou uma série de actos de emissão de documento ao recorrente no processo a quo, com base nos falsos dados de identificação paterna fornecidos pela mãe do aludido recorrente, pois, tais actos de emissão de documento foram praticados pela DSI, com base no crime de prestação de dados falsos.
25. Certo é que o recorrente no processo a quo não poderia adquirir o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa nem o Bilhete de Identidade de Residente de Macau, o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e o Passaporte da RAEM que lhe foram atribuídos posteriormente, caso a mãe dele não tivesse declarado os falsos dados de identificação paterna do mesmo.
26. O Juízo Criminal do TJB proferiu sentença condenatória contra o acto de obtenção do estatuto de residente de Macau por falsos dados de identificação paterna. O recorrente no processo a quo adquiriu a qualidade de residente por crime, pelo que, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 2 do art.º 122º do Código do Procedimento Administrativo, são nulos os actos de emissão de documentos de identificação ao aludido recorrente, praticados pela DSI. Face a isto, o TSI também tem a mesma óptica (cfr. o acórdão proferido pelo mesmo Tribunal no processo n.º 147/2018).
27. Deste modo, o recorrente no processo a quo adquiriu os documentos de identificação por crime e por prestação de informações falsas à Administração, pelo que a DSI é obrigada a declarar a nulidade de uma séria de actos de emissão de documento ao aludido recorrente, ao abrigo da alínea c) do n.º 2 do art.º 122º do Código do Procedimento Administrativo.
28. Pelo exposto, o Tribunal a quo cometeu erro na interpretação da alínea c) do n.º 2 do art.º 122º do Código do Procedimento Administrativo que constituiu erro no julgamento, uma vez que o referido Tribunal citou o parecer emitido pelo MºPº onde se indicou que a sentença condenatória proferida contra a mãe do recorrente no processo a quo desencadeou meramente a nulidade parcial do registo de nascimento do aludido recorrente, não lhe causando a perda do estatuto de residente permanente de Macau.”; (cfr., fls. 315 a 341 e 78 e 120 do Apenso).
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Em resposta, bate-se o dito recorrente pela confirmação da decisão recorrida; (cfr., fls. 342 a 352-v).
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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. O Tribunal de Segunda Instância indicou e elencou como “provada” a seguinte matéria de facto:
«Foi emitido pela 1ª vez ao recorrente, em 20.9.1991, o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa n.º XXXXXX.
Nessa altura, constava que o recorrente era filho de B (pai, portador da cédula de identificação policial) e C (mãe, portadora do título de permanência temporária).
Em 15.11.1994, foi-lhe emitido o Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º X/XXXXXX/X.
Foi instaurado o inquérito registado sob o n.º 3299/2006 contra D, C e B.
Por acórdão proferido nos autos CR1-15-0422-PCC, transitado em julgado em 9.12.2016, C foi condenada pela prática do crime de falsificação de documento de especial valor p.p. no artigo 245º, conjugado com o artigo 244º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal de Macau.
Foi intentada pelo recorrente uma acção de impugnação de paternidade contra D, C e B, autuada e registada sob o n.º FM1-19-0014-CAO. (fls. 56 dos autos)
Ficou provado na referida acção de impugnação de paternidade o seguinte: (fls. 57 e 58 dos autos)
- O recorrente nasceu em Macau no dia 10.8.1991;
- C é mãe do recorrente;
- No dia 4.9.1991, B declarou na Conservatória do Registo Civil que o recorrente era seu filho;
- Segundo o exame de ADN feito pela PJ, concluiu-se que B não é pai biológico do recorrente;
Em 29.6.2020 foi proferida sentença, tendo o Tribunal Judicial de Base declarado que B não é pai biológico do recorrente A e ordenou o cancelamento da parte do registo de nascimento do mesmo. (fls. 57 a 59 dos autos)
Por averbamento ao assento de nascimento do recorrente, consta que o pai do recorrente é D. (fls. 61 dos autos)
Em 13.8.2021, a Direcção dos Serviços de Identificação notificou o recorrente de que o seu BIRM emitido pela 1ª vez em 20.9.1991 fora cancelado em 25.5.2021. (fls. 35 a 54 dos autos)
Inconformado, interpôs o recorrente recurso hierárquico necessário para o Secretário para a Administração e Justiça. (fls. 118 a 126 dos autos)
Posteriormente, foi elaborado o seguinte parecer:
“Na sequência do recurso hierárquico necessário interposto pelo advogado de A (doravante designado simplesmente por “Parte”) para o Exmo. Sr. Secretário, contra a decisão proferida por esta Direcção que declarou a nulidade dos actos administrativos de emissão do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e de emissão do Passaporte da RAEM à Parte, e cancelou o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e o Passaporte da RAEM que lhe tinham sido atribuídos, formulou-se, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 159º do Código do Procedimento Administrativo, o seguinte parecer:
I. Dos factos
1. A Parte, A, nasceu em Macau no dia 10 de Agosto de 1991, detém o registo de nascimento n.º XXXX emitido pela Conservatória do Registo de Nascimentos, cujo pai é B (portador da então Cédula de Identificação Policial n.º XXXXXX, emitida pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública, e do actual Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM n.º XXXXXXX(X)) e mãe é C (portadora do então Título de Permanência Temporária n.º XXXXXX, emitido pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública, e do actual Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM n.º XXXXXXX(X), emitido pela primeira vez em 25 de Novembro de 1996).
2. Em 20 de Setembro de 1991, B requereu, pela primeira vez, a emissão do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa à Parte e, conforme os elementos constantes do registo de nascimento supramencionado, a Parte adquiriu, pela primeira vez, o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa n.º XXXXXX.
3. Posteriormente, em 15 de Novembro de 1994, conforme os elementos constantes do registo de nascimento supramencionado, esta Direcção emitiu à Parte o Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º X/XXXXXX/X e, em 23 de Setembro de 1997, foi autorizada a renovação do aludido BIRM.
4. Em 20 de Fevereiro de 2006, C, em representação do interessado, deduziu a esta Direcção o pedido de emissão do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM à Parte, bem como apresentou a declaração feita por D (portador do então Título de Permanência Temporária n.º XXXXXX, emitido pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública, e do actual Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM n.º XXXXXXX(X), emitido pela primeira vez em 30 de Outubro de 1996) no Instituto de Acção Social que revelou a sua pretensão de adopção da Parte.
5. Assim sendo, em 15, 20 e 27 de Março de 2006, esta Direcção pediu a D, B e C, respectivamente, que prestassem declarações nesta Direcção:
Na Declaração n.º 65/DIR/2006 desta Direcção, D declara:
“Eu, B e C já conhecemos no Interior da China. B é o meu “primo”. Eu, B e C alojávamo-nos num mesmo apartamento em Macau. Sabia que havia uma relação de coabitação entre B e C e eles tiveram o filho A (em 1991). Em cerca de dois anos depois do nascimento de A, B e C deixaram-me e A. Eu gosto de crianças, por isso fiquei com A e comecei a criá-lo como o meu filho até agora. Eu já perdi o contacto com B e C.
Por volta de 1995, fui tratar das formalidades de adopção de A no “tribunal” e no “IASM”, mas não foram terminadas as formalidades por não ter pagado as respectivas despesas. Na altura, o Sr. Chan do “IASM” dizia que eu não tinha propriedade, por isso não podia adoptar oficialmente A, porém o nosso caso já foi registado pelo “IASM”.”
Na Declaração n.º 73/DIR/2006 desta Direcção, B declara:
“(…) Eu sabia que D e C se coabitavam no [Edifício]. Na altura, eu deslocava-se frequentemente entre Macau e o Interior da China.
Por volta de 1991, C internou no Centro Hospitalar Conde de S. Januário à espera do parto. D pediu a uma pessoa que me procurasse em Xiaolan e me chamasse para regressar a Macau, bem como me comunicasse que C, ao internar no hospital, tinha declarado que B era o marido dela. Eu não concordava com essa declaração, mas a enfermeira dizia que não podia alterar os dados preenchidos, por isso, após o nascimento de A, do assento de nascimento dele, emitido pelo hospital, constava que eu era o pai de A. Em alguns meses depois do nascimento de A, D chamou-me novamente para regressar a Macau, a fim de pedir a emissão do “certificado de nascimento”. Na altura, D dizia ao funcionário que eu estava com C quando ele regressou ao Interior da China, por isso C deu a luz ao filho A. Porém, na realidade, eu não tinha relação nenhuma com C. Em 1993, eu trabalhei para D e pernoitei em casa dele durante cerca de 10 dias. D não me pagou o salário, pelo que fui arranjar emprego no Interior da China e nunca mais teve contacto com D. No meu conhecimento, em cerca de 1995, C casou-se com um indivíduo de Hong Kong e emigrou para Hong Kong.
Em cerca de três anos atrás, o “IASM” falou comigo sobre o assunto de A, e só naquele momento é que tomei conhecimento de que D tinha declarado no “IASM” que eu não tomava conta de A e regressava frequentemente ao Interior da China, consequentemente, fui acusado pelo “MºPº”. Eu contei a história inteira ao “MºPº” e, por seu turno, o “MºPº” exigiu o “Relatório do exame pericial para a determinação de filiação” entre eu e A. Eu concordei com isso, mas todas as despesas seriam pagas por D. O “MºPº” também contactou C e D. Quando cheguei ao “MºPº”, falei com C e D sobre o assunto de A. Espero que os dados de A sejam rectificados com maior brevidade possível, mas, até agora, nunca mais o “MºPº” entra em contacto comigo e eu também não consigo contactar C.”
Na Declaração n.º 84/DIR/2006 desta Direcção, C declara:
“Depois de entrar clandestinamente em Macau, alojei-me juntamente com B e D num mesmo apartamento. Tive relação relativamente íntima com esses dois indivíduos. Posteriormente, fiquei grávida e passei a coabitar com D num outro apartamento. Contudo, na altura, não sabia quem era o pai do feto. B trabalhava fora e, às vezes, visitava-me e D. Em cerca de 6 meses de gestação, internei duas vezes no Centro Hospitalar Conde de S. Januário para se submeter a exame médico. Por haver indícios de “aborto”, fui submetida a tratamento. D levou-me para hospital na segunda vez que nele internei. Na altura, não sabia quem realizou a declaração de dados. Só depois do nascimento (parto prematuro) do filho A é que tomei conhecimento de que tinha sido declarado no hospital que B era o pai de A. Também perguntei a D por que motivo tinha declarado que B era o pai do meu filho. D respondeu que receava que a criança não fosse o filho biológico dele, pelo que tinha declarado que B era o pai da criança. Ao requerer o “certificado de nascimento” do filho, eu disse que não sabia quem era o pai do filho. O funcionário do serviço competente disse que era necessário saber quem era o pai do meu filho, mas, por ser fraco o meu filho na altura, me sentir bastante incomodada e não ser possível a verificação do pai da criança, só podia registar o nome de B como o pai da criança, em conformidade com os dados existentes no hospital.”
6. Deste modo, em 29 de Março de 2006, esta Direcção oficiou ao MºPº, comunicando-lhe o assunto em questão e, em 4 de Abril do mesmo ano, por ofício, notificou a Parte do assunto.
7. Por ser necessária a aguarda da resposta do MºPº relativa à verificação dos danos do pai da Parte, em 2007, esta Direcção procedeu primeiro à substituição do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM n.º XXXXXXX(X) a favor da Parte, donde não constava o nome do pai da Parte.
8. Em 14 de Fevereiro de 2011, a Parte deduziu a esta Direcção o pedido de renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM que foi deferido, posteriormente, por esta Direcção.
9. Em 16 de Março de 2011, esta Direcção oficiou à Conservatória do Registo Civil, comunicando-lhe o assunto em apreço, bem como oficiou à Parte, pedindo-lhe que apresentasse o Relatório do exame pericial para a determinação de filiação entre ela e D e B.
10. Em 3 de Março de 2017, o MºPº respondeu a esta Direcção que tinha deduzido acusação contra os arguidos (D, C e B) no Inquérito n.º 3299/2006. Conforme o ponto 17 da acusação em anexo: “Com a intenção de obter, para si e para outra pessoa, benefícios ilegítimos, desde o tratamento, pela primeira vez, do registo de nascimento de A ocorrido no início do ano de 1991, os três arguidos têm preenchido e declarado perante a autoridade competente de Macau o nome falso do pai de A (B), a seguir, em 20 de Setembro de 1991, 15 de Novembro de 1994, 23 de Setembro de 1997 e 20 de Fevereiro de 2006, datas em que foram tratadas as formalidades do bilhete de identidade, eles continuaram a preencher o nome falso do pai de A (B), ocultando os verdadeiros dados de identificação do pai de A, a fim de descrever falsamente nos documentos de identificação de A os factos juridicamente relevantes.”
11. Em 27 de Março de 2017, esta Direcção recebeu o acórdão proferido, em 18 de Novembro de 2016, pelo Juízo Criminal do TJB em relação ao caso em apreço:
(1º arguido: D; 2ª arguida: C; e, 3º arguido: B)
1) De acordo com o ponto 12 dos factos provados: “Com o consentimento de D, C, B e A, o Departamento de Ciências Forenses da Polícia Judiciária da RAEM extraiu as amostras de saliva dos supracitados quatro indivíduos para efeitos do exame pericial de ADN para a determinação de filiação, e conforme as conclusões expostas no Relatório de exame laboratorial n.º BIO2006-075 (vide fls. 122 a 131 dos autos): 1. Há “fortes moderadas” evidências que sustentam que C é a mãe biológica de A; 2. Há “extremamente fortes” evidências que sustentam que D é o pai biológico de A; 3. B não é o pai biológico de A.”
2) Todavia, por ter sido decorrido o prazo de prescrição do procedimento criminal, extinguem-se os procedimentos criminais do acto de prestação de falsas declarações praticado, em comum acordo e em conjugação de esforço, em 1991 pelos três arguidos, e dos actos de fornecimento de falsos dados de identificação do pai da Parte à autoridade competente praticados pela 2ª arguida C, em 1994 e 1997, no tratamento dos assuntos relativos aos bilhetes de identidade da Parte.
3) “Por fim, segundo os factos provados, com a intenção de obter, para si e para outra pessoa, benefícios ilegítimos, em 20 de Fevereiro de 2006, no tratamento das formalidades do bilhete de identidade de A, a 2ª arguida preencheu o nome falso do pai de A (B), ocultando os verdadeiros dados de identificação do pai de A, a fim de descrever falsamente no documento de identificação de A os factos juridicamente relevantes; nesta conformidade, a 2ª arguida praticou um crime de falsificação de documento de especial valor que lhe foi imputado na acusação.”
C foi condenada, pela prática de um crime de falsificação de documento de especial valor, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos. O acórdão em causa transitou em julgado em 9 de Dezembro de 2016.
12. Em 21 de Abril de 2017, esta Direcção oficiou à Conservatória do Registo Civil, comunicando-lhe o resultado do referido acórdão e, na mesma data, oficiou à Parte, pedindo-lhe que apresentasse o registo de nascimento de que constava os dados correctos do seu pai.
13. Em 29 de Março de 2019, esta Direcção deferiu o pedido de renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM da Parte.
14. Em 24 de Agosto de 2020, a Parte deduziu a esta Direcção o pedido de alteração dos dados do seu Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM, apresentando a certidão narrativa do registo de nascimento n.º XXXX/1991/CR rectificada, donde constava que o pai era D, e a mãe era C.
15. Em 18 de Setembro de 2020, esta Direcção recebeu o processo da Parte fornecido pela Conservatório do Registo Civil, donde constava a sentença cível transitada em julgado em 16 de Julho de 2020 nos autos do processo n.º FM1-19-0014-CAO, pela qual, nos termos dos artigos 66º, al. a), 67º, al. b), e 70º, n.º 1, al. a), todos do Código do Registo Civil, devido à nulidade do registo de que constam os dados falsos do pai ou da mãe, em 29 de Junho de 2020, o Juízo de Família e de Menores do TJB decidiu declarar que B não era o pai biológico da Parte, ordenando o cancelamento da parte dos dados do registo de nascimento da Parte que mostrava que B era o pai da mesma.
16. Os pais da Parte não tinham o estatuto de residente de Macau nem residiam legalmente em Macau aquando do nascimento da Parte em Macau, pelo que a Parte não possui a qualidade de residente permanente da RAEM. Em 23 de Abril de 2021, por ofício n.º 262/DSI-DAG/OFI/2021, esta Direcção notificou a Parte de que seriam cancelados o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM n.º XXXXXXX(X) e o Passaporte da RAEM n.º MBXXXXXXX que lhe foram atribuídos, bem como seria realizada a audiência escrita face ao assunto em causa.
17. Em 30 de Abril do mesmo ano, a Parte recebeu o aludido ofício, e, em 7 de Maio do mesmo ano, ela apresentou a esta Direcção as alegações escritas e os documentos complementares.
18. Finda a análise, dado que as alegações escritas apresentadas pela Parte não demonstraram que a mesma reunisse os requisitos legais para a aquisição do estatuto de residente de Macau, em 25 de Maio de 2021, por Proposta n.º 20/DAG/DJP/D/2021, esta Direcção proferiu a decisão da declaração de nulidade dos actos administrativos de emissão do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e de emissão do Passaporte da RAEM à Parte, e do cancelamento do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e do Passaporte da RAEM atribuídos à mesma. Da decisão foi notificada a Parte em 27 de Maio do mesmo ano, através do ofício n.º 359/DSI-DAG/OFI/2021. Por causa da Parte, tal ofício só foi recebido pessoalmente pela mesma nesta Direcção em 13 de Agosto de 2021.
19. Em 13 de Setembro de 2021, o advogado da Parte interpôs recurso hierárquico necessário para o Secretário para a Administração e Justiça, contra a decisão em apreço. Em 16 de Setembro do mesmo ano, esta Direcção recebeu do Gabinete do Secretário para a Administração e Justiça os respectivos documentos.
II. Do Direito
(I) A Parte não está qualificada para a aquisição do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa e não possui a qualidade de residente de Macau, por não reunir os requisitos legais
20. Para a concessão do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa, os artigos 23º, n.º 1, e 24º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 79/84/M (Regulamenta a emissão do bilhete de identidade), de 21 de Julho, instituem:
“Artigo 23º
(Tempo mínimo de residência)
1. Os indivíduos não portugueses residentes em Macau só podem requerer bilhete de identidade quando completarem um ano de residência no Território, salvo se, por força de lei especial, for obrigatória a sua posse.
Artigo 24º
(Normas especiais)
1. Na concessão de bilhetes de identidade aos indivíduos referidos no artigo anterior, serão observadas as regras gerais, com as seguintes especialidades:
a) A certidão de nascimento, quer do registo português ou estrangeiro, se o requerente não nasceu em Portugal ou Macau, pode ser substituída por:
- Certificado passado pelo representante consular do seu país;
- Cédula de identificação policial.
b) No caso de manifesta impossibilidade, reconhecida pelo director do SIM, de apresentação de um dos documentos referidos na alínea anterior, o pedido será instruído com um auto de declarações do requerente, ou do seu representante legal, se for menor, acompanhado da prova documental que possua; o serviço procederá às diligências tendentes à comprovação da veracidade das declarações sempre que o julgue necessário;
c) A prova de residência em Macau será feita pela exibição de título de residência válido, nos termos da legislação em vigor, ou de cédula de identificação policial que serão devolvidos ao requerente, fazendo-se constar do processo a sua apresentação;
d) Na falta dos documentos mencionados na alínea anterior e desde que o requerente não esteja sujeito às normas que impõem a sua obrigatoriedade, a residência em Macau prova-se nos termos do n.º 4 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 42/83/M, de 21 de Novembro, salvo se for funcionário público; caso em que a prova poderá ser feita através de declaração autenticada, emitida pelo respectivo Serviço, se estiver em situação de actividade, ou pela Direcção dos Serviços de Finanças, se for aposentado ou reformado do Território.”
21. Por força dos artigos 23º e 24º, n.º 1, alíneas a) e c) supracitados, os requerentes do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa têm de completar um ano de residência em Macau e apresentar a certidão de nascimento e a prova de residência em Macau.
22. À luz da situação referida na alínea d) do n.º 1 do art.º 24º do mesmo Decreto-Lei, na altura, o Corpo de Polícia de Segurança Pública tinha de emitir grande quantidade de prova de residência em Macau, e, visando-se à garantia da comodidade aos cidadãos, conforme a concertação entre o SIM e o Corpo de Polícia de Segurança Pública, os requerentes do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa não precisavam apresentar a prova de residência em Macau desde que o pai ou a mãe destes fossem residente de Macau (portador da cédula de identificação policial ou bilhete de identidade).
23. In casu, a Parte nasceu em Macau no dia 10 de Agosto de 1991, do registo de nascimento dela constava que o seu pai era B, bem como foi exibida a cédula de identificação policial de B no requerimento de concessão do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa a favor da Parte, pelo que à Parte foi concedido o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa n.º XXXXXX em 20 de Setembro de 1991.
24. Posteriormente, nos termos do n.º 1 do art.º 5º do Decreto-Lei n.º 6/92/M (Regula a emissão do novo bilhete de identidade de residente de Macau), de 27 de Janeiro – “Consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento.”, e do n.º 1 do art.º 25º do mesmo Decreto-Lei – “Mantêm-se válidos, para todos os efeitos legais, as cédulas de identificação policial e os bilhetes de identidade de cidadão estrangeiro emitidos pelos serviços competentes do Território, até que seja determinada a sua substituição pelo BIR.”, em 15 de Novembro de 1994, foi substituído o documento da Parte pelo Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º X/XXXXXX/X.
25. Em 23 de Setembro de 1997, nos termos do n.º 1 do art.º 22º do mesmo Decreto-Lei, foi deferida a renovação do bilhete de identidade supramencionado.
26. A seguir, nos termos do n.º 2 do art.º 9º da Lei n.º 8/1999 (Lei sobre Residente Permanente e Direito de Residência da Região Administrativa Especial de Macau) – “São considerados residentes permanentes da RAEM, os cidadãos chineses titulares do BIR emitido antes de 20 de Dezembro de 1999 que preencham um dos seguintes requisitos: 1) Constar do BIR que o local de nascimento é Macau; 2) Ter decorrido sete anos desde a data da primeira emissão do BIR; (…)”, e da alínea 1) do n.º 2 do art.º 2º da Lei n.º 8/2002 (Regime do bilhete de identidade de residente da Região Administrativa Especial de Macau) – “Bilhete de identidade de residente permanente da RAEM, que é concedido aos residentes permanentes da RAEM”, em 20 de Fevereiro de 2006, esta Direcção procedeu à substituição do documento da Parte pelo Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM n.º XXXXXXX(X).
27. Por força da alínea 1) do n.º 2 do art.º 2º da Lei n.º 8/2002 e do art.º 23º do Regulamento Administrativo n.º 23/2002 (Regulamento do bilhete de identidade de residente da Região Administrativa Especial de Macau), foram deferidas as renovações do sobredito documento em 14 de Fevereiro de 2011 e 29 de Março de 2019.
28. Desde 2006, esta Direcção colocou em dúvida os dados de identificação do pai da Parte. Enfim, no acórdão de 18 de Novembro de 2016 o Juízo Criminal do TJB apontou que D, C e B praticaram crime por terem fornecido dados falsos à Administração, com vista a permitir que a Parte adquirisse o direito à residência em Macau, no entanto, foi declarado extinto o processo penal por ter sido decorrido o prazo prescricional; e foi condenada C pela prática de um crime de falsificação de documento de especial valor, por ter preenchido o nome falso do pai da Parte (B) no tratamento das formalidades do bilhete de identidade da Parte, ocultando os verdadeiros dados de identificação do pai da Parte, a fim de descrever falsamente no documento de identificação da Parte os factos juridicamente relevantes, com a intenção de obter, para si e para outra pessoa, benefícios ilegítimos. Tal acórdão transitou em julgado em 9 de Dezembro de 2016.
29. Ademais, por sentença proferida, em 29 de Junho de 2020, pelo Juízo de Família e de Menores do TJB, declarou-se que B não era pai biológico da Parte, ordenando-se o cancelamento da parte dos dados do registo de nascimento da mesma que mostrava que B era pai da Parte. Tal sentença transitou em julgado em 16 de Julho de 2020.
30. A Conservatória do Registo Civil procedeu à rectificação da certidão narrativa do registo de nascimento n.º XXXX/1991/CR da Parte, donde constava que o pai era D e a mãe era C.
31. Os pais biológicos da Parte não tinham o estatuto de residente de Macau e não residiam legalmente em Macau aquando do nascimento da Parte, pelo que a Parte não reúne os requisitos previstos nos artigos 23º, n.º 1, e 24º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 79/84/M, de 21 de Julho, não estando qualificado para adquirir o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa, não lhe devendo ser atribuído o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa, consequentemente, não reúne os requisitos previstos nos artigos 5º, n.º 1, 25º, n.º 1, e 22º, n.º 1, todos do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, não possuindo o estatuto de residente de Macau, não lhe devendo ser atribuído o Bilhete de Identidade de Residente de Macau, bem como não reúne os requisitos previstos no art.º 9º, n.º 2 da Lei n.º 8/1999, no art.º 2º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 8/2002, e no art.º 23º do Regulamento Administrativo n.º 23/2002, não possuindo o estatuto de residente permanente da RAEM, não lhe devendo ser atribuído o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM.
32. Ademais, por não possuir o estatuto de residente permanente da RAEM, a Parte não reúne os requisitos previstos no art.º 5º da Lei n.º 8/2009 (Regime dos documentos de viagem da Região Administrativa Especial de Macau), não lhe devendo ser atribuído o Passaporte da RAEM n.º MBXXXXXXX.
(II) Os actos de emissão de documento são relacionados com um crime
33. Por acórdão proferido em 18 de Novembro de 2016 pelo Juízo Criminal do TJB, a mãe da Parte foi condenada por ter fornecido dados falsos à Administração, com vista a permitir que a Parte adquirisse o estatuto de residente de Macau.
34. Nos termos do disposto na alínea c) do n.º 2 do art.º 122º do Código do Procedimento Administrativo, são actos nulos “os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime”.
35. A Parte adquiriu os documentos de identificação com base no crime de prestação de falsos dados de identificação do pai, pelo que são actos nulos os actos administrativos de emissão do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa n.º XXXXXX, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente n.º X/XXXXXX/X e de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM n.º XXXXXXX(X) praticados por esta Direcção, por seu objecto constitui um crime.
(III) Da nulidade do registo de nascimento resulta a nulidade dos actos de emissão de documento
36. Face às paternidade e maternidade da Parte, nos termos do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 1º do Código do Registo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 14/87/M, de 16 de Março – “Devem ingressar no registo civil de Macau os seguintes factos ocorridos no Território: a) O nascimento; b) A filiação; (…)”, fazem parte do âmbito do registo civil os factos de nascimento e estabelecimento de filiação em Macau, e nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 3º do mesmo Código – “A prova resultante do registo civil quanto aos factos a ele obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, salvo nas acções de estado ou de registo.”, a prova resultante do registo civil quanto aos factos a ele obrigatoriamente sujeitos não pode ser ilidida por qualquer outra. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 24º do Decreto-Lei n.º 79/84/M, de 21 de Julho, os requerentes do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa têm de apresentar a certidão de nascimento. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 21º do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, os requerentes do bilhete de identidade de residente devem apresentar: “a) Certidão de narrativa de registo de nascimento ou documento equivalente;”, e nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 1º da Lei n.º 8/1999, “O nascimento em Macau prova-se por registo de nascimento emitido pela conservatória competente de Macau”. Esta Direcção é obrigada a verificar, com base no registo de nascimento e por dados dos pais constantes do registo de nascimento, se uma das partes dos pais é residente de Macau (portador da cédula de identificação policial ou bilhete de identidade), a fim de confirmar se a Parte está qualificada para a aquisição do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa e se possui o estatuto de residente de Macau.
37. Nos termos dos artigos 66º, al. a), e 67º, al. b) do Código do Registo Civil, é nulo o registo de que constam os dados falsos do pai ou da mãe. Nos termos dos artigos 70º, n.º 1, al. a), e 71º do mesmo Código, o registo deve ser cancelado depois de ser declarada a sua nulidade; e, o registo cancelado não produz quaisquer efeitos como título do facto registado.
38. Esta Direcção emitiu os documentos de identificação à Parte em conformidade com o conteúdo do registo de nacimento original desta, foram declarados nulos os dados relativos à filiação paterna da Parte constantes do registo de nascimento devido à sua falsidade, bem como a Conservatória do Registo Civil procedeu à rectificação do registo de nascimento.
39. Ao abrigo do art.º 122º, n.º 2, al. i) do Código do Procedimento Administrativo, são actos nulos “os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na manutenção do acto consequente”.
40. Devido à inexistência de contra-interessados com interesse legítimo, os actos administrativos de emissão do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM à Parte, praticados por esta Direcção em consequência do reconhecimento da qualidade da Parte para a aquisição do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa e do estatuto de residente de Macau da mesma com base no seu registo de nascimento, como actos consequentes do registo de nascimento, são nulos e não produzem efeito, por ser nulo e cancelado o registo de nascimento, ao abrigo da disposição legal em apreço.
III. Análise do recurso hierárquico
(I) De acordo com o advogado, nos termos legais, o averbamento do cancelamento da nulidade parcial do registo de nascimento da Parte só produz efeito futuro; esta Direcção não tem razão para declarar a nulidade de uma série de actos de emissão de documento à Parte; e, tal acto padece do vício de violação de lei (pontos 1 a 26 da petição do recurso hierárquico)
41. Nos termos do disposto na alínea b) do art.º 67º do Código do Registo Civil, a falsidade do registo só pode consistir em “ter sido viciado por forma a induzir em erro acerca do facto registado ou da identidade das partes”; nos termos do disposto na alínea a) do art.º 66º, o registo é nulo quando “for falso ou resultar da transcrição de título falso”; nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 70º, o registo deve ser cancelado “quando for judicialmente declarada a sua inexistência ou nulidade”; e, nos termos do disposto no art.º 71º, “o registo cancelado não produz quaisquer efeitos como título do facto registado, sem prejuízo da possibilidade de ser invocado para prova desse facto em acção destinada a suprir judicialmente a omissão do registo”.
42. Na acção declarativa julgada, em 29 de Junho de 2020, pelo Juízo de Família e de Menores do TJB, nos termos das disposições legais supracitadas, confirmou-se a falsidade do elemento constante do registo de nascimento da Parte, onde se referiu que B era o pai biológico da Parte (erro na identificação paterna constante do registo de nascimento da Parte), bem como se concluiu que era parcialmente nulo o registo de nascimento da Parte, ordenando-se o cancelamento do registo do aludido elemento.
43. Vê-se que são nulos os registos de informações falsas sobre o pai ou a mãe e, nos termos dos artigos 70º, n.º 1, al. a), e 71º do Código do Registo Civil, os registos devem ser cancelados depois de serem declarados nulos, a par disso, o registo cancelado não produz quaisquer efeitos como título do facto registado.
44. Como ensina o académico de Portugal, J. Robalo Pombo no “Código do Registo Civil Anotado e Comentado” (p. 337): “(…) d) E, sendo ineficaz o registo, tudo se passa como se este não houvesse sido lavrado (…)”.
45. Foi devidamente cancelado o elemento constante do registo de nascimento da Parte, onde se referiu que B era o pai biológico da Parte, pelo que não se pode invocar mais o facto provado no registo – a filiação paterna biológica.
46. Por outras palavras, os pais biológicos da Parte não tinham o estatuto de residente de Macau ou não residiam legalmente em Macau aquando do nascimento da Parte, pelo que a Parte não reúne os requisitos legais em causa, não lhe devendo ser atribuído o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa por não estar qualificado para o adquirir, não lhe devendo ser atribuído o Bilhete de Identidade de Residente de Macau por não possuir o estatuto de residente de Macau, bem como não lhe devendo ser atribuído o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM por não possuir o estatuto de residente permanente da RAEM.
47. No que concerne ao conteúdo da jurisprudência portuguesa invocado pelo advogado na petição do recurso hierárquico – “Estabeleceu-se que o registo nulo só depois do cancelamento é que deixa de produzir qualquer efeito como título do facto registado, tem por efeito reflexo admitir-se que antes do cancelamento o registo nulo produz efeitos como tal (como título do facto registado).”, com efeito, esta Direcção também tratou do caso em conformidade com isso, ou seja, esta Direcção emitiu os documentos de identificação e o Passaporte da RAEM à Parte, por o registo ainda produzir efeito do título do facto registado antes de ser judicialmente declarado nulo. Até à declaração judicial da nulidade do registo e ao cancelamento do registo pela Conservatória do Registo Civil, nos termos legais, o registo cancelado não produz quaisquer efeitos como título do facto registado e, em consequência, esta Direcção realiza o procedimento de cancelamento do bilhete de identidade.
48. Face a isto, apontou o TSI no acórdão proferido, em 30 de Novembro de 2006, no processo n.º 114/2006:
“É claro que o aludido entendimento jurídico deste Tribunal não implica o menor (B) gozará necessária e permanentemente o direito à residência em Macau e à titularidade do bilhete de identidade de residente permanente de Macau, porque sempre que o tribunal de Macau, a pedido de pessoas com legitimidade processual para tal efeito, declarar nulos os dados de filiação constantes do registo de nascimento do menino (artigo 170º, n.º 2 do Código Civil) em processo especial da justificação judicial previsto no artigo 178º, n.º 1, alínea d) do Código do Registo Civil, e no caso de o seu verdadeiro pai biológico não ser o residente permanente de Macau antes do seu nascimento, o menino perderá o direito à residência em Macau e à titularidade do bilhete de identidade de residente permanente de Macau.”
49. A Parte adquiriu os documentos de identificação com base em crime, e os actos de emissão de documento foram praticados por esta Direcção em conformidade com o conteúdo do registo de nacimento original da Parte, pelo que, nos termos do disposto nas alíneas c) e i) do n.º 2 do art.º 122º do Código do Procedimento Administrativo, os actos de emissão de documentos de identificação e do Passaporte da RAEM à Parte, praticados por esta Direcção, são nulos e não produzem efeito por ser nulo e cancelado o registo de nascimento, devendo esta Direcção declarar, nos termos legais, a nulidade dos actos em causa e cancelar o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e o Passaporte da RAEM detidos pela Parte.
50. Deste modo, o acto praticado por esta Direcção está conforme a lei, sendo improcedentes os seguintes factos assacados pelo advogado: esta Direcção não tem razão para declarar a nulidade de uma série de actos de emissão de documento à Parte; e, tal acto padece do vício de violação de lei.
51. Mais, apontou o advogado nos pontos 24 a 26 da petição do recurso hierárquico que a Administração devia, nos termos do art.º 24º, n.º 2, alínea 1) ou 2) da Lei Básica, e do art.º 1º, n.º 1, alínea 1) ou 2) da Lei n.º 8/1999, manter o acto de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM da Parte.
52. O art.º 1º, n.º 1, alínea 1) da Lei n.º 8/1999 – “Os cidadãos chineses nascidos em Macau, antes ou depois do estabelecimento da RAEM, se o pai ou a mãe, à data do seu nascimento, residia legalmente ou tinha adquirido o direito de residência em Macau;” – prevê que só são residentes permanentes da RAEM os cidadãos chineses nascidos em Macau, se os pais biológicos, à data do seu nascimento, tinham adquirido o direito de residência ou residiam legalmente em Macau.
53. Como acima mencionado, provou-se que os pais biológicos da Parte não tinham o estatuto de residente de Macau nem residiam legalmente em Macau, aquando do nascimento dela, bem como o registo de nascimento da Parte foi devidamente rectificado, pelo que a Parte não pode adquirir o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM, por não ter a qualidade de residente permanente.
54. Além disso, nos termos do disposto na alínea 2) do n.º 1 do art.º 1º da Lei n.º 8/1999, são residentes permanentes da RAEM “os cidadãos chineses que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da RAEM”; e, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 4º da mesma Lei, “um indivíduo reside habitualmente em Macau, nos termos da presente lei, quando reside legalmente em Macau e tem aqui a sua residência habitual (…)”
55. Pela análise acima exposta, devido à nulidade e à ineficácia dos actos de emissão do Bilhete de Identidade de Cidadão da República Portuguesa, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente de Macau e de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM da Parte, antes o Recorrente não residiu legalmente em Macau, consequentemente, não lhe são aplicáveis os artigos 1º, n.º 1, al. 2), e 4º, n.º 1, todos da Lei n.º 8/1999.
56. Além do mais, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 5º da Lei n.º 8/1999 – “Presume-se que os portadores de Bilhete de Identidade de Residente de Macau, abreviadamente designado por BIR, de Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e de Bilhete de Identidade de Residente da RAEM válidos, residem habitualmente em Macau”, foi declarada a nulidade de uma série de actos de emissão de documentos à Parte, por isso, não se pode “presumir” que antes a Parte tenha “residido habitualmente” em Macau, ou seja, independentemente do espaço de tempo em que a Parte realmente residiu em Macau, não lhe deve ser atribuído o estatuto de residente permanente, por ter residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos.
57. Ora, a Parte não residiu legalmente em Macau e o período da sua estadia em Macau não deve ser calculado como o da residência habitual em Macau, embora, de acordo com o advogado, a Parte tenha residido em Macau desde o nascimento e tenha domicílio único e permanente em Macau, pelo que a Parte não reúne os requisitos previstos no art.º 24º, n.º 2, alíneas 1) e 2) da Lei Básica e nos artigos 1º, n.º 1, alíneas 1) e 2), 4º, n.º 1, e 5º, todos da Lei n.º 8/1999, não possuindo o estatuto de residente permanente de Macau, não sendo procedente a tese do advogado.
(II) No entendimento do advogado, o acto praticado por esta Direcção ofendeu os direitos adquiridos e os interesses legalmente protegidos da Parte, bem como não ressalvou os efeitos jurídicos das situações de facto, violando os artigos 3º, 4º, 5º, n.º 2, 8º, n.º 2, al. a), e 123º, n.º 3, todos do Código do Procedimento Administrativo (pontos 27 a 29 da petição do recurso hierárquico)
58. Como mencionado nos pontos 33 a 40 desta parte, a Parte adquiriu os documentos de identificação com base em crime, e os actos de emissão de documento foram praticados por esta Direcção em conformidade com o conteúdo do registo de nacimento original da Parte, pelo que, nos termos legais, os actos de emissão de documentos de identificação e do Passaporte da RAEM à Parte, praticados por esta Direcção, são nulos.
59. Face à declaração de nulidade dos actos administrativos, conforme o acórdão proferido, em 15 de Março de 2018, pelo TSI no processo do recurso contencioso n.º 299/2013, considera-se acto vinculado a declaração da nulidade dos actos nulos:
“Tendo conhecimento da existência de um acto administrativo nulo, se não declarar a sua nulidade, a Administração viola, sem qualquer margem de dúvida, o princípio da legalidade de que está sujeita.
O TUI, no acórdão de 14/12/2011, proferido no Proc. n.º 54/2011, tem fixado a jurisprudência no sentido que a Administração está vinculada a revogar os actos ilegais anuláveis, sejam favoráveis ou desfavoráveis aos particulares, com ou sem substituição por outros, a menos que decida proceder à sua sanação.
Ora, se a revogação dos actos ilegais anuláveis é uma actividade vinculada da Administração, então, por maioria razão, também o é a declaração da nulidade dos actos nulos.”
60. Portanto, esta Direcção declarou, nos termos legais, a nulidade dos actos de emissão do Bilhete de Identidade de Cidadão da República Portuguesa, do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e do Passaporte da RAEM ao Recorrente, não se verificando a violação do princípio da legalidade.
61. Quanto aos princípios da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos residentes, com efeito, os residentes permanentes de Macau gozam exclusivamente dos direitos legalmente conferidos aos residentes permanentes de Macau, designadamente dos direitos à residência em Macau e à concessão do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau e do Passaporte da RAEM. A Parte não possui o estatuto de residente permanente de Macau e os actos de emissão de documento praticados por esta Direcção padece de vícios, pelo que esta Direcção é obrigada a declarar, nos termos legais, a nulidade dos actos de emissão de documento à Parte, procedendo ao cancelamento do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau e do Passaporte da RAEM emitidos à Parte, caso contrário, será danificada a fé pública dos documentos em apreço e serão afectados os interesses da RAEM, surgirão mais casos de aquisição do Bilhete de Identidade de Residente de Macau por prestação de dados falsos, similares a este, o que provocará impacto severo à ordem e aos interesses públicos, não se verificando assim a violação do art.º 4º do Código do Procedimento Administrativo pela decisão desta Direcção.
62. Mais, é de salientar que esta Direcção declara, homogeneamente, a nulidade dos actos de aquisição do Bilhete de Identidade de Residente de Macau por prestação de falsos dados de identificação, procedendo, nos termos legais, ao cancelamento do bilhete de identidade de residente detido pela Parte.
63. Relativamente aos princípios da proporcionalidade e da tutela da confiança previstos, respectivamente, nos artigos 5º, n. 2, e 8º, n.º 2, al. a) do Código do Procedimento Administrativo, conforme o acórdão proferido pelo TSI no processo n.º 299/2013, a violação dos princípios da tutela da confiança, da boa fé, da proporcionalidade e da adequação só é aplicável às actividades discricionárias da Administração:
“10. Da violação dos princípios de protecção de confiança, boa-fé, da proporcionalidade e da adequação:
Os alegados princípios só são operantes no âmbito da actividade discricionária da Administração.
Ora, sendo a declaração da nulidade do acto administrativo uma actividade vinculada, não resta outra alternativa senão julgar improcedentes estes fundamentos do recurso.”
64. Como se referiu no acórdão proferido pelo TSI em relação ao caso de falsos dados de identificação do pai do mesmo género (acórdão proferido em 10 de Dezembro de 2020 no processo n.º 1191/2019), não faz sentido nenhum a aplicação dos princípios gerais do direito administrativo previstos no Código do Procedimento Administrativo (princípios da boa fé, da confiança, da proporcionalidade e da justiça) aos actos vinculados:
“De seguida, passemos a ver a 3ª e 4ª questão em conjunto.
- Violação de lei por a administração ter considerado que o acto de declaração de nulidade é vinculado e
- Violação dos princípios da boa fé da confiança da proporcionalidade e da justiça:
Nos termos acima analisados, não resta dúvida que a situação de reconhecimento do direito a residir em Macau é uma situação vinculativa, desde que estejam preenchidos os pressupostos legalmente fixados, o agente administrativo tem de reconhecer tal direito, não lhe restando quase nenhum espaço da opção. Pelo que, torna-se inútil invocar os princípios gerais do Direito Administrativo, já que o controlo do acto administrativo praticado no exercício do poder vinculado é muito apertado.
Nesta óptica, improcede também estes argumentos do Recorrente, julgando-se também improcedente o recurso nesta parte.”
65. Mais, conforme o acórdão proferido, em 18 de Setembro de 2019, pelo TUI no processo n.º 26/2019:
“Por outro lado, é de reafirmar aqui o entendimento uniforme deste Tribunal de Última Instância no sentido de que no âmbito da actividade vinculada não se releva a alegada violação dos princípios da boa fé e da igualdade (e ainda dos princípios da justiça, da proporcionalidade, da tutela da confiança).”
66. Também refere o TUI no acórdão proferido, em 9 de Abril de 2014, no processo n.º 14/2014:
“Ora, como se sabe, em sede de vinculações legais, não está em causa a infracção de princípios como o da proporcionalidade ou da justiça, que só têm razão de ser naquelas matérias em que os órgãos administrativos têm poderes discricionários, o que não é o caso.
Como referimos no acórdão de 14 de Dezembro de 2011, no Processo n.º 54/2011, quando a Administração não dispõe, face ao tipo legal do acto, de margem de discricionariedade ou liberdade decisória, é inoperante a alegação de violação dos princípios da boa-fé, da igualdade, proporcionalidade ou justiça.”
67. Como acima mencionado, a Parte adquiriu os documentos de identificação por crime, e obteve o estatuto de residente de Macau com base nos dados do pai constantes do seu registo de nascimento, mas, posteriormente, foram declarados nulos os aludidos dados por serem falsos, pelo que esta Direcção só pode declarar, nos termos legais, a nulidade dos actos de emissão de documento à Parte, declaração essa é feita por esta Direcção como seu dever, sendo um acto vinculado sem qualquer margem discricionária, pois, não são aplicáveis os vícios resultantes do exercício indevido do poder discricionário.
68. Deste modo, a declaração de nulidade dos actos efectuada por esta Direcção não violou os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos residentes previstos nos artigos 3º e 4º do Código do Procedimento Administrativo, a par disso, tal declaração é um acto vinculado, pelo que improcedem os fundamentos invocados pelo advogado no que concerne à violação, pelos actos praticados por esta Direcção, dos princípios previstos nos artigos 5º, n.º 2, e 8º, n.º 2, al. a) do Código do Procedimento Administrativo.
69. No entendimento do advogado, o acto praticado por esta Direcção ofendeu os direitos adquiridos e os interesses legalmente protegidos da Parte. Quanto a isto, é imprescindível reafirmar que a Parte não está qualificada para adquirir o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa e não possui o estatuto de residente de Macau, por conseguinte, como é óbvio, não usufrui dos direitos fundamentais legalmente conferidos aos residentes de Macau, não goza do direito à residência em Macau e não lhe deve ser concedido o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM.
70. Conforme o acórdão proferido, em 11 de Outubro de 2018, pelo TSI no processo do recurso contencioso n.º 782/2017:
“Em relação à ofensa dos direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos do Recorrente, cumpre-nos dizer que, à data do seu nascimento, nenhum dos seus pais era residente da RAEM, daí que o Recorrente não tem direito a permanecer na RAEM a título de residente permanente. Assim, pergunta-se então que direito subjectivo ou interesse legalmente protegido do Recorrente foi ofendido pelo acto recorrido?”
71. Nesta conformidade, a declaração de nulidade do acto de emissão do Bilhete de Identidade de Residente de Macau à Parte efectuada por esta Direcção não ofendeu os direitos adquiridos e os interesses legalmente protegidos da Parte, uma vez que a Parte nunca gozou do “direito” à residência em Macau.
72. Segundo o advogado, após a prolação da decisão de declaração de nulidade, a Administração não manteve os efeitos jurídicos das situações de facto, pelo que violou o art.º 123º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo.
73. Quanto à atribuição de certos efeitos jurídicos aos actos administrativos nulos, embora o n.º 3 do art.º 123º do Código do Procedimento Administrativo preveja – “O disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito.” – a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos das situações de facto decorrentes de actos nulos ao interessado, de harmonia com determinadas condições, entende esta Direcção que ao caso da Parte não é aplicável o aludido preceito legal, não sendo atribuídos os efeitos jurídicos putativos à Parte.
74. Porquanto, a Administração deve aplicar a referida disposição legal com muita prudência; e só há lugar à aplicação desta quando se verificar a obediência aos princípios da boa fé, da tutela da confiança, da igualdade e da prossecução do interesse público. A coacção ou crime, ou o acto nulo praticado, por dolo ou má-fé, pelo interessado não produz absolutamente os efeitos jurídicos putativos favoráveis ao interessado.
75. Face a isto, refere o TSI no acórdão proferido, em 10 de Dezembro de 2020, no processo n.º 1191/2019:
“Não pode, nunca, é assacar-se efeitos putativos favoráveis ao particular em cuja conduta se funda a nulidade do acto, como nos casos de coacção ou crime, ou até, simplesmente, de dolo ou má-fé do interessado.”
76. In casu, a Parte adquiriu o estatuto de residente de Macau por dados falsos, bem como se demonstra que a Parte não reúne os respectivos requisitos legais e não está qualificada para obter o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM, pelo que esta Direcção é obrigada a declarar, nos termos legais, a nulidade do acto de emissão do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM à Parte.
77. O efeito principal da declaração de nulidade consiste em não reconhecer a qualidade de residente permanente de Macau da Parte e cancelar, nos termos legais, o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e o Passaporte da RAEM detidos pela Parte, pelo que não se deve invocar que o efeito principal do acto de nulidade serve de efeitos jurídicos putativos previstos no n.º 3 do art.º 123º do Código do Procedimento Administrativo.
78. Com efeito, se, após a descoberta do caso de aquisição do estatuto de residente de Macau por falsos dados de identificação, esta Direcção ainda reconhecer o estatuto de residente permanente de Macau da Parte e continuar a emitir-lhe o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM, os cidadãos irão julgar equivocamente que o Bilhete de Identidade de Residente Permanente pode ser adquirido por meio de fornecimento de dados falsos, o que equivale a um incentivo ao uso do aludido meio para atingir o mesmo fim, à dedicação à criminalidade e à criação duma atmosfera negativa na sociedade, sendo gravemente afectada a fé pública dos documentos de identificação, prática essa desrespeita o “princípio da prossecução do interesse público” previsto no art.º 4º do Código do Procedimento Administrativo.
79. Além disso, esta Direcção viola manifestamente o art.º 24º da Lei Básica e a Lei n.º 8/1999 e infringe gravemente os princípios da legalidade e da igualdade, se emitir o documento supramencionado às pessoas que não tenham a qualidade de residente permanente de Macau.
80. Nesta conformidade, atendendo ao combate à aquisição do estatuto de residente de Macau por dados falsos e à segurança do interesse da Parte relativo à continuação da sua residência em Macau, esta Direcção entende que à Parte não são aplicáveis os efeitos jurídicos putativos previstos no n.º 3 do art.º 123º do Código do Procedimento Administrativo.
81. Conforme o acórdão proferido, em 11 de Outubro de 2018, pelo TSI no processo n.º 782/2017:
“Em relação aos eventuais efeitos putativos do acto nulo previstos pelo n.º 3 do art.º 123º do CPA, salientamos que se trata duma excepção da regra geral prevista no n.º 1 do mesmo preceito.
Sendo regra de excepção, cabe à própria Administração ponderar, dentro do seu poder discricionário, se deve ou não atribuir certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes do acto nulo.
É consabido o exercício do poder discricionário por parte da Administração só é sindicável pelo tribunal nos casos de erro manifesto, da total desrazoabilidade e do desvio de poder – als. d) e e) do n.º 1 do art.º 21º do CPAC, que não é o caso.
Não ignoramos que o Recorrente não tem qualquer intervenção no processo de crime de falsificação de documento que lhe permitiu obter o estatuto de residente permanente e tem vivido na RAEM há mais de 16 anos.
Perante a necessidade de combate às situações fraudulentas de obter o estatuto de residente e o interesse do Recorrente em continuar viver na RAEM, nada a censurar a Administração em dar mais relevância à primeira, ou à segunda.
Trata-se duma opção político-administrativa dentro do seu poder discricionário.
Pois, ao permitir o Recorrente continuar a residir na RAEM a título de residente permanente pode trazer à sociedade a mensagem errada no sentido de poder obter o estatuto de residente permanente por aquela forma, o que equivale encorajar as pessoas a fazerem o mesmo no futuro.
Pelas razões expendidas, entendemos que o exercício do poder discricionário por parte da Administração no caso em apreço não padece do erro manifesto, da total desrazoabilidade e do desvio de poder, nem violou os princípios orientadores da actividade administrativa, nomeadamente os da boa fé, da justiça, da adequação e da proporcionalidade.”
82. Daí se vislumbra que a atribuição dos efeitos jurídicos putativos à Parte cabe na discricionariedade do órgão administrativo, bem como se considera que não se verificam o erro notório ou o desarrazoamento absoluto nem a violação dos princípios orientadores que regulam as actividades administrativas, na decisão do órgão administrativo que, depois de ter ponderado, entre outros factores, a prossecução do interesse público, concluiu que à Parte não seriam aplicáveis os efeitos jurídicos putativos previstos no n.º 3 do art.º 123º do Código do Procedimento Administrativo.
83. Pelo exposto, improcede a tese defendida pelo advogado que apontou que o acto praticado por esta Direcção era ilegal por ter ofendido os direitos adquiridos e os interesses legalmente protegidos da Parte, e não ter mantido os efeitos jurídicos das situações de facto.
IV. Proposta
Os pais biológicos da Parte não tinham o estatuto de residente de Macau e não residiam legalmente em Macau aquando do nascimento da Parte, pelo que a Parte não reúne os requisitos previstos nos artigos 23º, n.º 1, e 24º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 79/84/M, de 21 de Julho, não estando qualificado para adquirir o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa, não lhe devendo ser atribuído o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa; não reúne os requisitos previstos nos artigos 5º, n.º 1, 25º, n.º 1, e 22º, n.º 1, todos do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, não possuindo o estatuto de residente de Macau, não lhe devendo ser atribuído o Bilhete de Identidade de Residente de Macau; não reúne os requisitos previstos no art.º 9º, n.º 2 da Lei n.º 8/1999, no art.º 2º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 8/2002, e no art.º 23º do Regulamento Administrativo n.º 23/2002, não possuindo o estatuto de residente permanente da RAEM, não lhe devendo ser atribuído o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM; e, não reúne os requisitos previstos no art.º 5º da Lei n.º 8/2009, não lhe devendo ser atribuído o Passaporte da RAEM.
A Parte adquiriu os documentos de identificação por crime, esta Direcção praticou os actos de emissão de documento com base no registo de nacimento cujos dados de identificação paterna eram falsos, foi declarado nulo e cancelado o registo de nascimento original da Parte devido à falsidade dos dados relativos à filiação desta, pelo que, nos termos do disposto nas alíneas c) e i) do n.º 2 do art.º 122º do Código do Procedimento Administrativo, são nulos os actos administrativos de emissão do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e de emissão do Passaporte da RAEM à Parte.
Na verdade, a Parte obteve o estatuto de residente de Macau em virtude do acto ilícito de prestação, por má-fé, de falsos dados de identificação paterna, por conseguinte, não lhe são aplicáveis os efeitos jurídicos putativos previstos no n.º 3 do art.º 123º do Código do Procedimento Administrativo – continuação da atribuição do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e do Passaporte da RAEM –, caso contrário, isto equivale a uma instigação da obtenção do estatuto de residente de Macau por mesma forma, violando severamente os princípios da prossecução do interesse público, da legalidade e da igualdade.
Pelo exposto, a decisão desta Direcção não padece dos vícios assacados pelo advogado e, por seu turno, nas alegações do recurso hierárquico, o advogado ainda não demonstrou que a Parte reunisse os requisitos legais e tivesse o estatuto de residente permanente de Macau, improcedendo o fundamento invocado pelo mesmo que indicou que se devia manter e renovar o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM da Parte.
Nesta conformidade, propõe-se ao Exmo. Sr. Director que proponha ao Secretário que mantenha a decisão de declaração da nulidade dos actos administrativos de emissão do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e de emissão do Passaporte da RAEM à Parte, e de cancelamento do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM n.º XXXXXXX(X), emitido pela primeira vez em 20 de Setembro de 1991, e do Passaporte da RAEM n.º MBXXXXXXX detidos pela mesma, bem como indefira o recurso hierárquico interposto pelo advogado da Parte.
À consideração superior.”
A 11.10.2021, o Exm.º Secretário para Administração e Justiça deu o seguinte despacho: (fls. 228 do P.A.)
“Concordo com o proposto, decidindo:
1. Indefiro o recurso hierárquico, mantendo-se a decisão da DSI.
2. A notificação seja efectuada pela DSI.”»; (cfr., fls. 286 a 298 e 41 a 68 do Apenso).
Do direito
3. Vem a entidade administrativa recorrer do Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado que concedeu provimento ao recurso contencioso que o então recorrente, agora recorrido, A (甲), aí interpôs, e que, nesta conformidade, anulou a decisão administrativa que declarou a nulidade do acto de emissão do seu Bilhete de Identidade de Residente de Macau (B.I.R.M.) n.° XXXXXXX(X), e sucessivas renovações, cancelando-o, assim como do seu Passaporte da R.A.E.M. n.° MBXXXXXXX.
Ponderando nos motivos de facto e de direito do Acórdão agora recorrido, e tendo presente os argumentos em sede do presente recurso jurisdicional (novamente) apresentados, eis o que se nos apresenta como “solução” a adoptar.
Antes de mais, adequado se nos mostra desde já de consignar que relativamente à apreciação de “idênticas questões” – sobre análogas decisões administrativas quanto à “validade da emissão e cancelamento de B.I.R. e Passaporte da R.A.E.M.”, e, outras, judiciais, proferidas em sede dos recursos contenciosos daqueles interpostos – já teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de se pronunciar, nomeadamente, nos Acórdãos de 27.07.2022, Proc. n.° 53/2021, de 21.09.2022, Proc. n.° 56/2021, de 04.11.2022, Proc. n.° 83/2022, de 13.01.2023, Proc. n.° 96/2022, assim como na Decisão Sumária de 30.01.2023, Proc. n.° 119/2022 e de 01.06.2023, Proc. n.° 34/2023, onde se decidiu confirmar as aí questionadas decisões administrativas sobre a aludida matéria, sendo também de referir que em sede dos Autos de Recurso Jurisdicional n.° 100/2022, se entendeu que aquela não se podia manter, decidindo-se pela confirmação da decisão de anulação de (idêntico) acto administrativo praticado; (cfr., Ac. de 22.02.2023).
Sem perder de vista as “razões” (de facto e de direito) que levaram esta Instância a assumir as referidas “soluções” – “distintas”, em face da diferença da “factualidade apurada” (em cada processo), e do seu consequente “enquadramento jurídico legal” que se considerou como o adequado, e que, aliás, se julga de manter por motivos não existirem para qualquer alteração – apreciemos a “situação” e “questões” nos presentes autos e colocadas, útil se mostrando de se começar por recordar o que decidido foi no aludido Acórdão do Tribunal de Segunda Instância objecto do presente recurso.
Pois bem, (na parte que agora se apresenta relevante), assim entendeu o Tribunal de Segunda Instância no seu Acórdão agora recorrido, (onde se acolheu também o pelo Ministério Público considerado no douto Parecer então junto aos autos):
“(…)
Do vício de violação de lei
Cingimo-nos já agora à questão de saber se o recorrente tinha e tem direito a obter o BIRM.
Dispõe o n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 19/99/M1 que “Consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento.”
Por sua vez, determina a alínea 1) do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 8/1999 que “São residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau (entre outros, …) os cidadãos chineses nascidos em Macau, antes ou depois do estabelecimento da RAEM, se o pai ou a mãe, à data do seu nascimento, residia legalmente ou tinha adquirido o direito de residência em Macau.”
Sendo que “o nascimento em Macau prova-se por registo de nascimento emitido pela conservatória competente de Macau”, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 1º da mesma Lei.
No caso dos autos, foi emitido, em 20.9.1991, pela 1ª vez, o BIRM ao recorrente, devido ao facto de este ser filho de B, residente de Macau.
Entretanto, em acção judicial intentada pelo recorrente, foi declarado não ser ele filho biológico da pessoa indicada no registo e que posteriormente veio a apurar-se que o recorrente é filho de D, sendo este, na altura do nascimento, titular do título de permanência temporária.
Por uma razão de economia e celeridade, transcrevemos aqui parte do douto e erudito parecer do Ministério Público, com o qual subscrevemos e que se considera reproduzido para a fundamentação do presente Acórdão:
“É indispensável saber que o despacho recorrido indeferiu o recurso hierárquico interposto pelo Recorrente e manteve a decisão do Director dos Serviços de Identificação (vide fls. 228 do P.A.). O conteúdo mais importante do despacho do Director dos Serviços de Identificação (vide fls. 152 do P.A.): 2. A não tem, nos termos legais, o estatuto de residente permanente da RAEM, pelo que, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 123º do Código do Procedimento Administrativo, se declara a nulidade dos actos administrativos de emissão do Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa n.º XXXXXX, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º X/XXXXXX/X, de substituição e renovação do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM n.º XXXXXXX(X) e de emissão do Passaporte da RAEM n.º MBXXXXXXX a A.
Na Proposta n.º 20-DAG-DJP-D-2021 mostra-se claramente que o Director dos Serviços de Identificação proferiu a decisão em causa com base nas seguintes duas sentenças judiciais: sentença penal proferida, em 18 de Novembro de 2016, no processo n.º CR1-15-0422/1, e sentença cível proferida, em 29 de Junho de 2020, no processo n.º FM1-19-0014-CAO (vide fls. 29-35 do P.A. e 56-59v. dos autos, cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos).
Tendo analisado a petição inicial e a contestação, no nosso entendimento, a questão mais essencial do caso é: Se as duas sentenças em apreço causaram ou não necessariamente a nulidade do Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º X/XXXXXX/X e do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM n.º XXXXXXX(X) detidos sucessivamente pelo Recorrente? Caso a resposta for afirmativa, será natural e evidentemente nulo o Passaporte da RAEM n.º MBXXXXXXX detido pelo Recorrente.
2.1. Na sentença cível proferida no processo n.º FM1-19-0014-CAO (vide fls. 56-59v. dos autos), o Mm.º Juiz expôs expressamente o seguinte: É parcialmente nulo o registo de nascimento n.º XXXX/1991/CR do Recorrente lavrado pela Conservatória do Registo Civil, devendo ser cancelada a paternidade constante do referido registo de nascimento, visto que B de que consta o registo, não é o pai biológico do Recorrente.
Como é de meridiana clareza, sem margem de dúvida, conforme a sentença supramencionada, não foi cancelada a maternidade constante do registo de nascimento n.º XXXX/1991/CR. Isto é, C é indubitavelmente a mãe do Recorrente (fls. 61 dos autos). Vale aqui assinalar que, segundo a certidão narrativa do registo de nascimento n.º XXXX/1991/CR rectificada, o pai biológico do Recorrente é D (artigo 17º da contestação).
2.2. O registo de nascimento n.º XXXX/1991/CR demonstra que o Recorrente nasceu em Macau no dia 10 de Agosto de 1991, cuja mãe é C (fls. 61 dos autos); é indispensável saber que os pais do Recorrente (D/C) eram portadores dos Títulos de Permanência Temporária n.ºs XXXXXX e XXXXXX, respectivamente, aquando do nascimento do Recorrente (artigos 1º e 4º da contestação). Assim sendo, o Recorrente reúne os requisitos previstos no n.º 2 do art.º 2º do Decreto-Lei n.º 49/90/M.
Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 2º do Decreto-Lei n.º 49/90/M (Aos filhos dos portadores de título de permanência temporária, nascidos no Território, que, nos termos da legislação em vigor não tenham direito a outro documento, será igualmente concedido o título de permanência temporária.), o Recorrente tinha o direito de obter o título de permanência temporária. Deste modo, se não houvesse fraude nos actos praticados pelos pais do Recorrente (D/C) – ou seja, se B não tivesse tomado fraudulentamente a identidade do pai biológico do Recorrente, o Recorrente teria o direito de obter o título de permanência temporária, embora não tivesse o direito de requerer e obter o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa (n.º XXXXXX). Vale aqui salientar que: Por se verificarem os pressupostos instituídos no n.º 2 do art.º 2º do Decreto-Lei n.º 49/90/M, o Recorrente tem o direito de obter o título de permanência temporária, pelo que se considera dever legal da Administração a concessão do sobredito documento ao Recorrente.
2.3. Certo é que, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 4º do Decreto-Lei n.º 49/90/M, aos portadores de título de permanência temporária não é reconhecida a qualidade de residente, pelo que esses indivíduos não gozam do direito à residência. No entanto, o n.º 1 do artigo supracitado confere aos portadores de título de permanência temporária o direito de permanecer e trabalhar (em Macau), de aceder aos cuidados de saúde, de matrícula nos estabelecimentos de ensino oficial ou particular e de obter licenças de condução (esse último direito é conferido adicionalmente pelo Decreto-Lei n.º 55/93/M). O n.º 3 do mesmo artigo prevê sistematicamente: O título de permanência temporária é documento bastante para identificar o seu titular na prática de actos jurídicos não excluídos pelo presente diploma. Além disso, o art.º 5º do Decreto-Lei n.º 49/90/M dispõe: Os títulos de permanência temporária podem ser cancelados por despacho do Governador aos portadores de título de permanência temporária que não cumpram as leis em vigor em Macau ou que se verifique não disporem, por si, ou pelo agregado familiar, de meios de subsistência.
Dos artigos 4º, n.ºs 1 e 3, e 5º retiramos a seguinte conclusão: Os portadores do título de permanência temporária “vivem” e “habitam” legalmente em Macau, embora não gozem do direito à residência. De facto, esta ideia foi revelada e confirmada no n.º 1 do art.º 9º do Despacho n.º 46/GM/96: São reenviados para o país ou território de residência original os portadores de TPT nas seguintes condições: a) Que tenham cadastro criminal; b) Que se verifique não disporem, por si ou pelo agregado familiar, de meios de subsistência; c) Que se encontrem a cumprir pena de prisão no Estabelecimento Prisional de Coloane, terminado o período de reclusão.
Além do mais, vale aqui salientar que o art.º 6º do Decreto-Lei n.º 49/90/M indica expressamente: O título de permanência temporária será substituído por documento de identificação emitido pelos Serviços competentes do Território, nos termos e nos prazos a definir por despacho do Governador (tal disposição torna-se n.º 1 do art.º 6º em consequência da alteração feita no Decreto-Lei n.º 16/91/M). Isto significa que o título de permanência temporária se encontra em estado de transição cujos fim e objectivo consistem na “legalização”.
No caso sub judice, averigua-se que a D e C foram concedidos os Bilhetes de Identidade de Residente de Macau n.ºs XXXXXXX(X) e XXXXXXX(X) em 30 de Outubro e 25 de Novembro de 1996, respectivamente (artigos 1º e 4º da contestação). A par disso, na prolação da sentença penal no processo n.º CR1-15-0422/1 em 18 de Novembro de 2016, D e C já adquiriram os Bilhetes de Identidade de Residente Permanente de Macau.
C adquiriu o Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º XXXXXXX(X) em 25 de Novembro de 1996, altura em que o Recorrente teve aproximadamente 5 anos e 3 meses de idade (nascido em 10 de Agosto de 1991). Assim sendo, no nosso entendimento, certo é que o Recorrente não podia estar em qualquer uma das condições instituídas no art.º 9º do Despacho n.º 46/GM/96, ou seja, não podia o mesmo ser expulso ou reenviado.
Deste modo, há razões para crer que a conclusão tirada é evidentemente o seguinte: Se B não tivesse tomado fraudulentamente a identidade do pai biológico do Recorrente, ainda que tivesse sido declarado verdadeiramente que D era o pai biológico dele, tanto ao Recorrente como ao pai (D) ou à mãe (C) deste seriam concedidos os Bilhetes de Identidade de Residente de Macau, bem como ao Recorrente seria necessariamente concedido o Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau, como os seus pais.
Portanto, permite-nos sintetizar o caso e salientar que: Primeiro, o Recorrente é cidadão chinês nascido em Macau; segundo, aquando do nascimento do Recorrente, embora os pais biológicos dele (D/C), como portadores “do título de permanência temporária”, não tenham tido direito à residência, “habitavam legalmente” em Macau; terceiro, o crime praticado por C e a respectiva sentença condenatória desencadearam meramente a nulidade parcial do registo de nascimento do Recorrente, não lhe causando a perda do estatuto de residente permanente de Macau.
Seguindo este raciocínio, salvo o devido respeito por opinião da Administração, mormente por sua firme posição de salvaguarda do interesse público, não podemos deixar de entender que: o despacho recorrido do caso deve ser anulado, por ter violado a alínea 1) do n.º 1 do art.º 24º da Lei Básica da RAEM, a alínea 1) do n.º 1 do art.º 1º da Lei n.º 8/1999, e as alíneas c) e i) do n.º 2 do art.º 122º do Código do Procedimento Administrativo.”
Face ao erudito parecer que antecede, podemos afirmar o seguinte:
- São dois os requisitos para os menores terem o direito a residir legalmente em Macau: natural de Macau e um dos progenitores reside legalmente em Macau aquando do nascimento da criança.
- No caso sub judice, verificados estão os dois requisitos apontados.
- Efectivamente, não obstante o recorrente não ser filho de residente de Macau, mas sendo a sua mãe e o seu verdadeiro pai portadores do título de permanência temporária ao tempo do seu nascimento, esse documento concedia tanto aos pais como ao filho nascido em Macau o direito de permanecer, trabalhar e estudar no território.
- Aliás, os títulos de permanência temporária emitidos só seriam “revogados” nas seguintes situações: 1) que tenham cadastro criminal; 2) que se verifique não disporem, por si ou pelo agregado familiar, de meios de subsistência; 3) Que se encontrem a cumprir pena de prisão no Estabelecimento Prisional de Coloane, terminado o período de reclusão, mas nenhum destes casos se verificou.
- É bom de ver que os pais do recorrente já obtiveram o BIRM e são actualmente residentes permanentes da RAEM.
- Sendo assim, como observa o Digno Procurador-Adjunto do Ministério Público, e bem, mesmo que o B não tivesse assumido a falsa paternidade do recorrente, este, como sendo filho de D e C, portadores do título de permanência temporária, teria também o direito de obter o título de permanência temporária que lhe concedia o direito de permanecer, trabalhar e estudar em Macau.
- Isto posto, conclui-se que aquando do nascimento da criança ora recorrente, os pais dele “residiam legalmente” em Macau, não por serem residentes, mas sim autorizados, nos termos da lei, a permanecer, trabalhar e estudar em Macau.
- Daí que entendemos ter o recorrente direito a residir em Macau e obter o documento de identificação emitido pelos serviços competentes de Macau, a que se alude o n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 49/90/M, com a nova redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 16/91/M.
Nesta óptica, uma vez verificados os pressupostos legalmente exigidos para a emissão do BIR, somos a entender que o acto recorrido padece do vício de violação de lei, devendo, assim, o mesmo ser anulado.
(…)”; (cfr., fls. 299-v a 303 e 70 a 76 do Apenso, pág. 62 a 69 do Ac. recorrido).
Em face do assim decidido, tendo-se presente o que em sede do presente recurso vem alegado, e em apertada síntese que se tem por adequada, apresenta-se-nos de concluir que o Colectivo do Tribunal de Segunda Instância, ponderando, (essencialmente), e reconhecendo “especial relevância” ao facto de os pais (biológicos) do ora recorrido – D (丁) e C (丙) – serem (legais) titulares do “direito de permanência” em Macau ao tempo do seu nascimento, entendeu, (em face de tal “particular circunstância”), que em relação ao mesmo se devia dar como verificado os necessários pressupostos legais para a atribuição, (reconhecimento), do “estatuto de residente” para efeitos de obtenção e emissão, como sucedeu, dos documentos – B.I.R.M. e Passaporte da R.A.E.M. – e que, pela decisão administrativa aí impugnada lhe foram cancelados.
Tal é – aliás, uma vez mais, e no essencial – a “solução” (novamente) defendida no douto Parecer pelo Ilustre Procurador Adjunto do Ministério Público apresentando em sede do presente recurso, onde se considerou, (especialmente), que:
“(…)
1. Comparado com os casos próximos e similares, o caso sub judice apresenta-se quatro particularidades, a saber:
- A (甲) nasceu em 10/08/1991 no então Território de Macau;
- Na supramencionada data de nascimento do A (甲), os seus pais biológicos - mãe C (丙) e verdadeiro pai D (丁) tinham sido portadores dos Títulos de Permanência Temporária respectivamente n.°XXXXXX e n.°XXXXXX;
À luz do art.4.° do D.L. n.°49/90/M, a permanência dos portadores dos Títulos de Permanência Temporária em Macau foi legal, lícita e não sujeita aos limites previstos nos art.11.° a 13.° do D.L. n.°2/90/M, e eles não foram considerados imigrantes clandestinos, podendo trabalhar aqui como trabalhadores locais de Macau.
Importa realçar que o n.°2 do art.2.° do D.L. n.°49/90/M conferia ao A (甲) o direito à concessão de um título de permanência temporária, visto que este n.°2 não estabelecia poder discricionário, mas poder vinculado. O que conduz, segura e irrefutavelmente, a que desde o seu nascimento, A poderia certamente obter a concessão dum título de permanência temporária (em vez de obter o bilhete de identidade de cidadão estrangeiro n.°XXXXXX), se a sua mãe C (丙) não prestasse falsa declaração no registo de nascimento dele.
Na medida em que A (甲) preencheu, sem margem para dúvida, os dois requisitos cumulativos consagrados no n.°2 do art.2.° do D.L. n.°49/90/M, não podemos deixar de concluir que o Acórdão em questão não infringe este Decreto-Lei, dado que nesse Acórdão, o douto TSI afirmou consciente e inequivocamente (sublinha nossa): Isto posto, conclui-se que aquando do nascimento da criança ora recorrente, os pais dele "residiam legalmente" em Macau, não por serem residentes, mas sim autorizados, nos termos da lei, a permanecer, trabalhar e estudar em Macau.
2. Repare-se que não foram retirados os Títulos de Permanência Temporária concedidos aos pais biológicos do A (甲), e a primeira emissão do BIRM n.°XXXXXXX(X) à sua mãe C teve lugar em 25/11/1996 – data em que ele teve apenas 5 anos e tal.
De acordo com a regra de experiência comum, extraímos tranquilamente que é sem dúvida que A (甲) não caiu no art.5.° do D.L. n.°49/90/M.
Transitada em julgado, a douta sentença decretada no Processo n.°FM1-19-0014-CAO ordenou o cancelamento do registo de nascimento do A (甲) apenas tocante à paternidade por ser falsa (doc. de fls.56 a 59v dos autos), e assim, torna juridicamente indiscutível e assente que a maternidade constante desse registo de nascimento é sã e válida.
Ora, a apontada maternidade que é válida e o nascimento do A (甲) em Macau são seguramente suficientes e cabais para os efeitos de ele vir adquirir sucessivamente o estatuto jurídico de "residente de Macau" e de "residente permanente da RAEM".
Daí resulta, natural e necessariamente, que A (甲) adquiriria certamente o estatuto de "residente de Macau" e de "residente permanente da RAEM", mesmo a sua mãe não prestasse falsa declaração sobre a referida paternidade no registo de nascimento dele, e que a "falsa paternidade" supra aludida e o bilhete de identidade de cidadão estrangeiro concedido a A não constituem conditio sine qua non para os sobreditos efeitos, e por isso, a falsa declaração prestada pela sua mãe e o crime imputado a ela não são decisivos nem imprescindíveis para ele adquirir o estatuto jurídico de "residente permanente da RAEM".
Na nossa modesta opinião, o que ficou dito acima não é supositivo ou putativo, mas constitui a dedução baseada na lógica e no ordenamento jurídico, pelo que se trata, no caso sub judice, de uma conclusão dotada da certeza legal. Sendo assim, o Acórdão em questão não ofende a alínea c) do n.°2 do art.123.° do CPA, nem eiva do erro de julgamento.
Por todo o expendido acima, propendemos pelo não provimento não provimento do presente recurso jurisdicional”; (cfr., fls. 365 a 366-v).
E, aqui chegados, quid iuris?
Ora, da reflexão que sobre o que se expôs nos foi possível efectuar, e sem prejuízo do muito respeito devido a outra opinião, cremos que o pelo Tribunal de Segunda Instância decidido – e pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público considerado no(s) transcrito(s) Parecer(es) – se deve considerar como uma “solução” que, (especialmente, no seu “sentido”), merece a nossa concordância, pois que se nos apresenta como a que em melhor (e maior) sintonia se encontra com todo o objectivo “legislativo-jurídico” (e esforço “político-administrativo”) desenvolvido para dar resposta à (acentuada) “mobilidade demográfica” vivida em Macau nos “Anos 80 e 90”, regulando-se, (então, novamente, e de forma algo inovadora), a matéria da “entrada, permanência e fixação de residência” no (então) Território de Macau, hoje, Região Administrativa Especial de Macau; (cfr., v.g., todo o “pacote legislativo” que, de forma gradual, integrada, abrangente, e também coordenada com a entretanto já acordada transferência do exercício da soberania sobre Macau, tão bem espelha este particular momento da “História de Macau”, e que, incidindo sobre a dita “matéria” e “situação” em questão, é, essencialmente, constituído pelo D.L. n.° 40/81/M de 11.11, que revogando a anterior Portaria n.° 6740 de 15.04.1961, regulou a emissão da “Cédula de Identificação Policial”; pelo D.L. n.° 18/82/M de 12.04, que regulamentou a matéria dos “efeitos da imigração ilegal no sector laboral”, possibilitando a “operação de registo dos trabalhadores indocumentados”, e que, posteriormente, veio a ser revogado pelo D.L. n.° 50/85/M de 25.06, que se refere à “questão” como um “afluxo incontrolado de mão de obra ao Território”; pela “Declaração Conjunta sobre a questão de Macau”, assinada em 13.04.1987, e em especial, o constante no ponto IX do seu Anexo I; pelo D.L. n.° 28/89/M de 02.05, que revogando também o até então vigente “Regulamento sobre a entrada, permanência e fixação de residência na Província de Macau” aprovado pelo Diploma Legislativo n.° 1796 de 05.07.1969, deu novo tratamento a esta matéria; e ao qual se seguiram, ainda, o Despacho n.° 48/GM/90 e 49/GM/90 de 30.04, a Lei n.° 2/90/M de 03.05, posteriormente revogada pela Lei n.° 6/2004 e, depois, também pela Lei n.° 16/2021, o D.L. n.° 49/90/M de 27.08, o D.L. n.° 16/91/M de 25.02, o D.L. n.° 112/91 de 20.03, o D.L. n.° 6/92/M de 27.01 e o Despacho n.° 46/GM/96 de 27.06, e que, adiante se fará o que se considera constituir adequada referência na parte relevante para a apreciação e decisão do presente recurso).
Isto dito, (e atento ao que dos presentes autos resulta), mostra-se antes de mais adequado proceder-se a uma “concretização” do que da situação do ora recorrido se apresenta – realmente – relevante para, posteriormente, melhor se identificar o que – efectivamente – em causa está, (a fim de se tentar explicitar a solução que aquela reclama e se nos apresenta adequada).
Dest’arte, passa-se a salientar o que se considera (especialmente) relevante – ou mesmo decisivo – para a decisão a proferir.
Cabe então referir que colhe-se dos autos que:
- A, (甲), ora recorrido, nasceu em Macau no dia 10.08.1991; e que,
- no momento, declarou-se, e, assim ficou registado no seu assento de nascimento n.° XXXX de 04.09.1991, como sendo filho de B, (尸), (pai, à data portador da Cédula de Identificação Policial n.° XXXXXX), e C, (丙), (mãe, portadora do Título de Permanência Temporária n.° XXXXXX); nesta conformidade,
- em 20.09.1991, foi-lhe emitido o Bilhete de Identidade de Cidadão Estrangeiro da República Portuguesa n.° XXXXXX; e,
- em 15.11.1994, o Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.° X/XXXXXX/X que, posteriormente, em 23.09.1997, lhe foi renovado;
- em 29.06.2020, por sentença proferida pelo Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base (transitada em julgado em 16.07.2020), veio-se a declarar que o referido B não era o seu pai biológico, ordenando-se o respectivo (parcial) cancelamento no aludido registo de nascimento; em observância do assim decidido,
- em 20.08.2020, a Conservatória do Registo Civil procedeu em conformidade, e rectificando o teor do dito registo de nascimento (n.° XXXX/1991/CR) quanto à sua paternidade, fez constar, por “averbamento”, que o mesmo recorrente era filho de D (丁), (na altura do seu nascimento, portador do Título de Permanência Temporária n.° XXXXXX); e,
- na sequência do assim sucedido, e em sede do posterior procedimento administrativo que o mesmo deu lugar, veio-se a proferir a decisão administrativa (pelo ora recorrido) impugnada no recurso contencioso interposto para o Tribunal de Segunda Instância e de cujo Acórdão (que lhe concedeu provimento) vem agora trazido o presente recurso.
Aqui chegados, e feita que se nos mostra uma adequada síntese dos elementos de facto que caracterizam a “situação” em apreciação no presente recurso, vejamos.
Importa, desde já, recordar e atentar que a (verdadeira) “origem” da situação do ora recorrido relaciona-se (e identifica-se) com o problema da “imigração ilegal”, (infelizmente, ainda hoje, existente; cfr., v.g., a Lei n.° 16/2021), e que não é também um assunto (propriamente) recente – podendo-se, eventualmente, considerar como o seu momento mais marcante o que ocorreu no contexto asiático da 2ª Guerra Mundial, (1939-1945), em que, em consequência do conflito armado generalizado verificado na Região Ásia-Pacífico, e, mais concretamente, da “Guerra Sino-Japonesa”, fez com que para Macau, (devido à sua “neutralidade”), se deslocassem “refugiados da guerra” em grande número, passando de 150 mil habitantes, em 1937, para cerca de 500 mil em 1941 – bastando não olvidar que (no início do Preâmbulo do atrás referido D.L. n.° 18/82/M de 12.04 se consignou mesmo que “O fenómeno da imigração, constante ao longo de toda a história do Território…”, e que também) já nos finais dos “Anos 70”, com a Lei n.° 1/78/M de 04.02, (sobre as “Associações de malfeitores”), se (tentou) dar “cobertura” a tal questão, integrando-se no seu texto várias disposições relativas à matéria do “aliciamento e auxílio à migração clandestina”; (cfr., art. 2°, n.° 1, al. h), e art. 19°, este último que, depois, veio a ser revogado pela referida Lei n.° 2/90/M que, com mais abrangência, desenvolveu o seu regime legal).
Por sua vez, não se pode também perder de vista que este problema foi objecto de uma abordagem (essencialmente) centrada em dois vectores: um, regularizando – “legalizando” – a permanência dos imigrantes que, no momento, já se encontravam em Macau, e, o outro, “impedindo” a chegada de novos imigrantes ilegais, (com a sua “expulsão” após intercepção), e com a adopção de um “regime penal” preventivo e repressivo de tal fenómeno; (cfr., a referida Lei n.° 2/90/M, podendo-se sobre o tema, e com muito interesse, ver Chan Chan U, in “A Legalização de Imigrantes Ilegais em Macau (1982-1990): Evolução e Consequências”, e “O Bilhete de Identidade – Ordem Simbólica da Construção da Cidadania e da Identidade de Macau”, Revista Administração, n.° 128 e n.° 130, Vol. XXXIII, 2020).
Ora, a “situação do ora recorrido”, e, muito em especial, dos seus pais, enquadra-se – claramente – na primeira das referidas formas de abordagem.
E, isto dito, adiantada cremos que está a resposta para a mesma.
Compreende-se, (obviamente), o ponto de vista da entidade administrativa ora recorrente.
Porém, temos para nós que o mesmo assenta em excessiva, (e mesmo, indevida), relevância atribuída à natureza “ilícita” das “falsas declarações” sobre a paternidade do ora recorrido por ocasião do seu nascimento, e, cremos nós, numa inadequada interpretação do sentido (e consequente aplicação) do estatuído no art. 4°, n.° 2 do D.L. n.° 49/90/M, onde se preceitua que “Aos portadores de título de permanência temporária não é reconhecida a qualidade de residente, nomeadamente para os efeitos previstos no artigo 3.º da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, no artigo 3.º da Lei n.º 10/88/M, de 6 de Junho, no artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 79/84/M, de 21 de Junho, na alínea f) do n.º 1 do artigo 10.º do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro, e no Decreto-Lei n.º 2/90/M, de 31 de Janeiro”.
Com efeito, quanto ao dito “ilícito” – e ainda que de natureza “penal” – não se pode olvidar que a “responsabilidade” pelo mesmo é questão que apenas diz respeito a quem o cometeu, e, ainda que a sua prática tenha levado à declaração de “nulidade” do registo de nascimento efectuado, este vício apenas atinge a respectiva parte afectada, ou seja, apenas, no que toca à declarada “falsa paternidade”, (que, aliás, entretanto, já foi rectificada, não se mostrando de considerar como causa de invalidade ou inexistência de todo o registo efectuado, sob pena até de – levando-se tal raciocínio ao extremo – se poder correr o risco de se acabar por considerar o ora recorrido sem qualquer registo…).
Por sua vez, e quanto ao atrás transcrito comando do art. 4°, n.° 2 do D.L. n.° 49/90/M, (relativamente ao não “reconhecimento da qualidade de residente”), também nos parece existir equívoco sobre a sua “ratio” e o seu verdadeiro sentido e alcance.
Com efeito, (e ainda que corresponda à verdade o que no apontado sentido se considera quanto ao não reconhecimento da qualidade de residente), o mesmo apenas assim deve ser entendido como relativo ao “momento” da “emissão” e “posse” do título de permanência temporária, (afastando-se, assim, qualquer possível expectativa ou entendimento do seu titular de que tal “qualidade de residente” constituía um “efeito imediato” e “ope legis”), pois que o (principal) objectivo do referido D.L. n.° 49/90/M era regulamentar os “critérios para a concessão” do aludido “Título de Permanência Temporária” e seus respectivos “efeitos” (tão só) quanto ao “direito de permanência”, (legalizando-o), havendo que se apurar da verificação e atribuição do dito “estatuto de residente” com o apelo a outros subsídios, como (nomeadamente) sucede com o estatuído no D.L. n.° 28/89/M, (“Regime legal da entrada, permanência e fixação de residência em Macau”, que revogou o anterior Diploma Legislativo n.° 1796 de 05.07.1969 sobre a matéria), e os diplomas que se lhe seguiram e que atrás também já foram igualmente referidos; (ou seja, o Despacho n.° 48/GM/90, o Despacho n.° 49/GM/90, o aludido D.L. n.° 49/90/M de 27.08, o D.L. n.° 16/91/M de 25.02, o D.L. n.° 6/92/M de 27.01, e o Despacho n.° 46/GM/96, diplomas estes que, efectuando aquilo a que se poderia apelidar de uma nova e gradual “abordagem legislativa” sobre a matéria, levou, essencialmente, em conta aspectos directamente relacionados com a “ordem pública” e “segurança”, não descurando também a faceta “humana” e “económico-social” da questão, proporcionando, por assim dizer, a “base legal” essencial à estabilidade social e desenvolvimento económico que Macau veio a conhecer).
Com efeito, se certo é que com o D.L. n.° 28/89/M se (re)afirma o “princípio geral da livre entrada, permanência e fixação de residência”, (cfr., art. 2°, n°s 1 e 2), o mesmo não deixou de prever, para as pessoas que não se encontravam no seu âmbito de aplicação (por, no momento, nenhuma “relação” terem com Macau), a possibilidade de uma “autorização de fixação de residência”, a quem, em caso de concessão, era “passado um título de residência”, (cfr., art°s 18° e segs.), cabendo ainda notar que com os Despachos n°s 48/GM/90 e 49/GM/90 – proferidos na sequência do chamado “Incidente de 29 de Março”, ocorrido após a “Operação Dragão”, (三二九事件) – se iniciou o “processo” de identificação dos indivíduos até à altura indocumentados e em permanência ilegal, com a definição e adopção dos critérios da concessão do “estatuto de residente”, (aos que foram abrangidos pela dita “operação de listagem de 29.03”), salientando-se que no n.° 3 deste último “acto normativo” constava “Que aos indivíduos que reúnam as condições a fixar para obtenção do estatuto de residente seja concedido, antes do termo do prazo acima indicado, um título de permanência temporária, válido por um ano, renovável”, e, (sem se olvidar o atrás referido quanto ao art. 4°, n.° 2 do D.L. n.° 49/90/M), que, no art. 6° deste mesmo diploma se determinou que “O título de permanência temporária será substituído por documento de identificação emitido pelos serviços competentes do Território, nos termos e nos prazos a definir por despacho do Governador”, (cfr., ainda, no mesmo sentido, o art. 6° do D.L. n.° 16/91/M), que com o D.L. n.° 6/92/M, onde se fixaram as regras quanto à emissão do “Bilhete de Identidade de Residente” a favor dos titulares de “Cédula de Identificação Policial e Bilhete de Identidade” se estatuiu (expressamente) no seu art. 5° que: “1. Consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento”, e que, “2. Para efeitos de concessão de BIR a prova de residência dos menores a que se refere o número anterior faz-se pela apresentação de documento que, nos termos da legislação em vigor, comprove a residência no Território, à data do nascimento, de um dos pais”, e, ainda, que com o n.° 1 do Despacho n.° 46/GM/96 se determinou que “Todos os indivíduos que sejam portadores de Título de Permanência Temporária (TPT), emitido nos termos do Decreto-Lei n.º 49/90/M, de 27 de Agosto, cuja validade se mantenha, devem substituí-lo por Bilhete de Identidade de Residente (BIR) nos termos e prazos adiante consignados”; (com sub. nosso).
Aqui chegados, e recordando-se o que da atrás efectuada síntese sobre a situação fáctica do ora recorrido consta – da qual se destaca agora o seu “nascimento em Macau em 1991”, assim como o de ser filho de pai e mãe, no momento, portadores de Título de Permanência Temporária – visto cremos estar que, (independentemente da falsa paternidade então declarada e ao tempo ainda registada), adequado foi o reconhecimento do seu “estatuto de residente”, com a respectiva emissão do seu Bilhete de Identidade de Residente n.° X/XXXXXX/X em 15.11.1994, (posteriormente, em 29.09.1997, renovado), pois que em harmonia com o “quadro legal” no momento aplicável, (e que atrás se deixou identificado).
Dest’arte, e explicitados nos parecendo terem ficado os motivos da solução que no presente recurso se nos mostra de adoptar, resta decidir como segue.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos que se deixaram expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância.
Sem tributação.
Registe e notifique.
Macau, aos 02 de Fevereiro de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
1 O Decreto-Lei n.º 19/99/M revogou o Decreto-Lei n.º 6/92/M, mas o disposto no artigo 5º mantém-se inalterado
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