Processo n.º 360/2024
(Autos de recurso em matéria cível)
Relator: Fong Man Chong
Data: 11 de Julho de 2024
ASSUNTOS:
- Nulidade de contrato de mútuos resultante da violação do Regime Jurídico do Sistema Financeiro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 32/93/M, de 05 de Julho
SUMÁRIO:
I - Dispõe o nº 1 do art. 2º do Regime Jurídico do Sistema Financeiro1 em conjugação com o disposto na al. b) do nº 1 do mesmo diploma que “… só as instituições financeiras regularmente constituídas e autorizadas nos termos do presente diploma ou em legislação especial podem exercer uma actividade que compreenda a prática habitual e com intuito lucrativo” de “concessão de crédito, incluindo a prestação de garantias e outros compromissos”. Por outro lado, é nulo e, por isso, incapaz de gerar obrigações o negócio jurídico “cujo objecto seja … contrário à lei”. É o que dispõe o art. 273º do CC.
II – Dos factos assentes resulta que: “o embargado tem vindo a praticar as operações de concessão de crédito com intuito lucrativo, de modo habitual, permanente e não ocasional, que se assemelham às praticadas pelas entidades de natureza bancária em Macau” (al. c) dos factos provados, oriunda do quesito 3º da base instrutória). O objecto do contrato celebrado entre o embargante e o embargado consubstancia um mútuo oneroso com promessa de hipoteca (arts 1070º do CC).
III – Fica provado que o contrato que, alegadamente, deu origem à obrigação exequenda configura concessão de crédito. E parece também não haver razão para dúvidas que o embargado se dedicava à prática habitual dessa actividade de concessão de crédito com intuito lucrativo. Também não há dúvida nos autos que o embargado não é uma instituição financeira regularmente constituída e autorizada a exercer a referida actividade de concessão de crédito. Conclui-se, pois, que o objecto do negócio dos autos é contrário à lei e, por isso, o contrato respectivo é nulo e não gerou a obrigação exequenda, a qual, assim, não existe.
O Relator,
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Fong Man Chong
Processo nº 360/2024
(Autos de recurso em matéria cível)
Data : 11 de Julho de 2024
Recorrente : (A)
Recorrido : (B)
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Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
(A), Recorrente, devidamente identificado nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 16/10/2023, veio, em 26/10/2023, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 293 a 310, tendo formulado as seguintes conclusões:
1) 除了應有的尊重外,上訴人認為原審法院之判決沾有審查事實錯誤、法律前提適用錯誤,以及未有依職權審理合同無效引致之濫用權利之瑕疵。
2) 針對審查事實錯誤之瑕疵,上訴人的說明如下:
3) 原審法院在分析已證事實c項是否應獲得證實時,僅指出上訴人於2020年10月至2022年6月簽定了10份類似的借貸合同,而且所設定的報酬及遲延利息的利率都相當高(年利率在22.8%到27%之間);原審法院便認定本案涉及的借貸合同具備有償(habitual)及慣常性質(oneroso),從而已證事實c項應被視為已經事實。
4) 然而,上訴人認為原審法院僅以載於“就事實事宜的決定”第3頁的圖表內的一系列借貸合同作為形成心證的基礎,但未有考慮證人(C)的陳述及遵守澳門《民事訴訟法典》第6條第3款之規定。
5) 根據證人(C)的陳述,上訴人原本只認識證人(C)及(D),三人為朋友。上訴人僅於證人(C)及(D)的介紹下才隨後認識被上訴人(B)。
6) 後來,由於被上訴人 (B)與(D)的業務需要資金周轉,(D)便主動向(C)借款。
7) 然而,由於(C)當時擁有的資金不足,因此其便向上訴人建議可代為借款予上述二人。考慮到與(C)、(D)及被上訴人 (B)是朋友,最終同意了借款。
8) 因此,上訴人借款是建基於協助朋友的目的,絕不是屬於任意借款予陌生人。
9) 然而,上訴人未見原審法院對證人(C)作出的上述陳述作出考慮。
10) 關於該合同所訂定之借款利率,按照法律該利率不具有暴利性質。
11) 而且,作為眾所周知的事實,2020年至2022年仍新冠肺炎疫情在本澳肆虐的時期。考慮到被上訴人 (B)及(D)向其借款的目的為解決公司業務周轉所需,結合當時(即2020年10月)的實際經濟情況及借款金額,上訴人認為有必要訂定一個相對較高(但同時合法)的借款利率及訂定抵押協議以保障自身。
12) 事實上,上訴人雖曾因“就事實事宜的決定”第3頁的圖表內的一系列借貸合同而被澳門金融管理局邀請詢問,但經過解釋及調查後,任何機構包括澳門金融管理局並沒有對上訴人作出任何處罰。
13) 另一方面,為著認定已證事實c項是否應獲得證實,原審法院在分析“就事實事宜的決定”第3頁的圖表內的一系列借貸合同時,未有注意該等借貸合同及抵押文件(以下簡稱為“該等文件”)除了反映出上訴人進行了一象列的借貸行之外,亦能夠同時反映出上訴人僅於2020年末至2022年中借款予他人,並且借款日期綜合而言具有不規則性。
14) 事實上,該等文件反映出上訴人作出借貸行為的期間甚短,而在該段期間之前及之後並沒有借款予他人。正如證人(C)於庭審上所述,上訴人一直從事正當工作,借貸及收取利息並不是其謀生來源。
15) 而針對上訴人於上述期間分別借款予他人的動機,以及為何均將年利率訂定為22.8%至24%之間,上訴人認為僅依據載於“就事實事宜的決定”第3頁的圖表內的該等文件是未能反映的。
16) 上訴人認為於上一點所述的因素對已證事實c項是十分重要的,因為結合每宗借貸的獨立情況,最後未必能夠確定地反映出“上訴人以營利、慣常、長期及非偶然方式提供信貸,該行為與本澳具有銀行性質的機構所從事的活動相似”。
17) 案中,已證事實c項作為被上訴人 (B)就合同無效請求所出的事實依據,屬於組成抗辯所依據之事實;且根據澳門《民事訴訟法典》第5條第2款規定,該事實屬原審法院依法可審理之事實。
18) 為著上述事實,根據澳門《民事訴訟法典》第6條第3款規定,原審法院應依職權採取或命令採取一切必需措施,以查明事實真相及合理解決爭議,尤其是每宗借款的訂立及訂定特定利率的原因及情況。
19) 然而,原審法院僅以載於“就事實事宜的決定”第3頁的圖表內的一系列借貸合同反映出上訴人於2020年10月至2022年6月簽定了10份類似的借貸合同,而且所設定的報酬及遲延利息的利率都相當高(年利率在22.8%到24%之間),便加以認定已證事實c項得以證實,此舉似乎太過草率。
20) 綜上,原審法院未有考慮到證人(C)的陳述及未有遵守澳門《民事訴訟法典》第6條第3款之規定,故錯誤認定已證事實c項獲得證實。
倘若尊敬的法官 閣下不認同上述見解,則上訴人補充以下陳述。
21) 除了應有的尊重外,上訴人認為原審法院不能單憑上訴人於大約一年半內作出10次借款行為而斷定其借款行為具慣常性,因為澳門《民法典》並沒有限制消費借貸的次數。
22) 再者,根據澳門《民法典》,消費借貸合同之性質有疑問時,推定其為有償,且當事人亦得約定以支付利息作為上訴人借款的回報。
23) 原審法院並不能單憑借款合同約定利息(年利率在22.8%到24%之間)斷定其以借款作為其盈利的模式。
24) 因此,已證事實c項不應被視為獲得證實,被上訴人提出的異議理由亦應被視為不成立。
25) 針對法律前提適用錯誤之瑕疵,上訴人的說明如下:
26) 本案涉及的借款原本由(D)所提出。上訴人出於協助朋友的目的向被上訴人 (B)及(D)借出款項。
27) 因此,即使認為上訴人訂立多份借貸合同的行為構成慣常及營利活動(單純假設不代表認同),但僅就本案的借貸合同而言,由於是基於協助朋友的目的而作出的,其應被排除在慣常及營利活動之外。
28) 因此,本案涉及的合同不應適用第32/93/M號法令所核准的《金融體系法律制度》第2條第1款結合同一法律的第17條第1款b款。
29) 針對未有依職權審理合同無效引致之濫用權利之瑕疵,上訴人的說明如下:
30) 澳門《民法典》第326條規定:“權利人行使權利明顯超越基於善意、善良風俗或該權利所具之社會或經濟目的而產生之限制時,即為不正當行使權利。”
31) 參考葡萄牙終審法院在第1464/11.2TBGRD-A.C1.S1號之見解:“São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança", traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento" que nela assentou.”
32) 本案中,借貸合同是基於三人之同意下才簽訂,上訴人亦是善意相信另外兩名合同當事人才提供借款本金MOP3,000,000.00。另外兩名合同當事人亦是在知悉需要按照合同支付利息的前提下接受及使用上述借款本金,並從中得益。
33) 然而,在借款到期後,上述二人卻拒絕支付到期本金加利息,並反過來指控借貸合同應屬無效。該事實明顯違反善意,屬於濫用權利。
34) 澳門終審法院於2019年9月18日作出的第84/2019號合議庭裁判指出,相關情況屬一個法院須依職權審理的問題,但原審法院未有對上述的濫用權利問題進行依職權審理。
35) 綜上所述,原審法院之判決沾有審查事實錯誤、法律前提適用錯誤,以及未有依職權審理,合同無效引致之濫用權利之瑕疵,該判決應被予以撤銷。
綜上所述,懇請尊敬的法官 閣下接納本陳述書,裁定本陳述書內的上訴理由成立,撤銷原審法院作出之判決。
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O Recorrido, (B), veio, 13/03/2024, a apresentar as suas contra-alegações constantes de fls. 314 a 322, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. O recurso a que ora se responde tem por objecto a sentença proferida pelo douto Tribunal a quo de 16 de Outubro de 2023 (a "Decisão Recorrida"), na parte em que determinou a nulidade do contrato de mútuo oneroso com promessa de hipoteca celebrado entre o Embargante-Recorrido e o Embargado-Recorrente, nos termos melhor detalhados na Decisão Recorrida, alegando que a decisão em crise enferma de erros no conhecimento de factos, na aplicação de pressupostos jurídicos, e na falta de apreciação oficiosa do abuso do direito;
2. Pese embora o maior respeito que nos merece opinião diversa, é firme convicção do Executado-Recorrido, que a sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer reparo, razão pela qual deverá a mesma ser mantida, está forçosamente condenado a não colher, dada a improcedência das questões e argumentos nele enunciados;
3. Genericamente, o ora Recorrente fundamenta o seu recurso alegando que o Tribunal a quo incorreu em erro na determinação da nulidade do contrato de mútuo oneroso com promessa de hipoteca ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 2.° do Regime Jurídico do Sistema Financeiro e no artigo 273.° do Código Civil;
4. O primeiro fundamento de recurso mobilizado pelo embargado, ora Recorrente, diz respeito ao alegado erro na determinação do facto provado c), nos termos do qual o Tribunal a quo considerou provado que "O embargado tem vindo a praticar as operações de concessão de crédito com intuito lucrativo, de modo habitual, permanente e não ocasional, que se assemelham às praticadas pelas entidades de natureza bancária em Macau. (Q. 3°)" (o "Facto Provado c)");
5. Com o devido respeito, entende o Recorrido que a decisão da matéria de facto tomada em 18/09/2023 (a "Decisão da Matéria de Facto") não é susceptível de ser posta em causa, devendo manter-se integralmente;
6. A convicção do Tribunal a quo acerca do Facto Provado c) formou-se do seguinte modo:
“- Quanto ao carácter oneroso são claros os referidos documentos, pois em todos eles consta que foram estabelecidos juros moratórios e remuneratórios elevados (entre 22,8% e 27% ao ano) como consta do quadro abaixo apresentado.
- Quanto ao carácter habitual fundou-se a convicção do tribunal no facto de os referidos documentos demonstrarem 10 empréstimos semelhantes ao empréstimo exequendo no valor total de HKD17.200.000,00 e celebrados entre Outubro de 2020 e Junho de 2022 (dois empréstimos no ano de 2020, cinco no ano de 2021 e três no ano de 2022).";
7. Por outro lado, o Tribunal a quo, na Decisão Recorrida, explana de forma clara a razão pela qual se decidiu pela nulidade do contrato objecto dos presentes autos:
"Pois bem, parece não haver dúvidas que o contrato que, alegadamente, deu origem à obiurgação exequenda configura concessão de crédito. E parece também não haver razão para dúvidas que o embargado se dedicava à prática habitual dessa actividade de concessão de crédito com intuito lucrativo. Também não há dúvida nos autos que o embargado não é uma instituição financeira regularmente constituída e autorizada a exercer a referida actividade de concessão de crédito.
Conclui-se, pois, que o objecto do negócio dos autos é contrário à lei e, por isso, o contrato respectivo é nulo e não gerou a obrigação exequenda, a qual, assim, não existe.";
8. Não há razão para dúvidas que o embargado se dedicava à prática habitual e reiterada da actividade de concessão de crédito com intuito lucrativo;
9. Não será despiciendo salientar que o embargado, ora Recorrente, não apresentou qualquer reclamação contra a deficiência, obscuridade ou contradição da decisão sobre a matéria de facto ou com fundamento na falta da sua fundamentação, pelo que não se vislumbra qualquer procedência na sua argumentação;
10. Pelas razões supra expendidas, terá o presente fundamento de recurso formulado pelo Recorrente necessariamente de naufragar, devendo a sua improcedência ser declarada pelo douto Tribunal ad quem;
11. O segundo fundamento de recurso mobilizado pelo embargado, ora Recorrente, prende-se com o alegado erro na aplicação de pressupostos jurídicos, resultante do n.º 1 do artigo 2.° do Regime Jurídico do Sistema Financeiro em conjugação com a alínea b) do n.º 1 do artigo 17.° do mesmo diploma legal;
12. Pese embora o maior respeito por opinião diversa, parece inegável que, tendo em conta a matéria de facto provada, designadamente o Facto Provado c), o documento que alegadamente configura o título executivo de onde brotam as obrigações exequendas do Executado e Embargado, aqui Recorrente, não vale como tal;
13. Caso a fonte das obrigações exequendas fosse o contrato de mútuo, não é discutível que seria preciso que tal contrato, para que pudesse valer como título executivo, fosse, desde logo, válido;
14. Para que o contrato de mútuo fosse válido era preciso, entre outros requisitos, que o Embargado, ora Recorrente, estivesse legalmente habilitado a conceder crédito em dinheiro, ao abrigo do artigo 17.°, n.º 1, alínea b) do Regime Jurídico do Sistema Financeiro;
15. O n.º 1 do artigo 2.° do Regime Jurídico do Sistema Financeiro preceitua que só as instituições financeiras regularmente constituídas e autorizadas nos termos desse diploma (ou em legislação especial) podem exercer uma actividade que compreenda a prática habitual e com intuito lucrativo das operações referidas nas alíneas a) a i) do n.º 1 do artigo 17.°, de onde se inclui, entre outras, as operações de concessão de crédito;
16. A concessão de crédito em dinheiro trata-se de uma actividade reservada às instituições financeiras próprias, designadamente bancos, pelo que se o Embargado, ora Recorrente, tivesse entregue ou disponibilizado dinheiro à Executada (D), o contrato de mútuo titularia apenas e só um empréstimo ilícito, logo nulo, nulidade essa invocável a todo o tempo, por qualquer interessado ou oficiosamente conhecida pelo tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 279.° do Código Civil;
17. Foi dado como provado que o Embargado, aqui Recorrente, tem vindo a conduzir operações de concessão de crédito, de modo habitual, permanente e não ocasional, que se assemelham às praticadas pelas entidades de natureza bancária em Macau, que para o fazer carecem de autorização própria para o efeito;
18. Pode afirmar-se que a disponibilização de dinheiro à Executada (D) por parte do Embargado, aqui Recorrente, com cobrança de juros à taxa de 24% sempre consubstanciará a prática ilícita de concessão de empréstimos pecuniários;
19. Com o devido respeito, o excurso decisório do Tribunal a quo na aplicação de pressupostos jurídicos não é minimamente afectado com os argumentos avançados pelo Recorrente;
20. O terceiro e último fundamento de recurso mobilizado pelo Embargado, ora Recorrente, prende-se com a falta de apreciação oficiosa por parte do Tribunal a quo de um eventual abuso do direito;
21. Com o devido respeito, também relativamente a esta parte da Decisão Recorrida, é firme a convicção do Recorrido que a mesma não é susceptível de ser posta em causa, devendo manter-se integralmente;
22. Desde logo, haverá que salientar que esta questão em momento algum foi suscitada pelo embargado, ora Recorrente, no decurso dos presentes autos;
23. Ou seja, para todos os efeitos legais, a questão ora suscitada pelo Recorrente nunca foi abordada nos presentes autos, pelo que, em face do princípio da preclusão e da própria natureza e estrutura do recurso - que visa a reapreciação da decisão do Tribunal a quo - trata-se de questão nova levantada em sede de recurso, não podendo, como tal, ser admitida;
24. A doutrina e a jurisprudência são unânimes na conclusão de que a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina que este apenas pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas;
25. Nesta senda, e sendo manifesto que a questão ora avançada pelo Exequente-Requerido, aqui Recorrente, consubstancia matéria nova não anteriormente alegada ou suscitada nos presentes autos, estará o douto Tribunal ad quem impedido de se pronunciar sobre a mesma;
26. Termos em que, pelas razões supra expendidas, terá também o presente fundamento de recurso formulado pelo Recorrente necessariamente de naufragar, devendo a sua improcedência ser declarada pelo douto Tribunal ad quem;
27. O abuso de direito pressupõe a existência deste. Só existe abuso, se o direito for exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social (Relação de Coimbra, 8-11-1983: CJ, 1983,5.°-52);
28. Em sentido paralelo, atente-se nos ensinamentos do Dr. Jorge M. Coutinho de Abreu, em "Do Abuso de direito", 1983, páginas 76-77, a respeito da mesma questão no direito português - ordenamento jurídico muito semelhante ao de Macau -, onde se afirma que "O abuso de direito é uma forma de antijuricidade ou ilicitude. As consequências, por tanto, do comportamento abusivo têm de ser as mesmas de qualquer actuação sem direito, de todo o acto (ou omissão) ilícito.";
29. O embargante, ora Recorrido, invocou a nulidade contratual ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 2.° do Regime Jurídico do Sistema Financeiro em conjugação com a alínea b) do n.º 1 do artigo 17.º do mesmo diploma legal, não tendo as consequências desse seu acto nada que o possam equipara a uma actuação sem direito;
30. Ao contrário, o Embargado, ora Recorrente, dedicava-se à prática habitual da actividade de concessão de crédito com intuito lucrativo (conforme se considerou provado no Facto Provado c)), cuja conduta, de resto, que consubstancia uma actuação verdadeiramente ilícita com manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social;
31. Pelas razões supra expendidas, caem aqui também as alegações do Recorrente, totalmente infundadas, pelo que há de concluir-se que não há lugar à verificação de qualquer abuso de direito por parte do Recorrido, devendo, assim, ser declarado totalmente improcedente o referido fundamento de recurso apresentado pelo Recorrente.
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Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
a) O embargado juntou como título executivo para deduzir execução contra os executados nos autos principais os documentos constantes de fls. 4 a 6 desses autos, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.
b) O embargante assinou os documentos de fls. 4 a 6 dos autos principais, os quais contêm um contrato de mútuo e um contrato-promessa de hipoteca.
c) O embargado tem vindo a praticar as operações de concessão de crédito com intuito lucrativo, de modo habitual, permanente e não ocasional, que se assemelham às praticadas pelas entidades de natureza bancária em Macau. (Q. 3º)
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
Primeira parte: impugnação de matéria de facto:
O Recorrente/Exequente veio a impugnar a matéria de facto, atacando a resposta dada pelo Tribunal a quo ao quesito 3º que ficou provado nos seguintes termos:
3.º
O embargado tem vindo a praticar as operações de concessão de crédito com intuito lucrativo, de modo habitual, permanente e não ocasional, que se assemelham às praticadas pelas entidades de natureza bancária em Macau?
Provado.
O Recorrente defende que a resposta devia ser NEGATIVA.
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A propósito da impugnação da matéria de facto, o legislador fixa um regime especial, constante do artigo 599º (Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto) do CPC, que tem o seguinte teor:
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
Ora, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
É, pois, em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC.
*
No que respeita aos critérios da valoração probatória, nunca é demais sublinhar que se trata de um raciocínio problemático, argumentativamente fundado no húmus da razão prática, a desenvolver mediante análise crítica dos dados de facto veiculados pela actividade instrutória, em regra, por via de inferências indutivas ou analógicas pautadas pelas regras da experiência colhidas da normalidade social, que não pelo mero convencimento íntimo do julgador, não podendo a intuição deixar de passar pelo crivo de uma razoabilidade persuasiva e susceptível de objectivação, o que não exclui, de todo, a interferência de factores de índole intuitiva, compreensíveis ainda que porventura inexprimíveis. Ponto é que a motivação se norteie pelo princípio da completude racional, de forma a esconjurar o arbítrio2.
É, pois, nessa linha que se deve aferir a razoabilidade dos juízos de prova especificamente impugnados, mediante a análise crítica do material probatório constante dos autos, incluindo as gravações ou transcrições dos depoimentos, tendo em conta o respectivo teor, o seu nicho contextual histórico-narrativo, bem como as razões de ciência e a credibilidade dos testemunhos. Só assim se poderá satisfazer o critério da prudente convicção do julgador na apreciação da prova livre, em conformidade com o disposto, designadamente no artigo 390º do CCM, em conjugação com o artigo 558º do CPC, com vista a obter uma decisão que se possa ter por justa e legítima.
Será com base na convicção desse modo formada pelo Tribunal de recurso que se concluirá ou não pelo acerto ou erro da decisão recorrida.
Repita-se, ao Tribunal de recurso não compete reapreciar todas as provas produzidas e analisadas pelo Tribunal a quo, mas só aqueles pontos concretos indicados pelo Recorrente como errados ou omissos!
*
O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:
“(…)
Quanto ao facto de o embargado ter vindo a conceder crédito oneroso de forma habitual formou-se do seguinte modo a convicção do tribunal:
- Quanto ao carácter oneroso são claros os referidos documentos, pois em todos eles consta que foram estabelecidos juros moratórios e remuneratórios elevados (entre 22,8% e 27% ao ano) como consta do quadro abaixo apresentado.
- Quanto ao carácter habitual fundou-se a convicção do tribunal no facto de os referidos documentos demonstrarem 10 empréstimos semelhantes ao empréstimo exequendo no valor total de HKD17.200.000,00 e celebrados entre Outubro de 2020 e Junho de 2022 (dois empréstimos no ano de 2020, cinco no ano de 2021 e três no ano de 2022).
Fls
Contrato
Data
Devedor
Hipoteca da fracção
Empréstimo
HKD
Juros
%
Juros
Moratórios
Despesas
MOP
5-7 (execução)
Contrato-promessa de hipoteca
10/27/2020
(B) e (D)
B40
3,000,000
24
3
300,000
147-149
Mútuo com hipoteca
6/15/2022
Zhang XX
O20
3,000,000 (prazo–1 ano)
22.8
3
309,000
155-158
Contrato-promessa de hipoteca
12/9/2020
Chan XX
A5
1,200,000
24
3
120,000
164-167
""
1/14/2021
Hou XX
H5
1,500,000
24
3
150,000
173-176
""
11/3/2021
Hao XX
H5
1,500,000
22.8
3
150,000
184-187
""
5/11/2021
Fu XX
Q14
1,500,000
24
3
150,000
213-216
""
1/21/2022
XX Lda
BIR/C
300,000
24
3
30,000
222-225
""
1/21/2022
Yiu XX e
Lao XX
N10
1,200,000
24
3
120,000
231-234
""
11/30/2021
Lai XX
DR/C
2,000,000
24
3
20,000
240-243
""
5/21/2021
Liao XX
G16
2,000,000
24
3
200,000
18 de Setembro de 2023.”
O Recorrente/Exequente veio a legar o seguinte para defender a sua posição:
“(…)
3) 原審法院在分析已證事實c項是否應獲得證實時,僅指出上訴人於2020年10月至2022年6月簽定了10份類似的借貸合同,而且所設定的報酬及遲延利息的利率都相當高(年利率在22.8%到27%之間);原審法院便認定本案涉及的借貸合同具備有償(habitual)及慣常性質(oneroso),從而已證事實c項應被視為已經事實。
4) 然而,上訴人認為原審法院僅以載於“就事實事宜的決定”第3頁的圖表內的一系列借貸合同作為形成心證的基礎,但未有考慮證人(C)的陳述及遵守澳門《民事訴訟法典》第6條第3款之規定。
5) 根據證人(C)的陳述,上訴人原本只認識證人(C)及(D),三人為朋友。上訴人僅於證人(C)及(D)的介紹下才隨後認識被上訴人(B)。
6) 後來,由於被上訴人(B)與(D)的業務需要資金周轉,(D)便主動向(C)借款。
7) 然而,由於(C)當時擁有的資金不足,因此其便向上訴人建議可代為借款予上述二人。考慮到與(C)、(D)及被上訴人(B)是朋友,最終同意了借款。
8) 因此,上訴人借款是建基於協助朋友的目的,絕不是屬於任意借款予陌生人。
9) 然而,上訴人未見原審法院對證人(C)作出的上述陳述作出考慮。
10) 關於該合同所訂定之借款利率,按照法律該利率不具有暴利性質。
11) 而且,作為眾所周知的事實,2020年至2022年仍新冠肺炎疫情在本澳肆虐的時期。考慮到被上訴人(B)及(D)向其借款的目的為解決公司業務周轉所需,結合當時(即2020年10月)的實際經濟情況及借款金額,上訴人認為有必要訂定一個相對較高(但同時合法)的借款利率及訂定抵押協議以保障自身。
12) 事實上,上訴人雖曾因“就事實事宜的決定”第3頁的圖表內的一系列借貸合同而被澳門金融管理局邀請詢問,但經過解釋及調查後,任何機構包括澳門金融管理局並沒有對上訴人作出任何處罰。
13) 另一方面,為著認定已證事實c項是否應獲得證實,原審法院在分析“就事實事宜的決定”第3頁的圖表內的一系列借貸合同時,未有注意該等借貸合同及抵押文件(以下簡稱為“該等文件”)除了反映出上訴人進行了一象列的借貸行之外,亦能夠同時反映出上訴人僅於2020年末至2022年中借款予他人,並且借款日期綜合而言具有不規則性。
14) 事實上,該等文件反映出上訴人作出借貸行為的期間甚短,而在該段期間之前及之後並沒有借款予他人。正如證人(C)於庭審上所述,上訴人一直從事正當工作,借貸及收取利息並不是其謀生來源。
15) 而針對上訴人於上述期間分別借款予他人的動機,以及為何均將年利率訂定為22.8%至24%之間,上訴人認為僅依據載於“就事實事宜的決定”第3頁的圖表內的該等文件是未能反映的。
16) 上訴人認為於上一點所述的因素對已證事實c項是十分重要的,因為結合每宗借貸的獨立情況,最後未必能夠確定地反映出“上訴人以營利、慣常、長期及非偶然方式提供信貸,該行為與本澳具有銀行性質的機構所從事的活動相似”。
17) 案中,已證事實c項作為被上訴人(B)就合同無效請求所出的事實依據,屬於組成抗辯所依據之事實;且根據澳門《民事訴訟法典》第5條第2款規定,該事實屬原審法院依法可審理之事實。
18) 為著上述事實,根據澳門《民事訴訟法典》第6條第3款規定,原審法院應依職權採取或命令採取一切必需措施,以查明事實真相及合理解決爭議,尤其是每宗借款的訂立及訂定特定利率的原因及情況。
19) 然而,原審法院僅以載於“就事實事宜的決定”第3頁的圖表內的一系列借貸合同反映出上訴人於2020年10月至2022年6月簽定了10份類似的借貸合同,而且所設定的報酬及遲延利息的利率都相當高(年利率在22.8%到24%之間),便加以認定已證事實c項得以證實,此舉似乎太過草率。
(…)”.
Ora, perante o citado, importa destacar o seguinte:
1) – O Recorrente/Exequente não negou o facto de ter celebrado efectivamente vários contratos de mútuo num espaço temporal muito curto com vários sujeitos. Igualmente confessou que através de tais contratos pretendia obter juros altos;
2) – Confessou que tinha sido “convidado” pela AMCM para prestar declarações sobre tais contratos de mútuos, sendo certo que não foi proferida, até agora e segundo o Recorrente, qualquer decisão punitiva nesse sentido. Mas esta situação não significa que tais acordos não padecem de alguns vícios invalidantes;
3) – O que o Recorrente está a fazer nesta parte do recurso é atacar a convicção do julgador, pretendendo que seja admitido os depoimentos das testemunhas que lhe fossem favoráveis, e não admitidos outros depoimentos e elementos probatórios disponíveis nos autos.
4) – O artigo 437º do CPC manda:
(Princípio da aquisição processual)
O tribunal deve tomar em consideração todas as provas realizadas no processo, mesmo que não tenham sido apresentadas, requeridas ou produzidas pela parte onerada com a prova, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado.
Ora, para que seja impugnada com sucesso a matéria de facto constante do quesito 3º da BI, é preciso indicar os elementos probatórios concretos constantes dos autos que permitam sustentar uma versão diversa da fixada pelo Tribunal a quo, no caso, não foram indicados tais elementos (cfr. artigo 599º do CPC), não os encontramos nos autos. Ou seja, não se verifica qualquer erro na apreciação de provas ou na aplicação de normas jurídicas aplicáveis, o que é razão bastante para julgar improcedente esta parte de recurso interposto pelo Recorrente/Exequente, mantendo-se a resposta dada pelo Tribunal a quo no quesito 3º da BI.
*
Prosseguindo,
Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
I – RELATÓRIO
(A), solteiro, maior, titular do BIRM n.º xxxxxx(5), intentou a execução apensa para pagamento de quantia certa na forma ordinária contra (B), titular do BIRM n.º xxxxx(9) e contra o cônjuge deste, (D), titular do BIRM nº xxxxxx(3).
Pretende o exequente a cobrança coerciva da obrigação de restituir determinada quantia monetária resultante de um acordo de empréstimo com promessa de hipoteca que alegadamente celebrou por escrito com os executados em 27/10/2020 e que estes, como mutuários, não cumpriram. Pretende ainda a cobrança de juros remuneratórios em dívida, de juros moratórios à taxa acordada e das convencionadas despesas de cobrança.
Como título executivo juntou os documentos de fls. 4 a 6 dos autos de execução apensos que configuram dois documentos particulares subscritos pelos executados e que contém o texto de um acordo de empréstimo em que os executados constam como mutuários e o exequente como mutuante e onde o embargante declarou receber uma quantia emprestada e comprometer-se a restituí-la com juros.
O executado (B) intentou os presentes embargos de executado pretendendo a extinção da execução contra si instaurada.
Invocou diversos fundamentos para os embargos que opôs à execução, desde a falta e inexequibilidade do título executivo na parte respeitante à clausula penal moratória até ao carácter excessivo desta cláusula e até à inexistência da obrigação exequenda.
Quanto à inexistência da obrigação exequenda disse que esta obrigação não nasceu por falta de vontade negocial do próprio embargante ou por nulidade do contrato de mútuo. Mais concretamente, quanto à inexistência do contrato de mútuo disse que, por erro, contrariamente ao que declarou no título executivo, não quis contrair qualquer empréstimo, mas apenas autorizar o seu cônjuge a fazê-lo e a prometer constituir hipoteca sobre um bem do casal. Quanto à nulidade contratual disse que a celebração do alegado contrato de mútuo contende com norma legal que proíbe o exequente de conceder crédito com carácter de regularidade, como se fosse uma instituição financeira autorizada.
Respondeu o embargado/exequente pugnando pela improcedência dos embargos.
Foi proferido despacho saneador e de selecção da matéria de facto a fls. 29 a 32 onde se julgaram improcedentes os fundamentos de embargos, com excepção do que respeita à inexistência da obrigação exequenda devida à falta de vontade negocial e à nulidade contratual.
Procedeu-se a julgamento, tendo a matéria de facto controvertida sido decidia sem reclamação e foram apresentadas alegações de Direito.
*
II – SANEAMENTO
A instância mantém-se válida e regular, como decidido no despacho saneador.
*
III – QUESTÕES A DECIDIR
Tendo em conta o relatório que antecede, tendo já no despacho saneador sido julgados improcedentes todos os fundamentos dos embargos com excepção de um, a questão ainda a decidir consiste, pois, em apreciar o fundamento dos embargos ainda não apreciado, ou seja, saber se a obrigação exequenda não existe na esfera jurídica do executado, seja porque este não teve vontade negocial quando fez a sua declaração constante do título executivo, seja por nulidade do contrato por contrariedade à lei.
*
IV – FUNDAMENTAÇÃO
A) – Motivação de facto
Estão assentes os seguintes factos:
(...)
B) – Motivação de direito
Da existência da obrigação exequenda.
1. Da repartição do ónus da prova.
Como se referiu, está por decidir uma questão que o embargante invocou como fundamento dos embargos que deduziu contra a execução apensa: a inexistência da obrigação exequenda. Mas essa alegada inexistência tem alegadamente duas causas: a falta de vontade de contratar e de contrair a obrigação exequenda e a nulidade do contrato. São causas subsidiárias: ou não há contrato por falta de vontade negocial e, por isso, não nasceu a obrigação exequenda, ou há contrato mas é nulo e, por isso, também não nasceu aquela obrigação.
Cabe à exequente demonstrar a existência da obrigação exequenda, ou seja, os factos constitutivos do direito de crédito da própria exequente, e cabe ao embargante demonstrar as causas extintivas, impeditivas ou modificativas daquela obrigação exequenda (art. 335º, nºs 1 e 2 do CC).
Assim, no caso dos autos, cabe à exequente demonstrar que o embargante declarou comprometer-se a restituir à exequente determinada quantia monetária com juros remuneratórios e moratórios. E cabe ao embargante demonstrar que essa declaração não correspondia à sua vontade real que, por erro, julgou ter declarado e cabe-lhe ainda demonstrar que as circunstâncias de habitualidade em que a declaração contratual foi feita são contrárias à lei.
Vejamos, então como as partes deram cumprimento ao ónus de prova que recaía sobre cada uma delas.
2. Da vontade negocial e da sua falta.
O exequente apresentou um documento assinado pelo executado embargante, dado por reproduzido na al. a) dos factos provados onde consta que o embargante declarou que se compromete a reembolsar em determinado prazo a quantia monetária recebida do exequente embargado e a pagar juros remuneratórios e moratórios. O embargante não nega que subscreveu o referido documento nem que o mesmo tem a sua declaração, mas diz que foi por erro que assim declarou, pois estava convicto que não prometia restituir, mas apenas que consentia que a esposa prometesse restituir e constituir hipoteca. O embargado, cumpriu, pois o seu ónus de prova e demonstrou que o embargante declarou que prometia restituir com juros. Por outro lado, o embargante não conseguiu provar que ele próprio e o embargado sabiam e queriam que aquela declaração não correspondesse, como erradamente correspondia, ao compromisso do embargante, mas que correspondesse apenas à prestação do consentimento deste para a sua esposa contrair um empréstimo e prometer constituir uma hipoteca (resposta negativa dada aos quesitos 1º e 2º.
O exequente embargado deu, pois, cumprimento ao ónus de prova que sobre si impendia. E o Embargante não se desonerou do seu ónus.
Ora, não há dúvida que a comprovada declaração do executado embargante configura um contrato, pelo que criou na esfera jurídica do embargante a obrigação de cumprir aquilo que se comprometeu, pois que os contratos devem ser cumpridos e, por isso, são fonte de obrigações (art. 400º do CC).
Improcede, pois este fundamento dos embargos, uma vez que o embargado logrou demonstrar que foi constituída a obrigação exequenda, sem prejuízo do que se dirá a seguir quanto à nulidade contratual.
3. Da nulidade contratual.
É nulo e, por isso, incapaz de gerar obrigações o negócio jurídico “cujo objecto seja … contrário à lei”. É o que dispõe o art. 273º do CC.
Por sua vez, dispõe o nº 1 do art. 2º do Regime Jurídico do Sistema Financeiro3 em conjugação com o disposto na al. b) do nº 1 do mesmo diploma que “… só as instituições financeiras regularmente constituídas e autorizadas nos termos do presente diploma ou em legislação especial podem exercer uma actividade que compreenda a prática habitual e com intuito lucrativo” de “concessão de crédito, incluindo a prestação de garantias e outros compromissos”.
A tese do embargante é que o embargado, como mutuante, celebrava, com habitualidade e carácter oneroso, contratos de mútuo como aconteceu com aquele que está na origem da obrigação exequenda, actividade que estava proibido de exercer e que, por ser contrária à lei, determina a nulidade dos contratos celebrados no exercício dessa actividade, impedindo que deles nasçam obrigações, designadamente a obrigação exequenda que está a tentar ser coercivamente cumprida na execução apensa.
Provou-se o seguinte: “o embargado tem vindo a praticar as operações de concessão de crédito com intuito lucrativo, de modo habitual, permanente e não ocasional, que se assemelham às praticadas pelas entidades de natureza bancária em Macau” (al. c) dos factos provados, oriunda do quesito 3º da base instrutória).
O objecto do contrato celebrado entre embargante e embargado consubstancia um mútuo oneroso com promessa de hipoteca (arts 1070º do CC).
Pois bem, parece não haver dúvidas que o contrato que, alegadamente, deu origem à obrigação exequenda configura concessão de crédito. E parece também não haver razão para dúvidas que o embargado se dedicava à prática habitual dessa actividade de concessão de crédito com intuito lucrativo. Também não há dúvida nos autos que o embargado não é uma instituição financeira regularmente constituída e autorizada a exercer a referida actividade de concessão de crédito.
Conclui-se, pois, que o objecto do negócio dos autos é contrário à lei e, por isso, o contrato respectivo é nulo e não gerou a obrigação exequenda, a qual, assim, não existe4.
É certo que se provou que o embargado se dedicava à actividade de concessão de crédito de forma habitual e com fim lucrativo. Mas também é certo que o primeiro acto de concessão de crédito demonstrado nos autos foi o contrato celebrado com o embargante5. Assim, se o embargado não tinha essa “estrutura de habitualidade” quando celebrou o contrato dos autos, só depois de alguns empréstimos se poderia considerar que passou a ter carácter de regularidade e o contrato dos autos não seria nulo uma vez que a causa da nulidade contratual tem de se verificar no momento em que o negócio foi celebrado.
Se se considerasse que este foi o primeiro contrato celebrado pelo embargado, então, quando o celebrou ainda não estaríamos perante a habitualidade que funda a proibição legal e a consequente nulidade. Só os contratos posteriormente celebrados estariam abrangidos pela habitualidade. Porém, não está demonstrado que o contrato dos autos foi o primeiro a ser celebrado e está provado que o embargado concedia habitualmente crédito oneroso. Além disso, a habitualidade pode abranger logo o primeiro acto de concessão onerosa de crédito se o concedente se propôs logo exercer como actividade futura a concessão de crédito.
Procede, pois, este fundamento dos embargos.
*
V – DECISÃO
Pelo exposto, julgam-se procedentes os embargos e, em consequência, determina-se a extinção da execução apensa relativamente ao embargante.
Custas pelo embargado.
Registe e notifique.
*
Quid Juris?
Perante o decidido e o fundamentado do Tribunal recorrido, e na sequência de não modificação da matéria de facto, é da nossa conclusão que o Tribunal a quo fez uma análise ponderada dos factos e uma aplicação correcta das normas jurídicas aplicáveis, tendo proferido uma decisão conscienciosa e legalmente fundamentada, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto no artigo 631º/5 do CPC, é de manter a decisão recorrida (não tratamos de efeitos da nulidade por não ser sede adequada neste processo de embargos em que se decide somente a procedência ou improcedência da oposição à execução).
*
Síntese conclusiva:
I - Dispõe o nº 1 do art. 2º do Regime Jurídico do Sistema Financeiro6 em conjugação com o disposto na al. b) do nº 1 do mesmo diploma que “… só as instituições financeiras regularmente constituídas e autorizadas nos termos do presente diploma ou em legislação especial podem exercer uma actividade que compreenda a prática habitual e com intuito lucrativo” de “concessão de crédito, incluindo a prestação de garantias e outros compromissos”. Por outro lado, é nulo e, por isso, incapaz de gerar obrigações o negócio jurídico “cujo objecto seja … contrário à lei”. É o que dispõe o art. 273º do CC.
II – Dos factos assentes resulta que: “o embargado tem vindo a praticar as operações de concessão de crédito com intuito lucrativo, de modo habitual, permanente e não ocasional, que se assemelham às praticadas pelas entidades de natureza bancária em Macau” (al. c) dos factos provados, oriunda do quesito 3º da base instrutória). O objecto do contrato celebrado entre o embargante e o embargado consubstancia um mútuo oneroso com promessa de hipoteca (arts 1070º do CC).
III – Fica provado que o contrato que, alegadamente, deu origem à obrigação exequenda configura concessão de crédito. E parece também não haver razão para dúvidas que o embargado se dedicava à prática habitual dessa actividade de concessão de crédito com intuito lucrativo. Também não há dúvida nos autos que o embargado não é uma instituição financeira regularmente constituída e autorizada a exercer a referida actividade de concessão de crédito. Conclui-se, pois, que o objecto do negócio dos autos é contrário à lei e, por isso, o contrato respectivo é nulo e não gerou a obrigação exequenda, a qual, assim, não existe.
*
Tudo visto e analisado, resta decidir.
* * *
V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao presente recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
*
Custas pelo Recorrente/Exequente.
*
Registe e Notifique.
*
RAEM, 11 de Julho de 2024.
(Relator) Fong Man Chong
(Primeiro Juiz-Adjunto) Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto) Tong Hio Fong
1 Aprovado pelo Decreto-Lei nº 32/93/M, de 05 de Julho.
2 Sobre o princípio da completude da motivação da decisão judicial ditado, pela necessidade da justificação cabal das razões em que se funda, com função legitimadora do poder judicial, vide acórdão do STJ, de 17-01-2012, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Gabriel Catarino, no processo n.º 1876/06.3TBGDM.P1 .S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj
3 Aprovado pelo Decreto-Lei nº 32/93/M, de 05 de Julho.
4 Poderá ocorrer obrigação de restituir em consequência de nulidade (art. 282º do CC), porém trata-se de obrigação diferente da obrigação que está em execução no processo apenso, uma obrigação de restituir e de pagar juros moratórios e remuneratórios em cumprimento de um contrato de mútuo.
5 Conforme consta da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
6 Aprovado pelo Decreto-Lei nº 32/93/M, de 05 de Julho.
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