Processo nº 43/2024
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Sob acusação do Ministério Público e em audiência colectiva no Tribunal Judicial de Base responderam A e B, (1ª e 2°) arguidos com os restantes sinais dos autos.
A final, realizado o julgamento decidiu-se:
–– condenar a (1ª) arguida A, como co-autora material da prática de:
- 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 12 anos de prisão; e, como autora, e em concurso real de,
- 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 4 meses de prisão; e,
- 1 crime de “desobediência”, p. e p. pelo art. 312°, n.° 1, al. b) do C.P.M., na pena de 4 meses de prisão;
- Em cúmulo jurídico, fixou-lhe o Tribunal a pena única de 12 anos e 4 meses de prisão.
–– condenar o (2°) arguido B, como co-autor material da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 13 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 480 a 491-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Após notificado, do assim decidido recorreu o (2°) arguido B para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 29.02.2024, (Proc. n.° 6/2024), negou provimento ao recurso; (cfr., fls. 808 a 823).
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Ainda inconformado, vem o mesmo arguido recorrer para esta Instância; (cfr., fls. 831 a 844).
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Em Resposta, foi o Ministério Público de opinião que se devia negar provimento ao recurso; (cfr., fls. 877 a 880-v).
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Oportunamente, nesta Instância, e em sede de vista, juntou a Exma. Representante do Ministério Público douto Parecer considerando também que o recurso não merecia provimento; (cfr., fls. 891).
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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como “provados” os factos como tal elencados no seu Acórdão que foram totalmente confirmados pelo Acórdão ora recorrido do Tribunal de Segunda Instância, e que, mais adiante, se fará adequada referência; (cfr., fls. 484 a 487 e 815 a 817).
Do direito
3. Insurge-se o (2°) arguido B contra o decidido pelo Tribunal de Segunda Instância que, como se deixou relatado, negando provimento ao recurso que antes tinha interposto do Acórdão do Tribunal Judicial de Base, confirmou a sua condenação como co-autor material da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 13 anos e 6 meses de prisão.
Sabendo-se que as “conclusões” do recurso delimitam as questões a apreciar, das mesmas se constata que insiste o arguido, ora recorrente, no antes já assacado vício de “erro notório na apreciação da prova”, considerando que a decisão da “matéria de facto” em que assenta a sua condenação – como co-autor de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009 – padece de um “vício de raciocínio na apreciação da prova” e de uma “clara violação das regras de experiência”.
Da análise e reflexão sobre o nos presentes autos decidido, assim como o pelo ora recorrente alegado, cremos que nenhuma razão lhe assiste.
Passa-se a (tentar) expor este nosso ponto de vista.
–– Antes de mais, uma breve nota sobre o pedido pelo ora recorrente deduzido no sentido de o presente recurso ser julgado em “audiência de julgamento”.
Ora, sobre o assim requerido, e em sede de “exame preliminar”, proferiu o ora relator o seguinte despacho:
“1. O recurso apresenta-se como o próprio, com efeito e modo de subida adequadamente fixados, nada parecendo obstar o seu conhecimento.
2. Vem pedido o julgamento do presente recurso em “audiência de julgamento”, invocando-se o facto de o (2°) arguido, ora recorrente, ter sido julgado no Tribunal Judicial de Base à sua “revelia”.
Sem prejuízo do muito respeito por melhor opinião, e se bem ajuizamos, cremos que o estatuído no art. 409° do C.P.P.M. sobre a matéria agora em questão se destina, mais propriamente, a um recurso de uma decisão do Tribunal Judicial de Base para o Tribunal de Segunda Instância que, na aludida situação, (julgamento à revelia), e não sendo caso de rejeição, deve então julgar o recurso em audiência, não se nos apresentando aplicável em sede de recursos de decisões do Tribunal de Segunda Instância para este Tribunal de Última Instância.
3. Assim, sem prejuízo de uma melhor (re)apreciação, (e ainda que se nos mostre de considerar que nada obsta a que, em prol da verdade material e transparência processual, se venha a entender como justificada uma audiência de julgamento), façam-se desde já os presentes autos conclusos aos Exmos. Juízes-Adjuntos para visto”; (cfr., fls. 892).
Apresentando-se adequado o ponderado quanto ao “âmbito de aplicação do art. 409° do C.P.P.M.”, (cfr., “ponto 2” do transcrito despacho), e, assim, esclarecida nos parecendo ficar esta “questão”, continuemos.
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–– Pois bem, como se viu, foi o ora recorrente condenado pela prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, onde se prescreve que:
“Quem, sem se encontrar autorizado, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, ceder, comprar ou por qualquer título receber, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no n.º 1 do artigo 14.º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos”.
Ora, como cremos que sabido é, o crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” tem sido englobado na categoria do “crime exaurido”, “crime de empreendimento” ou “crime excutido”, sendo caracterizado como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no seu tipo.
Dito de outra forma, o resultado típico alcança-se logo com aquilo que surge por regra como realização inicial do iter criminis, tendo em conta o processo normal de actuação.
A previsão molda-se, na verdade, em termos de uma certa progressividade, no conjunto dos diferentes “comportamentos” contemplados na norma que atrás se deixou transcrita, e que podem ir de uma (mera) “detenção” à “venda” (propriamente dita).
A “consumação”, como se deixou referido, verifica-se com a comissão de “um só acto de execução”, (ainda que sem se chegar à realização completa e/ou integral do tipo legal pretendido pelo agente, ou seja, o resultado típico obtém-se logo pela realização inicial da conduta ilícita, de modo que, a eventual continuação da mesma, mesmo que com propósitos diversos do originário, não se traduz, necessariamente, na comissão de novas violações do respectivo tipo legal, sendo pois um “crime de trato sucessivo”).
Trata-se, pois, de um crime que se enquadra na categoria dos “crimes de perigo abstracto”, visto que não pressupõem nem o “dano”, nem o “perigo” de lesão de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, bastando apenas a “perigosidade da acção” para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, sendo cada uma das “actividades” previstas no transcrito preceito dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objetivo do crime.
E, assim, por ser um crime de perigo abstrato ou presumido, não se exige para a sua consumação, a existência de um “dano real e efetivo” verificando-se a sua consumação com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem jurídico protegido, ou seja, a saúde pública na dupla vertente física e moral, (sobre o tema, cfr., v.g., o recente Ac. deste T.U.I. de 08.05.2024, Proc. n.° 107/2023).
Isto dito, cabe agora referir que sobre a “matéria” e “questão” do pelo recorrente imputado vício de “erro notório na apreciação da prova” tem este Tribunal de Última Instância (repetidamente) considerado que:
“O vício de “erro notório na apreciação da prova” constitui um vício típico – próprio – da “decisão sobre a matéria de facto”, e apenas existe quando se violam as “regras sobre o valor da prova vinculada”, as “regras de experiência” ou as “legis artis”, devendo ser um “erro ostensivo” e de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
Assim, visto estando que o “erro notório na apreciação da prova” nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que o Tribunal devia ter dado relevância a determinado meio de prova – sem “especial valor probatório” – para formar a sua convicção (e assim dar como assente determinados factos), visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da “livre apreciação da prova” e de “livre convicção” do Tribunal”.
Com efeito, “O “princípio da livre apreciação da prova” significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam (ou hierarquizam) o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” e “lógica” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo consagra-se um modo não (estritamente) vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante, pautado pela “razão”, pela “lógica” e pelos ensinamentos que se colhem da “experiência comum”, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da “legalidade da prova” e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção, e, de acordo com ela, determina os factos que considera “provados” e “não provados”.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado elemento ou conjunto de provas, em detrimento de outro ou outras, às quais não reconheça (nomeadamente) credibilidade.
O “acto de julgar”, é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera “opção voluntarista” sobre a certeza de um facto e contra a dúvida, (nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade), mas a conformação intelectual do conhecimento do facto – dado objectivo – com a certeza da verdade alcançada, (dados não objectiváveis).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção.
O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos “traços do depoimento”, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza, ou sua falta, (que se revelam v.g., por gestos, comoções e emoções, voz etc…).
Por sua vez, importa ainda ter em conta que quando a atribuição de credibilidade, (ou falta de credibilidade), a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na “imediação” e na “oralidade”, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica sendo inadmissível face às regras da experiência comum, pois que, a censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, estar-se-ia a substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão…”; (cfr., v.g., entre outros, os Acs. deste T.U.I. de 02.07.2021, Proc. n.° 97/2021, de 11.03.2022, Proc. n.° 12/2022, de 27.07.2022, Proc. n.° 71/2022 e de 03.03.2023, Proc. n.° 97/2022, de 29.09.2023, Procs. n°s 71/2023 e 81/2023, e de 01.11.2023, Proc. n.° 82/2023).
No caso, e em síntese que temos como adequada, é o ora recorrente de opinião que incorreu o Tribunal Judicial de Base (e o Tribunal de Segunda Instância) no assacado “erro”, dado que “ao se concluir que:
i) o 2° Arguido era o marido da 1ª Arguida, fê-lo sem a prova do verdadeiro estado civil da 1ª Arguida;
ii) o 2° Arguido era o interlocutor das mensagens trocadas com a 1ª Arguida e se encontra identificado como “YY” e “ZZ”, fê-lo sem a prova da identidade dos respectivos interlocutores das mensagens tocadas;
iii) o 2° Arguido encontrava-se em Inglaterra em 13 de Agosto de 2021, fê-lo sem a prova da localização do 2° Arguido à data dos factos;
iv) foi o 2° Arguido que procedeu ao envio da “encomenda” para a 1ª Arguida, fê-lo sem a prova da localização do 2° Arguido à data dos factos e;
v) foi o 2° Arguido quem filmou a imagem da “encomenda” a ser embalada, fê-lo sem a prova da localização do 2° Arguido à data dos factos”; (cfr., fls. 838).
Porém, ressalvado o devido respeito por diversa opinião, e como já se deixou adiantado, não se mostra de se reconhecer razão ao arguido ora recorrente.
Como no seu Acórdão não deixou o Tribunal Judicial de Base de consignar e justificar, a sua decisão sobre a “matéria de facto” assentou nos “elementos constantes nos autos, provas documentais, objectos apreendidos, declarações da 1ª arguida, e depoimentos das testemunhas”, fazendo-se ainda aí constar expressamente uma síntese das “declarações da dita 1ª arguida” que, em audiência, e confessando os factos, declarou a sua “relação”, “envolvimento”, “planeamento” e “(com)participação” na prática do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” (pelo qual foi com o ora recorrente condenada como co-autora), o mesmo sucedendo com o depoimento das testemunhas, agentes da Polícia Judiciária, que em audiência de julgamento relataram as diligências de investigação encetadas em sede de Inquérito, (e que, em síntese, e como dos autos igualmente resulta, consistiram na monitorização e análise do teor das conversas e mensagens trocadas entre os arguidos dos autos, o acompanhamento do trajecto da encomenda e a detenção da 1ª arguida após a mesma receber aquela e declarar da sua origem e proveniência).
Ora, é certo que a referida “exposição” sobre os “motivos da convicção da decisão sobre a matéria de facto” poderia ser mais generosa, desenvolvida e detalhada…
Na verdade, dúvidas não parece haver que deve o Tribunal, (principalmente o que efectua o julgamento), empenhar-se em justificar, clara e cabalmente, a decisão de “facto” e de “direito” que profere, até mesmo para permitir a sua melhor compreensão pelos seus interessados directos e restante comunidade em geral, assim contribuindo também para uma desejavelmente cada vez maior confiança nas instituições judiciárias.
Contudo, (e ainda que assim se possa entender), somos de crer que em matéria de “fundamentação” de sentenças e Acórdãos, importa não perder de vista que também não se deve adoptar “perspectivas maximalistas”, devendo aquela depender dos “ingredientes” da situação (concreta) sob apreciação e decisão, crendo nós que as “razões” pelo Tribunal Judicial de Base (e Tribunal de Segunda Instância) in casu expostas, permitem alcançar (claramente) e com a necessária segurança, o “porque” da decisão da matéria de facto (e de direito) proferida (e confirmada).
Com efeito, e como efectivamente sucedeu, se é a própria 1ª arguida que em sede de Inquérito e posteriormente em audiência de julgamento – e acusada como “co-autora do ora recorrente” na prática do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” – que declara (convictamente) que se “casou” em Macau com o ora recorrente, que foi o mesmo que, pouco depois do casamento saiu de Macau, e, encontrando-se no exterior, lhe telefonou dizendo-lhe que iria enviar para Macau uma encomenda postal com droga, sendo ela a destinatária, que lhe falou e enviou várias mensagens escritas por telemóvel com pormenores sobre o assunto, incluisivé, com fotografias da dita encomenda já embalada, que lhe avisa do momento em que a mesma chegou a Macau, (exactamente no dia que assim sucedeu), que lhe diz, (com detalhe), o que deveria fazer para a receber, (o que igualmente sucedeu, com a arguida a telefonar para a transportadora para facultar o “número de registo da encomenda” e do seu número de telefone para assim conseguir a recepção da referida encomenda), e que, segundo a mesma, até estavam em “contacto directo” – “em linha” – quando esta recebeu a encomenda e foi detida pela Polícia, uma coisa se nos apresenta certa e fora de qualquer dúvida: o Tribunal Judicial de Base, e, da mesma forma, o Tribunal de Segunda Instância, não decidiram, (como diz o ora recorrente), “arbitrariamente”, “sem prova”, com base em “juízos ilógicos” e “contraditórios”…
Importa pois ter presente que há muito que ultrapassada está a regra do “unus testis, testis nullus”, pois que nada impede que o Tribunal forme a sua convicção com o depoimento de um só declarante ou testemunha, sendo, como este Tribunal de Última Instância já o entendeu em processo da mesma natureza, “absurdo aceitar que não se pode dar como provado um determinado facto só porque o arguido não o admitiu”; (cfr., Ac. de 13.11.2013, Proc. n.° 62/2013).
E, no caso, não se pode pois olvidar também que, as (várias) declarações pela dita (1ª) arguida prestadas ao longo do processo, apresentam-se conformes e em (total) “coerência” e “harmonia” com (toda) a restante prova recolhida nos autos, em especial, os “registos” das conversas e mensagens trocadas entre os arguidos, onde até consta, como se referiu, a aludida fotografia da “encomenda”, assim como outras fotografias de ambos os (1ª e 2°) arguidos.
Diz, porém, o ora recorrente, que provado não está o “estado civil” da referida 1ª arguida, e, assim, que não há prova do seu casamento com a mesma, juntando até uma “cópia” do que alega ser o seu certificado de casamento; (cfr., fls. 845 e 846).
Eis o nosso ponto de vista.
O Tribunal Judicial de Base deu como provado que a 1ª e o 2° arguidos, este, o ora recorrente, eram um “casal”; (cfr., facto provado n.° 1).
E admite-se que o tenha feito sem um “documento autêntico” com o valor de “prova plena” sobre o estado civil da 1ª arguida; (cfr., art. 363° e 365° do C.C.M.).
Todavia, assim decidiu porque, como se deixou consignado, foi a própria 1ª arguida que o declarou perante o Tribunal, afirmando que se “casou com o 2° arguido, ora recorrente, em Macau, segundo os (seus) usos e costumes muçulmanos”, perante um amigo como testemunha, (e que até fizeram uma festa, com fotografias, num quarto de um Hotel local), alegando que com “tais formalidades”, (um acordo verbal de ambos, presenciado por uma testemunha), consideravam-se casados para todos os efeitos.
Haverá assim algum “erro” – notório – do Tribunal?
Apenas porque o ora recorrente apresenta uma mera “cópia” de um seu suposto certificado de casamento com uma outra pessoa?
Ora, (em face das aludidas declarações e até mesmo perante a “natureza” do dito documento apresentado), cremos que a resposta se nos apresenta evidente e manifesta.
Aliás – sabendo-se também que o islamismo aceita a poligamia, sendo ainda de notar que não se está em sede de uma acção declarativa sobre o “estado civil”, nem tão pouco num processo de “divórcio” ou “partilha”, e mostrando-se ainda de interpretar, devida e adequadamente, a expressão “casal” pelo Tribunal empregue – cabe igualmente consignar e salientar que não se alcança a relevância (jurídico-penal) para a decisão proferida desta “questão”, ou seja, de estarem, ou não, a 1ª arguida e o ora recorrente, devida e legalmente, “casados”.
E, nesta conformidade, não constituindo tal “circunstância” qualquer dos “elementos típicos” do crime ora em questão, visto está que mais também não vale a pena expender sobre a mesma.
Vejamos, agora, da pelo recorrente também alegada falta de prova da “identidade dos interlocutores das mensagens trocadas” e da sua “localização …”.
Essencialmente, e como se vê, (para além de afirmar que não está “casado” com a 1ª arguida), pretende o ora recorrente dizer, (e fazer crer), que “nada tem a ver com a matéria dada como provada nos presentes autos”, tentando controverter o que provado está no sentido de ter sido ele a pessoa com quem a 1ª arguida falou, trocou mensagens e acordou sobre o envio da “encomenda” em questão, pedindo-lhe para a receber, assim como a pessoa que efectivamente fotografou e enviou a encomenda, não existindo, em sua opinião, qualquer prova para se decidir como se decidiu, juntando até uma “pública forma do seu passaporte” para (tentar) demonstrar que não esteve no “local” de onde a encomenda foi remetida para Macau.
Pois bem, há que reconhecer que os “argumentos”, desta forma (astutamente) apresentados, até podem, eventualmente, e à primeira vista, causar algum impacto, (pois que o ora recorrente até se proclama “inocente”).
Porém, cremos nós que não resistem a uma atenta apreciação do que nos presentes autos consta e da sua análise em conformidade com as atrás referidas “regras de experiência” e da “normalidade das coisas”.
Desde já, importa referir que, não obstante existir nos autos elementos probatórios que indicam (claramente) que a “encomenda” foi remetida para Macau a partir de “Londres”, o certo é que em parte nenhuma da matéria de facto provada se diz que o ora recorrente “esteve em Londres”, e, muito menos, que a referida encomenda foi, por ele, “pessoalmente enviada de Londres para Macau”.
Por sua vez, e como já se referiu, não se pode pois olvidar, (sendo até de salientar), que foi a 1ª arguida que em declarações desde o início dos presentes autos prestadas em sede de inquérito, e, posteriormente, em audiência de julgamento, que relatou todo o sucedido, desde a data e forma como conheceu o ora recorrente até ao dia da sua detenção após recepção da “encomenda” em questão, (com 581 gramas de Metanfetamina), esclarecendo, com pormenor, com datas, e de forma assertiva, lógica, e credível, as “razões” do envolvimento no “plano” acordado e na participação de ambos na prática do crime dos autos, onde constam os respectivos “registos das (várias) conversas, mensagens e fotografias trocadas” e que, com natural solidez e consistência, corroboram o declarado.
E, então, é caso para se perguntar: será toda a prova assim existente e produzida, e globalmente ponderada e apreciada no seu respectivo contexto, “inútil” e “insuficiente” para a convicção quanto à co-autoria do ora recorrente na prática do crime dos autos pelo Tribunal Judicial de Base formada e pelo Tribunal de Segunda Instância confirmada, (tão só porque o mesmo se serve, habilmente, de uns “pormenores” para a questionar)?
Ora, com todo o respeito por diferente opinião, não nos parece.
Com efeito, da prova existente nos autos e em audiência produzida, e da matéria de facto em sua conformidade dada como assente, resulta, com clareza bastante, a (intensa) “participação” do ora recorrente na “execução” do plano e concretização do “envio e recepção da encomenda” em causa em Macau.
Por sua vez, quanto ao “passaporte” que o ora recorrente junta em “pública forma”, cabe notar que, como cremos que sabido é, não existe internacionalmente um limite relativamente ao número de nacionalidades que uma pessoa pode ter, sendo a legislação de cada Estado que específica os critérios e restrições em tal matéria, (reconhecendo, ou não), podendo assim suceder que uma pessoa possa possuir diversos passaportes, fruto de uma “dupla” ou “múltipla” cidadania, resultante, v.g., do local seu nascimento, (“jus soli”), da sua descendência, (“jus sanguinis”), de um processo de naturalização, do casamento, e, (como ultimamente também tem sucedido com bastante frequência), em resultado de investimento.
E, nesta conformidade, em face do que se consignou relativamente à “natureza” e aos “elementos típicos” do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, (especialmente, que para a sua comissão basta a prática de um só acto típico), visto cremos que está que adequado não é considerar-se que com o decidido, e atentos os elementos probatórios existentes e produzidos, se tenha incorrido no assacado vício de “erro notório”, (pois que, violada não foi nenhuma “regra sobre o valor das provas tarifadas” ou “regra de experiência”), apresentando-se-nos, assim, de confirmar a decisão recorrida.
Decisão
4. Nos termos que se deixaram expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 15 UCs.
Registe e notifique.
Oportunamente, nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 05 de Junho de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator) [Mantendo o entendimento que consignei no “ponto 3” do despacho proferido em sede de exame preliminar quanto à possibilidade de julgamento do presente recurso em audiência].
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 43/2024 Pág. 20
Proc. 43/2024 Pág. 21