Processo nº 68/2023
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), propôs acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra “B”, (“乙”), pedindo, a final, que fosse declarado titular do direito resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção relativamente a 11/262 avos da fracção autónoma designada por “ZR/C” do rés-do-chão “Z”, para estacionamento, correspondentes a 11 lugares de estacionamento, do prédio urbano sito em Macau, na [Endereço], descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.° XXXXX, a fls. 184 do livro BXXX, e inscritos a favor da R., por a haver adquirido por usucapião; (cfr., fls. 2 a 8-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Oportunamente, após contestação da R., (cfr., fls. 116 a 118-v), veio C (丙), deduzir “incidente de oposição espontânea” dizendo ser ele o promitente-comprador originário de dez dos 11/262 avos que o A. reivindica, negando ter-lhe cedido a sua posição contratual, e, afirmando ser ele o possuidor daquela quota indivisa de 10/262 avos, pede que seja ele, e não o A., reconhecido como titular do direito resultante da concessão por arrendamento dos mencionados 10/262 avos da fracção autónoma antes identificada por ter adquirido por usucapião; (cfr., fls. 221 a 235).
*
Na sequência da normal tramitação processual veio-se a proferir sentença onde se julgou a acção parcialmente procedente e a oposição improcedente, consignando-se o que segue em sede de dispositivo:
“1. Absolve-se a ré B e o opoente C (丙) da instância relativamente ao pedido de declaração de ser de boa-fé a posse que o autor exerce sobre a quota de 10/262 da fracção autónoma designada por “ZR/C” do rés-do-chão “Z”, para estacionamento, do prédio urbano sito em Macau na [Endereço], descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. 184 do livro BXXX.
2. Absolve-se a ré e o opoente da instância relativamente ao pedido de declaração que as quotas de 1/262 e 10/262 da fracção autónoma “ZR/C” que o autor possui correspondem aos lugares de estacionamento número 18 e números 24, 37, 41, 44, 47, 49 e 55 a 58 existentes na referida fracção autónoma.
3. Declara-se que o autor A (甲) adquiriu por usucapião, no ano de 2001, 1/262 avos indivisos do direito inscrito no Registo Predial a favor da ré, resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade da construção, relativo à fracção autónoma designada por “ZR/C” do rés-do-chão “Z”, para estacionamento, do prédio urbano sito em Macau na [Endereço], descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. 184 do livro BXXX.
4. Declara-se que o autor possui de forma pública e pacífica há, pelo menos, cinco anos 10/262 avos indivisos da fracção autónoma designada por “ZR/C” do rés-do-chão “Z”, para estacionamento, do prédio urbano sito em Macau na [Endereço], descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. 184 do livro BXXX.
5. Absolve-se o autor e a ré do pedido formulado pelo opoente”; (cfr., fls. 628 a 641).
*
Em sede do recurso que do assim decidido apresentou o opoente C, proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão de 09.02.2023, (Proc. n.° 599/2022), onde se decidiu:
“- julga improcedente a impugnação da matéria de facto vertida na resposta aos quesitos 12º, 13º, 14º, 15º, 18º e 18º-A da base instrutória;
- julga procedente a impugnação da matéria de facto vertida na resposta ao quesito 21º da base instrutória, alterando a resposta para o seguinte: “Desde 16 de Maio de 1995 até meados de 2010, o opoente gozava e utilizava, publicamente, os 10 referidos lugares de estacionamento, como sendo proprietário.”;
- revoga a sentença recorrida na parte em que absolveu o autor A e a ré B do pedido formulado pelo opoente e, por conseguinte, declara que o mesmo adquiriu, por usucapião, 10/262 avos do direito inscrito no Registo Predial a favor da ré B, resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade da construção, relativo à fracção autónoma designada por “ZR/C” do rés-do-chão “Z”, para estacionamento, do prédio urbano sito em Macau na [Endereço], descrito na Conservatória do Registo predial de Macau sob o n.º XXXXX, a fls. 184 do Livro BXXX.
(…)”; (cfr., fls. 750 a 772).
*
Traz agora o aludido A. A o presente recurso, produzindo em sede das suas alegações as seguintes conclusões:
“A) Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal de Segunda Instância (TSI) do passado dia 9 de Fevereiro de 2023, que acordou em conceder parcial procedência ao recurso interposto pelo opoente, ora Recorrido, julgando procedente a impugnação da matéria de facto vertida na resposta ao quesito 21.° da base instrutória, alterando a respectiva resposta e, em consequência, revogando a sentença recorrida na parte em que absolveu o autor A, ora Recorrente, e a ré B (a "Ré"), através da declaração de que o opoente, ora Recorrido, adquiriu, por usucapião, 10/262 avos do direito inscrito na Conservatória do Registo Predial a favor da Ré relativo à Fracção Autónoma, do prédio urbano sito em Macau descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° XXXXX;
B) O Recorrente considera que a decisão do douto Tribunal a quo violou e fez errada aplicação das normas legais aplicáveis, vindo por via do presente recurso sindicar a mesma, nos termos do artigo 693.° do CPC;
C) Em primeiro lugar, o ora Recorrente entende que a presunção de continuação da posse foi devidamente afastada por si, contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, daí resultando que a conclusão extraída pelo douto Tribunal a quo é ilegal porquanto descurou a integralidade do contexto em que a conduta do autor, ora Recorrente, foi adoptada e, por outro lado, não qualificou adequadamente as diligências adoptadas por aquele, totalmente desprezando - sem que a lei o permite - a dinâmica da lide;
D) É firme convicção do autor, ora Recorrente, que as referidas diligências deverão outrossim ser consideradas como actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade e, como tal, localizado o início da sua posse e, concomitantemente, o fim da posse do opoente, ora Recorrido, em 2009;
E) Desde logo, o Tribunal a quo descurou o circunstancialismo de, perante uma fase em que vários condóminos não pagavam as despesas de condomínio, essa falta de pagamento inviabilizava a obtenção dos cartões de acesso aos lugares de estacionamento;
F) Se a lógica dedutiva imperasse, facilmente se concluiria que o facto de o opoente, ora Recorrido, nunca ter pago um avo de despesas de condomínio relativamente aos lugares de estacionamento indiciava fortemente - senão decisivamente - que este se desinteressou totalmente do facto da qualidade de possuir os parques, ou porque considerou que essa qualidade cabia ao proprietário registado ou transferiu para quem, por lhe ter entregue o específico preço, passou a ser o seu possuidor, ou seja, o autor, ora Recorrente;
G) Não houve qualquer gesto ou actuação do Recorrido no sentido de exercer a posse, ou fazer qualquer pagamento relativamente à Fracção Autónoma;
H) Por outro lado, o que o Tribunal a quo, com a sua decisão, solidificou foi uma punição ao autor, ora Recorrente, e quem vinha. possuindo os parques por este os ter recebido do opoente, ora Recorrido, pelo facto de a administração do condomínio ter demorado cerca de um ano a dar resposta à sua interpelação para pagar as despesas de condomínio relativas aos lugares de estacionamento;
I) As diligências em causa são verdadeiros actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, tal como, de resto, devidamente salientado pelo tribunal de primeira instância, na resposta a matéria de facto;
J) Ora, tal como é reconhecido pela doutrina e jurisprudência, a posse exige a prática reiterada, com publicidade dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito;
K) Por maioria de razão, as várias tentativas, desde 2009, de pagamento das despesas de condomínio encetadas pelo autor, ora Recorrente, têm, como é óbvio, de ser consideradas como actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, não sendo pelo facto de a tentativa de pagamento não ter sido frutífera ab initio, mas tão-somente um ano depois da primeira de várias tentativas, que se pode concluir que tal facto não é um acto material correspondente ao exercício do direito de propriedade;
L) Pode-se, nesta sede, fazer o paralelismo com a tentativa de procura do proprietário para formalizar uma escritura de compra e venda que não é bem-sucedida, facto reconhecido pelo TSI (em acórdão proferido em 16 de Abril de 2014 sob o Processo n.° 666/2014) que tal facto realça ainda mais o seu animus de possuidor;
M) Por outro lado, será importante recordar o reconhecimento expresso do opoente, ora Recorrido, que perdeu a sua posse - a que se pode associar, em particular, o facto de este não ter logrado provar sequer que incumbiu o Sr. D nem o autor, ora Recorrente, para gerir em seu nome os respectivos parques de estacionamento, quer em 2008, quer em 2010, nem sequer que incumbiu efectivamente alguém para tal;
N) De facto, em suporte de tal perda, o opoente, ora Recorrido, refere ter-se ausentado de Macau durante mais de 20 anos e, por outro lado, a alegação de que o pretenso Sr. D ter igualmente saído de Macau em 2008;
O) Os referidos factos alegados servem, pelo menos como fortes indícios, para sustentar que, pelo menos desde 2008 o Autor, ora Recorrente, deixou de praticar factos que suportassem a posse presumida que detinha e, mais importante, que este simplesmente perdeu a posse, designadamente por abandono;
P) Aliás, refira-se que não há um único acto de posse provado pelo opoente, ora Recorrido, designadamente, não demonstrou qualquer pagamento à RAEM nomeadamente a título de imposto predial, não evidenciou o pagamento de qualquer renda do terreno ou o pagamento de qualquer pataca a título de despesas de condomínio, para além de que nem sequer esboçou alguma vez a mais ténue tentativa de visitar os parques de estacionamento objecto dos presentes autos, os quais, de resto, nem sequer conseguiu identificar na sua oposição;
Q) Ao invés, perante a factualidade produzida, não restam dúvidas que o autor, ora Recorrente, pelo menos a partir de 2009, já exercia poderes de facto sobre os 10/262 avos da Fracção Autónoma, designadamente pelo facto de ter pago TODAS as despesas de administração, de limpeza e outras, e que a sua reivindicação formal como possuidor dos parques ocorreu com a apresentação de documentação em meados de 2009;
R) Existe, por outro lado, grande probabilidade de que a posse do autor, ora Recorrente, tenha acontecido em momento anterior a 2010, daí que o Tribunal a quo tenha concluído com uma expressão mais abrangente e indeterminada, mormente "pelo menos a partir de 2010";
S) Será relevante recordar que o opoente, ora Recorrido, nada fez em relação aos lugares de estacionamento - numa postura muito para lá da simples inação ou inércia, mas outrossim de verdadeiro e efectivo desinteresse, porquanto logicamente não considerava já aqueles lugares de estacionamento seus;
T) Não se pode extrair qualquer outra ilação lógica perante a conduta adoptada pelo opoente, ora Recorrido, designadamente não tentando nem se interessando por saber se os mesmos estavam ou não a ser ocupados e a que título, ou quem eventualmente estaria a usar e beneficiar dos mesmos, não praticando pois qualquer acto que demonstrasse a sua posse sobre os 10/262 avos da Fracção Autónoma:
U) A verdade é que o opoente, ora Recorrido, nada fez enquanto alegado possuidor dos ditos parques, oque não é surpreendente se tivermos em conta que ele esteve ausente de Macau, desinteressando-se por tudo o que contendia com os mesmos, por mais de 20 anos, tal como este aleqou e ficou demonstrado;
V) O acórdão recorrido, apesar de ter enunciado correctamente, mediante a transcrição da doutrina dos acórdãos do TSI de 20/9/2012, no Proc. n.° 551/2012 e de 28/5/2015, no Proc. n.° 332/2015, os limites que se lhe impunham quanto à modificação da matéria de facto considerada provada pelo tribunal colectivo, no quadro dos princípios da imediação e da livre apreciação da prova, na realidade desprezou esses limites;
W) Em vez de proceder à análise crítica dos concretos meios de prova de que se poderia socorrer, com observância da alínea a) do n.° 1, do art.° 629.° do CPC e com a contenção inerente aos referidos princípios, e de procurar demonstrar nessa base a evidência de um erro de valoração da prova pelo tribunal colectivo ao dar os actos de posse pelo opoente, ora Recorrido, cessados "em data não apurada mas não posterior a meados de 2009", limitou-se a criticar a fundamentação oferecida pelo tribunal a quo e a modificar a resposta ao Quesito 21.°, fixando essa cessação em meados de 2010, como se ao nível fáctico tivesse de haver uma coincidência necessária entre o momento da cessação de uma posse e o começo da outra;
X) E isso resultou ou, pelo menos, foi decisivamente influenciado por um outro erro de direito a que está associado. Na verdade, perpassa do discurso fundamentador do acórdão uma errada compreensão da natureza das presunções legais;
Y) É exacto que as presunções legais dispensam quem delas beneficia de provar o facto a que elas conduzem, bastando-lhe provar o facto base da presunção. Mas não constituem princípio de prova, contraprova, ou regra de valoração da prova em função delas. No momento do juízo sobre a verificação do facto susceptível de ilidi-las, isto é, no momento de formular um veredicto positivo ou negativo sobre a prova do contrário, o juiz tem de abstrair inteiramente da presunção e limitar-se a valorar as provas pelo seu mérito intrínseco, como se a presunção não existisse, para concluir pela verificação ou não verificação do facto sob averiguação. Só no momento posterior, de aplicação do direito ao quadro fáctico assim determinado, lhe é lícito entrar em consideração com a presunção legal;
Z) Ora, o discurso que conduziu o TSI a alterar a resposta não manteve esta metódica jurídica indispensável à correcta decisão sobre a matéria de facto, violando o disposto no art.° 629.°, n.° 1, al. a) do CPC e o art.° 343.° do Código Civil;
AA) Termos em que, bem ciente que a matéria de facto não pode, em princípio, ser alterada pelo douto tribunal ad quem, mas não sendo a questão aqui em causa dessa natureza, mas de errada aplicação das normas referentes aos poderes de modificação da matéria de facto pelo Tribunal de Segunda Instância nos termos sobreditos, deve ser anulada a alteração a que o acórdão recorrido procedeu da resposta ao Quesito 21.°, mantendo-se nos seus precisos termos a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que absolveu o autor A e a ré B do pedido formulado pelo opoente, ora Recorrido;
BB) Como segundo fundamento para o presente recurso, há que referir que o douto Tribunal a quo incorreu em violação da lei por sua errada aplicação ao caso concreto, designadamente por extravasar o conteúdo e limites do princípio do dispositivo, em concreto quanto à pretensa verificação da posse de boa-fé;
CC) O douto Tribunal a quo, em passagem do acórdão recorrido, afirma que "A posse invocada pelo opoente não é titulada nem registada, mas sendo de boa-fé, pode ter lugar a usucapião no termo de 15 anos, ao abrigo do disposto no artigo 1221.° do Código Civil, com é o caso dos autos";
DD) Com o devido respeito, que é muito, não se consegue vislumbrar em que termos pode o Tribunal a quo concluir pela existência de boa-fé na posse do Autor, sobretudo tendo em conta a factualidade dada como provada [rectius, não dada como provada] nos presentes autos;
EE) Ora, como é consabido, o instituto da usucapião, para que possa ser desencadeado, exige que estejam verificados certos requisitos da posse e que a duração desta tenha decorrido durante um determinado período de tempo, ou seja, há um prazo legalmente exigido para a duração do exercício da posse relevante para determinar a aquisição da propriedade por usucapião. E esta varia entre 15 e 20 anos, consoante a posse seja de boa ou má-fé, respectivamente;
FF) Por referência à segunda exigência - i.e., o decurso de um determinado período de tempo -, o tempo necessário para que se possa validamente considerar a verificação de aquisição de direitos de forma originária por via da usucapião dependerá da observância de específicos caracteres da posse;
GG) Nesse sentido, consoante se verifique a existência de tais caracteres - identificados nos artigos 1182.° e ss. do CC e que, basicamente, se reconduzem a tratar-se de posse titulada ou não titulada, posse de boa-fé ou de má-fé, posse pacífica ou com violência e ainda posse pública ou oculta - será possível reivindicar o instituto da usucapião após um maior ou menor período de tempo (ou nem sequer será possível suscitar - nos casos de posse violenta ou oculta);
HH) Não será despiciendo referir que, para que um interessado possa suscitar a verificação da usucapião, terá de alegar e demonstrar a verificação dos caracteres da posse relevantes;
II) Concretamente quanto à posse de boa-fé, dispõe o artigo 1182.° do CC que a posse titulada se presume de boa-fé e a não titulada de má-fé, sendo indiscutível que a posse do opoente, ora Recorrido, nos presentes autos não era titulada (nem, ademais, registada);
JJ) Nessa medida, em conformidade com as regras do ónus da prova consagradas no artigo 335.° do CC, caberia ao opoente, ora Recorrido alegar e demonstrar os factos constitutivos do direito alegado, in casu, de aquisição originária de 10/262 avos da Fracção Autónoma e, em concreto, afastar a presunção legal estabelecida no 1184.° do CC a que acima se fez menção - o que não foi feito;
KK) Efectivamente, uma análise à factualidade dada como provada nos presentes autos pelo tribunal de primeira instância, reproduzida no acórdão do doutro Tribunal a quo, faz ressaltar à saciedade que não existe qualquer elemento que possa indiciar o afastamento da referida presunção;
LL) De resto, não se vislumbra qualquer facto alegado pelo opoente, ora Recorrido, em qualquer dos seus articulados, no sentido de alegar que a sua posse era de boa-fé e, por maioria de razão, que a presunção legal estabelecida no sobredito preceito legal tenha sido afastada por este;
MM) Aliás, o opoente, ora Recorrido, bem sabia que não estava de boa-fé, porque ao não pagar as despesas e os impostos devidos pelos 10/262 avos da fracção equivalente a 10 parques de estacionamento, bem sabia que estava a prejudicar quem estava a fazer esse pagamento numa primeira fase, o proprietário e depois o possuidor a quem os transmitiu;
NN) Consequentemente, não afastou a presunção de-má-fé que a lei estipula;
OO) Pelo contrário, o autor, ora Recorrente, alegou e provou deter e exercer uma posse de boa-fé;
PP) Já em relação ao opoente, ora Recorrido, não se vê nada alegado ou provado por parte deste que possa desembocar na conclusão do acórdão em crise, i.e., que a sua posse era de boa-fé, e sobretudo quando é o próprio que reconhece que perdeu a posse, nada constando, ademais, da decisão à matéria de facto, incluída no acórdão recorrido, que tenha sido provado que o opoente, ora Recorrido, tenha provado que actuou com a consciência de não estar a lesar direitos alheios;
QQ) Em suma, em momento algum dos autos o opoente, ora Recorrido, alegou tal circunstância nem sequer existem nos autos nem para estes foram carreados quaisquer factos pelo opoente, ora Recorrido, que pudessem evidenciar tal qualidade da sua posse, pelo que a presunção de má-fé não poder-se-á ter como afastada;
RR) Nesses termos, ao pressupor - por sua exclusiva iniciativa - que a posse do opoente, ora Recorrido, de 15 anos seria o período necessário da sua posse para adquirir a propriedade dos lugares de estacionamento por via de usucapião, concretizou aquela posse como de boa-fé, o que consubstancia uma clara ofensa ao princípio do dispositivo, pedra angular do sistema de processo civil de Macau, nos termos do qual cabe às partes carrear para os autos os factos essenciais para a demonstração da causa de pedir suscitada;
SS) Mesmo que, no âmbito de conjecturas, se aventasse a possibilidade de ter sido alegada tal boa-fé e, em mais outro salto, se viesse a caracterizar a posse do opoente, ora Recorrido, como sendo de boa-fé, tal hipótese é totalmente destruída pela factualidade apurada e, nessa senda, pelo necessário juízo judicativo que se lhe tem de seguir, ou seja, a de que a posse daquele não era de boa-fé;
TT) Ora, no caso sub judice, é manifesto que o opoente, ora Recorrido, à liça de nem sequer ter alegado o carácter de boa-fé da sua posse, não foi capaz de demonstrar, por via de invocação de factos relevantes, tal natureza, donde resulta não afastada a presunção de má-fé da sua posse não titulada e não registada;
UU) Porém, e como aqui já foi dito, independentemente de qualquer facto, a posse iniciou-se de má-fé por não ser titulada e consequentemente de má-fé se presume até prova em contrário;
VV) E, na realidade, também ao abrigo do princípio da repartição do ónus da prova, o que é certo é que o autor, ora Recorrente, logrou demonstrar, ou pelo menos indiciar, que a conduta do opoente, ora Recorrido, é tudo menos de boa-fé;
WW) Note-se que é o próprio opoente, ora Recorrido, quem alega (mas sem conseguir provar - o que não é surpreendente, tendo em conta que toda a estória
relatada por este nos articulados é manifestamente falsa, como é comprovado cabalmente pela inexistência de factos alegados provados por este) que em 2008 deixou de ter alguém, em sua representação, a gerir os 10/262 avos da Fracção Autónoma;
XX) A esse título, reveste-se de crucial importância recordar alguns factos essenciais, designadamente que i) o opoente, ora Recorrido, se desinteressou completamente pela existência dos parques de estacionamento, ii) o opoente, ora Recorrido, jamais pagou qualquer montante a título de despesas de condomínio, rendas e/ou impostos à RAEM, iii) o opoente, ora Recorrido, nunca recebeu quaisquer rendas resultantes da alegada exploração dos parques de estacionamento, e iv) o opoente, ora Recorrido, nunca pediu prestação de contas, nunca tomou diligências judiciais ou extrajudiciais para recuperar os seus alegados parques de estacionamento (apenas em reacção à acção instaurada pelo autor, ora Recorrente, e numa clara atitude de má-fé e vingança pessoal);
YY) Com o devido respeito, e tal como se disse supra, a dinâmica da lide como ocorreu é, de per si, suficiente para sustentar que a posse do opoente, ora Recorrido, mesmo que tivesse sido de boa-fé num momento instantâneo inicial, deixou de o ser, passando a ser de má-fé;
ZZ) Ademais, a acrescer aos factos acima referidos, a circunstância - tal como reconhecido em ambas as instâncias judiciais - de o opoente, ora Recorrido, não ter conseguido provar que tinha encarregue alguém de gerir os parques e, assim, exercer a sua posse, é elucidativo de que este, na verdade, não tinha já a posse material dos mesmos, pois só assim se pode, logicamente, compreender a atitude de perfeita indiferença e despreocupação com os 10/262 avos da Fracção Autónoma (correspondente aos 10 parques de estacionamento) de que era alegadamente possuidor adoptada pelo opoente, ora Recorrido, ao longo de mais de uma década;
AAA) Em conclusão, não há como concluir doutra maneira que não a de que julgar a posse do opoente, ora Recorrido, como sendo posse de má-fé, quer por uma razão puramente jurídico-legal, assente na presunção legal estabelecida no artigo 1184.° do CC e que não foi afastada, quer também por uma razão probatória, assente na total ausência de prova (e, a montante, de alegação sequer) que comprovasse o caracter de boa-fé da posse daquele;
BBB) Tratando-se a posse do opoente, ora Recorrido, de posse de má-fé, estipula o artigo 1221.° do CC que a usucapião necessita de uma posse de 20 anos, o que, no caso sub judice, não sucedeu;
CCC) Aqui chegados, é manifesto que a conclusão do douto Tribunal a quo é errada, na medida em que ilegalmente se entendeu que a posse do opoente, ora Recorrido, é de boa-fé - quando, reitere-se, este não o provou, ao não afastar a presunção de que a sua posse, sendo não titulada, é de má-fé;
DDD) Mas mais grave e impressivo, está a circunstância de nem sequer tal facto ter sido alegado e, nessa senda, num passo de mágica se valoriza um posse de 15 anos, aplicável nos casos de uma posse titulada e de boa-fé, aplicando-se a uma posse não titulada e presumida de má-fé no caso concreto;
EEE) Termos em que, mesmo admitindo a alteração da resposta ao quesito 21.° da base instrutória propugnada pelo douto Tribunal a quo no acórdão recorrido - o que, como se disse acima, apenas se faz por dever de patrocínio - a solução determinada é manifestamente ilegal por errada subsunção dos factos à estatuição legal constante do artigo 1221.° do CC;
FFF) Nessa medida, deverá ser revogado o acórdão recorrido na parte em que declara que o opoente, ora Recorrido, adquiriu, por usucapião, 10/262 avos da Fracção Autónoma, mantendo-se a decisão do tribunal de primeira instância que absolveu o autor A e a ré B do pedido formulado pelo opoente, ora Recorrido”; (cfr., fls. 790 a 804-v).
*
Adequadamente processados os autos, e nada obstando, cumpre conhecer.
A tanto se passa.
Fundamentação
Dos factos
2. O Tribunal Judicial de Base deu como assente a seguinte matéria de facto (cuja resposta ao quesito 21° da base instrutória foi, como se viu, alterada pelo Tribunal de Segunda Instância):
“a) Relativamente às quotas-partes correspondentes a 16/262 avos da fracção autónoma, destinada a estacionamento, designada por “ZR/C”, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXXX, a fls. 184 do Livro BXXX, sito em Macau na [Endereço], foi inscrito o direito resultante da concessão por arrendamento a favor da ré B sob a inscrição nº XXXXX, do Livro FXX, conjugado com a inscrição nº XXXX, do Livro FXXX, conforme o documento a fls. 298 a 320 o qual aqui se dá por integralmente reproduzido. (alínea A))
b) Os 16/262 avos da fracção autónoma referida em A. estão inscritos na matriz predial urbana sob o n.º XXXXX com o valor matricial de MOP480.000,00, conforme o documento a fls. 36 o qual aqui se dá por integralmente reproduzido. (alínea B))
c) Em 16 de Maio de 1995, a ré, na qualidade de promitente-vendedora, celebrou com C1, na qualidade de promitente-comprador, 10 (dez) contratos-promessa de compra e venda, nos termos do qual aquela prometeu vender e este prometeu comprar os lugares de estacionamento identificados respectivamente nos ditos contratos como lugares nºs 24, 37, 41, 44, 47, 49, 55, 56, 57 e 58, correspondentes a 10/262 avos da fracção “ZR/C”, conforme os documentos a fls 37 a 46 os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos. (alínea C))
d) O C1 pagou à ré na totalidade os preços acordados nos contratos referidos em C. (alínea D))
e) A ré entregou ao C1 as respectivas chaves de acesso à fracção “ZR/C”. (alínea E))
f) Em finais de 1995, a ré, na qualidade de promitente-vendedora, celebrou com F, na qualidade de promitente-compradora, um contrato-promessa de compra e venda, nos termos do qual aquela prometeu vender e esta prometeu comprar o lugar de estacionamento identificado no dito contrato como lugar n.º 18, correspondente a 1/262 avos da fracção “ZR/C”, conforme o documento a fls. 47 o qual aqui se dá por integralmente reproduzido. (alínea F))
g) A F pagou à ré na totalidade o preço acordado no contrato referido em F. (alínea G))
h) A ré entregou à F as respectivas chaves de acesso à fracção. (alínea H))
i) A cláusula 6ª dos contratos mencionados no ponto C dos factos assentes estabelece que: “A Parte B, caso alienar a fracção a terceiro antes de celebrar a escritura pública, deve cumprir as cláusulas estabelecidas no presente contrato, sendo as respectivas formalidades tratadas pela Parte A, e necessário de efectuar o pagamento das despesas de alienação.” (alínea I))
j) A ré nunca concordou com qualquer eventual cessão de posição nos contratos respeitantes aos lugares de estacionamento nºs 24, 37, 41, 44, 47, 49, 55, 56, 57 e 58, mencionados no ponto C dos factos assentes. (alínea J))
k) Em 3 de Janeiro de 2019, a ré publicou anúncio no Jornal Ou Mun, pedindo que o promitente-comprador, C1 (丙一), tratasse necessariamente das formalidades da escritura pública de compra e venda dos 10 lugares de estacionamento até 25 de Março de 2019. (alínea K))
l) Em 29 de Março de 2019, o autor intentou a presente acção. (alínea L))
m) Desde 16 de Maio de 1995, o C1 passou a ocupar os 10/262 avos da fracção “AR/C” (correspondentes aos referidos 10 lugares de estacionamento) e a comportar-se publicamente como verdadeiro e único proprietário dos mesmos, detendo-os e fruindo-os como tal. (Q1.º)
n) Desde finais de 1995, a F passou a ocupar 1/262 avos da fracção “ZR/C” (correspondente ao lugar de estacionamento n.º 18) e a comportar-se publicamente como verdadeira e única proprietária do mesmo, detendo-o e fruindo-o como tal. (Q5.º)
o) Em 5 de Dezembro de 2001, o autor celebrou um contrato de arrendamento por escrito relativo a 1/262 avos da fracção “ZR/C” (correspondente ao lugar de estacionamento n.º 18) com o H (辛), conforme o documento a fls. 48 o qual aqui se dá por integralmente reproduzido. (Q11.º)
p) Pelo menos, desde meados de 2010 o autor passou a dar de arrendamento, a diferentes inquilinos os lugares de estacionamento nºs 24, 37, 41, 44, 47, 49, 55, 56, 57 e 58. (Q12.º)
q) A partir de 2014 o autor celebrou contratos de arrendamento por escrito com diferentes inquilinos quanto aos lugares de estacionamento nºs 24, 37, 41, 44, 47, 49, 55, 56, 57 e 58. (Q13.º)
r) Desde, pelo menos, meados de 2010 o autor recebia as rendas devidas pelos inquilinos dos lugares de estacionamento nºs 24, 37, 41, 44, 47, 49, 55, 56, 57 e 58 que procediam ao seu pagamento através do depósito na conta bancária de que o autor era titular. (Q14.º)
s) Desde 2005, relativamente a 1/262 avos da fracção autónoma “ZR/C”, correspondentes ao lugar de estacionamento nº 18, e desde 2010, relativamente a 11/262 avos da mesma fracção, correspondentes aos lugares de estacionamento nºs 18, 24, 37, 41, 44, 47, 49, 55, 56, 57 e 58, o autor procedeu, a suas expensas, ao pagamento das despesas de condomínio e de todas as demais despesas relacionadas com o uso e fruição dos 11/262 avos da fracção “ZR/C”, correspondentes aos referidos 11 lugares de estacionamento, sendo que algumas das despesas pagas diziam respeito a datas anteriores à data do respectivo pagamento. (Q15.º)
t) Em 2014 e em 2016 o autor procedeu, a suas expensas, à realização de obras, nomeadamente à colocação de algumas coberturas na parte da fracção “ZR/C” correspondente aos referidos lugares de estacionamento com o nº 41, 44 e 49. (Q16.º)
u) O autor nunca pagou quaisquer rendas pela fruição e ocupação dos 11/262 avos da fracção “ZR/C”, correspondentes aos referidos 11 lugares de estacionamento. (Q17.º)
v) Desde data não apurada o autor tem sido sempre reconhecido como dono e legítimo proprietário dos 11/262 avos da fração “ZR/C”, correspondentes aos referidos 11 lugares de estacionamento, pelos seus inquilinos, amigos, familiares e alguns vizinhos. (Q18.º)
w) Pelo menos, desde 2005 relativamente ao lugar de estacionamento nº 18 e, pelo menos, desde meados de 2010 relativamente aos lugares de estacionamento nº 24, 37, 41, 44, 47, 49, 55, 56, 57 e 58, e até aos dias de hoje o autor tem vindo a comportar-se pubicamente como verdadeiro e único proprietário dos 11/262 avos da fracção “ZR/C” (correspondentes aos referidos 11 lugares de estacionamento), como tal tomando conta deles, os arrendando e recebendo a respectiva renda. (Q18.ºA)
x) Em 27 de Dezembro de 1995, o opoente, originalmente conhecido por C1 (丙一), alterou o seu nome para C (丙). (Q19.º)
y) Em 16 de Maio de 1995, a ré entregou ao opoente os lugares de estacionamento nºs 24, 37, 41, 44, 47, 49, 55, 56, 57 e 58, mencionados no C) dos factos assentes. (Q20.º)
z) Desde 16 de Maio de 1995 até data não apurada, mas não posterior a meados de 2009, o opoente, gozava e utilizava, publicamente, os 10 referidos lugares de estacionamento, como sendo proprietário. (Q21.º)” – matéria que foi alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, passando a ficar com o seguinte teor: “Desde 16 de Maio de 1995 até meados de 2010, o opoente gozava e utilizava, publicamente, os 10 referidos lugares de estacionamento, como sendo proprietário” –
“aa) O autor nunca pagou rendas ao opoente. (Q31.º)
bb) No dia 10 de Maio de 2019, em Macau, o opoente pediu perante o autor a restituição imediata dos 10 referidos lugares de estacionamento, bem como todas as rendas correspondentes e respectivos recibos. (Q34.º)”; (cfr., fls. 632-v a 635 e 760 a 763).
Do direito
3. Como resulta do até aqui relatado, o presente recurso pelo A. trazido a este Tribunal de Última Instância tem como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância datado de 09.02.2023 cuja decisão atrás já se deixou transcrita.
Entende (essencialmente) o dito recorrente que:
- o Tribunal de Segunda Instância errou na compreensão da presunção legal de que beneficiava o opoente;
- desprezou os limites que lhe são impostos no quadro dos princípios da imediação e da livre apreciação da prova; e ainda que sempre se teria de considerar que,
- verificada não estava a boa fé da posse do opoente, o que, por si só alteraria o prazo de usucapião dos 15 para os 20 anos, período que ainda não teria decorrido, e que, como tal, imporia a improcedência daquele pedido do opoente.
A final, pede que este Tribunal de Última Instância considere o recurso apresentado como procedente e revogue o Acórdão recorrido na parte em que declara que o opoente adquiriu, por usucapião, 10/262 avos da dita fracção autónoma “ZR/C”, e, como tal, se mantenha a decisão do Tribunal Judicial de Base que absolveu o A. e a R. do pedido por este formulado.
–– Não estando esta Instância vinculada a apreciar as questões colocadas em recurso na mesma ordem em que o recorrente as apresenta, comecemos – como nos parece lógico – pela imputada “violação do art. 629° do C.P.C.M.” e dos “princípios da imediação e da prova”.
Pois bem, como se sabe, o Tribunal de Última Instância não pode apreciar “questões de facto” fora dos (apertados) limites constantes do art. 649° do C.P.C.M.; (sobre o tema e matéria, cfr., v.g., entre outros, os Acs. de 29.11.2019, Proc. n.° 111/2019; de 19.02.2020, Proc. n.° 83/2018; de 03.04.2020, Proc. n.° 19/2019; de 10.06.2020, Proc. n.° 48/2020; de 10.11.2021, Proc. n.° 131/2021; de 12.01.2022, Procs. n°s 50/2020 e 76/2020; de 19.01.2022, Proc. n.° 121/2020 e de 14.07.2023, Proc. n.° 137/2020).
Certamente ciente disso, vem o A. defender (então) que o Tribunal de Segunda Instância efectuou uma “errada aplicação do art. 629°, n.° 1, alínea a) do C.P.C.M.”, na medida em que não respeitou os limites que se lhe impunham quanto à modificação da matéria de facto considerada provada pelo Colectivo do Tribunal Judicial de Base no quadro dos “princípios da imediação e da livre apreciação da prova”.
Ora, sem prejuízo do respeito devido a diverso entendimento, cabe notar que a alegação pelo A. assim produzida, representa, (verdadeiramente), a defesa de uma “leitura minimalista” (ou “restritiva”) dos poderes de reapreciação da matéria de facto conferidos pelo art. 629° do C.P.C.M. (ao Tribunal de Segunda Instância), posição que, tanto quanto julgamos saber, não corresponde à adoptada pela maior parte da doutrina e da jurisprudência (comparada), não sendo também a acolhida por este Tribunal de Última Instância.
Com efeito, e como sobre a “questão” salienta António Abrantes Geraldes:
“A partir de 1995, para além de se assegurar a possibilidade de gravação dos depoimentos com vista à sua futura utilização, atribuiu-se à Relação o poder de proceder à sua reapreciação e conjugação com outros meios de prova. (…)
Conforme o expressámos noutro local, a gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (vídeo) não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Além disso, sem embargo da possibilidade de a Relação proceder à renovação dos meios de prova, nos termos do n. º3, a mera audição dos registos gravados impede o confronto dos depoentes com pedidos de esclarecimento sobre determinadas afirmações que seriam proporcionados por uma efectiva mediação. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da primeira instância. Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores. (…)
De facto, o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1.ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam com razoável segurança credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização do processo decisório aquando da motivação da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou verbalizar mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos.
Porém, estas circunstâncias e as correspondentes dificuldades não legitimam que se faça tábua rasa das modificações operadas, seguindo um caminho em que, através de juízos meramente abstractos, se esvazie por completo o regime que, depois de sucessivas reivindicações, o legislador acabou por instituir, tendo em vista alcançar uma efectiva reapreciação da decisão da matéria de facto.
Por certo que as circunstâncias anteriormente apontadas e outras que poderiam ser enunciadas terão de ser ponderadas na ocasião em que a Relação proceda à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações na decisão da matéria de facto quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados. Todavia, a constatação das diferentes circunstâncias em que actua um e outro dos tribunais não autoriza que, com base em puras justificações lógico-formais, que não tenham subjacentes sequer a audição dos depoimentos ou uma efectiva e séria reapreciação e valoração dos depoimentos e demais meios de prova, se recuse pura e simplesmente a modificação da decisão.
Acontece que foi precisamente esta uma das correntes jurisprudenciais que surgiu nas Relações, onde em diversos arestos se assumiu sempre que a posição do julgador se centralize nos elementos que se prendem directamente com a imediação da prova testemunhal o tribunal de recurso não tem possibilidade de sindicar tal convicção, excepto se a mesma se mostrar contrária às regras de experiência, da lógica ou dos conhecimentos científicos. Assevera-se ainda, dentro da mesma linha, que na reapreciação das provas em 2.ª instância não se procura uma convicção diferente da formulada em 1.ª instância, nos termos do art. 655.º, mas tão só verificar se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos.
Trata-se de uma tese restritiva relativamente aos poderes conferidos ao tribunal de 2.ª instância que teima em manter-se em alguns acórdãos, apesar da doutrina que em sentido oposto vem sendo assumida pelo STJ, e que não corresponde aos desígnios do legislador.
(…) Na execução desta tarefa de modo algum a Relação pode ser dispensada da reapreciação efectiva dos meios de prova invocados pelo recorrente e pelo recorrido, com o pretexto formal da inexistência das mesmas condições que estiveram presentes na 1.ª instância, sob pena de não se dar seguimento aos objectivos projectados pelo legislador que, ciente da diversidade de circunstâncias, ainda assim admitiu a modificação da decisão da matéria de facto pela Relação. (…)
Assim, desde que não existam motivos para rejeitar o recurso de impugnação oda decisão da matéria de facto, nos termos do art. 685.º-B, a solução que correctamente dá sequência aos objectivos projectados pelo legislador no que concerne ao duplo grau de jurisdição, quando se tenha verificado o registo de meios de prova oralmente produzidos, determina o seguinte:
(…) e) Consequentemente não temos como verdadeira a asserção de que a modificação na decisão da matéria de facto apenas deva operar em casos de erros manifestos de reapreciação. Ao invés, sem embargo dos naturais condicionalismos que rodeiam a tarefa de reapreciação de meios de prova oralmente produzidos, desde que a Relação acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados deve reflectir em nova decisão esse resultado”; (in “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 3ª ed., 2010, pág. 316 a 323).
No mesmo linha e sentido considera também Fernando Amâncio Ferreira que: “Num quadro destes, à Relação deparam-se os mesmos elementos de prova com que se confrontou a 1.ª instância; daí, poder julgar a questão de facto com a mesma liberdade com que aquela o fez e, se entender que ela errou, quando procedeu à valoração dos meios probatórios, deve alterar a decisão de facto proferida.
Verificando-se a segunda situação, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, levando em conta as alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados (art. 712.º, n.º 2). Tal como na situação anterior, e por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1.ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu. Também aqui a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a da 1.ª instância”; (in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9ª ed., pág. 226 e 227, com sub. nosso).
Sobre a mesma matéria e questão vale ainda a pena notar que, em anotação ao Acórdão do S.T.J. de 24.09.2013, (Proc. n.° 1965/04) – no qual se defendeu a “tese ampla” – considera igualmente Miguel Teixeira de Sousa que:
“O argumento que é utilizado para sustentar esta orientação é bastante convincente. De outro modo – afirma-se no acórdão –, não estaria assegurado o duplo grau de jurisdição em matéria de facto. Portanto, exige-se que a Relação forme a sua convicção sobre a prova proveniente da 1.ª instância; depois, a Relação deve confrontar a sua convicção com a convicção formada pela 1.ª instância; por fim, a Relação deve tomar a decisão que resultar desse confronto: confirmar a decisão de 1.ª instância, se a sua convicção coincidir com a do juiz a quo, ou revogar e substituir a decisão recorrida, se (e na medida em que) a sua convicção divergir da convicção da 1.ª instância”; (sub. nosso).
Por sua vez, também este Tribunal de Última Instância, no seu Ac. de 19.10.2022, (Proc. n.° 189/2020), já teve oportunidade de considerar que:
“3. O Tribunal de Segunda Instância não deve limitar-se a verificar se algum erro – “manifesto” – no procedimento probatório inquina a convicção do Juiz da 1ª Instância, devendo, antes, analisar e reflectir sobre (todo) o “processo” que levou àquela “convicção” que vem impugnada, e, em face do que alegado vem, formar uma “nova convicção” sobre as provas produzidas na 1ª Instância.
Isto é, em vez de se limitar a controlar (tão só) a “legalidade” (formal) da produção da prova realizada na Instância a quo – ou seja, se a decisão foi proferida com a invocação do “princípio da livre apreciação da prova”, (abstractamente) violadas não estando qualquer regra sobre a prova tarifada ou legal – deve ponderar e (acabar por) formar uma “convicção própria”, (sua), fruto de uma efectiva análise do mérito da apreciação efectuada e cujo “controlo” lhe é pedido.
A chamada “2ª Instância em matéria de facto”, para ser efectiva, implica – ou melhor, impõe – uma (também efectiva) “reapreciação das provas”, assente numa “(re)análise crítica” da prova em que se fundamenta a decisão (ou a parte da decisão) de facto impugnada assim como da “prova” pelo recorrente indicada para a contrariar ou alterar, com a formação de uma “convicção (nova e) própria”, não bastando pois uma mera apreciação (abstracta) do julgamento efectuado”; (sub. nosso).
Assim, e em sintonia com o que se deixou explicitado, claro cremos estar que, em face de uma impugnação da decisão que recaiu sobre pontos concretos da matéria de facto, pode – ou melhor, deve! – o Tribunal de Segunda Instância reexaminar criticamente os elementos de prova constantes dos autos para assim formar uma “convicção própria”, (e nova), sobre as questões de facto controvertidas, sem que isso, (ao contrário do que parece defender o A.), implique uma violação dos apontados princípios da imediação e da livre apreciação das provas.
Dest’arte, impõe-se concluir pela improcedência desta parte da argumentação do A..
–– Entende também o A. que o Tribunal de Segunda Instância se limitou a criticar a fundamentação oferecida pelo Tribunal a quo e a modificar a resposta ao “quesito 21°” da base instrutória, agindo como se fosse necessária uma “coincidência entre o momento da cessação de uma posse e o começo da outra”.
Se bem entendemos, considera (aqui) o A. que o Tribunal de Segunda Instância não efectuou um “(re)exame dos elementos de prova que serviram de base à decisão”, procedendo, antes, a uma (mera) “crítica da fundamentação” oferecida pelo Tribunal Judicial de Base para a decisão tomada sobre o “quesito 21°” da base instrutória.
Vejamos, então, antes de mais, a fundamentação constante no Acórdão recorrido no que toca a esta questão:
“Pede o recorrente que a resposta ao quesito 21.º seja alterada no sentido de que o opoente, ora recorrente, gozava e utilizava publicamente os 10 lugares de estacionamento, como sendo proprietário, até 24.6.2010 e não até meados de 2009 tal como se deu provado.
Entendeu o tribunal a quo não ser cognoscível em termos probatórios a situação de ocupação material dos referidos 10 lugares de estacionamento entre meados de 2009 e meados de 2010, por julgar que houve cessação da presunção de continuidade da posse material do opoente em meados de 2009 e começo de outra posse material do autor, ora recorrido, em meados de 2010.
No caso em apreço, é verdade que o opoente não logrou demonstrar a matéria por si alegada, no sentido de ter encarregado D de gerir os 10 lugares de estacionamento até 2008 nem depois, em 2010, ter encarregado o autor ora recorrido de gerir os mesmos.
Não há grande dúvida de que o autor só começou a exercer o poder de facto sobre os 10 lugares de estacionamento a partir de meados de 2010, nomeadamente quando passou a efectuar o pagamento das despesas de condomínio bem como a dá-los de arrendamento a diferentes inquilinos em meados de 2010.
Mas em relação ao opoente, será que deixou de ter a actuação material sobre aqueles 10 lugares de estacionamento a partir de meados de 2009 tal como ficou provado?
Face à prova produzida e à regra de repartição do ónus da prova, não assim entendemos.
É verdade que o opoente não logrou demonstrar que tinha incumbido D e o autor, respectivamente, de gerir os tais 10 lugares de estacionamento até 2008 ou depois de 2010.
Mas é facto provado que o opoente obteve a entrega daqueles 10 parques de estacionamento desde 16 de Maio de 1995 e desde então gozava e utilizava os mesmos publicamente como sendo proprietário.
E até quando? Decidiu a primeira instância que foi até meados de 2009, por considerar ilidida a presunção de continuação da posse, pela prova do contrário a que se reporta o artigo 343.º, n.º 2, do Código Civil:
Mais precisamente, decidiu-se nos seguintes termos:
“Perante esta situação probatória, designadamente a alegação do opoente e o depoimento da testemunha, o tribunal considerou ilidida a presunção de continuação da posse, pela prova do contrário a que se reporta o art. 343.º, n.º 2, do CC, pelo menos a partir de meados de 2009, altura em que o autor se terá apresentado munido das referidas cópias que a testemunha G colocou à consideração da administração do condomínio. É certo que a testemunha, na presença do documento de fls. 73, que lhe foi exibido em audiência, referiu que viu pela primeira vez o autor em 2010, sendo que também assinou o documento de fls. 79 que data de 2005 e que acabou por afirmar que o autor se terá apresentado um ano antes da assinatura do documento de fls. 73 (Junho de 2010).
A forte divergência entre as partes colocou o tribunal perante fortes dúvidas que não foi possível remover com mais detalhe em face da debilidade da prova. Designadamente não se conseguiu esclarecer a situação dos dez lugares de estacionamento controvertidos pelo opoente durante o “hiato” entre a cessação da presunção de continuidade da posse material do opoente em meados de 2009 e o começo de outra posse material do autor em meados de 2010. Com efeito, cessando a presunção de continuação da posse pelo facto de o opoente ter dito e não ter provado que D cessou a sua gestão por volta de 2008 e pelo facto de haver indícios que o autor se terá apresentado em meados de 2009 perante os responsáveis de administração do condomínio intitulando-se “titular” dos referidos dez “lugares” e havendo apenas certeza de utilização pelo autor depois de ter sido “reconhecido” pelos referidos responsáveis em 2010, não é cognoscível em termos probatórios a situação de ocupação material dos referidos dez “lugares” entre meados de 2009 e meados de 2010.”
Ora bem, sem entrar na questão de direito, atenta apenas a apreciação da prova, consagra-se no n.º 2 do artigo 1181.º do Código Civil que se presume a posse continuar em nome de quem a começou.
Trata-se de presunção legal iuris tantum, a qual pode ser ilidida mediante prova em contrário, nos termos do n.º 2 do artigo 343.º do mesmo Código. (…)
No caso dos autos, feita a prova de que o opoente obteve a entrega dos 10 lugares de estacionamento, e depois gozava e utilizava-os publicamente como sendo proprietário, está assim presumido que a posse continua em nome de quem a começou, ou seja, em nome do opoente ora recorrente.
Uma vez que há presunção de posse, não cabe ao opoente provar que continuou a exercer a posse daqueles lugares de estacionamento até determinada data, antes pelo contrário, compete aos contra-interessados, neste caso o autor ou a ré, a prova do contrário, isto é, estes têm o ónus de alegar e demonstrar que o opoente perdeu a posse ou deixou de a exercer a partir de determinada data.
E que prova foi feita pelos autor e ré?
Em primeiro lugar, entende o tribunal a quo que cessou a presunção de continuação de posse pelo facto de o opoente ter dito e não ter provado que D cessou a sua gestão por volta de 2008. Ora bem, tal como acima referido, presume-se que a posse continua em nome de quem a começou e não compete ao próprio possuidor, ora recorrente, ilidir essa presunção, antes é ao autor ou à ré que cabe o ónus da prova da perda da posse pelo recorrente.
Sendo assim, o primeiro argumento adoptado pelo tribunal a quo não pode proceder.
Em segundo lugar, refere ainda o tribunal a quo que cessou a presunção de continuação de posse por haver indícios que o autor ora recorrido se terá apresentado em meados de 2009 perante os responsáveis de administração do condomínio intitulando-se “titular” dos referidos 10 lugares de estacionamento, mas só havendo certeza de utilização pelo autor depois de ter sido reconhecido pelos referidos responsáveis em 2010. Ora bem, a prova produzida em audiência apenas vem indiciar que o autor se terá apresentado e munido de umas cópias junto da testemunha G, pessoa responsável pelo recebimento de despesas de condomínio, intitulando-se “titular” dos 10 lugares de estacionamento, tendo a tal testemunha colocado a questão à consideração da administração do condomínio. Admitiu ainda a mesma testemunha que cerca de um ano depois, ou seja, provavelmente em meados de 2010, o autor é que foi reconhecido pelos responsáveis da administração do condomínio e aceite o pagamento das respectivas despesas de condomínio.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, perante essa prova testemunhal ou demais produzidas no âmbito do processo, não vemos em que termos foi ilidida a presunção de continuação de posse do opoente.
Efectivamente, aquela testemunha apenas veio dizer que o autor se apresentou perante ele, provavelmente em meados de 2009, munido de umas cópias pedindo para pagar as despesas de condomínio, mas como a testemunha tinha dúvidas colocou a questão à consideração da administração do condomínio. Sinceramente, o tribunal a quo não considerou, e bem, que o tal acto praticado pelo autor em meados de 2009 constituía o exercício do poder de facto sobre os referidos 10 lugares de estacionamento, caso contrário dar-se-ia como provado que o autor tem vindo a comportar-se publicamente como verdadeiro e único proprietário dos 10 lugares de estacionamento desde meados de 2009, e não a partir de meados de 2010 tal como ficou provado.
Segundo o disposto no n.º 1 do artigo 1192.º do Código Civil, o possuidor perde a posse pelo abandono, pelo perda ou destruição material da coisa ou por esta ser posta fora do comércio, pela cedência ou pela posse de outrem. O mero facto de o autor se ter apresentado em meados de 2009, munido de umas cópias pedindo para pagar as despesas de condomínio, não constitui acto material correspondente ao exercício do direito. Ao que acrescerá o facto de que, segundo a prova documental apresentada pelo próprio autor e constante dos autos, para além de o autor ora recorrido só ter pago as despesas de condomínio em Junho de 2010, também começou a receber as alegadas rendas provenientes do arrendamento daqueles lugares de estacionamento a partir de Setembro de 2010, daí que, não havendo motivo para ilidir a presunção de continuação de posse exercida pelo opoente em meados de 2009, procedem as razões aduzidas pelo recorrente nesta parte, devendo a resposta ao quesito 21.º da base instrutória ser alterado para o seguinte:
- “Desde 16 de Maio de 1995 até meados de 2010, o opoente gozava e utilizava, publicamente, os 10 referidos lugares de estacionamento, como sendo proprietário.”
(…)”; (cfr., fls. 766 a 769-v).
Ora, da leitura da “fundamentação” que se deixou exposta, resulta, (em nossa opinião, claramente), que o Tribunal de Segunda Instância procedeu a um efectivo “(re)exame crítico da prova (testemunhal e documental)” recolhida nos autos, discordando da convicção formada no Tribunal Judicial de Base, justificando, de forma que se nos apresenta adequada, as razões que levaram a uma diferente decisão quanto a um ponto determinado – o “quesito 21°” – da matéria de facto.
E, nesta conformidade, não se vê, também aqui, qualquer infracção do disposto no art. 629° do C.P.C.M..
–– Passemos agora para o “erro na aplicação da presunção da continuidade da posse”.
Considera o A. ora recorrente que o Tribunal de Segunda Instância cometeu um erro na apreciação e aplicação da presunção da continuidade da posse, pois deveria ter-se abstraído “inteiramente da presunção e limitar-se a valorar as provas pelo seu mérito intrínseco, como se a presunção não existisse, para concluir pela verificação ou não verificação do facto sob averiguação. Só no momento posterior, de aplicação do direito ao quadro fáctico assim determinado, lhe é lícito entrar em consideração com a presunção legal”.
Ressalvando o devido respeito, labora em erro.
Na verdade, está provado que o opoente obteve a posse de 10/262 avos da fracção “ZR/C” – na sentença do Tribunal Judicial de Base e consequentemente no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância diz-se, por manifesto erro, fracção “AR/C” na resposta ao quesito 1° da base instrutória – no dia “16.05.1995”, vindo a comportar-se, desde então, publicamente, como o verdadeiro e único proprietário dos mesmos 10/262 avos, como tal detendo-os e fruindo-os na sequência dos dez contratos-promessa que havia celebrado enquanto promitente- comprador, com a R., (promitente-vendedora), que lhe entregou as necessárias e respectivas chaves; (cfr., resposta ao quesito 1°, e alíneas C), D) e E) dos factos assentes).
Daqui, e sem margem para dúvidas, decorre pois a “posse do opoente”, (algo que, aliás, não é contestado, e que terá relevo para a questão da “boa fé”, como infra se verá).
Coloca-se, no entanto, a questão de saber em que “momento” é que se deu a “perda da posse pelo opoente”.
Pois bem, como se sabe, a perda da posse dá-se pelo abandono, pela perda ou destruição material da coisa ou por esta ser posta fora do comércio, pela cedência ou pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, “se a nova posse houver durado por mais de 1 ano”, tudo, conforme as hipóteses previstas no art. 1192° do C.C.M..
E, sobre esta matéria vale a pena atentar na reflexão de Luís Carvalho Fernandes que considera que: “Não é, porém, líquido se a enumeração contida neste artigo é taxativa ou enunciativa.
II. Pendemos decididamente para o segundo entendimento. Desde logo, não pode deixar de se notar a falta de referência à morte do possuidor. Haja ou não transmissão proprio sensu no fenómeno da sucessão dos herdeiros na posse, não pode deixar de se entender que, quanto aos legatários, a posse se adquire por transmissão, havendo a consequente perda (relativa).
Outra questão em aberto na doutrina é a de saber se a extinção da posse pode resultar do não uso. A resposta negativa, sem mais, abre a hipótese de a manutenção da posse, desacompanhada de exercício, se prolongar indefinidamente, pondo nomeadamente em causa a função social.
Tendo em conta estes aspectos, o recurso ao não uso é admitido por Oliveira Ascensão. Trata-se de uma posição que se debate com algumas dificuldades de iure condito. É certo que o n.º 3 do art.º 298.º admite a extinção dos direitos reais de gozo pelo não uso” – correspondente ao art. 291°, n.° 3 do nosso C.C.M. – “podendo sustentar-se que o mesmo regime deveria valer, por maioria de razão, para a posse. Contudo, para além de a posse não constar do elenco de direitos reais identificados no preceito – o que seria, ainda, uma dificuldade ultrapassável –, acresce que a extinção por não uso apenas ocorre «nos casos especialmente previstos na lei». Na posse este requisito não se verifica”; (in “Lições de Direitos Reais”, 4ª ed., pág. 303, sendo desta forma de concluir que não há assim perda de posse pelo não uso, sendo pouco relevantes quaisquer argumentos nesse sentido).
Nesta conformidade, e nestes termos posta a questão, importa então, (e desde já), ver o que é que a este respeito foi pelo A., ora recorrente, alegado.
Pois bem, na sua petição inicial – sob a secção “B) Da aquisição da posse pela tradição simbólica da coisa” – alegou o A. ora recorrente que o opoente deixou de ter interesse em celebrar os contratos prometidos “após ter cedido as suas posições contratuais ao Autor”, (cfr., art. 12° da p.i.), isto porque em meados de 1998 o opoente teria cedido a sua posição de promitente-comprador dos 10/262 avos da fracção ZR/C ao A. através de um único acordo de cessão de posição contratual assinado por ambos e que se teria extraviado; (cfr., art. 13° da p.i.).
Tudo, por um preço global de MOP$300.000,00, correspondente a MOP$30.000,00 por cada lugar de estacionamento, o qual teria sido pago na data de assinatura do referido acordo de cessão de posição contratual extraviado, tendo então o A. recebido do opoente as chaves de acesso à Fracção ZR/C, (cfr., art°s 14° e 15° da p.i.), vindo, desde então, o A. a possuir os tais 10/262 avos daquela fracção; (cfr., art. 16° da p.i.).
Ora, (e como é a todas as luzes evidente), era pois com estes “factos” que o A. pretendia provar a existência de uma “cedência”, e “pôr assim termo à posse do opoente sobre aqueles 10/262 avos da fracção autónoma” em discussão; (vejam-se também os art°s 32° a 41° da p.i.).
Sucede, porém, (e muito simplesmente), que nenhum destes “factos” alegados foi dado como “provado”; (cfr., respostas aos quesitos 2°, 3° e 4° da base instrutória).
E, assim, em face do que se deixou exposto, imperativo é concluir que o “opoente não perdeu a posse pela cedência da mesma ao A.”.
Com efeito, o Tribunal Judicial de Base, (e não o Tribunal de Segunda Instância), considerou que o A. iniciou a sua posse sobre os 10/262 avos da fracção “ZR/C”, (i.e., sobre os dez lugares de estacionamento), em “meados de 2010”: “a posse do autor sobre a quota de 10/262 do direito do concessionário por arrendamento decorre há mais de cinco anos (“desde meados de 2010” e “até aos dias de hoje”, como consta da alínea w) da factualidade provada)”; (cfr., fls. 638-v).
E, olhando, assim, aos factos, (e “abstraindo, inteiramente, da presunção”, como pede o A.), constatou o Tribunal de Segunda Instância:
- que o opoente adquiriu a posse em 16.05.1995 (com base nos factos já apontados);
- que não foi feita a prova da cedência da posse pelo opoente ao A., (tal como havia sido por este alegado);
- que nada mais foi alegado pelo A. (e muito menos provado) quanto à “perda da posse pelo opoente”; e,
- que o A. apossou-se dos 10/262 avos da fracção “ZR/C” em “meados de 2010”.
Na falta de outros elementos de facto, (por exemplo, de um “abandono”), resulta, por simples exclusão de partes, que a “perda de posse” pelo opoente só pode ter ocorrido por força do (supra referido) “apossamento do A.”.
Neste sentido, veja-se também o eloquente Acórdão do S.T.J. de Portugal de 28.05.2002, Proc. n.° 01B1466, onde, sobre a matéria se consignou o que segue:
“Ora, a aquisição derivada da posse que a recorrente invocou (acordo com o F, pelo qual a ela foi atribuída a totalidade da casa) não ficou demonstrada nos autos conforme resulta da resposta negativa dada aos quesitos 11º a 13º em que a matéria de facto a tal respeitante foi integrada.
Restaria, pois, a aquisição originária, traduzida na prática reiterada de actos materiais correspondentes ao exercício do direito e que se inicia independentemente (e muitas vezes mesmo contra - inversão do título possessório) da intervenção de eventual anterior possuidor.
Porém, "para que a posse se adquira sem intervenção do antigo possuidor, é necessário que se estabeleça entre a pessoa e a coisa uma relação de facto que contenha todos os elementos daquela figura. Daí o ter-se exigido a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito. Estes actos, por si, podem não conduzir à posse se faltar o animus possidendi; mas sem eles é que a posse não existe, nem se constitui". Note-se, aliás, que a lei não se contenta com a mera possibilidade física de agir directamente sobre a coisa, exigindo a prática efectiva dos actos capazes de exprimirem o exercício do direito. "O essencial, em suma, é que os actos aquisitivos, variáveis de caso para caso, se dirijam ao estabelecimento de uma relação duradoura com a coisa, não bastando um contacto fugaz, passageiro (Henrique Mesquita, Lições, cit., pág. 97)".
Ora, quer a realização pela recorrente, em 1964, das obras na casa, quer a cedência, por esta, em 1993, da mesma casa aos réus, não traduzem a prática reiterada de actos materiais sobre a coisa por forma a poder concluir-se que com ela criou a recorrente uma relação duradoura: trata-se, na realidade, de meros actos de administração insusceptíveis de, só por si, justificarem a qualificação de uma situação possessória”.
Aqui chegados, cabe notar que ao abrigo do art. 1192°, n.° 1, alínea d) do C.C.M., essa “perda da posse” “não se dá imediatamente, mas apenas depois de ter decorrido, sobre o esbulho, mais de um ano”, estando “implicadas neste regime várias consequências:
a) Desde logo, não chega a haver perda se, por qualquer circunstância, a nova posse cessar antes de preenchido o referido prazo;
b) Significa isto, por outras palavras, que a posse antiga só cede perante uma nova posse de ano e dia;
c) Assim, enquanto não decorrer esse prazo, verifica-se o já nosso conhecido fenómeno de sobreposição de posses”; (cfr., v.g., Luís Carvalho Fernandes in, ob. cit., pág. 304 e 305, podendo-se, também, ver Pires de Lima e Antunes Varela in, “Código Civil Anotado”, Vol. III, 1972, pág. 29).
Nestes termos, adequado parece concluir que a “posse do opoente” decorreu de 16.05.1995, até meados de 2011, (em termos jurídicos, a posse só cessa um ano e um dia após a nova posse), sendo ainda de notar que tal “direito” não se confunde com o seu “domínio de facto” que terá cessado, (tanto quanto foi possível apurar nos autos), em “meados de 2010”.
De resto, e mesmo que o Tribunal Judicial de Base tivesse considerado que o “apossamento do A. se deu em meados de 2009”, (o que não foi o caso), continuaria a haver uma “sobreposição de posses” até meados de 2010, (cfr., art. 1192°, n.° 1, alínea d) do C.C.M.), pelo que o efeito prático não teria sido distinto daquele que foi considerado pelo Tribunal de Segunda Instância para a solução jurídica que veio a adoptar.
Assim, e em face do exposto, não se nos afigura que tenha ocorrido qualquer “erro sobre a natureza das presunções legais ou na apreciação e aplicação da presunção prevista no art. 1181°, n.° 2 do C.C.M.”.
Continuemos.
–– Vejamos, agora, da alegada “falta de boa fé na posse do opoente”.
Sustenta ainda o ora recorrente que o Tribunal recorrido errou quando considerou que a posse do opoente era de “boa fé”, visto que impenderia sobre a “aquisição originária” daquele uma presunção de má fé nos termos do art. 1184° do C.C.M., presunção essa que não teria sido afastada por qualquer elemento de facto, (que, de resto, não teria sido alegado pelo opoente).
Ora, não podemos deixar de notar que esta (algo “curiosa”) “posição”, geraria, (cremos nós), uma contradição de difícil explicação: a posse do A., essa sim de “aquisição originária” por apossamento sem qualquer título justificativo, foi tida de boa fé para usucapir 1/262 avos da fracção “ZR/C”, porém, a posse do opoente sobre 10/262 avos da mesma fracção, obtida por cedência da R., titular inscrita desses 10/262 avos, (e por isso, uma evidente “aquisição derivada”, ao contrário do que diz o A.), já seria uma posse que se presumiria de “má fé” e não teria sido afastada a presunção ao abrigo da matéria de facto…
Enfim, compreende-se que o A. pretende valer-se do facto de um contrato-promessa não ser, em princípio, um contrato adequado a transmitir a propriedade, e, como tal, a posse do opoente seria “não titulada”, daí retirando a presunção de má fé prevista no art. 1184°, n.° 2, in fine, do C.C.M..
Todavia, outra se apresenta dever ser a solução, para a situação dos presentes autos.
Vejamos.
De acordo com o art. 1183°, n.° 1 do C.C.M.: “Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo abstractamente idóneo para adquirir o direito nos termos do qual se possui, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade do negócio jurídico”.
Assim, “pode afirmar-se, em geral, que é justo o título que corresponde a um facto que seja admitido em Direito como causa lícita de aquisição. Assim, ao contrário do que se verifica quanto à posse derivada de um contrato de compra e venda, nulo por vício substancial – que é titulada –, é não titulada a posse resultante do apossamento por furto”; (cfr., v.g., Luís Carvalho Fernandes in, ob. cit., pág. 284).
Por sua vez, determina-se no n.° 2 daquele art. 1183° do C.C.M. que: “O título não se presume, devendo a sua existência ser provada por aquele que o invoca; contudo, é insuficiente o recurso à mera prova testemunhal para prova do título, caso este padeça de vício de forma”.
Segundo a doutrina, “O alcance deste preceito é o de pôr a cargo do possuidor a prova dos factos de que deriva o carácter titulado da posse. Dito de outro modo, na falta dessa prova a posse considera-se não titulada.
A nosso ver, este preceito exclui, só por si, a possibilidade de se admitir a existência de título putativo, ou seja, o título só existente na convicção do possuidor.
De resto, este é o entendimento corrente na doutrina, com o argumento de a admissão de título putativo conduzir a uma inadequada sobrevalorização do elemento subjectivo da posse, subvertendo o seu regime”; (cfr., v.g., Luís Carvalho Fernandes in, ob. cit., pág. 285).
Ora, é certo que o contrato-promessa não é um modo (abstractamente) idóneo para adquirir o direito nos termos do qual se possui.
Na verdade, “Como tem sido amplamente entendido na jurisprudência e na doutrina, o contrato promessa não é suscetível de, por si só, transmitir a posse ao promitente-comprador. Trata-se de um contrato que reveste, em princípio, a natureza de puro contrato obrigacional, gerando uma prestação de facto (emissão de uma declaração negocial). Se, através de um acordo (que se resolve num contrato atípico ou inominado, diferenciado em si mesmo do contrato promessa e constitutivo de um direito pessoal de gozo), clausulado no próprio contrato promessa ou paralelo a ele, o promitente-comprador obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, sem dúvida que recebe o corpus, mas não adquire o animus possidendi, ficando pois na situação de mero detentor ou possuidor precário. Neste caso, possuirá normalmente em nome de outrem (v. alínea c) do art. 1253º do CCivil). Na realidade, e de acordo com a definição do art. 1251° do Código Civil, a posse é o poder de facto que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, e não é esta a situação em que se encontra aquele que simplesmente se limita a obter a tradição da coisa e a fruí-la transitoriamente na simples expetativa da celebração do contrato prometido. Como decorre, a propósito, da fundamentação aduzida nos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 12 de julho de 2011 (processo nº 899/04.1TBSTB.E1.S1, relator Lopes do Rego) e de 12 de março de 2015 (processo nº 3566/06.8TBVFX.L1.S2, relator Lopes do Rego), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, podemos dizer que a tradição da coisa costuma assentar na pressuposição e expectativa do cumprimento do contrato prometido, equivalendo à atribuição ao promitente-comprador de um estado equiparável a um direito pessoal de gozo, de sorte que apenas desencadeará normalmente uma situação de mera detenção, enquadrável no art. 1253º do CC, sendo por isso a posse desse promitente exercida em nome do proprietário/promitente vendedor”; (cfr., Ac. do S.T.J. de 14.02.2017, Proc. n.° 724/09).
No entanto, neste mesmo Acórdão do S.T.J. se diz, também, que: “como se tem apontado numa quase inabarcável produção jurisprudencial e doutrinária (v., por todos, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., anotação ao art. 1251º; Menezes Cordeiro, A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª ed., pp. 76 e 77; Durval Ferreira, ob. e loc. cit.; Ana Prata, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, pp. 832 e seguintes; Gravato de Morais, Contrato Promessa em geral - Contratos promessa em especial, pp. 245 e seguintes), o promitente-comprador pode assumir em certos casos, por certo excecionais, a qualidade de verdadeiro possuidor.
Tem-se observado, a propósito, que só a ponderação casuística das circunstâncias de facto inerentes à relação negocial estabelecida (termos e conteúdo do negócio, circunstâncias que o rodearam e vicissitudes que se seguiram à sua celebração) devem poder levar à qualificação da situação do promitente-comprador como de detenção ou como de posse efetiva. Menezes Cordeiro (v. ob. cit., p. 77) expende, a propósito, que “tudo depende da vontade das partes: haverá, pois, que interpretar o acordo relativo à traditio usando, para isso e se necessário, todos os demais elementos coadjuvantes”.
Assim, e como igualmente se considera no Acórdão do S.T.J. de 01.03.2012, Proc. n.° 158/2000: “2. Se é certo que a assinatura do contrato-promessa não é merecedor de, por si só, privilegiar o promitente-comprador de passar a exercer o “corpus” e o “animus” integrantes da posse sobre a coisa prometida vender, também é verdade que em muitos dos casos circunstancialmente pontificados, o promitente-comprador aparece nesta vivência jurídica como um autêntico possuidor, excepcionalmente lhe devendo ser conferida esta denotada qualidade.
3. Estamos nesta situação quando o promitente-comprador, uma vez posto a usufruir o imóvel age, não em nome do promitente-vendedor mas em nome próprio (uti dominus), com intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real;
4. E tudo isto porque o preço da prometida venda foi pago integralmente no acto de outorga do contrato-promessa; a vendedora entregou ao réu, naquela data, as chaves do andar e o réu e a sua família nele passaram a instalar a sua economia comum; a sociedade vendedora chegou mesmo, posteriormente, a outorgar procuração irrevogável a favor do réu, mandatando-o para celebrar escritura de venda do andar consigo próprio”.
In casu, não há dúvidas que o opoente pagou a totalidade do preço da prometida compra e venda e foi investido na posse dos dez lugares de estacionamento em causa nestes autos de recurso jurisdicional; (cfr., as alíneas C), D) e E) dos factos assentes, e as respostas aos quesitos 1°, 20° e 21° da base instrutória).
E, então, como considerar que a posse do opoente era de “má fé”, (simplesmente), por força da “presunção” contida na parte final do art. 1184°, n.° 2 do C.C.M.?
Ressalvando – sempre – melhor opinião, parece-nos pois claro que a posse do opoente era exercida de “boa fé”, mostrando-se (claramente) ilidida a presunção prevista naquela norma.
Como se aponta no já citado Acórdão do S.T.J. de 14.02.2017 (Proc. n.° 724/09), e aqui citado a título de direito comparado em face da identidade de normas, “Certo que não estamos perante posse titulada (o contrato promessa não é meio legítimo de adquirir), mas bem perante posse não titulada. Certo também que a posse não titulada se presume (presunção juris tantum) de má-fé (art.s 1259º e 1260º do CCivil). Contudo, essa presunção de má-fé mostra-se claramente ilidida no caso vertente pela demonstração do contrário, isto é, pela demonstração da existência de boa-fé por parte dos Autores, pois que é óbvio que agiram necessariamente na ausência de conhecimento de estarem, ao adquirir a posse, a lesar o direito de outrem (v. nº 1 do art. 1260º do CCivil). Isto é assim porque, pela própria natureza das coisas, não pode falar-se em má-fé na aquisição da posse quando precisamente (como é o caso) é o próprio proprietário e possuidor legítimo que, traditando voluntariamente a coisa (v. a alínea b) do art. 1263º do CCivil), confere a posse ao novo possuidor. Por natureza, estamos neste caso perante uma posse de boa-fé, por isso que nunca se pode aqui colocar a hipótese de lesão do direito do terceiro. Vale aqui inteiramente, abstraindo da matéria de facto subjacente, o que se diz no seguinte inciso do supra citado acórdão deste Supremo Tribunal de 11 de dezembro de 2008: “Como no caso vertente é não titulada a posse dos recorridos, ela é legalmente presumida de má fé - presunção juris tantum - apenas ilidível por via da produção de prova pelos recorridos em contrário (…). Importa, quanto a este ponto, ter em conta que a posse é legalmente considerada de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la lesar o direito de outrem. Tendo em conta o modo, a que acima se fez referência, por que foi ao recorrido conferida a posse pela recorrente, possuidora que era em termos correspondentes ao direito de propriedade sobre as parcelas de terreno em causa, pela própria natureza das coisas, não faz sentido configurar a lesão do direito de quem lha conferiu ou de outrem. Por isso, também no caso não faz sentido configurar a ciência ou a ignorância dos recorridos quanto à lesão, ao adquirirem a posição de possuidores, da lesão do direito da recorrente ou de outrem (…)”.
E assim, dado que estamos perante posse de boa-fé, segue-se então que o prazo a considerar é o de 15 anos (art. 1296º do CCivil). E não o de 20 anos, suposto no acórdão recorrido”.
Aliás, esta era a posição já defendida por Pires de Lima e Antunes Varela, ao apontarem que “A ignorância de que se lesa o direito de outrem (a ausência de má fé) resulta, na generalidade dos casos, da convicção (positiva) de que se está a exercer um direito próprio, adquirido por título válido, por se desconhecerem, precisamente, os vícios da aquisição. Mas a lei não exige que assim seja sempre. O possuidor pode saber que o direito não é seu e estar convencido, apesar disso, de que, exercendo-o, não prejudica o verdadeiro titular. (…) Cremos que como exemplos de boa fé, com conhecimento dos vícios do direito, se podem citar estes: (…) prometeu-se vender um prédio que é logo entregue ao promitente comprador, ou vende-se o prédio, protelando-se a celebração da escritura para momento posterior. A posse que resulta destes negócios não está titulada, pois há vício de forma, mas o possuidor está de boa fé, embora conheça os vícios da aquisição, por estar convencido de que não lesa, com a sua posse, direitos alheios”; (in ob. cit., pág. 18, podendo-se, com especial relevo em face da alegação do A. de falta de matéria de facto da qual resultasse a boa fé da posse do opoente, ver ainda o Ac. do mesmo S.T.J. de 05.06.2012, Proc. n.° 4944/04, onde se faz notar o seguinte: “A posse diz-se
de boa-fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se de boa-fé a posse titulada e de má-fé a não titulada (Art.º 1260º n.º 1 e 2 do CC). Resulta, assim, do preceito que, apesar de intitulada, a posse pode ser tida de boa-fé, bastando ilidir-se a dita presunção legal. Por outro lado, para se provar a boa-fé, não tem de alegar-se que se ignorava, ao adquirir a posse, que se lesava o direito de outrem, isto é, não tem de repetir-se as palavras da lei, que, de resto, exprimem uma conclusão que deve ser integrada pela necessária factualidade concreta.
Por outras palavras, o que o interessado há-de alegar e provar para ilidir aquela presunção legal, é a factualidade da qual resulte a aludida ignorância.
Ora, no caso concreto, está provada a promessa unilateral de venda por parte da então proprietária do terreno em questão, o pagamento pelo falecido A. do preço correspectivo, a entrega da parcela pela promitente vendedora ao beneficiário da promessa, investindo-o, directamente, na posse da parcela, os actos materiais de posse exercidos desde então, sem oposição de ninguém, à vista de todas as pessoas e a convicção de agir na qualidade de verdadeiro dono do terreno.
Assim, deste acervo factual, afigura-se-nos evidente, a prova inequívoca da posse de boa-fé, pois o A. marido, perante tal factualidade, não podia senão ignorar que ao adquirir a posse, nas condições referidas, estava a lesar o direito da proprietária ou de quem quer que fosse”).
Ora, na situação em apreço, não corresponde à verdade que não existam factos nos autos que afastem a presunção de má fé resultante do art. 1184°, n.° 2 do C.C.M..
Com efeito, em face do teor das “alíneas C), D) e E) dos factos assentes” e das “respostas aos quesitos 1°, 20° e 21° da base instrutória”, afigura-se-nos inegável que a posse do opoente foi exercida de “boa fé”, (na convicção de não estar a lesar direitos de terceiros), na medida em que foi conferida pela R., titular inscrita no registo predial dos 10/262 avos (correspondentes aos 10 lugares de estacionamento) da fracção “ZR/C” após o pagamento da totalidade do seu preço (devido pelos referidos 10/262 avos).
E, nesta conformidade, vista está a solução para o presente recurso.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 12 UCs.
Registe e notifique.
Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 25 de Abril de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 68/2023 Pág. 12
Proc. 68/2023 Pág. 13