打印全文
Processo n.º 149/2020
(Autos de recurso em matéria cível)

Relator: Fong Man Chong
Data: 24 de Julho de 2024

ASSUNTOS:

- Reapreciação de provas pelo tribunal ad quem

SUMÁRIO:

I - A razoabilidade dos juízos de prova deve ser apreciada mediante a análise crítica do material probatório constante dos autos, incluindo as gravações ou transcrições dos depoimentos, tendo em conta o respectivo teor, o seu nicho contextual histórico-narrativo, bem como as razões de ciência e a credibilidade dos testemunhos.

II – É de admitir como provas fidedignas os depoimentos prestados pelas testemunhas que conheciam todo o circunstancialismo factual histórico e actual à luz do qual o ex-proprietário dum imóvel, sem descendentes, fez uma doação verbal do mesmo a favor dum sobrinho seu, ora Autor deste processo, passando este, a partir de então, exercer os poderes de facto sobre o imóvel, à vista de toda a gente, sem contestação ou oposição de ninguém e na convicção de que não lesava direitos de outrem há mais de 30 anos, o que constitui fundamento bastante para usucapir a propriedade do imóvel em causa, razão pela qual é de julgar procedente o pedido nestes termos formulado pelo Autor.


O Relator,

________________
Fong Man Chong

















Processo nº 149/2020
(Autos de recurso em matéria cível)

Data : 24 de Julho de 2024

Recorrente : - A

Recorridos : - B
- Herdeiros desconhecidos de C ou C1
- Interessados incertos

*
   Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

    Nota prévia:

1 – Em 23/04/2020 por este TSI foi proferida no âmbito destes autos a seguinte decisão:
     “Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.”
    
2 – Contra a referida decisão foi interposto recurso para o TUI, tendo este proferido o acórdão em 30/06/2023, que ordenou a devolução dos autos para o TSI para “os exactos termos e efeitos consignados” (ou seja, resolver a questão da existência de alguma contradição em determinada passagem do acórdão).
*

    Cumprido o “decidido” no acórdão do TUI, em 27/09/2023 foi proferida por este TSI nova decisão, contra a qual foi interposto novo recurso para o TUI, tendo a Exma. Relatora daquele Tribunal proferido nova decisão, entendendo que este TSI não deu cumprimento cabal à decisão anterior, ordenando a baixa dos autos para apreciar a questão de outra “nulidade” resultante de erro na apreciação de provas nos termos fixados pelo primeiro acórdão do TUI.
    Cumprido,
*

I - RELATÓRIO
    A, Recorrente, devidamente identificado nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 18/07/2019, dela veio, em 29/10/2019, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 155 a 186, tendo formulado as seguintes conclusões :
     1. O presente recurso tem por objecto a sentença proferida nos presentes autos, que julgou improcedente o pedido do autor, e com a qual este não se conforma, por entender existir contradição entre a fundamentação e a decisão e erro na apreciação dos factos e do direito.
     2. Através da pressente acção, o autor veio peticionar que fosse declarado, para todos os efeitos legais, designadamente para efeitos de registo na Conservatória do Registo Predial de Macau, como único e legítimo proprietário da fracção autónoma designada por "BR/C", do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau, com os nºs ... a ... da Travessa ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2****, por usucapião.
     3. Após citação edital dos réus, foi proferido despacho saneador pelo qual foi dispensada a selecção de matéria de facto e considerados controvertidos os factos alegados na petição inicial.
     4. Entende o recorrente, salvo melhor opinião, que a sentença recorrida é nula por conter oposição entre os factos considerados como provados e a decisão, conforme adiante se demonstrará - art. 571º, n° 1, al. a), do CPC.
     5. A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, que está dependente do exercício da posse - sctricto sensu e não a posse precária ou detenção -, durante um certo período de tempo - art. 1212° do CC.
     6. Ora, o tribunal a quo decidiu que não estavam reunidos os pressupostos legalmente exigidos da posse, para declarar a aquisição por usucapião sobre o imóvel a favor do recorrente.
     7. No entanto, deu como provado que o recorrente ocupa o dito imóvel e nele reside com a sua família, pelo menos desde 1985. Ora, este facto, por si mesmo, significa que ficou demonstrada a posse.
     8. A posse que interessa para efeitos da usucapião não é a posse causal, mas sim a posse formal, cujos elementos caracterizadores integram o corpus (elemento material) e o animus (intenção de exercer um determinado direito real como se fora seu titular).
     9. O corpus coincide com o elemento material e identifica-se com os actos materiais praticados sobre a coisa. Conforme referem os autores Álvaro Moreira e Carlos Fraga1, o corpus traduz-se no exercício de poderes de detenção, guardando e conservando a coisa em seu poder ou ocupando-a, no caso dos imóveis. Por outras palavras, o corpus traduz-se num poder de facto sobre a coisa, que no caso dos imóveis será o de ocupar, manter, dispor e fruir dos mesmos.
     10. Tendo ficado provado que o recorrente reside, com a sua família, no imóvel em causa, pelo menos desde 1985, até 2015, altura em que passou a estar internado numa casa de repouso, em virtude da sua idade - factos 5 e 7-, bem como os factos 6, 9 e 10, significa que ficou demonstrado que o recorrente tem o poder de facto sobre o imóvel em causa, ocupando-o, mantendo-o, dispondo e fruindo do mesmo, donde resulta de forma incontroversa que tem o corpus.
     11. Acresce que, para além do exercício material de um poder de facto sobre a coisa é necessário também existir uma vontade de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados, ou seja, além do corpus, que representa o elemento físico, a posse carece de ser acompanhada do animus, que se trata de um elemento de natureza psicológica e se traduz na intenção.
     12. Como ilustração do animus é comum fazer-se a distinção da intensão entre um arrendatário ou comodatário e um proprietário. Essa distinção não se encontra no elemento material, já que todos têm a ligação física com o bem, mas sim no elemento psicológico, visto que a intenção de exercer o direito de propriedade recai somente no proprietário.
     13. Por esse motivo torna-se evidente que um arrendatário ou comodatário, apesar de terem o corpus, não têm animus e, como tal, não poderão ter a posse sobre o imóvel que ocupam.
     14. Contudo, se o elemento físico - o corpus - é relativamente fácil de provar, já o elemento psicológico - o animus - pode assim não ser.
     15. Conforme flui do acórdão do Tribunal de Segunda Instância (TSI), de 9 de Fevereiro de 2012, proferido no Proc. n.º 985/2010, e doutrina nele transcritos, da mera detenção / ocupação do bem - o corpus - infere-se o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados - o animus - quando estes são precisamente actos da vida quotidiana coincidentes aos de qualquer proprietário.
     16. Como é evidente, sendo o animus resultante da vontade e, portanto, um elemento psicológico e totalmente subjectivo, torna-se difícil ou mesmo impossível demonstrar a sua materialização a partir da utilização/ocupação de um imóvel, apesar de sobre ele serem praticados actos susceptíveis de se considerem inerentes aos de um proprietário.
     17. Acresce que, a manifestação da vontade de possuir o bem não tem necessariamente de ser de forma expressa, bastando que resulte da prática de actos correntes que são percepcionados exteriormente como aqueles que se atribuem a um efectivo proprietário.
     18. Por outro lado, verifica-se que o legislador teve o cuidado de estabelecer no art. 1176°, nº 2, do CC. uma presunção legal, segundo a qual presume-se que detém a posse aquele que exerce o poder de facto sobre a coisa, o que acentua a correspondência entre o corpus e o animus.
     19. Naturalmente que, conforme é salientado pelo TSI, ao representar uma inversão do ónus da prova a presunção da verificação da posse poderá ser ilidida, mediante a invocação de factos contrários à pretensão do autor-art. 337, n° 1, do CC.
     20. É nesse contexto que se entende que cabe à contraparte demonstrar que a ocupação do imóvel não é feita com a intenção de o possuir - art. 343° do CC. Sucede que, não foram nestes autos alegados e muito menos provados quaisquer factos que afastassem tal presunção, designadamente que o autor e ora recorrente estivesse a exercer o poder de facto sobre o imóvel por outros motivos, como sendo por arrendamento ou comodato ou até no interesse de outrem - art. 407°, n° 2, al. b), do CPC.
     21. Sendo assim, estando demonstrado nos autos que o recorrente ocupa e exerce o poder de facto sobre o imóvel em causa, decorre dos factos provados que, além do corpus (os actos materiais praticados sobre a coisa) o recorrente tem o animus (o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados), estando, assim, verificados, em simultâneo, os elementos caracterizadores da posse.
     22. Assim, e na esteira do acima citado acórdão, havendo corpus, não é necessário deslindar se há animus, porque não ficou demonstrado o contrário.
     23. Em suma, exercendo a posse há mais de 15 anos, resultam verificados os pressupostos necessários para declarar a aquisição por usucapião a favor do recorrente.
     24. Nestes termos, e salvo melhor opinião, atentos os factos considerados como provados, deveria o tribunal recorrido considerar verificada a posse e assim os pressupostos necessários para declarar a aquisição por usucapião a favor do recorrente
     25. Sem prescindir, considera o recorrente que, salvo o devido respeito, o tribunal a quo apreciou incorrectamente a prova produzida em sede de audiência e julgamento.
     26. Entendeu, o tribunal a quo que, apesar de ter ficado provada a ocupação do imóvel, não pode considerar que o autor tenha o corpus, em virtude de este não ter demonstrado que era sobrinho do titular inscrito do imóvel em questão, C ou C1, e que este lho doou em 1990, data a partir da qual passou a actuar com a convicção de ser proprietário do mesmo, apontando que essa ocupação poderia decorrer da tolerância do proprietário como um contrato de arrendamento ou comodato.
     27. Ora, salvo o devido respeito, o recorrente não pode concordar com tal asserção, por duas razões essenciais:
     28. A primeira, porque parece ser entendimento do tribunal que cabia ao recorrente demonstrar que a ocupação do imóvel não decorria da tolerância do proprietário, designadamente em virtude de um arrendamento ou comodato.
     29. Sucede que, esse ónus não cabe ao autor e ora recorrente, mas sim aos réus, conforme acima já foi referido, visto que, além de se tratarem de factos negativos, no caso impedem, extinguem ou modificam o direito invocado - art. 412°, nº 3, 2ª parte, do CPC.
     30. Ora, uma vez que essa constitui matéria de facto e não de direito, a qual não foi invocada e muito menos provada por quem caberia - aos réus -, o tribunal a quo não poderia nela se sustentar para considerar a não verificação do corpus (quando, certamente por lapso, quereria referir-se ao animus).
     31. Assim, e salvo melhor opinião, entende o recorrente que deveria ter sido considerada provados os factos demonstrativos dos pressupostos da posse.
     32. A segunda razão deve-se a que, não obstante o acima exposto, entende o recorrente que, salvo melhor opinião, a relação de parentesco com o C ou C1 e a doação do imóvel deveria ter ficado demonstrada através dos depoimentos prestados por todas as testemunhas.
     33. Conforme decorre dos depoimentos, as duas primeiras testemunhas confirmaram, desde logo e sem qualquer dúvida ou hesitação, que o C ou C1 era tio do A. e aqui recorrente, o que por si só atesta a referida situação de parentesco.
     34. Aliás, a primeira testemunha esclareceu ainda o tribunal que o C ou C1 residia em Hong Kong e não era casado nem tinha filhos, tendo deixado como únicos descendentes os seus sobrinhos, A e B, respectivamente aqui A. e R.
     35. Subsequentemente, as testemunhas, que conhecem o A. e a sua família e frequentam a sua casa há mais de 20 anos, afirmaram que o C ou C1 doou o imóvel sito na Travessa ......, n° ..., R/c-B ao A. e ora recorrente.
     36. Mais, a primeira testemunha esclareceu ainda o tribunal que o C ou C1 doou os seus imóveis sitos em Hong Kong ao seu sobrinho B, e os situados em Macau ao seu outro sobrinho A e ora A.
     37. De resto, todas as testemunhas inquiridas foram peremptórias ao afirmarem que o A. sempre manifestou a convicção e agiu como se fosse o proprietário do imóvel, assumindo-se perante familiares, vizinhos e conhecidos como tal e tratando de todos os assuntos conexos com a propriedade do mesmo.
     38. Sucede que, não obstante estes depoimentos colhidos em audiência terem demonstrado que as testemunhas os prestaram de forma espontânea e com conhecimento directo e abrangente sobre os factos, o tribunal a quo entendeu não os acolher totalmente, justificando com a sua relação - supostamente familiar - com o recorrente, bem como a faltas de documentos legais de suporte.
     39. Ora, apelando ao princípio da livre apreciação da prova - art. 558°, n° 1, do CPC -, o tribunal deve apreciar livremente as provas segundo a sua prudente convicção, de acordo com um critério de probabilidade lógica.
     40. Com efeito, orientado pela descoberta da verdade material, o tribunal aprecia livremente a prova de acordo com a sua convicção, a qual, sendo pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável, ou seja, dependem da credibilidade que merecem ao julgador os meios de prova, tendo em conta juízos de valor, e, num segundo plano, as deduções e induções a partir dos factos probatórios, que se baseiam na correcção do raciocínio, de acordo com as regras da lógica, do princípio da experiência e conhecimentos científicos.
     41. No caso em apreço, o TJB entendeu nem sequer conferir credibilidade aos depoimentos das testemunhas, pela relação que têm com o recorrente, não tendo, portanto, retirado qualquer alcance aos próprios depoimentos.
     42. Porém, desde logo a lei não exige formalidade especial para prova da relação de parentesco entre o C ou C1 e o A., pelo que nada obsta a que a mesma seja testemunhal- art. 558°, n° 2, do CPC.
     43. Por outro lado, salvo o devido respeito, contrariamente ao entendimento do tribunal, a relação próxima que as primeiras duas testemunhas têm com o A. é precisamente o que lhes permite ter um acesso privilegiado ao seio familiar e confere um conhecimento directo sobre os assuntos mais pessoais e reservados.
     44. Seria, aliás, estranho que não fossem os membros da família mais chegada quem tivesse conhecimento de assuntos que, atenta a sua natureza privada e familiar, apenas são discutidos no seu seio e intimidade, tais como as relações com os demais membros da família e as doações e outros arranjos entre entes.
     45. Pelo que, e sempre ressalvando o devido respeito, entende o recorrente que é precisamente pela sua relação com as primeiras testemunhas que estas deveriam ter merecido toda a credibilidade e os seus depoimentos acolhidos sem qualquer reserva, pelo tribunal a quo.
     46. Por outro lado, salvo melhor entendimento, os depoimentos colhidos no julgamento foram suficientemente lúcidos e esclarecedores, deles permitindo fazer uma demonstração de acordo com as regras da lógica, do princípio da experiência, dos factos que se propunham provar.
     47. Assim, deveriam ter-se considerados como provados os factos vertidos nos artigos 3º, 4º, 12º, 13º e 14º.
     48. Finalmente, considera o recorrente que, ressalvando sempre o devido respeito, o tribunal não aplicou convenientemente o direito, porquanto, tendo em conta o que resulta do já acima exposto, os pressupostos necessários para a verificação da posse já se encontram provados nestes autos, sendo indiferente para a decisão sobre o mérito da causa demonstrar a relação de parentesco entre o C ou C1 e o Autor, assim como a doação do primeiro para o segundo.
     49. Efectivamente, conforme já foi acima exposto, ambos os elementos caracterizadores da posse - o corpus e o animus - já resultam provados nestes autos, o que decorre da prova da ocupação do imóvel.
     50. A posse, por seu turno, pode ser titulada ou não titulada, de boa fé ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, caracteres que influenciam o prazo necessário à verificação da usucapião ou o inicio da respectiva contagem - art. 1219° e ss., do CC.
     51. Ora, como se verifica no caso sub judice, o Tribunal deu como provado, que o A. pratica actos materiais e exerce o poder de facto sobre o prédio a partir de data não apurada, mas não posterior a 1984 ou 1985, e ninguém alegou ou sequer invocou que a posse fosse violente ou oculta - aliás, o que se demonstra pelos depoimentos prestados nos autos é precisamente o inverso, i.e., que a posse era pública e pacífica.
     52. Desde 1985 já passaram mais de 35 anos, período que ultrapassa largamente o de 20 anos previsto para a posse de má fé.
     53. Pelo que, salvo melhor opinião, deveriam ter sido considerados, desde logo, atentos os factos considerados provados, reunidos os pressupostos para declarar o Autor como legítimo proprietário do imóvel em apreço, por usucapião, pelo que, não o fazendo, foi a lei erradamente aplicada.
*
    Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.

* * *
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
    Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
    O processo é o próprio e não há nulidades.
    As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
    Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* * *
  III – FACTOS ASSENTES:
    A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
    - Através de escritura pública outorgada em 23 de Dezembro de 1964, C ou C1 adquiriu a fracção autónoma designada por “BR/C” do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau, com os nºs ... a ... da Travessa ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2****, registo na matriz predial sob o n.º ****7, com o valor matricial de MOP28.080,00, encontrando-se a aquisição registada em nome de C ou C1 na Conservatória do Registo Predial sob a inscrição n.º 3****.
    - Em data não apurada, mas não posterior a 1984 ou 1985, o Autor passou a viver no imóvel como sua residência e da sua família.
    - De Setembro de 1991 a Agosto de 2001, parte do imóvel foi utilizado como instalações da empresa do filho do Autor, denominada “Centro Computadores XX”.
    - O referido imóvel serviu como residência do Autor até, pelo menos, 2015, passando o Autor a estar internado numa casa de repouso, em virtude da sua idade.
    - O Autor chegou a fazer a obras de desentupimento das canalizações da fracção autónoma.
    - Procedeu ao pagamento dos consumos de electricidade, água e de telefone para o imóvel.

* * *
IV – FUNDAMENTAÇÃO
    Para além da fundamentação e decidido no acórdão anterior, passemos a ver uma outra questão suscitada pelo Recorrente nas suas conclusões deste recurso:
    “(…)
     47. Assim, deveriam ter-se considerados como provados os factos vertidos nos artigos 3º, 4º, 12º, 13º e 14º.
    (…)”.
    Ou seja, o Recorrente veio a impugnar a matéria de facto, defendendo que as matérias constantes dos artigos 3º, 4º, 12º, 13º e 14º da PI deviam ficar PROVADAS.

    Ora a audiência de julgamento teve lugar em 10/6/2019, em que pela Exma. Juiz foi proferido o despacho que fixou a matéria de facto assente, altura em que nem o Autor nem o MP em representação dos interessados incertos apresentou reclamações contra a decisão sobre a matéria de facto.
    A acta tem o seguinte teor:
“審判聽證議事錄
通常宣告案,第CV2-18-0015-CAO 號
日期及地點:2019年6月10日,下午3時20分於本法院18樓14號室。
主審法官:D
檢察官:E,代表本案之第二及第三被告。
書記員:F及G
原告之訴訟代理人:H律師
出席人士:原告之訴訟代理人H律師。
*
     到了預定時間,主審法官依法宣告重開審判聽證,並將有關裁判副本交予原告之訴訟代理人及檢察官。
     隨後,原告之訴訟代理人及檢察官查閱上指批示內容後均表示無任何異議。
     原告之訴訟代理人表示不放棄提交法律陳述之期間。
     檢察官表示放棄提交法律陳述之期間。
     *
     接著,主審法官作出批示如下:
     適時將卷宗作出送閱,以便製作書面判決。
     *
     將上述決定通知所有在場人士,各人均表示清楚明白有關內容。
     本聽證於下午3時35分結束。
     為備作據,特繕立此紀錄,並簽署作實。”
*
    Agora, em sede de recurso é que o Autor pretende que sejam acrescentados factos considerados provados para fundamentar a decisão a proferir pelo tribunal de recurso.
    Os factos que pretendem ser PROVADOS constam dos seguintes artigos da PI:
“3.º
Em 1990, C ou C1 doou verbalmente a referida fracção autónoma ao ora Autor, e entregou-lhe a posse da mesma.
4.º
A partir de então, o Autor passou a praticar sobre o imóvel todos os actos correspondentes ao exercício dos direitos de propriedade com a convicção de que era proprietário do mesmo.
(...)
12.º
Ao exercer os actos de posse sobre o imóvel, a Autor esteve sempre convicto de ser o legítimo proprietário do mesmo.
13.º
Posse que foi adquirida sem recurso à violência e coacção, moral ou física, e sem oposição de terceiros.
14.º
Tendo a Autor, durante todos os anos em que exerce a posse sobre o imóvel, actuado convencido de que a mesma não lesava - nem lesa - direitos de terceiros. “
*
    A propósito da impugnação da matéria de facto, o legislador fixa um regime especial, constante do artigo 599º (Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto) do CPC, que tem o seguinte teor:
     1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
     a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
     b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
     2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
     3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
     4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º

    Ora, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
    É, pois, em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC.
*
    No que respeita aos critérios da valoração probatória, nunca é demais sublinhar que se trata de um raciocínio problemático, argumentativamente fundado no húmus da razão prática, a desenvolver mediante análise crítica dos dados de facto veiculados pela actividade instrutória, em regra, por via de inferências indutivas ou analógicas pautadas pelas regras da experiência colhidas da normalidade social, que não pelo mero convencimento íntimo do julgador, não podendo a intuição deixar de passar pelo crivo de uma razoabilidade persuasiva e susceptível de objectivação, o que não exclui, de todo, a interferência de factores de índole intuitiva, compreensíveis ainda que porventura inexprimíveis. Ponto é que a motivação se norteie pelo princípio da completude racional, de forma a esconjurar o arbítrio2.
    É, pois, nessa linha que se deve aferir a razoabilidade dos juízos de prova especificamente impugnados, mediante a análise crítica do material probatório constante dos autos, incluindo as gravações ou transcrições dos depoimentos, tendo em conta o respectivo teor, o seu nicho contextual histórico-narrativo, bem como as razões de ciência e a credibilidade dos testemunhos. Só assim se poderá satisfazer o critério da prudente convicção do julgador na apreciação da prova livre, em conformidade com o disposto, designadamente no artigo 390º do CCM, em conjugação com o artigo 558º do CPC, com vista a obter uma decisão que se possa ter por justa e legítima.
    Será com base na convicção desse modo formada pelo Tribunal de recurso que se concluirá ou não pelo acerto ou erro da decisão recorrida.
    Repita-se, ao Tribunal de recurso não compete reapreciar todas as provas produzidas e analisadas pelo Tribunal a quo, mas só aqueles pontos concretos indicados pelo Recorrente como errados ou omissos!
*
    Ora, a audiência de julgamento foi gravada, logo é aplicável o nº 2 do artigo 599º acima citado que manda:
     2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
    Para esta finalidade, ficaram registados os seguintes depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas no tribunal de 1ª instância:
    “(…)
    No depoimento prestado durante a audiência de discussão e julgamento, a testemunha I, declarou o seguinte (ficheiro Recorded on 27 -May-2019 at 11.55.39 (2TS0NFMG03020319)):
    • Logo na inquirição aos costumes, a testemunha afirmou que é genro do A., o R. B é o irmão mais novo deste e o C ou C1 é tio de ambos - 0'00";
    • De seguida, a testemunha declarou que conheceu o A. em 1984, na altura em que se começou a dar com a filha deste (sua actual esposa), e que já residia no imóvel objecto destes autos - 4'50";
    • A testemunha sempre teve a convicção que o imóvel pertencia ao sogro e aqui A., através do comportamento do A., até que este transmitiu à testemunha que necessitava de contratar um advogado para tratar da transferência da propriedade, o que só não o fez por complicações com a propriedade horizontal do prédio, mais esclarecendo que o A. sempre agiu com a convicção de ser o proprietário da habitação e que não a estava a utilizar em nome de outrem - 6'00";
    • Questionado se tinha o C ou C1 tinha oferecido o imóvel ao sobrinho, aqui A., a testemunha confirmou que sim, motivo pelo qual o A. pretendia transferir a propriedade - 7'30";
    • Mais confirmou a testemunha que os vizinhos do A. assumiam que este era proprietário do imóvel, porquanto sempre se comportou como tal, tratando, inclusivamente dos assuntos relacionados com o condomínio - 10'40";
    • A instâncias da Mma. Juíza, a testemunha explicou, na simplicidade das suas palavras, que o tio do A., C ou C1, permitiu que este vivesse na casa, o que já ocorria desde que tinha vindo para Macau, antes dos anos 1980 - 13'00";
    • Mas, conforme explicou ainda ao tribunal, o C ou C1 pretendia transferir a propriedade do imóvel ao A. - 16'50";
    • E finalmente, a testemunha descreveu ao tribunal que o C ou C1 não tinha descendentes directos, mas tinha dois sobrinhos, o B e o ora A., tendo doado ao primeiro os imóveis situados em Hong Kong e ao segundo os situados em Macau.
    No depoimento que a testemunha K prestou, esta declarou o seguinte (ficheiro Recorded on 27-May-2019 at 12.22.35 (2TS1M%FG03020319)):
    • Ainda na inquirição aos costumes, a testemunha declarou que conhecia o A. e que esta era o sogro do seu irmão, a 1ª testemunha, I - 0'00";
    • De seguida, a testemunha confirmou que conhecia o A. desde 1985/1986, e que já residia no imóvel objecto dos presentes autos - 2'10";
    • E que o C ou C1 era tio do A. - 4'40";
    • Subsequentemente, a testemunha expressou que de acordo com a sua percepção, o imóvel tinha sido doada pelo C ou C1 ao A. - 5'40";
    • Mais afirmou a testemunha que era sabido que o A. residia no imóvel há décadas, sem a oposição de ninguém que o imóvel fosse seu - 6'50";
    • Confirmou ainda a testemunha que o A. sempre viveu no imóvel em apreço com a convicção de que esta lhe pertencia e que a sua ocupação não lesava ninguém, tendo ainda autorizado o seu filho nela a instalar um negócio de computadores - 9'35".
    No depoimento da testemunha J, esta declarou o seguinte (ficheiro Recorded on 27-May-2019 at 12.22.35 (2TS1M%FG03020319)):
    • Inquirido aos costumes, a testemunha declarou que conhece o A. há mais de 20 anos, altura em que estudou computadores com o filho deste, no imóvel descrito nos autos - 15'40";
    • Seguidamente, a testemunha afirmou que a filha do A. lhe tinha informado que o imóvel em causa fora doado ao A., pelo tio deste, que residia em Hong Kong - 20'00";
    • Mais relatou a testemunha que sempre ouviu que o imóvel pertencia ao A. - 22'00";
    • Finalmente, a testemunha relatou ainda que sempre viu o A. a comportar- se como dono do imóvel, e que a vizinhança o via igualmente como tal - 23'20.
    Ora, conforme decorre das acima transcrições, as duas primeiras testemunhas confirmaram, desde logo e sem qualquer dúvida ou hesitação, que o C ou C1 era tio do A. e aqui recorrente, o que por si só atesta a referida situação de parentesco.
    (…)”.
    Ora, objectivamente analisado todo o circunstancialismo rodeado do caso, parece-nos que, à luz da lógia das coisas, o Autor se tem comportado como dono do imóvel há vários anos e ninguém veio a contestar tal facto, pois:
    - Não há prova de que o Autor chegasse a pagar rendas ou quantias a terceiro pela ocupação do imóvel;
    - Inexistem provas de que o Autor praticou actos ligados ao imóvel em nome alheio e por conta de terceiro;
    - Ninguém veio a contestar a acção com provas concretas para se opor à pretensão do Autor;
    - Pelo contrário, ficou provado que o Autor chegou a praticar vários actos e gastou quantias com vista as benfeitorias do imóvel.
    Pelo que, com base nos elementos acima transcritos, este Tribunal de recurso passou a consignar os seguintes factos provados nos seguintes termos:
“3.º
Em 1990, C ou C1 doou verbalmente a referida fracção autónoma ao ora Autor, e entregou-lhe a posse da mesma.
    PROVADO QUE em 1990, C ou C1 doou verbalmente a referida fracção autónoma ao ora Autor, passando este a ocupar o imóvel.
4.º
A partir de então, o Autor passou a praticar sobre o imóvel todos os actos correspondentes ao exercício dos direitos de propriedade com a convicção de que era proprietário do mesmo.
    PROVADO QUE a partir de então, o Autor passou a praticar sobre o imóvel todos os actos correspondentes ao exercício dos direitos de “propriedade” com a convicção de que era dono do mesmo.

(...)
12.º
Ao exercer os actos de posse sobre o imóvel, o Autor esteve sempre convicto de ser o legítimo proprietário do mesmo.
    PROVADO QUE ao exercer os poderes de facto sobre o imóvel, o Autor esteve sempre convicto de ser o legítimo dono (“proprietário”) do mesmo

13.º
Posse que foi adquirida sem recurso à violência e coacção, moral ou física, e sem oposição de terceiros.
    PROVADO QUE o poder de facto sobre o imóvel (posse) foi adquirido pelo Autor sem recurso à violência e coacção, moral ou física, e sem oposição de terceiros.
14.º
Tendo o Autor, durante todos os anos em que exerce a posse sobre o imóvel, actuado convencido de que a mesma não lesava - nem lesa - direitos de terceiros. “
    PROVADO QUE durante todos os anos em que o Autor exerce o poder de facto (posse) sobre o imóvel, ele ficava convencido de que a actuação não lesava direitos de ninguém.
*
    Pelo que, usando da faculdade conferida pelos artigos 599º e 629º/1-a) do CPC, este TSI procedeu à correcção da matéria de facto nos termos acima consignados, julgando-se procedente esta parte do recurso interposto pelo Autor.
*
    Prosseguindo,
    Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
I – Relatório:
A, viúvo, de nacionalidade chinesa, residente em Macau na Travessa ......, nºs ... a ..., BR/C;
vieram intentar a presente
Acção Ordinária
contra
B, residente em Hong Kong, em parte incerta; e
Herdeiros desconhecidos de C ou C1, e;
Interessados Incertos;
com os fundamentos apresentados constantes da petição inicial de fls.2 a 6,
concluiu pedindo que fosse julgada procedente por provada a presente acção e o Autor fosse declarado, para todos os efeitos legais designadamente, registar o direito de propriedade a seu favor na referida Conservatória, como único e legítimo proprietário da fracção autónoma designada por BR/C do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau com os nºs ... a ... da Travessa ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2**** por o ter adquirido por usucapião.
*
Citado pessoalmente o 1º Réu, Pun Tin Kai, este não veio contestar.
*
Procedeu-se à citação edital dos Réus, herdeiros desconhecidos de C ou C1 e os interessados incertos os quais não vieram contestar.
Procedeu-se à citação do Ministério Público em representação dos Réus e dos interessados incertos nos termos do artigo 51º do CPC, não tendo sido apresentada qualquer contestação.
*
Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária.
*
Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
***
II – Factos:
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
(…)
***
III – Fundamentos:
Cumpre analisar a matéria que vem alegada, os factos provados e aplicar o direito.
*
Legitimidade processual dos interessados incertos
Nos termos do artigo 58º do CPC, “Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurado pelo autor.”
Pede o Autor que seja declarado proprietário da fracção autónoma designada por BR/C do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau com os nºs ... a ... da Travessa ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2****, objecto da presente acção, inscrito em nome de C ou C1.
Assim, a relação material controvertida só pode estabelecer-se entre o Autor e C ou C1 ou entre o Autor e os herdeiros de C ou C1, se este tiver já falecido.
É, portanto, manifesto que os Interessados Incertos não são partes legítimas porque nada consta dos autos que permita qualificá-los como sujeitos da relação material controvertida.
Assim, é de julgar os Interessados Incertos partes ilegítimas.
*
As restantes partes são dotadas de legitimidade "ad causam". O processo é o próprio. Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação "de meritis".
*
Usucapião
Pede o Autor que lhe seja reconhecido a aquisição originária da fracção autónoma designada por “BR/C”, objecto da presente acção, por meio de usucapião.
Para fundamentar a sua pretensão, alega o Autor e o 1º Réu eram sobrinhos de C ou C1, proprietário inscrito do imóvel, que faleceu em 10 de Janeiro de 1991; que, em 1990, C ou C1 lhe doou verbalmente a fracção autónoma entregando-lha; que a partir daí, o Autor passou a actuar como se fosse proprietário do imóvel tendo o Autor passado a utilizar o imóvel como sua residência e da sua família; que de Setembro de 1991 a Agosto de 2001, permitiu que parte do imóvel foi utilizado como instalações da empresa do seu filho; que o imóvel serviu como sua residência do Autor até 2015, altura em que passou a estar internado numa casa de repouso; que o Autor suportou as despesas das obras de conservação e reparação do mesmo pagou as despesas relativas ao consume de electricidade e água e ao serviço de telefone bem como as contribuições prediais que entretanto se venceram; que esses actos têm sido praticados à vista de toda a gentes, sem recurso a violência e coacção moral ou física.
*
“Posse é o poder que se manifesta quando alguém actual por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.” – artigo 1175º do CC.
Conforme Álvaro Moreira e Carlos Fraga, in Direitos Reais, Livraria Almedina, Coimbra, pgs 181, 189 a 190, “Dos artºs 1251º e 1253º do CC (a que correspondem aos artigos 1175º e 1177º do CC de Macau), verifica-se que a posse exige o “corpus” e o “animus” identificando-se o corpus “... como os actos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa” e traduzindo o animus “... na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.”.
*
Dos factos provados, vê-se que, em data não apurada, mas não posterior a 1984 ou 1985, o Autor passou a viver no imóvel com sua residência e da sua família tendo deixado de aí viver, pelo menos, a partir de 2015 e que chegou a fazer obras de desentupimento das canalizações da fracção autónoma e pagar as despesas de electricidade, água e telefone do imóvel.
Portanto, o Autor não logrou demonstrar que era sobrinho do proprietário inscrito, que o imóvel lhe tinha sido doado em 1990, que, a partir, de então, passara a actuar como proprietário do imóvel com a convicção de o ser pagando a respectiva contribuição predial e autorizando o seu filho a instalar uma empresa no imóvel.
Perspectivando a situação a partir dos factos provados indicados no penúltimo parágrafo, nada permite concluir pela verificação do corpus possidendi acima referido. Pois, os actos praticados pelo Autor sobre o imóvel podem ser praticados por qualquer pessoa que esteja a residir no imóvel designadamente por tolerância do seu proprietário em virtude de um contrato de arrendamento ou de comodato.
O mesmo se diz em relação ao animus possidendi porque não existe nenhum facto em que o Autor se pode basear para se auto-intitular proprietário do imóvel. É que, o facto por si alegado para fundamentar essa atitude, o de lhe ter sido doado pelo proprietário, seu tio, não foi dado como demonstrado.
Assim, nem o corpus possidendi nem o animus possidendi está verificado para permitir ao Autor aceder à qualidade de possuidor.
Ora, não estando demonstrada a posse, nada permite concluir pela verificação dos demais requisitos para a aquisição do imóvel por via da usucapião, pois estes requisitos tem a ver com as características e a duração da posse.
Pelo que, sem necessidade de se debruçar sobre os demais requisitos, o pedido do Autor não pode deixar de improceder.
***
IV – Decisão (裁決):
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção por não provada e, em consequência, decide:
1. Absolver os Interessados Incertos da presente instância; e
2. Absolver os Réus, Be Herdeiros desconhecidos de C ou C1, do pedido formulado pelo Autor, A.
Custas pelo Autor.
Notifique e Registe.
*
據上論結,本法庭裁定訴訟理由不成立,判決如下:
1. 駁回原告A針對不確定利害關係人提出之起訴;
2. 駁回原告針對被告B及C或C1之不知明繼承人提出之請求,開釋此等被告。
訴訟費用由原告承擔。
依法作出通知及登錄本判決。
*
    Quid Juris?
    Ora, por força da nova decisão sobre a matéria de facto (acrescentaram-se novos factos provados) proferida por este TSI nos termos acima consignados, a decisão recorrida obviamente não pode ser mantida, já que estão reunidos todos os pressupostos legalmente exigidos para usucapir pelo Autor a propriedade de imóvel.
    É de recordar-se que a “posse é o poder que se manifesta quando alguém actual por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.” – artigo 1175º do CC.
Conforme Álvaro Moreira e Carlos Fraga, in Direitos Reais, Livraria Almedina, Coimbra, pgs 181, 189 a 190, “Dos artºs 1251º e 1253º do CC (a que correspondem aos artigos 1175º e 1177º do CC de Macau), verifica-se que a posse exige o “corpus” e o “animus” identificando-se o corpus “... como os actos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa” e traduzindo o animus “... na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.”.
    Nos autos ficaram provados os seguintes factos:
    - Através de escritura pública outorgada em 23 de Dezembro de 1964, C ou C1 adquiriu a fracção autónoma designada por “BR/C” do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau, com os nºs ... a ... da Travessa ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2****, registo na matriz predial sob o n.º ****7, com o valor matricial de MOP28.080,00, encontrando-se a aquisição registada em nome de C ou C1 na Conservatória do Registo Predial sob a inscrição n.º 3****.
    - Em data não apurada, mas não posterior a 1984 ou 1985, o Autor passou a viver no imóvel como sua residência e da sua família.
    - De Setembro de 1991 a Agosto de 2001, parte do imóvel foi utilizado como instalações da empresa do filho do Autor, denominada “Centro Computadores XX”.
    - O referido imóvel serviu como residência do Autor até, pelo menos, 2015, passando o Autor a estar internado numa casa de repouso, em virtude da sua idade.
    - O Autor chegou a fazer a obras de desentupimento das canalizações da fracção autónoma.
    - Procedeu ao pagamento dos consumos de electricidade, água e de telefone para o imóvel.
*
    Provou-se ainda:
“3.º
    Em 1990, C ou C1 doou verbalmente a referida fracção autónoma ao ora Autor, passando este a ocupar o imóvel.
4.º
    A partir de então, o Autor passou a praticar sobre o imóvel todos os actos correspondentes ao exercício dos direitos de “propriedade” com a convicção de que era dono do mesmo.

(...)
12.º
    Ao exercer os poderes de facto sobre o imóvel, o Autor esteve sempre convicto de ser o legítimo dono (“proprietário”) do mesmo

13.º
    O poder de facto sobre o imóvel (posse) foi adquirido sem recurso à violência e coacção, moral ou física, e sem oposição de terceiros.

14.º
    Durante todos os anos em que o Autor exerce o poder de facto (posse) sobre o imóvel, ele ficava convencido de que a sua actuação não lesava direitos de ninguém.
*
    Pelo que, usando da faculdade conferida pelos artigos 599º e 629º/1-a) do CPC, este TSI procedeu à correcção da matéria de facto nos termos acima consignados, julgando-se procedente esta parte do recurso interposto pelo Autor.
    
Face ao quadro factual acima descrito, é de concluir-se que há, portanto, o corpus possidendi.
Desses mesmos factos pode-se retirar a conclusão de que o Autor tinha a convicção de estar a actuar como “proprietário” do imóvel em causa. Verifica-se também o animus possidendi.
Assente que o Autor exerce sobre o imóvel poderes em tudo semelhante aos de um “proprietário” com a convicção de a ser, em princípio, deve considerá-lo possuidor do imóvel. Pois, estão presentes quer o corpus quer o animus possidendi.
*
Nos termos do artigo 1187º, a), do CC, “A posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito.” (sublinhado nosso).
Dos factos provados, vê-se que o Autor vem praticando os actos materiais acima referidos desde 1990 há mais de 30 anos.
Conforme Oliveira Ascensão, Direitos Reais, Centro de Estudos de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa-1971, pg 240 a 241, “É então necessário que se pratiquem actos de intensidade suficiente para se afirmar que o sujeito colocou a coisa debaixo do seu poder. ... É pois natural que a investidura exija uma intensidade maior que o mero protrair da situação constituída. Di-lo claramente o artº 1263º, a) (o correspondente ao artigo 1187º, a), do CC de Macau),ao prever entre as causas de aquisição da posse a prática reiterada dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito. Em todo o caso, supomos que essa prática reiterada se refere mais à intensidade que à duração: se alguém subtrai um anel e o põe no bolso ou encontra um fóssil e o guarda em casa, consumou-se tudo o que era necessário para o apossamento.”
Tendo em conta esses ensinamentos, não restam dúvidas de que a exigida prática reiterada, consubstanciada na intensidade dos actos materiais praticados pelo Autor, ocorreu efectivamente.
No que se refere ao requisito da publicidade, ficou assente que o Autor é reconhecido por pessoas (vizinhas) como dono do prédio sem contestação ou oposição de ninguém e na convicção de que não lesava direitos de outrem há mais de 30 anos.
Segundo António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II Volume, Centro de Estudos Fiscais da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, Ministério das Finanças, Imprensa Nacional-Casa de Moeda, 1979, pg 664, “O termo ‘publicidade’ tem, contudo, de ser tomado com cuidado. Deduzimos do artigo 1267º, nº 2, (o correspondente ao artigo 1192º, nº 2, do CC de Macau), que a posse se pode constituir ocultamente, em relação à comunidade social: deve ser conhecida apenas pelo possuidor anterior, prejudicado pela nova posse. Pensamos, por isso, que a publicidade é, aqui, o conhecimento da situação por parte dos interessados.”
Ora, tendo o Autor praticado os actos acima referidos sem qualquer oposição de quem quer que seja, conclui-se que os actos são públicos.
*
Dispõe o artigo 1219º do CC que “Sendo a posse titulada e havendo registo do título de aquisição, a usucapião tem lugar: a) Quando a posse, sendo de boa fé, tiver durado por 10 anos, contados desde a data do registo; ou b) Quando a posse, ainda que de má fé, houver durado 15 anos, contados da mesma data.”
Nos termos do artigo 1221º, do CC, “Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse for de boa fé, e de 20 anos, se for de má fé, independentemente do carácter titulado ou não da posse.”
Assim reunindo-se todos os pressupostos legais, pois, a posse do Autoa é pacífica e pública – cfr. artigos 1185º e 1186º do CC - , mesmo que se aplique o prazo mais dilatado de 15 anos, já decorreu o prazo necessário para o mesmo usucapir o imóvel em causa.
Pelo expendido, é de julgar procedente a pretensão do Autor, julgando-se procedente o recurso interposto pelo mesmo (procedente a acção), ficando revogada a sentença recorrida e passando a decidir:
Declarar o Autor como proprietário, para todos os efeitos legais, nomeadamente de registo na Conservatória do Registo Predial de Macau, da fracção autónoma designada por “BR/C”, do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau, com os nºs ... a ... da Travessa ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2****, por usucapião.
* * *
Síntese conclusiva:
I - A razoabilidade dos juízos de prova deve ser apreciada mediante a análise crítica do material probatório constante dos autos, incluindo as gravações ou transcrições dos depoimentos, tendo em conta o respectivo teor, o seu nicho contextual histórico-narrativo, bem como as razões de ciência e a credibilidade dos testemunhos.
II – É de admitir como provas fidedignas os depoimentos prestados pelas testemunhas que conheciam todo o circunstancialismo factual histórico e actual à luz do qual o ex-proprietário dum imóvel, sem descendentes, fez uma doação verbal do mesmo a favor dum sobrinho seu, ora Autor deste processo, passando este, a partir de então, exercer os poderes de facto sobre o imóvel, à vista de toda a gente, sem contestação ou oposição de ninguém e na convicção de que não lesava direitos de outrem há mais de 30 anos, o que constitui fundamento bastante para usucapir a propriedade do imóvel em causa, razão pela qual é de julgar procedente o pedido nestes termos formulado pelo Autor.
*
Tudo visto, resta decidir.
*
V ‒ DECISÃO
    Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo Autor, passando-se a decidir:
Declarar o Autor como proprietário, para todos os efeitos legais, nomeadamente de registo na Conservatória do Registo Predial de Macau, da fracção autónoma designada por “BR/C”, do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau, com os nºs ... a ... da Travessa ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2****, por usucapião.
*
    Custas pelo Autor (artigo 376º/1 do CPC).
*
    Registe e Notifique.
*
RAEM, 24 de Julho de 2024.

(Relator) Fong Man Chong

(Primeiro Juiz-Adjunto) Ho Wai Neng

(Segundo Juiz-Adjunto)
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
1 ln Direitos Reais - Almedina, Coimbra - pago 181
2 Sobre o princípio da completude da motivação da decisão judicial ditado, pela necessidade da justificação cabal das razões em que se funda, com função legitimadora do poder judicial, vide acórdão do STJ, de 17-01-2012, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Gabriel Catarino, no processo n.º 1876/06.3TBGDM.P1 .S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------





2020-149-usucapião-factos-insufientes 14