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Processo nº 266/2024
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data do Acórdão: 26 de Setembro de 2024

ASSUNTO:
- Usucapião
- Inversão do título


____________________
Rui Pereira Ribeiro












Processo nº 266/2024
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 26 de Setembro de 2024
Recorrente: A
Recorridos: B e Outros
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  A, com os demais sinais dos autos,
  vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinária contra,
  B (por si e habilitado da C),
  D (habilitado da C),
  E (habilitado da C);
  F (habilitado da C);
  G (habilitado da C);
  H (habilitado da C);
  I (habilitado da C);
  J (habilitado de K);
  L (habilitado de K);
  M (habilitado de K, representado por N);
  O (habilitado de K e de P);
  Q (habilitado de K);
  R (habilitado de K e de P)
  também, com os demais sinais dos autos.
  Pedindo o Autor que deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e em consequência, seja declarada a aquisição por usucapião pelo Autor do direito de propriedade plena sobre a fracção autónoma “AC/V”, da cave “A”, para armazém, do prédio sito em Macau, na Rua XX, nº XX, Edifício XX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o número 1XX7 a folhas 63-Verso do Livro B-7 e inscrita na matriz predial sob o artigo 1XX71, com efeitos desde 1979 e com todas as legais consequências, nomeadamente para efeitos de registo da competente Conservatória do Registo Predial, indo os Réus condenados no pagamento de custas e condigna procuradoria.
  
  Proferida sentença foi a acção julgada improcedente, absolvendo-se os Réus dos pedidos formulados pelo Autor.
  
  Não se conformando com a sentença veio o Autor e agora Recorrente interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objecto a sentença proferida nos autos pelo Tribunal a quo que julgou improcedente o pedido do Recorrente, indeferindo o seu pedido para que fosse declarada a sua aquisição por usucapião da fracção autónoma “AC/V”, da cave “A”, para armazém, do prédio sito em Macau, na Rua XX, n.º XX, Edifício XX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o número 1XX7 a folhas 63-Verso do Livro B-7 e inscrita na matriz predial sob o artigo 1XX71, com efeitos desde 1979, com todas as legais consequências, designadamente as registrais.
2. Relativamente ao que vem expresso no último parágrafo a fls. 726v da douta sentença recorrida, afigura-se que não corresponde ao teor da prova produzida a asserção de que não ficou provado que o S tivesse oferecido a totalidade da fracção ao ora Recorrente, tal como alegado no artigo 21.º da petição inicial, já que esta afirmação afigura-se estar em contradição com os factos dados como provados nas alíneas 18, 19, 23, 25, 26, 34, 36 e 54 de fls. 724v a 726, onde a douta sentença recorrida se refere sempre à fracção (no seu todo), e nunca a parte dela.
3. A fracção foi facultada na sua totalidade ao ora Recorrente, tanto mais que este e sua família ali passaram a viver, e aquele até arrendou parte dela.
4. A fracção é composta por um rés-do-chão (armazém) e um primeiro andar (residencial), tal como foi referido por testemunhas e consta dos documentos n.º 157 e 158, juntos com a petição inicial, ocupando a família ambos os andares.
5. Assim, deverá dar-se como provado o alegado no artigo 21.º da petição inicial, no sentido de que em 1979, o tio do ora Recorrente, S, facultou àquele o uso da totalidade da fracção ora em causa.
6. Por outro lado, considera-se na douta sentença recorrida que o tio do ora recorrente, o T, terá recebido a fracção em nome e representação dos herdeiros do seu pai e avô do ora Recorrente, o U, o que também não se afigura consistente com a prova produzida nem com a restante factualidade provada.
7. E este circunstancialismo, segundo a douta sentença recorrida, terá levado a que o dito T detivesse a fracção meramente em nome dos herdeiros do seu pai, situação jurídica em que o Recorrente ainda hoje se encontrará, conclusões com as quais não se poderá concordar.
8. Sobre esta matéria, ficou considerado provado nos pontos 4 a 11 da factualidade de fls. 723v a 724 que, sendo certo que as negociações para a troca de fracções se iniciaram com o U, terminaram com o filho deste, e tio do ora Recorrente, o T, por morte do U antes da respectiva conclusão.
9. Além disso, conjugando os factos que constam nos pontos 1 a 11 da matéria dada como provada (cfr. fls. 723v a 724), com o depoimento de parte prestado por escrito pelo 1.º Réu B, este último apenas se recorda negociar a entrega da fracção com T.
10. E a fracção foi entregue pelos Réus ao T porque, com a morte do U, aquele assumiu a posse e exclusiva gestão do negócio que tinha sido do seu pai, naquela qualidade de filho mais velho, como era tradição na altura entre as famílias chinesas, conforme depoimento testemunhal apresentado em julgamento.
11. Não se afigura correcto afirmar, como o faz a douta sentença recorrida, que a fracção ora em causa está integrada na herança do U, porque este nunca a chegou a receber.
12. Afigura-se que não fará sentido em falar-se da herança (jacente) do U no contexto da titularidade da fracção, como o faz a douta sentença recorrida, porque aquele nunca chegou a ser titular do Imóvel, já que faleceu antes da respectiva transmissão pelos Réus B e K.
13. Verifica-se dos factos apurados que a fracção ora em causa foi recebida pelo T em nome próprio, o qual teria, assim, plena liberdade para dispor dela como bem entendesse.
14. Posteriormente, como ficou provado, o T deixou de exercer o negócio que tinha sido do seu pai, e entregou a fracção ao seu irmão S, que a ocupou para guardar pertences seus.
15. Em 1979, o S, tio do ora Recorrente, transmitiu a posse da fracção a este, para que ali residisse, com a indicação de que era entendimento da família que a fracção ficaria para quem nela vivesse.
16. Sendo que nunca ninguém, incluindo quaisquer herdeiros directos ou indirectos de U, alguma vez contestaram a posse da fracção por parte do ora Recorrente, apesar de conhecerem a situação de este nela estar a viver e da interposição da presente acção.
17. E nem sequer os ora recorridos vieram aos autos contestar, tendo plena oportunidade para o fazer.
18. Errou a douta sentença recorrida nas conclusões a que chega, porque não apreciou devidamente a prova, devendo considerar-se, em face dos depoimentos prestados, que a fracção esteve na posse do tio do ora Recorrente, o T, em nome próprio, o qual a transmitiu ao irmão S, que, por sua vez, a entregou ao ora Recorrente para nela viver, criando neste a convicção (o animus) de ser o seu legítimo proprietário, por aplicação do entendimento de que o imóvel ficaria para quem nele viesse a residir, assim devendo ser dado como provado o alegado nos artigos 21.º e 63.º da petição inicial.
19. Mas, ainda que se considere que não ficou provado o animus possidendi do ora Recorrente, ainda assim deve proceder o pedido formulado na presente acção, porque se não se conhecem ou não foram provadas as intenções do U, do S e do T quanto à pertença da fracção, ainda assim deverá proceder o pedido, porque não existirá alternativa senão fazer funcionar a favor do ora Recorrente a presunção do n.º 2 do artigo 1176.º do Código Civil.
20. É pacífico na doutrina que a posse a que se refere o artigo 1175.º do Código Civil tem dois componentes, o corpus, traduzido num poder de facto sobre o bem, e o animus, a convicção de titularidade do direito, e conforme a matéria dada como provada e descrita nas alíneas 18, 19, 20, 23, 25, 27, 30, 31, 34, 35, 36, 37, 40, 41, 50, 51, 52, 53, 54, e 55, verifica-se à saciedade que o ora Recorrente exerce fortíssimos poderes de facto sobre a Fracção, já que ali vive com a família há mais de 40 anos, fez obras, paga todas as despesas, recebe amigos e família e, inclusivamente, arrendou temporariamente parte do imóvel a terceiros, fazendo suas as rendas.
21. Por isso, dúvidas não haverá que o ora Recorrente possui efectivamente o corpus que é componente da posse e, por força da presunção do citado n.º 2 do artigo 1176.º do Código Civil, deveria a douta sentença recorrida ter presumido a existência do animus, o que não fez em violação da dita norma.
22. Dizer-se que os actos praticados pelo ora Recorrente o poderiam ser também por um mero detentor, para afastar qualquer possibilidade de aquisição da propriedade por usucapião sem que estejam expressamente provados tando o corpus, como o animus, resulta em fazer-se letra morta da norma do n.º 2 do artigo 1176.º do Código Civil, tanto mais que são pouquíssimos e excepcionais os actos que inequívoca e exclusivamente se integram nos poderes do efectivo proprietário.
23. E tornar praticamente inútil o instituto do usucapião.
24. De facto, qualquer acto de conservação e fruição tanto poderá ser praticado pelo possuidor, o mero detentor ou o proprietário, e daí justificar-se a existência da presunção legal de posse a quem exerce o corpus, a qual, realce-se, pode ser sempre afastada por prova em contrário.
25. Conjugada a factualidade das alíneas 18, 19, 20, 23, 25, 27, 30, 31, 34, 35, 36, 37, 40, 41, 50, 51, 52, 53, 54, e 55 dos factos provados, verifica-se que ao longo dos últimos 40 anos, o ora Recorrente tem vindo a praticar actos de forma contínua e ininterrupta que revelam uma intenção de propriedade, inclusive os de um verdadeiro dono, como sejam os de arrendar e perceber as respectivas rendas.
26. Na falta de contraprova que afaste a presunção legal, outra solução não será possível senão a de fazer funcionar a presunção do n.º 2 do artigo 1176.º do Código Civil, considerando existirem o corpus e o animus capacitadores de uma posse que preenche os requisitos da aquisição do direito de propriedade da fracção ora em causa por usucapião pelo ora Recorrente, satisfeitos que estão os demais requisitos legais de tempo e continuidade.
27. Por tudo isto, a decisão ora recorrida incorreu em erro na análise da prova junta aos autos e da prova testemunhal produzida em julgamento, devendo ser substituída por outra dando provimento ao pedido, (1) por se considerar provado o animus possidendi do ora Recorrente ou, subsidiariamente, e caso assim não se entenda, (2) por aplicação da presunção prevista na norma, do n.º 2 do artigo 1176.º do Código Civil, assim se declarando a aquisição da fracção pelo ora Recorrente por usucapião, com todas as legais consequências, designadamente as registrais.
  
  Notificados os Réus para contra-alegar, estes silenciaram.
  
  Foram colhidos os vistos.
  
  Cumpre, assim, apreciar e decidir.
  
II. FUNDAMENTAÇÃO

  Vem impugnada a decisão sobre a matéria de facto no que concerne à resposta dada pelo Tribunal quanto à matéria do artigo 21º e 63º da p.i. entendendo o Recorrente que se havia de ter dado como provado que “em 1979 S ofereceu a totalidade da fracção AC/V ao Autor” e de que “o Autor está convicto de que adquiriu legitimamente a propriedade daquela fracção autónoma”.
  Para tanto invoca o Autor/Recorrente que a resposta ao artigo 21º da p.i. está em contradição com a resposta dada aos artigos 18º, 19º, 23º, 25º, 26º, 34º, 36º e 54º da p.i..
  Vejamos então.
  Relativamente à matéria do artigo 21º da p.i. o Tribunal a quo deu como provado que:
  “Por indicação do S, em 1979, o Autor passou a residir na fracção AC/V.”.
  No artigo 18º foi dado como provado que em 1978 o Autor decidiu mudar-se da China Continental para Macau.
  No artigo 19º que pediu ajuda ao tio S para fazer essa mudança.
  A matéria do artigo 23º está relacionada com o artigo 22º e daí resulta que o Autor desde 1979 até hoje reside na fracção a que se reportam os autos sem oposição de quem quer que seja.
  No artigo 25º foi dado como provado que a esposa do Autor e filhos se reuniram com ele em Macau em 1983.
  No artigo 26º foi dado como provado que desde 1979, o Autor, primeiro sozinho, e, desde 1983, juntamente com a sua família próxima, viveram ininterruptamente na fracção. Sem que ninguém contestasse tal facto.
  No artigo 34º foi dado como provado que o Autor efectuou o reembolso do pagamento da Contribuição Predial referente à fracção autónoma a que respeitam os autos de 1985 a 1994 à Companhia que a havia pago. E do artigo 36º resulta que desde aí sempre a tem pago.
  O artigo 54º descreve como se chega à fracção autónoma a que respeitam os autos no prédio onde se encontra.
  Ora de todos estes artigos os únicos cuja matéria pode estar relacionada com o facto do tio lhe ter oferecido a fracção seriam os 22º, 23º, 26º, 34º e 36º, contudo, não é por residir na fracção e por pagar a contribuição predial que se pode concluir que lhe haja sido oferecida.
  A questão da fracção ter sido oferecida ou não ao Autor está relacionada com o modo como adquiriu a posse. O Autor até podia ter adquirido a posse porque declarou a quem lhe autorizou a ali viver que a partir desse momento aquilo era seu e até o podia fazer sabendo que ia contra o direito de outrem, o que apenas tinha implicação a nível da caracterização da boa ou má-fé com que possuía.
  Aquilo que não pode acontecer e que todo o regime da posse exclui, é começar a possuir no silêncio sem nada dizer, sem nada fazer seja o Autor, seja quem o deixou ali viver, isto é, sem que haja um facto que determine que adquiriu a posse – artº 1187º do C.Civ. -, isto é, sem que inverta o título da posse.
  Ora, da matéria que o Recorrente invoca que há contradição com a matéria dada por assente quanto ao que se invocava no artigo 21º, não resulta elemento algum que permita convencer o tribunal de que S doou a fracção ao Autor como este invocava no artigo 21º.
  Para além disso não invoca o Recorrente qualquer outro elemento probatório que obrigasse a outra conclusão seja quanto ao artº 21º seja quanto ao artº 63º da p.i., o que nos termos do artº 599º do CPC é condição para a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
  Assim sendo, só pode o recurso no que concerne à impugnação da decisão sobre a matéria de facto improceder.
  Em sentido idêntico veja-se Acórdão deste tribunal de 09.05.2019, proferido no processo nº 240/2019, de cujo sumário consta o seguinte:
  «I – Em matéria de impugnação de matéria de facto, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
  II - para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal”, se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.».
  
a) Factos
  
  A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
1. Desde a década de 1950 e até 1970, U, avô do ora Autor, ocupava uma fracção para comércio num prédio então existente na Travessa do XX, n.º XX, onde mantinha um estabelecimento comercial designado “V”, dedicado ao fabrico de medicamentos para medicina tradicional chinesa.
2. Por escritura celebrada em Janeiro de 1971, o imóvel onde se encontrava o referido estabelecimento, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XX7 a fls. 285v do Livro B1 foi adquirido pela W, Limitada, conforme inscrição n.º 3XX89 a fls. 168v do livro G32 da mesma Conservatória.
3. B, C, K e P eram os sócios-gerentes e sócios-subgerentes da aludida sociedade, entretanto liquidada e dissolvida.
4. No início do ano de 1970, ainda antes de outorgarem a escritura acima referida, a W, Limitada, contactou o U para que este desocupasse a fracção onde funcionava o seu estabelecimento.
5. Para isso, B e K encetaram negociações com o U, avô do Autor.
6. No entanto, o U veio a falecer quando ainda decorriam tais contactos e antes de chegar a qualquer acordo com a W, Limitada.
7. As negociações prosseguiram entre B, K e T, um dos filhos do U.
8. Em data que o Autor desconhece em concreto, as partes nesta negociação chegaram a acordo segundo o qual, como contrapartida de ficar vago o n.º XX da Travessa do XX, seria oferecida por B e K a propriedade de uma outra fracção que lhes pertencia.
9. B e K comprometeram-se a transmitir o direito de propriedade da fracção para armazém designada AC/V do prédio sito na Rua XX n.º XX, Edifício XX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1XX7 a fls. 63v do livro B7, ali inscrita a seu favor sob a inscrição n.º 3XX60 a fls. 5 do livro G32.
10. Registada na matriz predial sob o n.º 1XX71.
11. Em data não apurada no início dos anos 1970, o T desocupou o n.º XX da Travessa do XX, e foi-lhe entregue por B e K a aludida fracção AC/V, na qual o T passou a exercer o seu negócio.
12. Depois, numa data não concretamente apurada, o T deixou de exercer o seu negócio na aludida fracção AC/V.
13. Depois de o T deixar de exercer o seu negócio na aludida fracção AC/V, o S passou a ocupar a fracção para guardar pertences seus.
14. O Autor sempre manteve uma relação de grande proximidade com o seu tio S, o qual o tratava como se fosse seu filho.
15. Em 1978, o Autor, que até então residia na China Continental, decidiu mudar-se para Macau.
16. E pediu ajuda ao seu tio S, motivado pela proximidade que os unia.
17. Chegado a Macau, o Autor ficou cerca de um ano a viver em casa do tio S, conseguindo trabalho como técnico numa fábrica local de artigos electrónicos.
18. Por indicação do S, em 1979, o Autor passou a residir na fracção AC/V.
19. O Autor reside na fracção AC/V desde 1979 até hoje.
20. Sem oposição ou protesto de ninguém, incluindo os Réus.
21. O Autor casou em 3 de Março de 1973 em primeiras núpcias com X, sendo que da união nasceram dois filhos, o Y, em XX de XX de 19XX, e o Z, em XX de XX de 19XX.
22. A X e o filho mais velho, o Y, juntaram-se ao Autor em Macau em 1983.
23. Desde 1979, o Autor, primeiro sozinho, e, desde 1983, juntamente com a sua família próxima, viveram ininterruptamente na fracção, sem que ninguém contestasse tal facto.
24. O Autor divorciou-se da X em Dezembro de 2009.
25. E continuou desde aí a residir no imóvel.
26. O Autor é considerado por amigos e vizinhos como o legítimo proprietário da referida fracção.
27. O Autor tem vindo a pagar todos os impostos e contribuições a ela relativos.
28. A W, Limitada, contactou o ocupante da fracção em Agosto de 1994, para que fosse reembolsada da Contribuição Predial referente a 1985 até 1994, relativa à fracção ora em causa que até ali tinha pago.
29. O Autor efectuou o reembolso pretendido (fls. 57).
30. Depois de 1994, tem sido sempre o Autor que procede ao pagamento dos impostos e contribuições relativa à fracção ora em causa.
31. Desde 1994 que nenhum dos Réus, nem ninguém a seu mando, tem pago a dita Contribuição Predial.
32. Até à data nunca foi outorgada qualquer escritura de compra e venda relativamente à fracção ora em causa.
33. O Autor não tem conhecimento de algum outro descendente directo ou indirecto do seu avô U ter alguma vez invocado qualquer direito sobre a fracção, desde a morte daquele.
34. Desde 1979 que o Autor, primeiro, e, desde 1983, este e a sua família mais próxima, ali vivem, comem, dormem e recebem amigos e familiares, tanto no dia-a-dia, como em ocasiões festivas.
35. O Autor tem também suportado desde 1979 até hoje todas as despesas de manutenção e conservação daquela fracção autónoma.
36. Designadamente ali mandando fazer obras, pinturas, reparações e melhoramentos sempre que necessários ou convenientes e suportando a totalidade do seu custo.
37. É o Autor que, desde 1979 até hoje, tem procedido ao pagamento das despesas relativas aos gastos de electricidade e água.
38. Sendo que as facturas de água ainda hoje são emitidas em nome de um outro tio do Autor, o T.
39. E as facturas relativas ao fornecimento de energia eléctrica vinham até 2010 em nome de uma tia do Autor, a AA, esposa do S.
40. Os filhos do Autor ali receberam e recebem as suas facturas de telemóvel, internet e telefone, porque residem no aludido local.
41. Também no mesmo local o Autor e os seus filhos recebem toda a sua restante correspondência, incluindo bancária, fiscal e de diversos outros serviços e departamentos do Governo da RAEM.
42. A referida fracção AC/V encontra-se ocasionalmente identificada, para efeitos postais, como “rés-do-chão D”, ou ainda como “anexo ao rés-do-chão D”.
43. Certo é que se trata sempre da fracção ora reivindicada pelo Autor, objecto da presente lide.
44. A fracção identificada na CRP como AC/V é, na realidade, um rés-do-chão sem acesso directo à rua, sito no tardoz do prédio, cujas traseiras confrontam com “um muro que deita para o Jardim do XX”.
45. E para se lhe chegar é necessário entrar pelo n.º XX da Rua XX e percorrer um estreito corredor que termina num pequeno pátio interior, para onde desembocam directamente a porta de entrada da fracção AC/V e a escada que dá acesso a fracções residenciais do edifício, nos andares superiores.
46. O prédio possui três lojas no rés-do-chão que confinam directamente com a Rua XX, identificadas como AR/C, BR/C e CR/C sendo que nas plantas do prédio, a fracção ora em causa vem identificada como “Armazém D”.
47. Pelo que os habitantes do edifício e outras pessoas, sem conhecimentos técnicos de registo, identifiquem a fracção ora em causa como o “rés-do-chão D”.
48. O que tem sido a prática ao longo de muitos anos, até pelos Serviços de Correios, os quais de forma consistente e correcta entregam na fracção, sem distinção, toda a correspondência que seja dirigida ao Autor ou aos membros da sua família.
49. Sendo certo que tanto o “rés-do-chão D” como o “anexo do rés-do-chão D” se referem a uma mesma e única fracção, a qual é aquela identificada na Conservatória do Registo Predial como AC/V, em propriedade horizontal, do prédio aí descrito sob o n.º 1XX7, a fls. 63v do livro B7, com o número de matriz 1XX71.
50. O Autor é reconhecido por todos os que na vizinhança vivem e por seus amigos titular do direito de propriedade sobre aquela fracção autónoma, ocupando e utilizando a fracção à vista de todos e de forma contínua.
51. E nunca pessoa alguma se opôs a este exercício.
52. Entre 1983 e 1990, o Autor disponibilizou parte da fracção à sua cunhada, a qual fez ali funcionar uma oficina artesanal de peças de vestuário.
53. Entre 2012 e 2013, o mesmo espaço esteve arrendado como consultório médico, tendo o Autor recebido e feito suas as respectivas rendas.
54. O Autor tem ocupado e utilizado a fracção de forma pública e pacífica desde 1979.
55. O Autor nunca pagou rendas a ninguém pela ocupação e utilização da fracção.
  
b) Do Direito
  
  É o seguinte o teor da decisão recorrida:
  «O Tribunal deve analisar concretamente os factos que foram dados como provados para aplicar o direito, no intuito de resolver o litígio entre as partes.
  Diz o artº 1212º do CC, “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.”
  O que é posse? Explica o artº 1175º do CC que “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”
  Das disposições dos artºs 1175º e 1177º/al. a) do CC, podemos deduzir que a posse é composta por dois elementos, um é o corpus da posse e outro o animus do proprietário (ou de outros direitos reais).
  Dito por outras palavras, para que a acção do Autor seja julgada procedente, ele tem o ónus de provar o exercício por ele do direito sobre a fracção em questão, além disso, tem que provar (mesmo através de presunção legal) que ele agiu com a mentalidade do proprietário quando praticou os actos de posse.
  Tendo analisado a factualidade provada deste caso, nomeadamente os pontos 6 a 9, a qual é suficiente demonstrar que os proprietários da fracção em causa pretendiam usar a fracção envolvida neste caso em troca da desocupação do nº XX da Travessa do XX por parte do avô do Autor (U). Do facto ponto 11 resultou que B e K entregaram a fracção em causa a T, este passou a exercer o seu negócio na aludida fracção.
  In casu, apesar de a factualidade provada revelar que o Autor tem vido a utilizar a fracção em apreço desde 1979, salvo o devido respeito, no entender deste Juízo, a factualidade provada não é suficiente para sustentar o facto de o Autor possuir, desde 1979, o animus de proprietário da fracção em causa.
  Por um lado, o Autor não consegue provar suficientemente o conteúdo descrito no ponto 21 da petição inicial, ou seja, ele não consegue provar que S lhe doou a fracção autónoma inteira. Por outro lado, os factos invocados pelo Autor para comprovar o seu animus de proprietário também não foram dados como provados pelo Juízo (vd. nomeadamente, a resposta do Tribunal Colectivo ao ponto 63 da petição inicial).
  Nas suas alegações de direito, o Autor invocou o nº 2 do artº 1176º do CC (“Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1181.º), alegando que dado que o Autor tem exercido por muitos anos o “corpus” sobre a fracção em causa, há que presumir que o Autor, que exerce o poder de facto, é o possuidor da fracção envolvida.
  Ainda que algumas jurisprudências e doutrinas entendam que desde que seja reconhecido o poder de facto exercido pelo autor sobre uma coisa, verifica-se o “corpus” e daí deve presumir-se o “animus” do autor. Todavia, salvo melhor opinião, os factos concretamente provados por este Tribunal não são suficientes para sustentar o “animus” do Autor. As seguintes são as razões deste Tribunal:
  Primeiro, tal como já foi dito, o Autor não consegue provar suficientemente o conteúdo descrito no ponto 21 da petição inicial, ou seja, ele não consegue provar que S lhe doou a fracção autónoma inteira. Ao contrário, foram apurados os seguintes factos nesta causa: 1. os proprietários da fracção em causa pretendiam usar a fracção envolvida neste caso em troca da desocupação do nº XX da Travessa do XX por parte do avô do Autor (U); 2. B e K entregaram a fracção em causa a T (mas não a S), o segundo exercia o seu negócio na dita fracção; 3. O facto provado ponto 13 revela que depois de T deixar de exercer o seu negócio na referida fracção, S passou a ocupar a fracção para guardar pertences seus; 4. Do facto provado ponto 18 resultou que, em 1979, por indicação de S, o Autor passou a residir na fracção. Analisados globalmente os factos dados como provados nesta causa, entende este Tribunal que a conclusão razoável deve ser a seguinte:
  T somente recebeu a fracção referida em representação do seu pai falecido, U, ou seja, praticou o acto em nome de todos os herdeiros e não só em nome dele. Posteriormente, a dita fracção passou a ser usada por S para guardar os seus pertences. Agora vamos deixar de discutir se S entende ser o único proprietário da fracção ou entende que o imóvel pertence a todos os herdeiros, o Autor não vai entender ser o proprietário da fracção simplesmente porque S lhe permitiu residir nela, porquanto o Autor só utiliza a fracção por tolerância de outrem.
  Quanto a isso, apontou o Tribunal de Segunda Instância no acórdão de 7/9/2023, proferido no processo nº 351/2023:
  “- Da conjugação do nº 2 do artº 1176º e nº 2 do artº 1181º do C.Civ. resulta que entre a presunção decorrente do exercício do poder de facto e a presunção de que a posse continua em nome de quem a começou, esta prevalece sobre aquela;
  - Havendo aquele que exerce o poder de facto sobre a coisa passado a fazê-lo por tolerância do possuidor, actuando como mero detentor, para que passe a ter a posse da coisa há que demonstrar a inversão do título;
  - Tomar refeições, dormir, viver, receber amigos, familiares e correspondência, fazer obras, etc., são actuações materiais possíveis sobre determinado prédio, mas que podem ser comuns ao mero detentor como ao possuidor, pelo que, sem saber a intenção, o “animus” com que o faz, não podemos concluir só por isso que tem a posse;
  - Para que se possa concluir que alguém tem a posse de determinada coisa é necessária a prova do “corpus” expressa nos actos materiais em que se traduz a apreensão material da coisa ou a possibilidade de a continuar a todo o tempo e do “animus” elementos subjectivo, ou intenção, com base na qual se possui por referência a um determinado direito real.”
  Neste caso vertente, a partir da factualidade provada, nomeadamente o ponto 19, deve considerar-se o Autor como o dententor indicado na al. b) do artº 1177º do CC. Dado que o mesmo começou, em 1979, a utilizar o imóvel em questão sob tolerância dos demais herdeiros, incluindo S. Perante a falta de “em caso de dúvida” indicado no nº 2 do artº 1176º, não é aplicável a presunção prevista neste artigo (para tal, o direito comparativo, cfr. acórdão de 13/10/2020 do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, proferido no processo 439/18.5T8FAF.G1.S1).
  Acresce que, o segundo fundamento deste Tribunal é: o Autor não alegou nem provou quando ocorreu a inversão do título da posse prevista no artº 1215º do CC.
  Da matéria de facto provado resultou saber que o Autor começou a exercer a “posse” da fracção em causa desde 1979, mas isso apenas vem da “posse” comum por outros herdeiros (um deles é S), provavelmente porque não ocorreram factos em 1979 que levaram com que a “posse” passasse a ser exercida apenas pelo Autor (por exemplo, a inversão do título da posse que permita ao Autor adquirir de forma originária a sua própria "posse").
  Neste caso concreto, como foi dito anteriormente, no entendimento deste Tribunal, a conclusão razoável é: T somente recebeu a fracção referida em representação do seu pai falecido (U), isto é, recebeu a posse da fracção em nome do pai falecido, ou seja, em nome de todos os herdeiros. Mesmo que a fracção passasse a ser utilizada por S, a posse continua a pertencer a todos os herdeiros e S é apenas um dos compossuidores. No entendimento deste Tribunal, se o pedido neste caso fosse formulado por todos os herdeiros (ou eles passariam a ser os autores deste caso ou o Autor os beneficiaria conforme dispõe o artº 1216º do CC) eles passariam a ser os proprietários da fracção em causa, há possibilidade de o pedido ser julgado procedente. Contudo, para que o Autor seja individualmente declarado o proprietário único da fracção, o mesmo necessita de provar que, em 1979, que motivos legítimos levaram a que a posse da fracção em causa deixasse de pertencer a todos os herdeiros (ou, pelo menos, como já foi dito, S que não permite ao Autor residir na fracção) e passasse a ser exercida só por ele?
  Tal como estipula o nº 2 do artº 1302º do CC, “o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título.” Quanto a este caso concreto, mesmo que o Autor, um dos potenciais herdeiros (porque seu pai é um dos filhos de U), utilize a fracção envolvida, o mesmo não pode ser considerado o único possuidor do imóvel sem ter sido provada a inversão do título da posse (quanto a esta questão, cfr. acórdãos de 23/5/2019, 25/7/2019 e 7/5/2020 proferidos respectivamente nos processos nºs 1006/2018, 237/2019 e 187/2020 do Tribunal de Segunda Instância).
  Na melhor das hipóteses, pode ser considerado o fundamento do título da posse invertido, sendo a intenção do Autor refletida na propositura desta ação. No entanto, esta acção foi intentada só em 2015, o eventual animus calculado a partir desse momento não é de forma alguma suficiente para sustentar a procedência do pedido do Autor.
  Importa reiterar que o Juízo não negou o direito de propriedade de U e de todos os herdeiros sobre a fracção em causa. O Juízo quer especificar através da análise acima feita que na ausência de base factual suficiente para provar a ocorrência da inversão do título da posse, não há fundamentos suficientes para sustentar a decisão de ignorar o resto dos descendentes de U e apenas reconhecer e declarar o Autor como o proprietário da fracção em questão. (para situações semelhantes cfr. acórdãos de 27/9/2023 e 23/4/2020 proferidos no processo nº 149/2020 do Tribunal de Segunda Instância)
  Face ao exposto, há que julgar improcedente o pedido do Autor.».
  
  No que concerne ao teor da decisão recorrida concordamos com o Recorrente quando se invoca que não está demonstrado que o imóvel em causa faça parte da herança do avô do Autor/Recorrente.
  O que resulta da factualidade apurada é que os Réus (iniciais) maridos começaram a negociar com o avô do Autor/Recorrente para que este deixasse de usar um imóvel que aqueles pretendiam ter livre, no entanto antes que as negociações chegassem a termo o Avô do Autor faleceu.
  Após o decesso do Avô do Autor as negociações vieram a ser concluídas com um dos tios do Autor, T, tendo consistido em os Réus (iniciais) maridos se comprometerem a transmitir para T a fracção autónoma a que respeitam os autos onde este continuou a explorar o negócio que antes era do pai.
  Nada se diz nem se sabe nestes autos se após o falecimento de U se fizeram partilhas entre os seus herdeiros, se T herdou o negócio do pai para si na sequência de partilhas, se lhe havia sido doado pelo pai, se o geria na qualidade de herdeiro ou cabeça de casal ou outra.
  O que objectivamente se sabe é que foi acordado que a fracção autónoma se transmitia para T como passando a ser coisa deste, pois nada se diz que permita outra conclusão.
  Ou seja, há aqui uma transmissão da posse de B e K para T nos termos da alínea b) do artº 1187º do C.Civ.. Esta transmissão da posse entre os titulares do direito sobre imóvel constante do registo para T ficou provada nestes autos. A partir desse momento quem tem a posse e de boa-fé da fracção autónoma a que se reportam os autos é T.
  Depois disto o que se provou foi que em determinado momento, que segundo o que se narra terá sido antes de 1979, T deixou de exercer o seu negócio na fracção a que se reportam os autos e S que admitimos ser seu irmão passou a utilizar a fracção para ali guardar os seus pertences.
  Nada se invoca sobre se S adquiriu a posse da fracção autónoma.
  O irmão doou-lhe, vendeu-lhe, herdou-a do irmão, inverteu o título da posse, tudo questões que nem sequer se colocaram.
  Ora bem se neste trato sucessivo da posse nem sequer se invoca se S tem a posse da fracção autónoma e menos ainda como a adquiriu, como é que S pode transmitir a posse?
  A resposta é óbvia e só pode ser negativa.
  Não só não se provou que S doou a fracção ao Autor, como nem sequer se alegou (nem provou) que S tivesse a posse da fracção, elemento essencial para que a pudesse transmitir.
  Concluindo, não ficou provada a aquisição da posse por banda do Autor, e neste sentido bem se decidiu na decisão recorrida, sem prejuízo de não concordarmos que resulte dos autos que o imóvel pertença à herança do Avô do Autor.
  Ultrapassada já a questão da prova dos factos, sempre diríamos que melhor teria andado o Autor se tivesse alegado os factos relativos a essa transmissão da posse e convocado para os autos os tios ali indicados ou seus herdeiros para que esta situação a ser verdadeira se explicar. Mas assim não fez, nem tão pouco invocou na sua perfeição a factualidade que se apurou, a qual dada a relação de proximidade que alega que tinha com o tio haveria de ter conhecimento.
  
  Mais alega o Autor que nos termos do artº 1176º nº 2 do C.Civ. se presume ser o possuidor porque exerce o poder de facto.
  Contudo esqueceu-se de ler a disposição legal até ao fim, pois ali também se diz “sem prejuízo do disposto no nº 2 do artº 1181º”.
  Ora, reza o artº 1181º, nº 2 do C.Civ. que se presume que a posse continua em nome de quem a começou.
  Veja-se José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, Coimbra Editora, 1987, pág. 83 a 86:
  «39. A posse é um facto ou um direito?
  I - Discute-se se a posse é um facto ou um direito.
  No sentido mais útil destes termos opõem-se os que afirmam que a posse é uma realidade extrajurídica, de que derivam efeitos jurídicos, àqueles que pretendem que a posse é ela própria uma situação jurídica, embora tenha o exercício fáctico de poderes na sua génese.
  Vimos já que o artigo 1251.º, dizendo que posse é um poder, aponta neste sentido. E efectivamente, é hoje inegável que a posse subsiste mesmo dissociada da situação de facto que está na sua origem. A imaterialização da posse, que se verificou por efeito da exigência da traditio para a transmissão da propriedade, concorreu também neste sentido.
  II – Pode haver posse dissociada da situação de facto:
1) Em consequência do esbulho.
  Determina o artigo 1267.º/1/d que a posse antigo só se extingue se a nova posse houver durado por mais de um ano. Isto significa que durante um ano a posse se manteve, muito embora a situação de facto tenha sido perdida em consequência do esbulho.
2) Em consequência da sucessão.
  A lei não enquadra entre as formas de aquisição da posse a sucessão na posse (art. 1255.º). A posse continua nos sucessores, diz a lei. E esclarece-se que esta continuação é independente da apreensão material da coisa.
  Por outro lado, como vimos nas nossas lições de Direito das Sucessões, os herdeiros têm posse independentemente do conhecimento da morte do de cujus, ou do facto designativo, ou até da existência do bem. Quer dizer que aqui, mesmo sem corpus nem animus, a lei atribui aos herdeiros a protecção possessória.
  III – Tão-pouco se pode dizer que a posse é simultaneamente um facto e um direito.
  Esta posição, muito embora possa invocar o nome venerável de Savigny em seu abono, é equivocada. Diz-se que a posse é um facto, porque repousa apenas sobre uma relação de facto, a detenção; é um direito, porque produz efeitos jurídicos. Na realidade, parece que podemos distinguir, utilizando os instrumentos normais da teoria geral, os factos e os efeitos jurídicos. A posse ou é o facto que produz os commoda possessionis, ou é por si um ente jurídico, uma situação jurídica.
  IV – Pelo que o problema terá de ser colocado com a simplicidade com que deparámos atrás; a posse ou é a situação de facto de que brotam os efeitos jurídicos, ou a situação jurídica de que esses efeitos são conteúdo.
  Todos os efeitos jurídicos que depois estudaremos poder-se-ão atribuir à posse como mero facto?
  A resposta pode ser positiva no que respeita à generalidade dos efeitos. A posse que funciona como presunção da propriedade, como base da usucapião, como condição de aquisição de frutos, etc., poderia ser entendida como situação de facto, embora a lei intervenha já largamente na demarcação desta.
  Não assim, porém, no que respeita apos meios de tutela judicial da posse e à indemnização em consequência de turbação ou esbulho, como demonstraremos no número seguinte. Esses pressupõem a posse, necessariamente, como situação jurídica. E é quanto basta para que a visão da posse como um facto se revele incorrecta.
  A demonstração de que pode haver posse dissociada da situação de facto e objecto de transmissão autónomo dá-nos a confirmação decisiva; só uma situação jurídica é compatível com este regime.
  Portanto, a posse é uma realidade jurídica, que tem como pressuposto uma realidade, ou situação de facto, mas que surge por vezes com autonomia em relação a ela.»
  No caso sub judice, a posse começou em nome dos titulares inscritos no registo predial por terem adquirido o direito – constituto possessório artº 1187º al. c) do C.Civ. – e que aqui são os originais Réus maridos, depois, face à factualidade apurada, essa posse transmitiu-se para T – pela tradição material da coisa feita pelos anteriores possuidores artº 1187º al. b) do C.Civ. -, sendo que depois desta transmissão da posse não se provou qualquer outra transmissão ou inversão do título, pelo que, nos termos do nº 2 do artº 1176º e nº 2 do artº 1181º ambos do C.Civ. se presume a posse na pessoa de T.
  Destarte, sem prejuízo de toda a factualidade apurada não ficou demonstrada a posse do Autor, sem prejuízo de ser o detentor da coisa.
  Assim sendo, bem se decidiu ao julgar a acção improcedente, mantendo a decisão recorrida com base nos fundamentos de direito que invocou.
  
III. DECISÃO

  Termos em que, pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida.
  
  Custas a cargo do Recorrente.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 26 de Setembro de 2024
  
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)

Fong Man Chong
(1o Juiz-Adjunto)

Ho Wai Neng
(2o Juiz-Adjunto)


266/2024 CÍVEL 1