Processo nº 59/2024(I)
(Autos de recurso jurisdicional) (Incidente)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
I. Aos 05.06.2024, proferiu o relator dos presentes Autos de Recurso Jurisdicional a seguinte decisão sumária, (que se passa a transcrever na sua íntegra):
“Ponderando no teor da decisão recorrida, nas “questões” pela ora recorrente colocadas, e considerando-se que a possibilidade pelo legislador conferida de se decidir sumariamente um recurso destina-se a potenciar a economia processual, numa óptica de celeridade e de eficiência, entende-se que o presente recurso deve ser objecto de “decisão sumária”; (cfr., art. 149°, n.° 1 do C.P.A.C. e art. 621°, n.° 2 do C.P.C.M., podendo-se também, v.g., ver C. Pinho in “Notas e Comentários ao C.P.A.C.”, Vol. II, C.F.J.J., 2018, pág. 419, e as “decisões sumárias” proferidas nos autos de recursos jurisdicionais n°s 69/2020, 68/2020, 75/2020, 147/2020, 47/2021, 49/2021, 83/2021, 94/2021, 98/2021, 93/2021, 107/2021, 108/2021, 112/2021, 126/2021, 142/2021, 26/2022, 17/2022, 46/2022, 118/2022, 10/2023, 184/2020, 132/2022, 39/2023, 128/2022, 5/2023, 34/2023, 52/2023, 44/2022, 61/2023, 13/2024, 12/2024, 65/2023, 25/2024, 35/2024, 44/2024 e 49/2024).
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Nesta conformidade, passa-se a decidir do presente recurso.
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Relatório
1. A (甲), em representação da sua filha B (乙), ambos com os restantes sinais dos autos, veio recorrer contenciosamente para o Tribunal de Segunda Instância do despacho do SECRETÁRIO PARA A ECONOMIA E FINANÇAS de 03.03.2023 que em sede do recurso hierárquico confirmou a decisão que lhe indeferiu o pedido de renovação da autorização de residência temporária; (cfr., fls. 2 a 8 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 11.01.2024, (Proc. n.° 342/2023), negou-se provimento ao recurso; (cfr., fls. 118 a 133).
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Notificada do decidido, e inconformada, veio a B prosseguir com a sua pretensão em obter a renovação da sua autorização da residência, apresentando o presente recurso jurisdicional, insistindo nos mesmos argumentos que apresentou no seu anterior recurso contencioso; (cfr., fls. 145 a 154).
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Sem resposta, e admitido que foi o recurso com efeito e modo de subida adequadamente fixados, (cfr., fls. 141), vieram os autos a este Tribunal de Última Instância.
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Em sede de vista, e em douto Parecer – mantendo o antes opinado em sede do anterior recurso contencioso no Tribunal de Segunda Instância – considerou (também) o Exmo. Representante do Ministério Público que o recurso não merecia provimento; (cfr., fls. 166-v e 167).
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Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre apreciar.
A tanto se passa.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal de Segunda Instância vem indicada como “provada” a seguinte matéria de facto:
“a) Por Despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças datado de 03.03.2023, foi negado provimento ao recurso hierárquico interposto do despacho de indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência nos termos e com os fundamentos da Proposta nº PRO/00199/AJ/2021 elaborada pela IPIM, a qual consta de fls. 10 a 15 e traduzida a fls. 97 a 109 e com o seguinte teor:
«(…)
1. O Recorrente A, com fundamento de investimento de imobiliário disposto no RA n.º 3/2005, foi aprovado em 28 de janeiro de 2014 a extensão da autorização de residência temporária à sua descendente B, o Recorrente já obteve a emissão do BIRM.
2. Dado que a sua descendente B, não residiu habitualmente na RAEM durante o período da autorização de residência temporária, pelo que o Presidente da Comissão Administrativa do IPIM no uso da competência subdelegada pelo Exmº Sr. SEF exarado no Despacho do SEF nº 68/2020, tomou decisão sobre o pedido de renovação da autorização de residência temporária por investimento de imobiliário em 30 de novembro de 2020, veio nos termos do artº 23.º do RA n.º 3/2005 com aplicação subsidiária do artº 9.º, n.º 3 da Lei n.º 4/2003 e artº 22.º, n.º 2 do RA n.º 5/2003, indeferir o pedido de renovação da autorização de residência temporária da interessada B. (vide anexo 3)
3. Relativamente à decisão relevante, este instituto notificou o Recorrente através do ofício n.º OF/07108/DJFR/2020 datado em 30 de novembro de 2020, ao mesmo tempo, conforme o registo de recepção dos CTT, o ofício foi enviado com sucesso em 11 de dezembro de 2020. (Vide anexo 1)
4. Nos termos do nº 3.º do despacho do Exmº Sr. SEF n.º 68/2020, “Dos actos praticados no uso da competência ora subdelegada, cabe recurso hierárquico necessário”.
5. O advogado constituído do Recorrente interpôs recurso hierárquico necessário ao Exmº Sr. SEF em 4 de janeiro de 2021. (vide anexo 2)
6. De acordo com o artº 155.º do CPA, o Recorrente necessita de apresentar o recurso hierárquico necessário dentro do prazo de trinta dias, segundo o registo de recepção do documento pertinente, o recurso hierárquico necessário foi tempestivo.
7. O conteúdo principal do recurso hierárquico necessário interposto pelo advogado constituído é o seguinte:
1) O Recorrente afirma que seu membro do agregado familiar (a mãe) sofre de diversas doenças desde 2007 e tem recebido tratamento médico nos hospitais do continente, portanto ele próprio e seu cônjuge precisam de continuamente acompanhar o tratamento e tomar conta dela, pois no cumprimento das obrigações previstas nos artºs 1729º e seguintes do CC e segundo a virtude tradicional chinesa, o Recorrente passou a viver em Xiamen, aquando a interessada foi aprovada pela primeira vez a autorização de residência temporária em 28 de janeiro de 2014, tinha ela apenas 9 anos e estava precisamente a frequentar a escola primária no continente, como não podia, sem os cuidados dos seus pais, viver e estudar sozinha em Macau, pelo que foi viver com os seus pais em Xiamen;
2) O Recorrente afirma que a interessada tem actualmente 16 anos de idade, ingressou com boas notas académicas na Escola de Aplicação Anexa à Universidade de Macau em setembro de 2020, já possui maturidade física e mental suficiente e certo juízo, bem como o Recorrente tem imobiliário em Macau que permite proporcionar residência estável à interessada, além disso, o Recorrente, em 16 de novembro de 2020, estabeleceu uma companhia limitada em Macau, então podemos ver que a família do Recorrente considera Macau a sua residência permanente, portanto tem motivos razoáveis para acreditar que a interessada irá viver permanentemente em Macau
3) O Recorrente considera que a autoridade administrativa tem a obrigação de averiguar que, embora a interessada não esteja em Macau, mas considera Macau a sua residência habitual, bem como ao ajuizar se a interessada considera ou não Macau o centro da sua vida, não pode apenas determinar com base nos elementos de entrada e saída fornecidos pela PSP, devia ponderar suficientemente o previsto no artº 4.º, n.º 4 da Lei n.º 8/1999 e considerar globalmente a sua situação concreta;
4) O Recorrente afirma que quando requereu a extensão da autorização de residência temporária para a interessada, nunca houve qualquer funcionário ou disposição explícita a dizer que como condição necessária tinha de residir em Macau um determinado número de dias durante o período de residência temporária, caso contrário incorrerá o risco de cancelamento da autorização de residência temporária;
5) O Recorrente afirma que já decorreu mais de 6 anos desde que requereu a extensão da autorização de residência temporária para a interessada, e durante o qual nunca a autoridade administrativa questionou sobre a alteração dos pressupostos da sua residência temporária em Macau, tal fez com que o Recorrente tivesse grande confiança de que ela poderia vir para Macau viver e obter o BIRM, nos termos do artº 8.º do CPA, os interessados não devem suportar as consequências desfavoráveis daquilo que não tinham anteriormente conhecimento, mas que posteriormente foi usado pela autoridade administrativa como fundamento para decidir em matéria de residência temporária;
6) O Recorrente entende que de acordo com as disposições e eficácia do RA n.º 3/2005, os membros do agregado familiar não são considerados requerentes, a renovação da residência dos membros do agregado familiar depende do requerente principal, e neste caso o requerente principal já obteve a emissão do BIRM, então a interessada deve ser beneficiada e ao mesmo tempo ficou preenchidos os pressupostos e requisitos para manutenção da autorização de residência temporária;
7) O Recorrente afirma que se a autoridade administrativa cancelar a autorização de residência da interessada em Macau, a interessada terá que separar dos seus pais e irmãos, vivendo em outro local, porque todos os membros do agregado familiar obtiveram o direito de residência em Macau;
8) Por último, o Recorrente solicita que seja mantida a autorização de residência temporária à interessado B, para que ela possa usufruir o direito de residência na RAEM.
8. Face a este recurso hierárquico necessário procedeu-se a seguinte análise:
1) Em primeiro lugar, o Recorrente considera que, aquando requereu a extensão da autorização de residência para a interessada, nunca nenhum funcionário informou ou houve disposição explícita a dizer que como condição necessária tinha de residir em Macau um determinado número de dias durante o período de residência temporária, nos termos do artº 23.º do RA n.º 3/2005 com aplicação subsidiária do artº 9.º da Lei n.º 4/2003 e artº 22.º do RA n.º 5/2003, indicam claramente que os interessados devem, durante a residência temporária, manter os pressupostos ou requisitos do pedido de residência, a situação jurídica relevante e ter residência habitual em Macau. Os requisitos para a manutenção da autorização de residência temporária estão previstos na lei, devendo os interessados cumprir as disposições legais desde a data da concessão da autorização de residência temporária;
2) Relativamente a este ponto, o requerente aquando requereu pela primeira vez a extensão da autorização de residência temporária para a interessada, bem como no pedido de renovação, na parte da assinatura da declaração consta com a sua assinatura que tomou conhecimento de que deverá cumprir o RA n.º 3/2005 e demais requisitos legais durante o período da validade da autorização de residência temporária;
3) O Recorrente considera que já decorreu mais de 6 anos desde que requereu a extensão da autorização de residência temporária para a interessada, e durante o qual nunca a autoridade administrativa questionou sobre a alteração dos pressupostos da sua residência temporária em Macau, tal fez com que o Recorrente tivesse grande confiança de que ela poderia vir para Macau viver e obter o BIRM, nos termos do artº 8.º do CPA, os interessados não devem suportar as consequências desfavoráveis daquilo que não tinham anteriormente conhecimento, mas que posteriormente foi usado pela autoridade administrativa como fundamento para decidir em matéria de residência temporária;
4) De facto, antes da prática do acto administrativo recorrido, sobre a situação da interessada se era “residente habitual em Macau”, a autoridade administrativa nunca tinha feito qualquer reconhecimento, nem foi feito qualquer confirmação com o Recorrente:
5) Nos termos do artº 23.º do RA n.º 3/2005 com aplicação subsidiária do artº 9.º da Lei n.º 4/2003 e artº 22.º do RA n.º 5/2003, “A residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência."; "A renovação da autorização depende da verificação dos pressupostos e requisitos previstos na lei de princípios e no presente regulamento". Os requisitos para a manutenção da autorização de residência temporária estão estipulados por lei e não são ajustados arbitrariamente pela autoridade, os interessados devem também respeitar as disposições legais pertinentes a partir do momento da concessão da autorização de residência temporária;
6) Para garantir que os interessados cumprem as disposições legais acima referidas, independentemente do período de apreciação do respectivo pedido ou já ter sido aprovada a renovação da autorização de residência temporária, a autoridade continua obrigada a investigar se os interessados mantêm os requisitos estipulados na lei, e uma vez confirmado que a pessoa interessada violou as disposições legais relevantes, pois é necessário nos termos legais praticar o acto administrativo de cancelar ou declarar a nulidade, ou até indeferir o respectivo pedido de renovação, no qual não existe violação de quaisquer disposições ou princípios legais;
7) Além disso, o n.º 3 do artº 9.º da Lei n.º 4/2003 é uma norma jurídica obrigatória, pelo que o poder conferido à autoridade administrativa é um poder vinculativo. Deve saber que do entendimento unânime das jurisprudências de Macau tem defendido consistentemente que: tal como os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da boa-fé só são aplicáveis ao poder discricionário e não são aplicáveis ao poder vinculado (vide acórdãos do TUI n.ºs 32/2016, 46/2015 e 54/2011). Seguindo a jurisprudência supracitada, entende que o acto recorrido sendo um acto administrativo vinculativo, portanto não violou o princípio da boa-fé;
8) O Recorrente entende que a renovação da residência dos membros do agregado familiar depende do requerente principal, e neste caso o requerente principal já obteve a emissão do BIRM, então a interessada deve ser beneficiada e ao mesmo tempo ficou preenchidos os pressupostos e requisitos para manutenção da autorização de residência temporária;
9) Salienta-se que o objectivo final das pessoas requererem a autorização de residência temporária em Macau é querer ser residente permanente de Macau, nos termos do RA n.º 3/2005, as pessoas autorizadas a residir temporariamente em Macau necessitam de satisfazer “os requisitos de "residir durante 7 anos consecutivos ou mais em Macau quer seja antes ou depois da criação da RAEM e considerar Macau a sua “residência habitual" para obter o BIRM. Relativamente a este ponto, não se trata apenas das exigências previstas na Lei n.º 8/1999, mas também das exigências previstas no artº 24.º, n.º 2 da Lei Básica da RAEM.
10) Dado que o Recorrente requereu a autorização de residência temporária com fundamento de investimento de imobiliário nos termos dos artº 1.º, n.º 4 e 3.º do RA n.º 3/2005, e através do artº 5.º do mesmo regulamento administrativo requereu a extensão da autorização à sua descendente, ou seja, descendente previsto no RA nº 3/2005 que trata-se da interessada, então devia cumprir a respectiva disposição sobre residência habitual;
11) De acordo com o artigo 4.º, n.º 4, da Lei n.º 8/1999: “Para a determinação da residência habitual do ausente, relevam as circunstâncias pessoais e da ausência, nomeadamente: 1) O motivo, período e frequência das ausências; 2) Se tem residência habitual em Macau; 3) Se é empregado de qualquer instituição sediada em Macau; 4) O paradeiro dos seus principais familiares, nomeadamente cônjuge e filhos menores”;
12) Neste caso, através dos elementos de entrada e saída fornecidos pela PSP demonstram que o número de dias que a interessada permaneceu em Macau em 2017, 2018, 2019 e 2020 (até 31 de março) foi de apenas 3, 7, 0 e 11 dias , conjugado com o conteúdo do recurso interposto pelo Recorrente, a resposta da audiência, dos elementos e documentos constantes nos autos, confirmou-se que a interessada residia e estudava em Xiamen nessa altura e os principais membros do seu agregado familiar não viviam em Macau, portanto é difícil provar que a interessada encontrava-se na situação de ausência temporária de Macau prevista nº art.º 4.º, n.º 3 da Lei n.º 8/1999;
13) Embora o Recorrente tenha afirmado que ele e a sua esposa viviam em Xiamen para cuidar da sua ascendente que estava doente há muitos anos, que por sua vez a interessada teve que viver com os seus pais em Xiamen, porém, através dos documentos apresentados pelo Recorrente, apenas demonstravam que a ascendente do Recorrente foi hospitalizada por motivo de doença entre 2007 e 2008 (nessa altura o Recorrente ainda não tinha solicitado a extensão da autorização de residência temporária à interessada), mas não conseguiu provar que nos dez anos seguintes, especialmente no período entre 2017 a 31 de Março de 2020, por quê obstáculo a interessada não conseguiu tomar Macau como centro da sua vida, daí se vê que os assuntos quotidianos dela não giravam em torno de Macau e obviamente Macau não era o centro da sua vida; salienta-se que foi por opção pessoal do Recorrente ter organizado a interessada a estudar e viver em Xiamen, no qual não se verifica qualquer obstáculo que impediu-a de estudar, trabalhar e viver em Macau;
14) Não obstante o Recorrente tenha declarado que a interessada se matriculou em setembro de 2020 numa escola em Macau, e o Recorrente em novembro de 2020 também estabeleceu uma companhia em Macau, no entanto, as informações relevantes apresentadas pelo Recorrente não permitem justificar a razão pela qual a interessada entre 2017 a 31 de março de 2020 não residiu habitualmente em Macau, pelo contrário, feito a conjugação dos elementos constantes nos autos, reflete-se que a interessada entre 2017 a 31 de março, 2020 não considerou Macau a sua residência habitual e centro da sua vida, nem residiu habitualmente em Macau;
15) Em suma, a autoridade administrativa baseou-se no facto de a interessada não ter residido em Macau durante a maior parte do tempo entre 2017 a 31 de março de 2020, que após consideração abrangente das diversas situações previstas no artº 4.º, n.º 4 da Lei n.º 8/1999, obteve a conclusão de que a interessada não residia habitualmente em Macau durante o período acima referido. Posto isto, a decisão tomada pelo Presidente da Comissão Administrativa do IPIM em 30 de novembro de 2020, de indeferir o pedido de renovação da autorização de residência temporária da interessada B porque ela não residia habitualmente em Macau, não foi ilegal ou inadequada, nem demonstra violação de quaisquer disposições ou princípios legais.
9. Nos termos expostos, o nosso instituto procedeu a revisão do presente caso, com base nos factos e fundamentos legais acima referidos, o acto administrativo em causa foi praticado nos termos legais, portanto é legal e adequado, após estudo e análise do presente recurso hierárquico necessário, como não se provou que o despacho proferido pelo Presidente da Comissão Administrativa do IPIM em 30/11/2020, que no uso da competência subdelegada pelo Exmº Sr. SEF da RAEM, indeferiu o pedido de renovação da autorização de residência temporária da interessada B foi ilegal ou inadequada, pelo que promove-se ao Exmº Sr. SEF para negar provimento ao recurso hierárquico necessário interposto, mantendo a decisão tomada pelo Presidente da Comissão Administrativa do IPIM em 30/11/2020.
(…)»”; (cfr., fls. 124 a 130).
Do direito
3. Como se colhe do que até aqui se deixou relatado, vem B recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 11.01.2024, com o qual se lhe negou provimento ao anterior recurso contencioso em sede do qual peticionava a revogação da decisão do SECRETÁRIO PARA A ECONOMIA E FINANÇAS que confirmou o despacho que indeferiu o seu pedido de renovação da sua autorização de residência temporária em Macau.
Da análise e reflexão que sobre o que dos presentes autos consta, assim como do que agora vem alegado, e ressalvado o devido respeito pro outro entendimento, cremos que não se pode reconhecer razão à ora recorrente.
Vejamos.
No seu Acórdão, e aderindo ao douto Parecer do Ministério Público, assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:
“(…)
O acto praticado pela Entidade Recorrida que negou provimento ao recurso hierárquico do indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência temporária da Recorrente na RAEM que é impugnado nos presentes autos de recurso contencioso, fundou-se na aplicação subsidiária, por força do artigo 23.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005 (segundo esta norma, «é subsidiariamente aplicável aos interessados que requeiram autorização de residência temporária nos termos do presente diploma o regime geral de entrada, permanência e fixação de residência na Região Administrativa Especial de Macau»), da norma do n.º 3 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003 (cujo teor é o seguinte: «a residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência») e do n.º 2 do artigo 22.º do Regulamento Administrativo n.º 5/2003 (de acordo com o qual, «a renovação da autorização depende da verificação dos pressupostos e requisitos previstos na lei de princípios e no presente regulamento»), em vigor à data da prática do acto que foi objecto de recurso hierárquico, em virtude de Administração ter considerado que a Recorrente não tinha residência habitual na RAEM.
(ii.)
(ii.1.)
No essencial, a Recorrente imputa ao acto recorrido a violação do princípio da boa fé.
Sem razão, parece-nos.
Desde logo, porque a Administração actuou no exercício de um poder vinculado. Na verdade, no âmbito da aplicação subsidiária da Lei n.º 4/2003 e do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, sempre se entendeu que, tanto no que que concerne à declaração de caducidade, como no que tange ao indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência temporária, a Administração não dispunha de qualquer margem de decisão discricionária acaso se demonstrasse a inverificação dos respectivos pressupostos. Significa isto que, uma vez assente que o interessado nunca teve ou deixou de ter residência habitual em Macau, não restará à Administração senão indeferir o pedido de renovação da autorização de residência temporária, pelas mesmas razões que a vinculariam a declarar a caducidade do acto autorizativo. A prática desse acto, não pode, pois, ser neutralizada pela invocação do princípio da boa fé, uma vez que este constitui um limite da margem de livre decisão administrativa. Tal princípio, apenas pode bloquear a adopção de uma conduta administrativa incompatível com a confiança suscitada na medida em que tal conduta se encontre naquele espaço de livre decisão.
Sem prejuízo, sempre diremos, em todo o caso, que, em nosso modesto entender, a violação do princípio da boa fé, na dimensão da protecção da confiança, que é aquela que aqui está em causa, e que encontra assento na norma do artigo 8.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), no caso, não ocorre. Pelo seguinte.
Como se sabe, a operatividade do mencionado princípio depende de diversos pressupostos, a saber: a conduta de um sujeito criadora de confiança, sem violação de deveres de cuidado que ao caso caibam; uma situação, justificada objectivamente, de confiança baseada em elementos do caso que lhe atribuam razoabilidade; um investimento de confiança consistente no sujeito confiante ter assentado actividades jurídicas claras sobre as expectativas criadas, um nexo de causalidade entre a actuação geradora de confiança e a situação de confiança, por um lado e entre a situação de confiança e o investimento de confiança, por outro e a frustração da confiança por parte do sujeito jurídico que a criou (na jurisprudência comparada, a título exemplificativo, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21.09.2011, processo n.º 753/11, disponível para consulta em linha e na doutrina, MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3.ª edição, Lisboa, 2008, pp. 222-223 e ainda, em termos não inteiramente coincidentes, PEDRO MONIZ LOPES, Princípio da Boa fé e Decisão Administrativa, Coimbra, 2011, pp. 279-286).
Ora, no caso, parece-nos que se não verificam os enunciados pressupostos. Com efeito, a Recorrente não alegou qualquer conduta da Administração, no momento da autorização de residência ou das respectivas renovações, que tivessem sido ou sequer pudessem ter sido criadoras de expectativas quanto à irrelevância do local da residência habitual do Recorrente para a manutenção e para a renovação da autorização de residência. No limite, teria havido uma conduta omissiva da Administração, a qual, em todo o caso, sempre seria de reputar como legalmente indevida e, portanto, insuficiente para fundar uma confiança legítima. Do mesmo modo, não foi alegado nem está demonstrado qualquer investimento de confiança por parte do Recorrente. Pelo contrário, aliás. Como vimos, aquele investimento traduz-se no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade com base no facto da Administração alegadamente gerador da confiança, de tal modo que que a destruição dessa actividade pela actuação contraditória com essa confiança se traduziria numa injustiça clara. Ora, no caso em apreço, é a própria Recorrente que, no recurso, alega que residia fora de Macau por razões atinentes à sua menoridade, a qual implicava que tivesse de viver com os seus pais e estes, por sua vez, residirem no Interior da China. Não, em todo o caso, por ter confiado em que o podia fazer em virtude de qualquer indicação da Administração nesse sentido, é dizer, em virtude de qualquer investimento de confiança. Não pode, pois, descortinar-se um nexo de causalidade entre qualquer confiança criada pela Administração e a falta de residência habitual em Macau por parte da Recorrente.
(ii.2.)
Uma última nota. A Recorrente, no artigo 34.º da douta petição inicial do presente recurso contencioso, imputa à Administração uma violação do princípio do inquisitório previsto no artigo 86.º do CPA. Trata-se, no entanto, de uma alegação que, segundo cremos, carece de fundamento.
Na verdade, a Administração, no exercício da discricionariedade procedimental que a lei lhe confere, em especial no artigo 59.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) procedeu à instrução nos termos que se lhe afiguraram convenientes, tendo em vista a recolha dos elementos de facto necessários à prolação da decisão sobre o pedido formulado. Não nos parece que, nessa actuação a Administração tenha actuado de forma desrazoável ou manifestamente errónea, nem se vislumbra, estamos em crer, a existência de qualquer défice instrutório resultante da violação do princípio do inquisitório plasmado no artigo 86.º do CPA, susceptível de se repercutir na legalidade do acto.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, somos de parecer de que o presente recurso contencioso deve ser julgado improcedente.».
Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta entendemos que o acto impugnado não enferma dos vícios que a Recorrente lhe assaca, sendo de negar provimento ao recurso contencioso.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004”; (cfr., fls. 130 a 133).
Aqui chegados, e em face do que se deixou consignado, pouco se nos mostra de acrescentar para se demonstrar da carência de qualquer razão do presente recurso.
Vejamos.
Como por este Tribunal de Última Instância tem sido (repetidamente) afirmado em sede de idênticos recursos:
«A “residência habitual” é um “conceito indeterminado”, sindicável pelos Tribunais, implicando, necessariamente, uma “situação de facto”, com uma determinada dimensão temporal e qualitativa, que pressupõe um “elemento de conexão”, expressando uma “íntima e efectiva ligação a um local” (ou território), com a real intenção de aí habitar e de ter, e manter, residência”, sendo de se ponderar “não só uma “presença física” como a (mera) “permanência” num determinado território, (a que se chama o “corpus”), mas que seja esta acompanhada de uma (verdadeira) “intenção de se tornar residente” deste mesmo território, (“animus”), e que pode ser aferida com base em vários aspectos do quotidiano pessoal, familiar, social e económico, e que indiquem, uma “efectiva participação e partilha” da sua vida social.
A mera “ausência temporária” de uma pessoa a quem tenha sido concedida autorização para residir em Macau não implica a necessária conclusão que tenha deixado de “residir habitualmente” em Macau.
De facto, nos termos do art. 43°, n.° 5 da (nova) Lei n.° 16/2021:
“(…) não deixa de ter residência habitual o titular que, embora não pernoite na RAEM, aqui se desloque regular e frequentemente para exercer actividades de estudo ou profissional remunerada ou empresarial”.
Verificando-se porém que no período de vários anos o interessado tão só manteve uma “escassa permanência” em Macau, e sem que nada mais resulte dos autos, viável não é considerar-se que tem “residência habitual”»; (cfr., v.g., os Acs. de 27.01.2021, Proc. n.° 182/2020, de 18.12.2020, Proc. n.° 190/2020, de 12.10.2022, Proc. n.° 143/2021, e, mais recentemente, a Decisão Sumária de 16.01.2023, Proc. n.° 118/2022, de 10.02.2023, Proc. n.° 10/2023, de 26.04.2023, Proc. n.° 128/2022, de 28.02.2024, Proc. n.° 13/2024, de 15.03.2024, Proc. n.° 65/2023, de 24.04.2024, Proc. n.° 35/2024, de 02.05.2024, Proc. n.° 44/2024 e de 17.05.2024, Proc. n.° 49/2024).
In casu, por motivos de “investimento”, concedeu-se autorização de residência a A, estendendo-se, posteriormente, à sua filha B, ora recorrente.
E, vindo-se a verificar que nos vários anos em que tal “autorização” se manteve, a dita B “não residiu habitualmente em Macau”, “provada” não estando, igualmente, alguma razão que justificasse tal situação, veio-se a indeferir o pedido de uma nova renovação, (visto estando que foi o assim decidido “confirmado” pelo Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância, e que outra solução não se vislumbra que pudesse adoptar).
Com efeito, atento o estatuído no art. 23° do Regulamento Administrativo n.° 3/2005 – onde se preceitua que “É subsidiariamente aplicável aos interessados que requeiram autorização de residência temporária nos termos do presente diploma o regime geral de entrada, permanência e fixação de residência na Região Administrativa Especial de Macau” – dúvidas não parece que possam existir que, a “residência permanente em Macau”, constitui pressuposto legal (necessário) de todas as “situações” de renovação da autorização de residência – cfr., art. 9°, n.° 3 da Lei n.° 4/2003, onde se estatui que “A residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência”, o mesmo sucedendo com o art. 43°, n.° 2, alínea 3) da Lei n.° 16/2021, que revogou a anterior Lei n.° 4/2003 – e, por isso, também à ora recorrente aplicável; (no mesmo sentido, cfr., v.g., a Decisão Sumária deste T.U.I. de 24.04.2024, Proc. n.° 35/2024 e de 17.05.2024, Proc. n.° 49/2024).
E, nesta conformidade, e ainda que se nos mostre de dizer que, efectivamente, melhor seria que a referida “falta de residência habitual em Macau” da referida interessada tivesse sido objecto de tempestiva ponderação e apreciação, (e, assim, há muito que resolvida estaria a situação), cabe consignar que, de tal (mera) “omissão”, (ou “inércia”, ainda que assente em eventual equívoco), não resulta nenhuma razão ou justificação legal para se poder considerar que a favor da mesma se constituiu uma “expectativa legítima, juridicamente reconhecida e exigível”, no sentido de – em frontal e expressa colisão com o estatuído no regime legal sobre a matéria aplicável – se lhe dever ser, ou passar a ser, (para sempre), dispensada a exigência de tal pressuposto da “residência habitual em Macau”, para efeitos de renovação da sua autorização de residência, (inviável sendo também de se considerar desrespeitado o invocado “princípio da boa fé”).
Na verdade, não se pode olvidar que a referida “conduta administrativa” antes adoptada relativamente à situação da aludida residência habitual em Macau, até mesmo porque nunca foi – expressamente – declarada e/ou reconhecida a isenção de tal “pressuposto”, não integra nenhuma “situação” (ainda que equiparável à) de “caso julgado” ou de “direito adquirido”, não constituindo também, e de forma alguma, qualquer tipo de “auto-vinculação administrativa”, (ou outro obstáculo à decisão adoptada), da mesma não se podendo extrair, (para além do que já se referiu), a mais pequena razão justificativa para se considerar como existente uma cometida “ilegalidade”, censura (jurídico-legal) não se podendo fazer assim à decisão administrativa que, com base na constatada “ausência de residência habitual”, acabou por não acolher a pretensão de renovação da autorização de residência em Macau em questão, o mesmo se mostrando de dizer relativamente ao Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância que decidiu nos termos já relatados.
E, assim, tendo-se decidido em conformidade com o “enquadramento jurídico legal” que sobre “situação de facto” incidia, e não se apresentando existente ou cometido qualquer vício ou ilegalidade, imperativa é a decisão que segue.
Decisão
4. Nos termos do que se deixou exposto, decide-se negar provimento ao presente recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 5 UCs.
Registe e notifique.
(…)”; (cfr., fls. 169 a 180 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Notificada do assim decidido, veio a recorrente reclamar para a Conferência, alegando – em síntese – que a decisão proferida padecia de “erro de julgamento” por “errada aplicação da lei”, insistindo no entendimento que em sede da motivação do seu recurso tinha deixado exposto; (cfr., fls. 185 a 188).
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Adequadamente processados os autos, com resposta da entidade recorrida e Parecer do Ministério Público, (cfr., fls. 193 a 196 e 197), e nada parecendo obstar, passa-se a decidir.
Fundamentação
II. Vem a recorrente dos presentes autos reclamar da “decisão sumária” pelo ora relator proferida e que atrás se deixou (integralmente) transcrita.
Porém, sem embargo do muito respeito por opinião em sentido distinto, e, (re)ponderando nos motivos de facto e de direito da dita “decisão”, assim como nas “razões” pela mesma recorrente apresentadas na sua reclamação agora em questão, e onde se limita a repetir os argumentos antes já invocados e apreciados, evidente se nos mostra que não se pode reconhecer qualquer mérito à sua pretensão.
Na verdade, a decisão sumária agora reclamada (e atrás transcrita), apresenta-se clara e isenta de qualquer obscuridade ou ambiguidade, com a mesma se dando cabal resposta a todas as “questões” colocadas, mostrando-se, igualmente, acertada na fundamentação e quanto à “solução” a que chegou, encontrando-se, aliás, em total harmonia com o entendimento que esta Instância tem vindo a assumir (nos Acórdãos já referidos) perante idênticas situações.
Porém, volta a recorrente ora reclamante a insistir no seu ponto de vista, afirmando que a decisão administrativa em questão viola o “princípio da legalidade”, que a Administração agiu em sentido contrário à sua própria auto-vinculação, violando também o “princípio da boa fé e da tutela da confiança”, e que, as decisões judiciais que assim não entenderam, (como é o caso da decisão sumária ora reclamada), fizeram uma errada interpretação e aplicação da Lei.
Ora, compreendendo-se – e respeitando-se – o inconformismo da ora reclamante, mas constatando-se que a mesma se limita a repetir (integralmente) os mesmos “argumentos” que foram objecto de clara, adequada e fundamentada apreciação na decisão sumária agora reclamada, que como se viu, deu cabal resposta às questões suscitadas, mostrando-se de aqui sublinhar também que uma (mera) anterior “conduta omissiva” da Administração, (que sempre se podia considerar, eticamente inadequada e indevida), se apresenta manifestamente insuficiente e irrelevante para justificar qualquer confiança ou legítima expectativa do administrado na sua repetição, (cabendo sublinhar que não chegou a haver sequer qualquer tomada de posição pela Administração), não se vislumbrando assim nenhum dos vícios pela ora reclamante imputados.
Dest’arte, nenhuma censura merecendo a decisão sumária em questão, e sendo de aqui se confirmar e dar como integralmente reproduzida, visto está que se terá de decidir pela improcedência da presente reclamação, imperativa sendo a deliberação que segue.
Decisão
III. Nos termos que se deixam expostos, em conferência, acordam julgar improcedente a apresentada reclamação.
Pagará a reclamante a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 17 de Julho de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
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