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Processo nº 87/2024
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-19-0235-PCC do 3° Juízo do Tribunal Judicial de Base, e por Acórdão de 19.01.2024, julgou-se parcialmente procedente o pedido de indemnização civil aí enxertado, e, fixando-se a “culpa” pelo “acidente” de viação matéria dos autos em 80% para o arguido e (1°) demandado A (甲), e em 20% para o ofendido e demandante B (乙), condenou-se a (2ª) demandada civil “C”, (“丙”), no pagamento da quantia total de MOP$1.082.766,40 ao referido demandante; (cfr., fls. 807 a 828 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Em sede do recurso que do assim decidido o referido demandante (B) interpôs para o Tribunal de Segunda Instância – reclamando um aumento do valor da indemnização por “perda da sua capacidade de ganho” – proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão de 25.04.2024, (Proc. n.° 209/2024), onde se negou provimento ao recurso, confirmando-se, integralmente, a decisão pelo Tribunal Judicial de Base proferida e recorrida com a qual foi aquela “indemnização” fixada em MOP$600.000,00 que, após ponderada a referida percentagem da culpa, resultou no quantum de MOP$480.000,00; (cfr., fls. 899 a 905).

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Ainda inconformado, traz o mesmo demandante o presente recurso, insistindo no seu pedido no sentido de se fixar a indemnização por “perda da capacidade de ganho” na quantia inicialmente reclamada de MOP$1.649.764,58; (cfr., fls. 919 a 932-v).

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Contra-alegando, pugna a demandada civil “C” pela total improcedência do recurso; (cfr., fls. 938 a 946).

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Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre conhecer.

Fundamentação

2. Como se vê do que se deixou relatado, insurge-se o ofendido, demandante, e ora recorrente, (B), insistindo na sua pretensão em obter uma indemnização por “perda da capacidade de ganho” na quantia de MOP$1.649.764,58, em vez da que lhe foi arbitrada pelo Tribunal Judicial de Base e confirmada pelo Acórdão agora recorrido do Tribunal de Segunda Instância, no valor de MOP$600.000,00, ou melhor, após a cálculo em conformidade com a sua percentagem de 20% de culpa pelo acidente, de MOP$480.000,00.

No seu recurso para esta Instância trazido, produz o demandante, ora recorrente, as seguintes conclusões:

“1.ª O tribunal a quo manteve o valor de MOP$600.000,00 da indemnização pela perda da capacidade de ganho arbitrado pelo tribunal de 1.ª instância.
2.ª Mas, salvo o devido respeito, nenhum dos fundamentos invocados na decisão recorrida para manter inalterado o valor arbitrado pelo tribunal de 1.ª instância se verifica. Por conseguinte, outro (mais elevado) podia e devia ter sido o montante arbitrado.
3.ª Primeiro, por o tribunal recorrido não ter aplicado ou tido em conta a fórmula de cálculo sancionada e sedimentada na jurisprudência do TUI para este tipo de casos, designadamente a fórmula uniformemente usada nos acórdãos de 30/04/2019 (recurso n.º 31/2019), de 07/11/2018 (recurso n.º 78/2018), de 31/10/2018 (recurso n.º 76/2018), de 11/07/2018 (recurso n.º 39/2018), de 07/11/2012 (recurso n.º 62/2012) e de 25/04/2007 (recurso n.º 20/2007), in www.court.gov.mo, nos termos e para os efeitos do disposto no art.o 560.º, n.º 5 e 6 e no art.º 7.º, n.º 3, ambos do Código Civil.
4.ª Devia tê-lo feito? A resposta não pode deixar de ser afirmativa já que o tribunal recorrido não se podia ter limitado a concordar com o decidido pelo tribunal de 1.ª instância sem ter em consideração o tratamento deste tipo de casos pelo TUI, ou seja, sem comparar o factor de correcção usado no caso concreto com o factor de correcção da "bolada" julgado equitativo na fórmula da indemnização por perda da capacidade de ganho sancionada na jurisprudência supra citada.
5.ª Desde logo, por tal fórmula "vincular" os tribunais inferiores nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 7.º, n.º 3, do Código Civil.
6.ª Depois, por tal fórmula se considerar como o "gold standard" ou "pedra de toque" do acerto da fixação da indemnização pelo dano resultante da perda da capacidade de ganho e, nessa medida, ser orientadora e explicativa do juízo de equidade a que o n.º 6 do art.º 560.º do Código Civil se reporta,
7.ª sendo que o valor com ela alcançado se traduz num “minus” indemnizatório e não num “magis”, pelo que a sua eventual correcção nunca poderia ter sido para menos, mas sempre para mais já que tal fórmula não tem em conta, por exemplo:
- o valor da "inflação real acumulada" desde a data do acidente até ao termo do período da vida activa do lesado;
- o valor da progressão salarial decorrente da progressão na carreira de assistente técnico administrativo especialista na Direcção dos Serviços Correccionais;
- o prolongamento da I.P.P. para além da idade de reforma (por nada impor que se deixe de trabalhar ou de ter actividade profissional depois dela).
8.ª E, por último, porque para além da fórmula do cálculo da indemnização por redução permanente da capacidade de ganho prevista no art.º 47.º, n.º 1, c), 4.º parágrafo do Decreto-Lei n.º 40/95/M, não se conhecer outra fórmula na RAEM (senão a sancionada pelo TUI) para o cômputo da indemnização por perda permanente da capacidade de ganho na RAEM, nada justificando a sua derrogação no caso ora em apreço.
9.ª Terceiro, porque a sedimentação e confirmação nos acórdãos do TUI, desde 2007 em diante, da fórmula de cálculo do dano resultante da perda da capacidade de ganho, conferiu-lhes (apesar de os mesmos não terem "valor doutrinário") um grau de vinculação e de confiança dos destinatários na sua observância, que a sua aplicação se impõe em todos os casos do mesmo tipo, incluindo no caso sub judice, não por "stare decisis", como sucede nos sistemas de "common law", mas por força do princípio da igualdade previsto no artigo 25.º da Lei Básica e do "princípio da interpretação e aplicação uniformes do direito em casos que mereçam tratamento análogo" previsto no art.º 7.º, n.º 3 do Código Civil.
10.ª Logo, a não utilização pelo tribunal a quo da mesma fórmula matemática sancionada pelo TUI para o cômputo da indemnização pela perda da capacidade de ganho, sem que nada o justifique, faz com que no caso "sub judice" o valor dessa indemnização não se possa considerar equitativamente fixado em função dos factos provados (art.o 560.º, n.º 6, do Código Civil),
11.ª nem, por conseguinte, que tal valor seja justo e adequado ao ressarcimento da diferença entre a situação patrimonial do lesado à data do julgamento e a que ele teria nessa data se não tivesse sofrido a lesão permanente da sua capacidade de ganho (art.º 560.º, n.º 5, do Código Civil).
12.ª Quarto, porque para calcular o valor de MOP$600.000,00, depois minorado em 20% para MOP480,000.00 por ser essa a percentagem da culpa atribuída ao Recorrente na produção do acidente,
13.ª o tribunal de 1.ª instância, em vez de aplicar a fórmula sancionada pelo TUI de MOP$ 34,122.00 ÷ 30 x 6907 x 35% x 60% e de multiplicar o produto assim obtido pela percentagem de responsabilidade do 1.º Demandado Cível para determinar o valor da indemnização a pagar, aplicou a seguinte fórmula: MOP$ 34,122.00 ÷ 30 x 6907 x 35% x (100%-78.1787%) x 80%, ou seja, MOP600,000.13 x 80% = MOP480,000.00.
14.ª Tal significa que, para neutralizar o benefício financeiro que representaria para o lesado o recebimento antecipado, de uma só vez (bolada ou "lump sum"), da totalidade da indemnização por perda da capacidade de ganho no valor total de MOP2,749,607.63, o tribunal de 1.ª instância descontou-lhe uma percentagem de 78.1787% em vez da percentagem de 40% julgada equitativa em todos os casos do mesmo tipo julgados pelo TUI!
15.ª Calculado o valor total de MOP2,749,607.63 da indemnização por perda da capacidade de ganho no valor, o tribunal de 1.ª instância descontou-lhe MOP2,149,607.50 (MOP2,749,607.63 - MOP2,149,607.50 = MOP600,000.00, ou seja, introduziu-lhe um desconto de 78.1787% superior em 38.1787% ao desconto de 40% usado na fórmula de cálculo sancionada, de forma uniforme, na supracitada jurisprudência do TUI.
Tal desconto de 78.1787% corresponde aproximadamente ao dobro do desconto de 40% julgado equitativo na fórmula de cálculo sancionada pelo TUI para este tipo de casos e a mais do quíntuplo do desconto de 15% usado no recente acórdão do TSI, de 21.03.2024 (Proc.º 43/2024), in www.court.gov.mo (15%) para neutralizar o efeito de "bolada" resultante do recebimento de toda a soma indemnizatória numa vez só.
Ora um tal desconto de 78.1787%, por não dispor de base legal e/ou factual que o justifique, exceder largamente a percentagem do desconto julgada equitativa na citada jurisprudência do TUI e do próprio TSI nesta matéria, ser contrário à interpretação sistemática (art.º 8.º, n.º 1) e uniforme (art.º 7.º, n.º 3) do art.º 560.º, n.º 6, do Código Civil no contexto específico do cômputo do dano resultante da perda da capacidade de ganho e às regras da experiência do homem médio suposto pela ordem jurídica, viola os limites e pressupostos do "juízo equitativo" previsto no art.º 560.º, n.º 6, do Código Civil.
16.ª O valor de MOP480,000.00 obtido pelo tribunal de 1.ª instância no caso sub judice, quando diluído ao longo de 19 anos, ou seja, quando diluído ao longo do período de tempo desde a data do acidente até ao termo da vida activa do Recorrente (que poderá ultrapassar a idade legal da reforma), não pode, pois, considerar-se conforme ao à regra do art.º 560.º, n.º 6, do Código Civil por ficar muito aquém do valor susceptível de compensar o lesado, de forma equitativa, pela perda vitalícia de capacidade de ganho.
17.ª Quinto, porque se se tiver em conta que a interpretação da lei deve ter sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (art.º 8.º, n.º 1, do Código Civil) e se se usar também como referência o juízo de equidade pressuposto na fórmula do cálculo da indemnização por redução da capacidade de ganho prevista no art.º 47.º, n.º 1, c), 4.º parágrafo do Decreto-Lei n.º 40/95/M para interpretar e aplicar o art.º 560.º, n.º 5 e 6, do Código Civil mediante a aplicação ao caso sub judice dessa mesma fórmula legal com as necessárias adaptações, ou seja, MOP34,122.00 x 96 x 35% obter-se-ia o valor de MOP1,146,499.20, o qual é quase duas vezes e meio superior ao valor arbitrado pelo tribunal de 1.ª instância que foi confirmado pelo tribunal a quo.
18.ª O que só por si, demonstra existir manifesto desequilíbrio e margem para aumentar o valor de MOP600.000,00 confirmado pelo tribunal recorrido a título de indemnização por perda parcial da capacidade de ganho.
19.ª Devia, pois, ter o tribunal de recurso ter calculado o valor da indemnização por perda da capacidade de ganho da seguinte forma: MOP$ 34,122.00 ÷ 30 x 6907 x 35% x (100%-40%) x 80%, ou seja: MOP$1.649.764,58 x 80% = MOP1,319,811.66, corrigindo (para mais) o valor arbitrado pelo tribunal de 1.ª instância a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.
20.ª Sexto, porque o coeficiente de incapacidade permanente parcial (I.P.P.) sofrido pelo Recorrente não é de 20%, conforme supôs o tribunal a quo na pág. 13 do acórdão recorrido, mas de 35%, conforme provado na fundamentação da sentença do tribunal de 1.ª instância.
21.ª Assim, dentro da lógica do tribunal recorrido, se 20% de I.P.P. corresponde a uma indemnização por perda da capacidade de ganho de MOP 600.000,00, então 35% de I.P.P. corresponderá a uma indemnização de MOP1.050.000,00, por força da "regra de três simples".
22.ª Logo, não fosse o tribunal de recurso ter erradamente suposto na sua decisão que a percentagem de I.P.P. sofrida pelo B era de 20% (quando realmente foi de 35%, conforme assente na fundamentação da sentença do tribunal de 1.ª instância), o valor da indemnização arbitrado pelo tribunal de 1.ª instância a título de perda da capacidade de ganho teria sido majorado (pelo menos) de MOP600,000.00 para MOP1.050.000,00.
23.ª Destarte, verifica-se um vício na formação do silogismo judiciário da decisão ora recorrida por erro sobre a sua premissa menor, designadamente sobre o valor real da percentagem da I.P.P. (35%) assente na fundamentação da sentença do tribunal de 1.ª instância.
24.ª Sétimo, porque apesar de os acórdãos de 30/04/2019 (recurso n.º 31/2019), de 07/11/2018 (recurso n.º 78/2018), de 31/10/2018 (recurso n.º 76/2018), de 11/07/2018 (recurso n.º 39/2018), de 07/11/2012 (recurso n.º 62/2012) e de 25/04/2007 (recurso n.º 20/2007), in www.court.gov.mo não serem "acórdãos doutrinários" ou de "uniformização de jurisprudência", tal não significa que os mesmos não tenham necessariamente de serem tidos em conta pelo tribunal de recurso no tratamento do mesmo tipo de casos, como sucede na situação sub judice.
25.ª É que apesar da não vinculação ao sentido assumido pelos tribunais superiores, na aplicação do direito os tribunais inferiores têm de necessariamente tomar em consideração os valores da segurança, da certeza jurídica e da eficácia, como factores que concorrem para a legitimação das decisões judiciais, por força do princípio da igualdade previsto no artigo 25.º da Lei Básica e do "princípio da interpretação e aplicação uniformes do direito em casos que mereçam tratamento análogo" previsto no art.º 7.º, n.º 3 do Código Civil.
26.ª Assim sucedeu, por exemplo, no acórdão do TSI, de 24.11.2022 (Proc.º 643/2021) e mais recentemente no Acórdão de 24.11.2022 (Proc.º 43/2024), no qual até se optou por um factor de desconto do valor da “bolada” ainda mais favorável para o lesado (15%) do que o adoptado no TUI (40%).
27.ª Logo, uma vez que não se verificam circunstâncias que afastem o tratamento análogo e uniforme do caso concreto imposto pelo "princípio da igualdade" previsto no artigo 25.º da Lei Básica e pelo "princípio da interpretação e aplicação uniformes do direito em casos que mereçam tratamento análogo" previsto no art.º 7.º, n.º 3 do Código Civil, o recurso deve proceder.
28.ª Oitavo, porque o cálculo da indemnização por perda da capacidade de ganho realizado pelo tribunal de 1.ª instância (e mantido pelo tribunal recorrido) foi indevidamente feito nos termos do disposto no art.º 487.º ex vi do art.º 489.º. n.º 3, ambos do Código Civil.
29.ª Tal cálculo devia, no entanto, ter sido feito nos termos dos art.os 560.º, n.º 5 e 6 e 564.º, n.º 1, ambos do Código Civil, por a perda da capacidade de ganho não ser um dano moral e a repartição da culpa pelo acidente ter sido de 20% para o B (Recorrente) e de 80% para o A (1.º Demandado Civil).
30.ª Não estava, pois, a censura do tribunal recorrido reduzida à verificação dos limites e pressupostos do juízo de equidade previsto no art.º 489.º, n.º 3 (ou no art.º 560.º, n.º 6) do Código Civil, tendo em conta as circunstâncias referidas no artigo 487.º do mesmo diploma,
31.ª cabendo-lhe ainda a reapreciação, com base na teoria da diferença do acerto do valor arbitrado em 1.ª instância, corrigindo-o para mais, conforme resulta do disposto no art.º 560.º, n.º 5 e 6, do Código Civil interpretado e aplicado nos termos do disposto no art.º 7.º, n.º 3 e 8.º, n.º 1, do mesmo diploma.
32.ª A indemnização pela perda de capacidade de ganho resultante da incapacidade parcial permanente cifra-se, assim, no valor de MOP$1.649.764,58, segundo a fórmula de cálculo sancionada na jurisprudência do TUI, ou seja a formula MOP$ 34,122.00 ÷ 30 x 6907 x 35% x 60%, tendo em consideração o período de 6907 dias a contar a contar do dia de acidente de viação até à idade de reforma de 65 anos, a incapacidade parcial permanente de 35% e o factor de correcção de 60% correspondente a um desconto de 40% da “bolada” por o pagamento da indemnização dever ser efectuado de uma só vez,
33.ª Nono, por a decisão ora recorrida que manteve o valor da indemnização por perda da capacidade de ganho por I.P.P. arbitrada pelo tribunal de 1.ª instância não ter interpretado e aplicado o art.o 560.º, n.º 5 e 6 nos termos do disposto no art.º 7.º, n.º 3 e 8.º, n.º 1, todos do Código Civil.
34.ª Assim sucedeu por o juízo equitativo contido no segmento decisório do acórdão recorrido não ter tido em conta a fórmula de cálculo sancionada na jurisprudência do TUI supra citada, nem tampouco a "ratio essendi" da fórmula plasmada no art.º 47.º, n.º 1, c), 4.º parágrafo do Decreto-Lei n.º 40/95/M ou o "factor de correcção" da “bolada” nela pressuposto.
35.ª O montante total da indemnização que devia ter sido arbitrado ao B no presente caso era, pois, de MOP$2,497,948.58, ou seja: MOP$208,732.00 (despesas médicas) + MOP$91,476.00 (perda de subsídio por turno) + MOP$3,250.00 (custos de reparação do veículo) + MOP1,649,764.58 (incapacidade permanente parcial) + MOP$450,000.00 (danos não patrimoniais).
36.ª No entanto, como o tribunal de 1.ª instância considerou que o 1.º Demandado Cível e o Recorrente são responsabilizados pelos danos do acidente de viação, na proporção de 20% para o Recorrente e de 80% para o 1.º Demandado Cível, devia o montante total da indemnização ter sido reduzido em conformidade para MOP$1.998.358,86, ou seja para 80% do valor de MOP$2,497,948.58 peticionado pelo ora Recorrente a fls. 257-262.
37.ª A este valor de MOP$1.998.358,86 deve, no entanto, deduzir-se o valor de MOP1,082,766.40 entretanto pago pela「C」em 01.02.2024 para evitar a indemnização prevista no art.º 990.º, n.º 2, do Código Comercial, pelo que o valor ainda em falta se cifra actualmente em MOP839,811.66.
NESTES TERMOS e com o mais que V. Exas., muito doutamente, não deixarão de suprir, o recurso deverá ser julgado procedente, condenando-se a「C」 a pagar o valor de MOP839,811.66 ainda em falta, com as legais consequências”; (cfr., fls. 928-v a 932-v).

Aqui chegados, vejamos.

Em causa não estando a “decisão da matéria de facto (provada)” – que, como se vê, não é objecto de impugnação no presente recurso, nem se mostra de alterar, apresentando-se-nos assim de a considerar “definitivamente adquirida” – vejamos se tem o recorrente razão.

Pois bem, como resulta do que até aqui se deixou relatado, é este Tribunal de Última Instância chamado a se pronunciar sobre o “quantum” da indemnização a título da “perda de capacidade de ganho” do recorrente em resultado das lesões sofridas com o acidente de viação dos autos, e que, como provado está, causaram-lhe uma “incapacidade parcial permanente de 35%”.

Assim, e identificada estando a “questão” a tratar, vejamos que solução adoptar.

Em matéria de “Responsabilidade Civil”, e, mais concretamente, relativamente à “Responsabilidade por Factos Ilícitos”, estatui-se no art. 477° do C.C.M. o seguinte “princípio geral”:

“1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”.

E como também já decidiu este Tribunal de Última Instância, “A perda da capacidade de ganho por incapacidade permanente parcial ou total é indemnizável, ainda que o lesado mantenha o mesmo salário que auferia antes da lesão”, considerando-se igualmente que “No cômputo da indemnização por perda da capacidade de ganho por incapacidade permanente parcial, o tribunal deve atender ao disposto no n.º 5 do art. 560.º do Código Civil, bem como recorrer à equidade, nos termos do n.º 6 do art. 560.º do mesmo Código”; (sobre a matéria, cfr., v.g., o Ac. de 25.04.2007, Proc. n.° 20/2007, e podendo-se ainda ver, os Acs. de 31.10.2018, Proc. n.° 76/2018, de 30.04.2019, Proc. n.° 31/2019 e de 27.07.2022, Proc. n.° 71/2022).

Mostrando-se de manter (inteiramente) o assim considerado (que temos como bom), adequado se apresenta porém de aqui tecer também as seguintes considerações sobre a matéria que nos ocupa.

Como sabido é, o “dano” é a perda – in natura – que se sofre, em consequência de certo facto, nos interesses materiais, espirituais ou morais que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.

Pode revestir “a destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, “material” ou “incorpórea”, (dano real), ou ser mero “reflexo (do dano real) sobre a situação patrimonial do lesado” (dano patrimonial); (cfr., v.g., A. Varela in, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 598).

Dentro do “dano patrimonial” cabem, e são indemnizáveis, o dano “emergente” – o prejuízo causado nos bens ou nos direitos “existentes” na titularidade do lesado – e os “lucros cessantes” – que correspondem aos benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito e a que “ainda não tinha direito na data da lesão”.

Nos termos do n.° 2 do art. 558° do C.C.M. estatui-se também que na fixação da indemnização pode o Tribunal atender ainda aos “danos futuros”, desde que previsíveis.

E dispõe igualmente o art. 556° do mesmo C.C.M. – onde se consagra o “princípio da restauração natural” – que a indemnização deve reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

Não sendo possível essa “reconstituição natural” – como, infelizmente, não o é em casos como o dos autos, em que não se pode devolver ao lesado ora recorrente a “capacidade” e “integridade física” que tinha antes do acidente – a indemnização deve ser fixada em dinheiro, (cfr., art. 560°, n.° 1), e tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem os danos; (cfr., art. 560°, n.° 5).

Ora, o “dano corporal”, lesivo da saúde, (ou “dano biológico”), está na origem de outros danos, (“danos-consequência”), designadamente, aqueles que se traduzem na perda, total ou parcial, da capacidade de trabalho, e (na correspondente) “perda salarial”.

Com efeito, o denominado “dano biológico”, na sua vertente patrimonial, abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua actividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras actividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos e limitações ou de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas actividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis.

Como sobre este aspecto se decidiu no Acórdão do S.T.J. de Portugal de 19.02.2015, Proc. n.° 99/12, (aqui citado como mera referência), “O dano biológico consubstancia uma violação da integridade físico-psíquica de uma pessoa, com tradução médico-legal, sendo que, estando em causa a incapacidade para o trabalho, o mesmo existe haja ou não perda efectiva de proventos laborais”, afirmando-se aí também que: “(…) havendo uma incapacidade permanente, mesmo que sem rebate profissional, sempre dela resultará uma afetação da dimensão anatomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efetiva utilidade do seu corpo ao nível de atividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que de futuro terá de levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo.
E é neste agravamento de penosidade que se radica o arbitramento de uma indemnização”.

Seja como for, o certo é que o dano por “perda de capacidade” ou “incapacidade”, (e que como se viu, tem a natureza de “dano patrimonial”), é distinto e autónomo do “dano não patrimonial” nos presentes autos também reclamado e que se reconduz à dor, desgosto e sofrimento de uma pessoa que se sente, e, possivelmente, para toda a vida, fisicamente diminuída; (sobre esta matéria e quanto à referida “distinção” e “autonomia”, vd., também os Acs. do S.T.J. de 03.03.2016, Proc. n.° 4931/11, de 07.04.2016, Proc. n.° 237/13, de 16.03.2017, Proc. n.° 294/07, de 25.05.2017, Proc. n.° 2028/12 e de 24.03.2021, Proc. n.° 268/17; podendo-se também ver Sinde Monteiro in, “Estudos sobre a Responsabilidade Civil”, pág. 248).

Tratando de “questão” idêntica à aqui em causa, (e como se deixou referido), já considerou este Tribunal de Última Instância que “Na fixação da quantia indemnizatória por perda da capacidade de ganho por incapacidade permanente, o tribunal deve atender ao disposto no n.º 5 do art.º 560.º do Código Civil, bem como recorrer à equidade, nos termos do n.º 6 do art.º 560.º do mesmo Código.
Deve-se ainda atender a outros factos provados pertinentes, como a idade da vítima, o seu estado físico antes da lesão, o seu salário actual e o seu emprego, as suas habilitações académicas, as suas perspectivas profissionais, etc.”; (cfr., v.g., sobre esta temática, os Acs. atrás citados, podendo-se também ver o de 11.07.2018, Proc. n.° 39/2018, de 07.11.2018, Proc. n.° 78/2018 e de 01.11.2023, Proc. n.° 55/2023).

Isto dito, vejamos qual a “situação” que os presentes autos nos dão conta.

Ora, o Tribunal Judicial de Base fixou pelos “danos” agora em questão a indemnização de MOP$600.000,00, montante este que foi objecto de confirmação pelo Tribunal de Segunda Instância com o Acórdão agora recorrido, certo sendo que de tal montante foi deduzido o correspondente à “percentagem de culpa do ofendido, (ora recorrente), pelo acidente”, in casu, calculada em 20%, (cabendo os restantes 80% ao arguido, 1° demandado, e segurado pela agora recorrida), resultando assim no já referido quantum indemnizatório de MOP$480.000,00.

E, como se viu, com o presente recurso, inconformado com este montante indemnizatório (de MOP$480.000,00), bate-se o ora recorrente pelo aumento da dita indemnização, pedindo o quantum de MOP$1.649.764,58, ou melhor, no caso, em face da sua “percentagem de culpa” pelo acidente, o de MOP$1.319.811,66, invocando, (essencialmente), uma “forma de cálculo” que apelida ser a “fórmula sancionada por esta Instância”, (cfr., concl. 3ª), que, por isso, em sua opinião, se devia respeitar e manter, (cfr., art. 7°, n.° 3 do C.C.M.), e de cuja aplicação à situação dos autos devia resultar no valor que com o presente recurso reclama.

Que dizer?

Pois bem, já atrás se deixou referido o “regime legal” que em nossa opinião incide e regula a “matéria” agora em causa – e que, em especial – é o preceituado no art. 477°, 556°, 558° e 560° do C.C.M., (para onde se remete).

E, sem embargo do muito respeito por outros entendimentos (e convicções) que se possam ter sobre a “questão” que agora nos ocupa, cremos que (totalmente) pacífico é o reconhecimento geral do (grande) “melindre” que constitui a “fixação do (concreto) valor de uma indemnização” como a ora pretendida, (no mesmo sentido, cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de Portugal de 20.11.2019, Proc. n.° 1585/12), pois que inegável se nos apresenta que se funda em (meros) “índices”, (e outros “elementos”), “variáveis” e “incertos”, nomeadamente, no que diz respeito ao (próprio) “tempo de vida do lesado”, à sua (própria) “capacidade para o trabalho” em virtude de outras circunstâncias no momento desconhecidas, (v.g., doenças, acidentes), igualmente, quanto à “evolução e progressão profissional e salarial que poderia ter ao longo da sua vida”, e, outrossim, aos próprios “índices da inflação” e do “custo de vida”, (…), não se podendo assim aqui olvidar também a natural intervenção nesta sede de “juízos” (necessariamente) “subjectivos”, (embora sempre com o fito na justa medida das coisas…).

Daí – e, “avisado” como o é (expressamente) reconhecido em letra da própria Lei, (cfr., art. 8° do C.C.M.) – ter o (nosso) Legislador previsto no atrás aludido art. 560°, n.° 6 (do mesmo C.C.M.) que: “Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julga equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.

Não se quer assim de forma alguma dizer que se deva “repudiar” as pelo ora recorrente invocadas “fórmulas (matemáticas)”, afigurando-se-nos, no entanto, deverem as mesmas constituir apenas uma (possível) “orientação para a solução” a adoptar para o “caso concreto” que, com todos os seus ingredientes específicos (e outros elementos particulares) requer.

Aliás, cremos que, em bom rigor, este é o (verdadeiro) sentido do que tem este Tribunal de Última Instância entendido sobre a matéria, pois que, quando chamado a se pronunciar sobre a mesma, e em conformidade com o que se tem vindo a consignar, “adere” à “base de cálculo” para a fixação do quantum da indemnização adoptado, ou pretendido, desde que o montante daí resultante se apresente justo e equilibrado para a concreta situação de facto em questão.

Com efeito, não se pode também perder de vista, (devendo-se antes ter – bem – presente), que se tem igualmente considerado, (de forma pacífica e firme), que, quando o “cálculo da indemnização” haja assentado – decisivamente – em “juízos de equidade”, (cfr., art. 3° do C.C.M.), como, aliás, é precisamente o caso, ao Tribunal ad quem não deve caber a determinação do exacto valor pecuniário a arbitrar, devendo centrar a sua apreciação (e eventual censura) na verificação dos “limites” e “pressupostos” dentro dos quais se situou o referido juízo de equidade, (tendo em conta o “caso concreto”).

Na verdade, a “equidade” é a “expressão da justiça no caso concreto”, assentando nas particularidades da situação actual do caso em concreto, pelo que deve, em princípio, esse juízo ser mantido, a menos que, atendendo a uma interpretação actualista, fiquem nomeadamente em causa a “segurança jurídica” e o “princípio da igualdade”, constituindo, igualmente, entendimento que se nos mostra de aderir que, a aplicação de puros juízos de equidade não se traduz, em bom rigor, na resolução de uma “questão de direito”, (e que, como já se referiu, em sede de pronúncia sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, esta não deve incidir na determinação exacta do “valor pecuniário a arbitrar”, mas, tão somente, ou principalmente, na verificação dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto; cfr., v.g., os Acs. do S.T.J. de Portugal de 05.11.2009, Proc. n.° 381, de 10.10.2013, Proc. n.° 643, de 20.11.2014, Proc. n.° 5572, de 06.04.2021, Proc. n.° 2908/18 e de 03.02.2022, Proc. n.° 24267/15).

Nesta conformidade, atenta a matéria de facto dada como provada e que releva para a decisão a proferir, e tendo em – especial – atenção a idade do ora recorrente, (nascido em 23.02.1970), o seu salário, (MOP$29.040,00 + MOP$5.082,00 que recebia a título de subsídio por turno, cfr., fls. 811-v), a sua (normal e espectável) evolução em sede da sua carreira profissional e salarial, a percentagem de “incapacidade parcial permanente” que sofre, (calculada em 35%, aqui não se deixando de ponderar também que, como provado está, as lesões com o acidente causadas concentraram-se, essencialmente, na sua perna direita, mais concreta e especialmente, na fractura da tíbia, perónio e tornozelo, que lhe foram tratadas com recolocação e fixação com prótese artificial), e que lhe acarreta dificuldade permanente de se locomover e cuidar de si próprio, e, ponderando, também, o período que em situação normal lhe resta em termos de vida activa, os “índices da inflação” e do normal “custo de vida”, cremos que (mais) adequado se nos mostra considerar o quantum de MOP$800.000,00 como “indemnização pela sua perda da capacidade de ganho” que, em face da sua “percentagem de culpa pelo acidente” (de 20%), resulta no valor de MOP$640.000,00.

Tudo visto, e considerando as quantias ao ora recorrente antes já arbitradas a título de indemnização por outros danos, (patrimoniais e não patrimoniais), e que não foram impugnadas, (e que por isso se mantém integralmente), ao mesmo caberá agora uma indemnização no valor total de MOP$1.242.766,40.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente e recorrida (seguradora) na proporção dos seus decaimentos.

Registe e notifique.

Oportunamente, nada vindo de novo aos autos, proceda-se a sua devolução ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 19 de Setembro de 2024


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Song Man Lei
Fong Man Chong

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