Processo nº 104/2024
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em sede dos Autos de Recurso Civil e Laboral n.° 291/2024 proferiu o Tribunal de Segunda Instância o seguinte veredicto datado de 13.06.2024:
“I) – RELATÓRIO
A (甲), Recorrente, devidamente identificado nos autos, discordando do despacho proferido pelo Tribunal de primeira instância, datado de 27/11/2023 (fls. 93), veio, em 15/12/2023, interpor recurso para este TSI, com os fundamentos constantes de fls. 138 a 163, tendo formulado as seguintes conclusões:
a. Em 27 de Novembro de 2023, o Tribunal a quo indeferiu a petição inicial no despacho recorrido de fls. 93 dos autos, referindo que, quanto ao acto de entrega judicial, deve defender o direito através de embargos de terceiro. No entendimento do Tribunal a quo, o objecto da acção de restituição provisória de posse intentada pelo recorrente é o acto de entrega judicial.
b. Porém, o que alegou o requerimento inicial é sempre o acto de esbulho violento por parte da recorrida e tal acto foi praticado sem ordem judicial.
c. Salvo o devido respeito, o recorrente entende que o presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse é o próprio meio processual e não através de embargos de terceiro para defender o seu direito, pelo que a petição inicial não deve ser indeferida, porquanto:
d. Em 26 de Janeiro de 2022, o recorrente intentou a acção de usucapião contra o dito terreno e prédios pela razão de que detém a posse de tais bens por mais de 20 anos. O processo está a correr termos no Tribunal sob o nº CV1-22-0009-CAO, o qual é o processo principal de providência cautelar que está pendente para decisão.
e. O processo nº CV1-06-0040-CAO é a acção de reivindicação que foi intentada pela recorrida contra os proprietários dos demais prédios, a qual não foi concretamente intentada contra o recorrente, nem este foi citado. O recorrente não é réu no processo nº CV1-06-0040-CAO;
f. A sentença do processo nº CV1-06-0040-CAO ordenou a uns indivíduos que entregassem os prédios que foram ocupados por eles, não sendo um deles o recorrente;
g. O recorrente não é o executado na acção de execução para entrega de coisa certa nº CV1-06-0040-CAO-J;
h. O objecto do processo nº CV1-06-0040-CAO-J inclui os prédios ocupados pelos executados (os limites marcados a cinzento na imagem supra). Os prédios ocupados pelo recorrente (marcados a amarelo) não são o objecto da execução, nem foram abrangidos na ordem de entrega judicial.
1) O respectivo teor no requerimento inicial
i. De acordo com os artigos 13º a 15º do requerimento inicial, a entrega judicial é destinada aos prédios ocupados pelos executados e não aos pelo recorrente.
j. Em conjugação com a alegação do artigo 13º do requerimento inicial de que a entrega judicial não tem nada a ver com o recorrente, do artigo 14º do requerimento inicial resultou que o terreno e os prédios ocupados pelo recorrente:
(1) “não são incluídos no âmbito de julgamento da acção executiva para entrega de coisa certa referenciada em epígrafe” - quer dizer que é impossível existir uma ordem de entrega judicial do tribunal que exigisse ao recorrente a realizar entrega.;
(2) “não são o objecto da execução” - significa que não são o objecto da entrega judicial.
k. Quer a acção de execução, quer o acto de entrega judicial, não são destinados aos terreno e prédios ocupados pelo recorrente, mas sim aos prédios ocupados pelos executados (outros proprietários) do processo nº CV1-06-0040-CAO-J.
l. Do teor dos artigos 13º e 14º do requerimento inicial, verifica-se claramente que o acto de entrega judicial não é destinado ao recorrente.
m. No artigo 15º do requerimento inicial, o recorrente disse que “após o dito acto de entrega judicial” - “o dito” - segundo o artigo 13º, quer dizer o acto de entrega judicial contra os executados e não contra o recorrente. No entanto, infelizmente, a recorrida pratica constantemente actos de esbulho violentos contra o terreno e os prédios ocupados pelo recorrente.
2) O requerimento inicial tem por objecto o acto de esbulho violento e não o acto de entrega judicial
n. No inteiro requerimento inicial, o recorrente frisa constantemente o “acto de esbulho violento praticado pela recorrida” e não o acto de entrega judicial.
o. Caso seja o acto de entrega judicial, se encontrar dificuldades em tomar conta dos bens, a entrega será realizada pelos funcionários de justiça com o auxílio da força pública. De facto, os executados / outros proprietários realizaram a entrega efectiva nesta situação.
p. Mas, tal como foi descrito pelo requerimento inicial, o pessoal ou representantes da recorrida praticaram actos violentos com o objectivo de afastar o recorrente, incluindo, mas não se limitando aos actos de despejar lama, areia e cascalho, cortar o fornecimento de água e eletricidade, ameaçar, etc. Aparentemente, a pessoa que praticou estes actos violentos não pode ser o tribunal.
q. Acresce que, o acto de entrega judicial é um evento único. A entrega efectiva foi concluída no dia 21 de Julho de 2023. Em qualquer dos casos, tal acto não pode durar um mês. Contudo, os actos de esbulho violento foram praticados pela recorrida, após a conclusão da entrega judicial no dia 21 de Julho de 2023, foram praticados novos actos de esbulho violento durante um mês.
r. Analisado globalmente o requerimento inicial, este mostra que o objecto do pedido de restituição da posse não pode ser a entrega judicial que foi ordenada pelo tribunal.
s. De acordo com o teor do artigo 14º do requerimento inicial, “não são incluídos no âmbito de julgamento da acção executiva para entrega de coisa certa referenciada em epígrafe” quer dizer que é impossível existir uma ordem de entrega judicial do tribunal que exige ao recorrente que efectuasse entrega. Com efeito, não existe qualquer ordem do tribunal que exigisse a entrega dos prédios do recorrente.
t. Como já foi dito, uma vez que o recorrente não é o executado do processo nº CV1-06-0040-CAO-J, nos termos do artº 823º do CPC, não é possível decretar ordem de entrega judicial contra o recorrente.
u. Daí resultou que o requerimento inicial sempre tem como objecto os actos de esbulho violento da recorrida e não o acto de entrega judicial.
3) Os actos de esbulho violento da recorrida não são sustentados pela ordem do tribunal
i. Os actos de esbulho violento da recorrida ultrapassam o âmbito da ordem de entrega judicial
v. O acto de entrega judicial é um evento único, cujo objecto e âmbito não têm nada a ver com o terreno e os prédios ocupados pelo recorrente, o qual é destinado apenas aos prédios ocupados pelos executados (outros proprietários) no processo nº CV1-06-0040-CAO- J.
w. E a conduta da recorrida foi precisamente sob o pretexto de entrega judicial para praticar esbulho violento contra o terreno e os prédios do recorrente, o que foi muito além do objecto e do âmbito da entrega judicial. A parte excessa não é suportada pela ordem de entrega judicial.
x. Em suma, o terreno e os prédios impugnados neste caso não são dentro do âmbito da entrega judicial. A recorrida apenas se aproveitou da entrega judicial para esbulhar o recorrente do seu terreno e dos seus prédios, os quais não têm nada a ver com ela, nem são o objecto da entrega judicial.
ii. Processo nº CV1-06-0040-CAO não produz nenhum efeito em relação ao recorrente
y. Em qualquer circunstância, há que especificar complementarmente e frisar que a sentença do processo nº CV1-06-0040-CAO não produz nenhum efeito em relação ao recorrente.
z. Segundo a sentença do processo principal nº CV1-06-0040-CAO, foi indicado expressamente que os ditos réus devem reconhecer o direito de propriedade da recorrida e devolver-lhe o terreno em 6 meses. Dado que a recorrida não incluiu concretamente o embargante na lista de réus e o recorrente não está na sentença, obviamente, tal sentença não produz efeitos condenatórios em relação ao recorrente.
aa. Acresce que, quanto à acção de execução de entrega de coisa certa (processo nº CV1-06-0040-CAO-J), dispõe a al. a) do artº 677º do CPC que “à execução apenas podem servir de base: a) As sentenças condenatórias”. De acordo com o nº 1 do artº 12º do mesmo Código, “a acção executiva tem como base um título, pelo qual se determinam o seu fim e os seus limites.”
bb. Uma vez que não existe na dita sentença qualquer ordem que envolve o recorrente e lhe exigisse a restituição do terreno, não é possível que a acção executiva fosse intentada contra o recorrente. Assim, a acção executiva CV1-06-0040-CAO-J não tem nada a ver com o recorrente, portanto, não produz qualquer efeito.
4) Idoneidade da forma processual adoptada – procedimento cautelar de restituição provisória de posse
cc. Conjugado com o que foi dito, a recorrida apenas se aproveitou ostensivamente da entrega judicial, praticando maliciosamente os ditos actos de esbulho violento. Nesta situação, o recorrente intentou o presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra os actos de esbulho violento que manifestamente ultrapassam o âmbito da entrega judicial e são infundamentados, sendo a forma de processo idónea.
dd. O Tribunal a quo entende ser aplicável o nº 1 do artº 292º CPC, o recorrente deve defender o seu direito através de embargos a terceiro. Porém, não existe ordem judicial que exigisse ao recorrente que entregasse o terreno e prédios ocupados por ele, por isso, não é possível para o recorrente deduzir embargos de terceiro sobre o terreno e os prédios ocupados por ele.
ee. Dito de forma específica, entre os terrenos e prédios reivindicados, apenas uma parte pequena das barracas B que não têm número está incluída no âmbito da entrega judicial, as outras já não estão dentro do âmbito da entrega judicial.
ff. O despacho recorrido viola as disposições dos artº 292º, nº 1, artºs 338º, 339º e 394º, nº 3 do CPC.
gg. Por todo o exposto, uma vez que o terreno e os prédios ocupados pelo recorrente foram esbulhados com violência pela recorrida, tal acto não foi sustentado pela ordem de entrega judicial, nem o terreno e os prédios esbulhados são dentro do âmbito e o objecto da acção executiva nº CV1-06-0060-CAO-J, requer-se aos MMºs Juízes do Tribunal de Segunda Instância que revoguem o despacho de indeferimento da petição inicial proferido pelo Tribunal a quo nos termos do nº 3 do artº 394º do CPC, e determinem o prosseguimento do presente procedimento cautelar.
Face ao exposto e nos mais de Direito aplicáveis, requer-se a V.Exas. que julguem procedente o presente recurso e, em consequência, revoguem o despacho do Tribunal Judicial de Base que indeferiu a petição inicial da presente acção de restituição provisória de posse, bem como determinem o prosseguimento do processo.
*
A Requerida, B (乙), veio, 03/04/2024, a apresentar as suas contra-alegações constantes de fls. 216 a 227, tendo formulado as seguintes conclusões:
a) O Processo n.º CV1-06-0040-CAO foi intentado contra um conjunto de Réus ocupantes identificados nos registos do IH, mas também contra os "interessados incertos desconhecidos que coabitem, usem ou se arroguem direitos sobre qualquer das barracas supra referidas, sobre qualquer outra barraca ou construção informal, ainda que desocupada, ou existente no terreno ou sobre qualquer parte do identificado terreno".
b) Para citar alguns RR. não encontrados e os interessados incertos foram emitidos editais pelo TJB, em 3 de Outubro de 2007, os quais foram publicados no Jornal OU MUN (em 24 e 25 de Outubro de 2007) e no Jornal Tribuna de Macau (em 27 e 28 de Outubro de 2007).
c) O Recorrente, que invoca a sua eventual "posse" com começo no ano de 1998 (v.g. o artigo 11.º da Requerimento Iniciai), é um dos Réus do Processo CV1-06-0040-CAO.
d) O objecto da execução do Processo n.º CV1-06-0040-CAO-J não são só as barracas ocupadas pelos Executados, porque essas barracas são uma forma pela qual os Executados ocupam o terreno descrito sob o n.º XXXXX.
e) Segundo a Sentença do Processo n.º CV1-06-0040-CAO e o pedido inicial da execução, o objecto da execução do Processo n.º CV1-06-0040-CAO-J é o terreno descrito sob o n.º XXXXX, com a área de 4.198m2.
f) Qualquer acto posterior à entrega judicial não pode ser considerado como o dito "esbulho da posse" do Recorrente, isto porque depois da entrega judicial em 21 de Julho de 2023, o Recorrente deixou de ter a posse segundo o n.º 3 do artigo 823.º do CPC, consequentemente, o Recorrente não pode instaurar uma providência cautelar da restituição provisória da posse com base nos actos de esbulho praticados depois da entrega judicial em 21 de Julho de 2023.
g) Segundo o Doc. 7 junto com o Requerimento inicial e a planta cadastral ora se junta, os ditos "actos de esbulho" foram praticados dentro do terreno descrito sob o n.º XXXXX., pelo que não é possível concluir que os actos de esbulho da Recorrida tenham sido praticados fora da área da entrega judicial do Processo n.º CV1-06-0040-CAO-J.
h) Segundo os artigos 2.°, 13.° e 14.° do Requerimento Inicial e o Doc. n.º 1 junto com este requerimento, o Recorrente invoca ser o "possuidor" do terreno descrito sob o n.º XXXXX, não restando dúvida que o objecto da restituição da posse é igual ao objecto da execução do Processo n.º CV1-06-0040-CAO-J.
i) Além disso, segundo os artigos 13.° e 14.° do Requerimento Inicial, o Recorrente bem sabe da realização da entrega judicial em 21 de Julho de 2023.
j) Se o Recorrente pretendia proteger a sua eventual posse, a diligência adequada seria, salvo melhor opinião, o embargo de terceiro previsto no artigo 292.° do CPC, e nunca a restituição provisória da posse.
k) Por isso, o Despacho Recorrido não enferma de qualquer vício, nomeadamente, não viola o n.º 1 do artigo 292, o artigo 338.°, o artigo 339.° e o n.º 3 do artigo 394.°, todos do CPC, pelo que deve ser mantido e, em consequência, a petição inicial do Requerente deve ser indeferida.
I) Segundo o disposto do n.º 4 do artigo 395.° do CPC, o prazo para responder e contestar a petição inicial da Restituição Provisória de Posse só começará a correr a partir de uma notificação à Recorrida feita pela 1.ª instância depois do vencimento do recurso.
*
Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
* * *
II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* * *
III – FACTOS ASSENTES:
- Em 23/08/2024 pelo Requerente/Recorrente foi instaurada a presente providência cautelar contra a Ré, B, pedindo a restituição provisória da posse sobre os imóveis indicados a fls. 16;
- Por despacho de fls. 93, datado de 27/11/2023 foi liminarmente indeferido o pedido;
- Em 15/12/2023 foi interposto recurso contra o despacho (fls. 105);
- Em 18/12/2023 foi admitido o recurso interposto (fls. 107);
- Em 25/01/2024 foram juntas as alegações do recurso (fls. 138 a 165);
- Em 3/4/2024 foram apresentadas as contra-alegações (fls. 215 a 227).
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
Questão prévia: junção pela Recorrida de documentos com as alegações do recurso (fls. 228 a 241 dos autos), nitidamente não se trata de documentos supervenientes como tal não é de os admitir ao abrigo dos artigos 452º e 616º do CPC, condenando-se a apresentante na multa no valor de 1 UC e ordenando-se a sua restituição à apresentante.
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É o seguinte despacho que constitui o objecto deste recurso, proferido pelo Tribunal de primeira instância:
Defere-se apensar os documentos a fls. 76-92 aos autos.
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Conforme o despacho a fls. 70, no presente caso ainda se espera a fixação do valor da causa. No entanto, resulta do processo principal a fls. 1848 - 1850, 1856 - 1863 e 1864 – 1866 que a diligência precisa de mais tempo. Tendo em conta que a natureza da causa não impede o prosseguimento da acção, admite-se provisoriamente o valor da causa indicado pelo requerente no requerimento inicial.
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Segundo os factos alegados pelo requerente no requerimento inicial artigos 12.º a 14.º, o motivo pelo qual deduziu a presente acção – de restituição provisória de posse é que se considera o possuidor do terreno em causa. Como em 21/07/2023, o oficial de justiça do 1.º Juízo Cível do TJB, juntamente com a Administração, se deslocou ao terreno em causa para proceder à entrega judicial que tinha como objecto as habitações ocupadas pelos executados no processo n.º CV1-06-0040-CAO-J, o requerente deduziu o presente procedimento cautelar de restituição provisória relativamente àquele acto.
Prevê o art.º 292.º, n.º 1 do CPC, se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
Daqui segue que no que toca à entrega judicial, o requerente deve deduzir embargos de terceiro para exercer o direito reivindicado. Portanto, indefere-se a petição inicial nos termos da segunda parte do art.º 394.º, n.º 31 do CPC.
Custas ao requerente.
Notifique e diligências.
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Quid Juris?
A questão principal consiste em saber qual tipo de processo é que o Recorrente/Requerente deve lançar mão: a restituição provisória da posse? Ou a oposição mediante embargos de terceiro?
A resposta a dar-se depende da matéria alegada e provada pelo Requerente na sua PI.
O mesmo alegou na sua PI o seguinte:
1. Em 26/01/2022, o requerente instaurou processo de usucapião ao TJB da RAEM, pedindo declarar-se o requerente como o único e legítimo proprietário dum terreno com a área total de 1410,047 m2, sito na Povoação de Cheok Ka adjacente aos Lotes TN5B e TN5C na Avenida do Dr. Sun Yat Sen, Taipa, Macau (doravante designado por “o terreno”) e casas de madeira ou habitações G8 (em frente à casa esquerda G9), G9, G10, G16, G17 (originalmente a outra divisão do mesmo número da placa de porta G16), G20 (ao lado do n.º 64), G21, G23 (originalmente a outra divisão do mesmo número da placa de porta G21), duas de G24, a ao lado do n.º 39, G42, CMI G9 (defronte do portão do n.º G42), duas atrás da G42, 44, 45, G64 e duas casas de madeira sem placa de porta (doravante designadas por “as casas”). Trata-se do processo pendente n.º CV1-22-0009-CAO. Está registado junto da Conservatória do Registo Predial dentro da descrição predial n.º XXXXX, de registo n.º XXXXX (vd. o anexo 1).
2. O requerente é o possuidor de um terreno com a área total de 1410,047 m2, sito na Povoação de Cheok Ka adjacente aos Lotes TN5B e TN5C na Avenida do Dr. Sun Yat Sen, Taipa, Macau (vd. o anexo 2). O terreno está incluído na Descrição n.º XXXXX (Livro XXX, fls. 20) da Conservatória do Registo Predial e faz parte da mesma, cujo número de cadastro é de 1051.050, sem matriz predial (vd. o anexo 1).
3. Há não poucas casas no terreno que incluem as de placa de porta n.ºs G8 (em frente à casa esquerda G9), G9, G10, G16, G17 (originalmente a outra divisão do mesmo número da placa de porta G16), G20 (ao lado do n.º 64), G21, G23 (originalmente a outra divisão do mesmo número da placa de porta G21), duas de G24, a ao lado do n.º 39, G42, CMI G9 (defronte do portão do n.º G42), duas atrás da G42, 44, 45, G64 e duas casas de madeira sem placa de porta (as localizações exactas estão indicadas no anexo 2). Logo desde os anos 90 do século passado, o requerente possui as casas e o terreno (a aquisição por posse e os factos sobre a posse estão pormenorizadamente descritos na petição inicial e na contestação do requerente do processo n.º CV1-22-0009-CAO, que, para todos os efeitos jurídicos, se dão por integralmente reproduzidos aqui).
(…)”.
“(…)
“12.º
Através de notícias públicas, o requerente tomou conhecimento da ordem proferida pelo vosso tribunal no processo n.º CV1-06-0040-CAO-J que mandou aos executados entregar o terreno ocupado sito no lote TN6 no Caminho das Hortas (chamada localmente “Povoação de Cheok Ka”) à exequente no processo, ou seja, à B.
13.º
Em 21/07/2023, os oficiais de justiça do 1.º Juízo Cível do TJB, juntamente com agentes da PJ e do CPSP e com funcionários da Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro, do Instituto de Habitação, do Instituto de Acção Social, do Instituto para os Assuntos Municipais e do Corpo de Bombeiros deslocaram-se ao sítio acima referido para proceder à entrega judicial que tinha como objecto as habitações ocupadas pelos executados no processo n.º CV1-06-0040-CAO (vd. o anexo 6).
14.º
O requerente é possuidor do terreno acima referido e goza da posse. Nem o terreno nem as habitações lá sitas estavam dentro do alcance de conhecimento do processo acima referido de execução para entrega de coisa certa, não lhe sendo o objecto de execução (vd. o anexo 6).”
3. Além disso, eis o art.º 15.º do requerimento inicial: “É lamentável, porém, que desde a realização da entrega judicial acima mencionada, a requerida inflija incessantemente violência no esbulho ao terreno e às habitações lá sitas.”
4. Segue daqui que não foi em relação à entrega judicial que o requerente deduziu o presente procedimento cautelar de restituição provisória, antes sim contra o esbulho violento operado pela requerida.
5. Além disso, as casas e o terreno que constituem o objecto da restituição no presente procedimento cautelar, tal como indicado no art.º 14.º do requerimento inicla, nunca estiveram abrangidos pelos autos de entrega, nem alguma vez foram objecto de execução.
6. Segundo o art.º 13.º do requerimento inicial, a entrega judicial abrangeu apenas “as habitações ocupadas pelos executados no processo n.º CV1-06-0040-CAO”, não incluindo as casas e o terreno do requerente (excepto uma pequena área da casa em madeira sem placa de porta b que entrava no âmbito da entrega judicial, que se passa a argumentar adiante); isso resulta também dos autos a fls. 38. Comparando-o com o anexo 7 (a fls. 39 dos autos) do requerimento inicial, o esbulho violento operado pela requerida excedeu de longe o alcance da entrega judicial.
7. Por outras palavras, como o esbulho violento operado pela requerida aqui em questão excedeu de longe o alcance da entrega judicial, o âmbito não abrangido pela entrega judicial não estava fundamentado na ordem de entrega judicial.
8. Dito de forma simples, a área de terreno e casa aqui controvertida não estava abrangida pela entrega judicial. Só que a requerida aproveitou a entrega judicial para usurpar simultaneamente o terreno não sujeito à entrega judicial.
9. O que a requerida fez outro não foi senão explorar a entrega judicial para proceder ao esbulho violento de má fé. Foi por isso é que o requerente deduziu o presente procedimento cautelar de restituição provisória contra o esbulho violento evidentemente fora do alcance da entrega judicial e, portanto, injustificado. Deverá ser adequada a forma do processo adoptada.
10. Em termos concretos, de entre o terreno e as casas que constituem o objecto da restituição aqui pedida, só uma pequena parte da casa em madeira sem placa de porta b entrava no âmbito da entrega judicial. Tudo o resto estava fora da entrega judicial; foi só para esclarecer todo o processo ao Mm.º Juiz é que o requerente acrescentou o facto de a requerida ter demolido a casa em madeira sem placa de porta b no art.º 27.º do requerimento inicial.
11. O requerente já deduziu tempestivamente embargo de terceiro sobre a entrega judicial efectuada em relação à casa em madeira sem placa de porta b no processo n.º CV1-06-0040-CAO-J. O embargo encontra-se pendente no processo n.º CV1-06-0040-CAO-K.
12. Por isso, o requerente pede ao Mm.º Juiz aclarar se a decisão de indeferimento liminar dizia respeito apenas à área que entrava no âmbito da entrega judicial, ou seja, à casa em madeira sem placa de porta b, sem incluindo, porém, o objecto da restituição aqui pedida no procedimento cautelar na sua totalidade.
(…)”.
Depois, nas conclusões deste recurso, o Recorrente veio a reafirmar:
“(…)
1) O respectivo teor no requerimento inicial
i. De acordo com os artigos 13º a 15º do requerimento inicial, a entrega judicial é destinada aos prédios ocupados pelos executados e não aos pelo recorrente.
j. Em conjugação com a alegação do artigo 13º do requerimento inicial de que a entrega judicial não tem nada a ver com o recorrente, do artigo 14º do requerimento inicial resultou que o terreno e os prédios ocupados pelo recorrente:
(1) “não são incluídos no âmbito de julgamento da acção executiva para entrega de coisa certa referenciada em epígrafe” - quer dizer que é impossível existir uma ordem de entrega judicial do tribunal que exigisse ao recorrente a realizar entrega.;
(2) “não são o objecto da execução” - significa que não são o objecto da entrega judicial.
k. Quer a acção de execução, quer o acto de entrega judicial, não são destinados aos terreno e prédios ocupados pelo recorrente, mas sim aos prédios ocupados pelos executados (outros proprietários) do processo nº CV1-06-0040-CAO-J.
l. Do teor dos artigos 13º e 14º do requerimento inicial, verifica-se claramente que o acto de entrega judicial não é destinado ao recorrente.
m. No artigo 15º do requerimento inicial, o recorrente disse que “após o dito acto de entrega judicial” - “o dito” - segundo o artigo 13º, quer dizer o acto de entrega judicial contra os executados e não contra o recorrente. No entanto, infelizmente, a recorrida pratica constantemente actos de esbulho violentos contra o terreno e os prédios ocupados pelo recorrente.
2) O requerimento inicial tem por objecto o acto de esbulho violento e não o acto de entrega judicial
n. No inteiro requerimento inicial, o recorrente frisa constantemente o “acto de esbulho violento praticado pela recorrida” e não o acto de entrega judicial.
o. Caso seja o acto de entrega judicial, se encontrar dificuldades em tomar conta dos bens, a entrega será realizada pelos funcionários de justiça com o auxílio da força pública. De facto, os executados / outros proprietários realizaram a entrega efectiva nesta situação.
p. Mas, tal como foi descrito pelo requerimento inicial, o pessoal ou representantes da recorrida praticaram actos violentos com o objectivo de afastar o recorrente, incluindo, mas não se limitando aos actos de despejar lama, areia e cascalho, cortar o fornecimento de água e eletricidade, ameaçar, etc. Aparentemente, a pessoa que praticou estes actos violentos não pode ser o tribunal.
q. Acresce que, o acto de entrega judicial é um evento único. A entrega efectiva foi concluída no dia 21 de Julho de 2023. Em qualquer dos casos, tal acto não pode durar um mês. Contudo, os actos de esbulho violento foram praticados pela recorrida, após a conclusão da entrega judicial no dia 21 de Julho de 2023, foram praticados novos actos de esbulho violento durante um mês.
r. Analisado globalmente o requerimento inicial, este mostra que o objecto do pedido de restituição da posse não pode ser a entrega judicial que foi ordenada pelo tribunal.
s. De acordo com o teor do artigo 14º do requerimento inicial, “não são incluídos no âmbito de julgamento da acção executiva para entrega de coisa certa referenciada em epígrafe” quer dizer que é impossível existir uma ordem de entrega judicial do tribunal que exige ao recorrente que efectuasse entrega. Com efeito, não existe qualquer ordem do tribunal que exigisse a entrega dos prédios do recorrente.
t. Como já foi dito, uma vez que o recorrente não é o executado do processo nº CV1-06-0040-CAO-J, nos termos do artº 823º do CPC, não é possível decretar ordem de entrega judicial contra o recorrente.
u. Daí resultou que o requerimento inicial sempre tem como objecto os actos de esbulho violento da recorrida e não o acto de entrega judicial.
3) Os actos de esbulho violento da recorrida não são sustentados pela ordem do tribunal
i. Os actos de esbulho violento da recorrida ultrapassam o âmbito da ordem de entrega judicial
v. O acto de entrega judicial é um evento único, cujo objecto e âmbito não têm nada a ver com o terreno e os prédios ocupados pelo recorrente, o qual é destinado apenas aos prédios ocupados pelos executados (outros proprietários) no processo nº CV1-06-0040-CAO- J.
w. E a conduta da recorrida foi precisamente sob o pretexto de entrega judicial para praticar esbulho violento contra o terreno e os prédios do recorrente, o que foi muito além do objecto e do âmbito da entrega judicial. A parte excessa não é suportada pela ordem de entrega judicial.
x. Em suma, o terreno e os prédios impugnados neste caso não são dentro do âmbito da entrega judicial. A recorrida apenas se aproveitou da entrega judicial para esbulhar o recorrente do seu terreno e dos seus prédios, os quais não têm nada a ver com ela, nem são o objecto da entrega judicial.
(…)”.
Nesta óptica, conforme o quadro factual pintado pelo Recorrente, pode configurar-se as seguintes hipóteses (como o Tribunal recorrido não chegou a apreciar os factos alegados pelas partes e para nos facilitar a compreensão das questões em discussão, são contruídas as hipóteses a seguir descritas):
1) – 1ª hipótese: admitindo-se que no processo CVI-06-0040-CAO foi ordenado a entrega dos imóveis A, B e C ao Requerente, e na realidade foram exactamente tais bens entregues, agora o Recorrente/Requerente deste processo acha que a sua posse ou o seu direito foi ofendida(o) e assim instaurou a presente providência cautelar (o Recorrente afirmou que não se trata desta hipótese, por isso não lançou mão de oposição mediante embargos de terceiros);
2) – 2ª hipótese: no processo CVI-06-0040-CAO foi pedida a entrega dos imóveis A, B e C, mas no cumprimento da ordem judicial foram entregues os imóveis A, B, C, D e E (por quaisquer razões, ex. cumprimento excessivo da ordem, ou por erro no cumprimento da respectiva ordem judicial), agora o Recorrente/Requerente deste processo entende que a sua posse ou o seu direito foi ofendida/o pela entrega dos imóveis D e E, e assim instaurou a presente providência cautelar;
3) – 3ª hipótese: no processo CVI-06-0040-CAO foi pedida a entrega dos imóveis A, B e C, no cumprimento da ordem judicial foram entregues os imóveis A, B e C, mas o Requerente daquele processo, aproveitando as circunstâncias da entrega, praticou alguns actos violêntos (“posse”) sobre os imóveis D e E (que são contíguos ao imóvel C, por exemplo), e, nessa sequência o Recorrente/Requerente veio a instaurar a presente providência cautelar.
Tratando-se da 1ª e 2ª hipótese, o meio processual adequado é o de oposição mediante embargos de terceiros em relação aos bens D e E. Porém, quando estiver em causa a 3ª hipótese, a solução mais acertada será a de lançar mão do mecanismo de restituição da posse provisória.
É de ver tudo depende da matéria apurada em sede própria. Mas o processo foi liminarmente indeferido!
A fim de ilustrar a dúvida existente, transcrevemos um desenho do processo que demonstra a pertinência e necessidade de apuramento dos factos em discussão.
O quadro demonstra claramente que existe alguma “ambiguidade” ao nível dos factos (sobretudo no que se refere aos terrenos indicados sob alíneas Q por nós no desenho), ou seja, é pertinente saber se o objecto desta providência coincide com todos os bens que constituíram objecto da entrega judicial noutro processo judicial acima citado.
Ou seja, qualquer das hipóteses acima descritas é possível, tudo depende da matéria de facto alegada e provada em sede própria. Como o Tribunal recorrido não chegou a apurar os factos alegados, é impossível a este Tribunal ad quem resolver directamente as questões levantadas pelas Partes.
*
O artigo 292º do CPC manda:
(Âmbito)
1. Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
2. Não é admitida a dedução de embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens realizada no processo de falência ou insolvência.
A propósito da figura de embargos de terceiro, tem-se vindo a defender (citadas aqui algumas decisões judiciais em nome do Direito Comparado):
I - Os embargos de terceiro constituem meios de defesa e tutela da posse ameaçada ou violada, tendo um duplo fundamento: fundamento de direito - a posse e fundamento de facto - a lesão ou ameaça de lesão de posse. II - E o embargante tem que alegar e provar a posse sobre a coisa que a diligência judicial fez apreender ou mandou entregar a outrem. III - Tal posse é a efectiva ou real. IV - O fundamento de facto dos embargos é a diligência judicial que privou ou ameaça privar da posse o terceiro, possuidor. V - Sendo o fundamento de facto a penhora, a posse por ela ofendida tem de ser anterior à referida diligência judicial. VI - Tratando-se de embargos de Terceiro deduzidos contra a penhora de bens hipotecados, para pagamento de crédito hipotecário, o seu fundamento só pode basear-se numa posse anterior ao registo da hipoteca. VII - Mas sendo os embargos de terceiro um meio processual de defesa da posse e, por vezes, também um meio de protecção e reconhecimento da propriedade, qualquer questão que não se integre na defesa da posse ou da propriedade não pode legalmente ser objecto de apreciação e decisão nos embargos de terceiro. VIII - Assim, por exorbitar do âmbito dos embargos de terceiro, não deve ser neles apreciada e decidida a questão de saber se os direitos do exequente, como credor hipotecário, são merecedores de protecção legal por forma a não serem afectados ou prejudicados com a anulação por simulação do contrato de compra e venda dos bens hipotecados (Ac. RP, de 26.2.1969: JR, 15.°-162).
I - Nos embargos de terceiro, a posse alegada pelo embargante não deve ser apreciada apenas no seu aspecto material; tem também de o ser no seu aspecto jurídico, quer quanto à sua origem, ao título em que se baseia, quer quanto à sua eficácia relativamente ao embargo. II - Devem por isso ser rejeitados os embargos se o embargante apenas invocou uma detenção material dos bens objecto do decretado arrolamento e não mostrou que, pela qualidade em que os possuía, não devessem ser atingidos pela diligência ordenada (Ac. RE, de 22.3.1974: BMJ, 235.°-368).
Ora, o raciocínio das decisões acima citadas vale, mutadis mudantis e perfeitamente, para o caso dos autos.
Face ao expendido, certamente não se pode concluir pela ideia de que a pretensão do Requerente é manifestamente inviável tendo em conta os factos alegados e os pedidos, pois não existem entre eles contradições!
*
Isto por um lado, por outro,
Conforme as alegações do recurso, a ofensa alegada pelo Recorrente/Requerente não deriva da diligência judicial ordenada, ou pelo menos, parcialmente! O próprio Requerente confessou nestes termos.
A maior parte da matéria alegada pelo Recorrente na sua PI consiste na prática de actos violentos, o que pode justificar o lançamento da providência de restituição provisória da posse, mas há de fazer distinção entre os imóveis entregues por ordem judicial e os que não estão nesta “lista!
Resta saber se andou bem o Tribunal a quo, ao proferir o despacho de indeferimento liminar?
Relativamente a este despacho “radical”, é do entendimento dominante:
I - Ao propor uma acção em que se pedia a condenação da ré na destruição de uma pocilga situada numa sua propriedade que ocasionava um cheiro pestilento e nauseabundo e um barulho ensurdecedor na casa do autor, situada a curta distância, este visava defender não só o seu direito de propriedade, mas também os seus direitos da personalidade. II - A circunstância de não terem sido alegados os factos que constituem o direito de propriedade invocado pode determinar, num critério rigoroso, o indeferimento liminar da petição. III - Mas, a mesma circunstância não permite que, no despacho saneador, se conclua pela ineptidão da petição inicial dado não ter sido contestado pela ré esse direito de propriedade e poder ser junta posteriormente certidão emanada da Conservatória do Registo Predial, de onde conste a inscrição do imóvel a favor do autor e qual à causa da aquisição. IV - A causa de pedir está no acto ou facto jurídico de que a parte faz derivar a sua pretensão e não na coloração jurídica que entende dever atribuir-lhe. Por isso não é inepta a petição inicial quando tenha sido indicada causa de pedir, embora o respectivo facto não seja suficiente para determinar a procedência do pedido, sendo a questão, então, de inviabilidade ou improcedência (Ac. STJ, de 15.10.1985: BMJ, 350.°-301).
Só poderá aver indeferimento liminar, designadamente com base na 2.ª parte da alínea c) do n.º 1 do art. 474.º do Cód. Proc. Civil, quando não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido (Ac. RE, de 2.10.1986: CoI. Jur., 1986, 4.º-283).
É de ver que só em caso de manifesta inviável a pretensão ou nas hipóteses expressamente previstas no artigo 394º/1 do CPC é que se deve “matar” a acção logo no início do procedimento. E, não nos parece ser o caso dos autos em análise, porque os fundamentos invocados pelo Requerente não são de todo em todo manifestamente insuficientes ou inviáveis para sustentar os pedidos formulados.
Pelo que, é de revogar o despacho recorrido por violar o artigo 394º/1 do CPC, mandando prosseguir-se os autos para a fase subsequente e depois proferir a decisão final tendo em conta os factos a provar-se em sede própria, caso não exista outro obstáculo legal.
*
Tudo visto e analisado, resta decidir.
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V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em conceder provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se a baixa dos autos ao Tribunal a quo para os fins neste aresto consignados.
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Custas pela parte vencida a conta final.
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Registe e Notifique.
(…)”; (cfr., fls. 367 a 376 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Do assim decidido, veio a R., “B”, (“乙”), recorrer para este Tribunal de Última Instância, alegando para concluir nos termos seguintes:
“A) A Recorrente discorda do ACÓRDÃO RECORRIDO no qual decide os seguintes:
• “Questão prévia: junção pela Recorrida de documentos com as alegações do recurso (fls. 228 a 241 dos autos), nitidamente não se trata de documentos supervenientes como tal não é de os admitir ao abrigo dos artigos 452º e 616º do CPC, condenando-se a apresentante na multa no valor de 1UC e ordenando-se a sua restituição à apresentante.” (v.g. fls. 370v dos Autos, página 8 do Acórdão do TSI)
• “Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em conceder provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se a baixa dos autos ao Tribunal a quo para os fins neste aresto consignados.” (v.g. fls. 376 dos Autos, página 19 do Acórdão do TSI)
B) Quanto à apresentação dos documentos na fase do recurso, isto está disposto no artigo 451.º do CPC, segundo o teor deste artigo, não é possível concluir-se que só podem apresentar-se na fase de recurso os documentos destinados a provar factos supervenientes, pois o legislador divide no artigo 451.º do CPC duas hipóteses da apresentação dos documentos na fase do recurso: 1) a regra geral (n.º 1 do artigo 451.º do CPC); 2) disposição especial (n.º2 do artigo 451.º do CPC.
C) No presente processo, o requerimento inicial da providência cautelar do Recorrido A foi liminarmente indeferido, isto significa que, no presente processo, não houve a fase de contestação e de discussão de audiência de julgamento para a Recorrente apresentar a sua prova documental que lhe permitisse responder aos fundamentos alegados pelo Recorrido de modo a suportar os fundamentos do indeferimento indicado no despacho do TJB. Quer dizer, não houve nenhum momento processual em que a Recorrente tivesse a possibilidade de apresentar aqueles 4 documentos “até o encerramento da discussão de julgamento” (que não existiu), pelo que a fase do recurso foi a primeira oportunidade processual subsequente para a Recorrida apresentar a sua prova documental para suportar o fundamento do despacho do TJB.
D) Por isso, a apresentação daqueles 4 documentos com as Contra-alegações satisfaz o disposto do n.º1 do artigo 451.º do CPC e deve ser admitida.
E) A junção daqueles 4 documentos com as Contra-alegações não é para comprovar qualquer facto superveniente, a necessidade destes documentos resulta do despacho do TJB, ou melhor, resulta da necessidade de a Recorrente ter necessidade de sustentar e fundamentar a sua posição em face do Despacho do indeferimento proferido pelo TJB.
F) Deve salientar-se que o termo utilizado no n.º 1 do artigo 616.º do CPC é “As partes”, deve ser interpretado no sentido de o recorrente poder juntar os documentos com as alegações para atacar a sentença do tribunal recorrido, como também a parte contrária do recurso poder juntar documentos com as contra-alegações de modo a defender o fundamento desta sentença recorrida.
G) No presente caso, o Recorrente A teve oportunidade de juntar 23 documentos com as alegações de recurso para atacar os fundamentos no Despacho Recorrido, pelo que negar à Recorrida a possibilidade de juntar 4 documentos com as Contra-alegações para sustentar o fundamento do Despacho Recorrido equivale a negar-lhe o seu direito de defesa.
H) Assim sendo, a junção daqueles 4 documentos com as Contra-alegações é também processualmente legal e satisfaz a hipótese previsto no n.º2 do artigo 451.º e o n.º 1 do artigo 616.º, ambos do CPC.
I) Pelo exposto, o ACÓRDÃO RECORRIDO incorre em erro na aplicação da lei, especialmente, em erro na aplicação dos artigos 451.º e 616.º do CPC. Pelo que, em consequência, o Tribunal ad quem deve revogar, nessa parte, o ACÓRDÃO RECORRIDO e declarar a admissão dos documentos juntos com a Contra-Alegações
J) Quanto ao provimento do recurso interposto pelo Recorrido A, o Recorrente discorda do ACÓRDÃO RECORRIDO pela razão seguinte:
K) O título executivo é a sentença do TJB do Processo n.º CV1-06-0040-CAO na qual demostra que o objecto da acção executiva do Processo n.º CV1-06-0040-CAO-J não é a entrega das barracas determinadas, mas é do terreno descrito sob o n.º XXXXX, com a área de 4.198m2.
L) Se se fizer uma comparação entre a planta cadastral e a planta da fls. 167, é manifesto que aquela barraca sem número e a zona da eventual “posse” do Recorrido A estão dentro do terreno descrito sob o n.º XXXXX, objecto da acção executiva do Processo n.º CV1-06-0040-CAO-J.
M) De facto, o Recorrido instaura a oposição com base na sua eventual posse sobre uma parte do terreno descrito sob o n.º XXXXX que está ocupada por aquela barraca sem número.
N) Com a entrega judicial realizada em 21 de Julho de 2023, o Recorrido A, a partir desta data, perdeu a posse sobre terreno descrito sob o n.º XXXXX porque está previsto no n.º 3 do artigo 823.º do CPC que “Tratando-se de imóveis, o funcionário investe o exequente na posse, entregando-lhe os documentos e as chaves, se os houver, e notifica o executado, os arrendatários e quaisquer detentores da constituição do direito do exequente.”. Isto quer dizer, de facto, que uma vez que a barraca sem número está dentro do terreno descrito sob o n.º XXXXX a eventual “posse” do Recorrido foi obviamente afectada pela entrega judicial do Processo n.º CV1-06-0040-CAO-J, uma vez que o objecto dessa acção executiva era o terreno descrito sob o n.º XXXXX a qual teve como efeito a extinção da sua eventual “posse”.
O) Por isso, o presente caso não entra na 3.ª hipótese referida pelo Tribunal a quo, pois aquela barraca sem número não é uma coisa contígua ao terreno descrito sob o n.º XXXXX, mas, antes, está dentro deste terreno. Assim, deve concluir-se que a providência cautelar de restituição provisória de posse não é o meio adequado para o presente caso.
P) Não se verificando essa 3.ª hipótese, o meio processual mais adequado para o presente caso só poderia ser o embargo de terceiros.
Q) Em vez do embargo de terceiros, o Recorrido A escolheu a providência cautelar de restituição provisória de posse que não é o meio processual adequado, pelo que o TJB decidiu bem ao indeferir liminarmente o pedido do Recorrido. O mesmo não se diga do douto Acórdão recorrido que revogou a decisão recorrida.
R) Assim sendo, existe nesta parte do ACÓRDÃO RECORRIDO o vício do erro na aplicação do artigo 394.º do CPC. Consequentemente, o Tribunal ad quem deve revogar esta parte do ACÓRDÃO RECORRIDO e confirmar o Despacho do TJB que indeferiu liminarmente a providência cautelar de restituição de posse requerida pelo Recorrido A.
Em face de todo o exposto, e dando provimento ao presente Recurso, deve o Tribunal da Última Instância:
a) Revogar o ACÓRDÃO RECORRIDO;
b) Declarar a admissão dos documentos juntos com as Contra-Alegações e revogar a multa no valor de 1UC condenado pelo Tribunal a quo; e
c) Confirmar o Despacho do TJB que indeferiu limitadamente a providência cautelar de restituição de posse requerida pelo Recorrido A assim decidindo, fará o Tribunal a requerida
(…)”; (cfr., fls. 392 a 411).
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Respondendo, pugna o A., A (甲), pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 422 a 451).
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Adequadamente processados os autos, (e em conformidade com o estatuído no art. 52°, n.° 2 e 3 da Lei n.° 9/1999), cumpre apreciar e decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
2. O presente recurso tem como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância datado de 13.06.2024 que revogou o despacho pelo Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base proferido que indeferiu liminarmente a petição inicial pelo agora recorrido aí apresentada, e com a qual – por apenso a uma “acção de usucapião” que tinha proposto: CV1-22-0009-CAO – pretendia a “restituição provisória da posse” sobre um “terreno” do qual alegava ser possuidor e ter sido pela requerida, ora recorrente, esbulhado, e que identificava como tendo “a área total de 1410,047m2, sito na Povoação de Cheok Ka adjacente aos Lotes TN5B e TN5C na Avenida do Dr. Sun Yat Sen, Taipa, Macau, incluído na Descrição n.° XXXXX, (Livro XXX, cfr., fls. 20), da Conservatória do Registo Predial, cujo número de cadastro é de 1051.050, sem matriz predial”; (cfr., petição inicial, a fls. 2 a 17).
Com efeito, considerando o Tribunal Judicial de Base que a pelo requerente alegada “ofensa à sua posse” sobre o dito terreno assentava numa decretada “entrega judicial” à ora recorrente, (requerida), e assim que, o meio processual adequado de que aquele se devia servir para defender a sua posse era – não a deduzida “restituição provisória da posse”, mas sim – os “embargos de terceiro”, veio-se a decidir que errada era a “forma de processo”, proferindo-se a decisão de indeferimento liminar que se referiu.
Em sede do recurso que do assim decidido interpôs o dito requerente, ora recorrido, e com o Acórdão objecto do presente recurso, considerou o Tribunal de Segunda Instância existir “ambiguidade ao nível dos factos”, que era “pertinente saber se o objecto desta providência coincide com todos os bens que constituíram objecto da entrega judicial noutro processo judicial acima citado”, e que, “Como o Tribunal recorrido não chegou a apurar os factos alegados, é impossível a este Tribunal ad quem resolver directamente as questões levantadas pelas Partes”; (cfr., pág. 13 deste aresto).
Daí, a decretada revogação da decisão do Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base.
Sendo – em síntese – estas as “razões” e “sentidos” das decisões nos presentes autos proferidas, vejamos.
–– No recurso a este Tribunal de Última Instância trazido, bate-se a ora recorrente pela confirmação da decisão de indeferimento liminar da petição inicial do ora recorrido, suscitando, também, como “questão prévia”, a da “admissão de uns documentos” que juntou com as suas alegações que apresentou aquando da sua resposta ao anterior recurso para o Tribunal de Segunda Instância e que pelo Acórdão agora recorrido foi considerada “extemporânea”.
E, assim, começando por esta mesma “questão”, cremos que tem a ora recorrente razão.
Com efeito, antes das ditas alegações não teve a mesma qualquer oportunidade de se “defender” dos fundamentos pelo ora recorrido, invocados, assim como do por si considerado acerto das razões do prolatado indeferimento liminar.
E, dest’arte, parece-nos que efectivamente verificada está a situação do art. 451°, n.° 2 e 616°, n.° 1, ambos do C.P.C.M., adequado não se nos mostrando assim o sobre esta questão decidido pelo Tribunal de Segunda Instância.
–– Passemos, agora, para a decisão ínsita no Acórdão recorrido que revogou o aludido indeferimento liminar.
Pois bem, em nossa opinião, e se bem ajuizamos, necessárias não são extensas considerações.
Vejamos.
Diz a ora recorrente que bem decidiu o Tribunal Judicial de Base dado que o “terreno” cuja “restituição provisória da posse” pretendia o ora recorrido lhe foi “entregue por decisão judicial”, e que, assim, correcta foi a decisão de indeferimento liminar de tal pretensão por “erro na forma de processo”.
Ora, atento a tudo o que, por ora, dos presentes autos consta, cremos que, nesta parte, censura não merece o Tribunal de Segunda Instância.
Com efeito, se dúvidas (e discordâncias) não há quanto à “forma de processo” a empregar para a “defesa da posse” perante um “esbulho”, ou uma “entrega judicial” – naquele, a dita “restituição da posse”, e nesta, os “embargos de terceiro”; sobre a matéria, cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 25.03.2020, Proc. n.° 58/2018 e de 17.12.2021, Procs. n°s 140/2021 e 144/2021, onde são feitas outras referências da doutrina e jurisprudência – líquida não está a “causa” da alegada “perda da posse” do ora recorrido, pois que, como também se considerou no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, o Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base não apurou e emitiu pronúncia sobre os factos alegados pelo requerente, (ora recorrido), concretamente identificado não estando o “terreno” a que este se referia na sua petição inicial, (embora se mostre de admitir também que muito feliz não é o seu teor).
Na verdade, e seja como for, afigura-se-nos claro e fora de qualquer dúvida que o aludido requerente, ora recorrido, não deixou de alegar – expressamente – na dita petição inicial que o “terreno” cuja posse pretendia lhe fosse restituída “não era o mesmo que constituía objecto da decretada entrega judicial”, e que esta “não abrangia o (seu) terreno que alegava ter-lhe sido assim pela ora recorrente esbulhado”.
E, perante isto, vista cremos que está a solução para o presente recurso.
De facto, no estado em que se encontram os presentes autos, e nos mesmos havendo apenas meras “alegações” – não coincidentes, e até “contraditórias” – sobre a “matéria” da concreta identificação do terreno em questão e das razões da alegada ofensa da sua posse, importa pois proceder, previamente, ao seu rigoroso apuramento para, seguidamente, na posse de tal identificação (material) e já não “controvertida”, se poder, de forma consciente e justificada, decidir da razão (de direito) que as partes invocam.
Dir-se-á, eventualmente, que esta “matéria” poderá ser esclarecida com recurso aos “documentos” existentes nos autos, (quiçá, com os documentos pela ora recorrente juntos com a sua resposta ao anterior recurso para o Tribunal de Segunda Instância, e que, como se viu, devem ser admitidos).
Porém, atenta a “natureza dos aludidos documentos”, (a grande maioria, meras cópias), nenhuma “factualidade” encontrando-se dada como assente, ponderando nas “posições” pelas partes assumidas, e tendo-se também presente o “momento processual” e as “competências e funções” das Instâncias de recurso, (como é o caso deste Tribunal de Última Instância), impõe-se a decisão que segue.
Decisão
3. Em face de tudo o que se deixou exposto, em conferência, acordam julgar parcialmente procedente o presente recurso, confirmando-se a decisão de revogação do indeferimento liminar proferido pelo Tribunal Judicial de Base.
Pelo seu decaimento, pagará a recorrente as respectivas custas com taxa de justiça de 8 UCs.
Registe e notifique.
Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 25 de Setembro de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Song Man Lei
Choi Mou Pan
1 Que prevê: “Se a forma de processo escolhida pelo autor não corresponder à natureza ou ao valor da acção, manda-se seguir a forma adequada; mas quando não possa ser utilizada para essa forma, a petição é indeferida.”
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Proc. 104/2024 Pág. 24
Proc. 104/2024 Pág. 25