Processo nº 70/2023
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por apenso aos Autos de Execução Ordinária no Tribunal Judicial de Base registado com o n.° CV3-12-0108-CEO, e em que era exequente A (甲), e executada “B”, (“乙”), veio a “C” alegar que celebrou um contrato no âmbito do qual a dita exequente lhe cedeu os créditos que tinha sobre a executada, requerendo assim a sua “habilitação processual” (da posição da aludida exequente); (cfr., fls. 2 e 2-v dos presentes autos de habilitação que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Por despacho do Mmo Juiz titular do Autos de Execução foi o requerido indeferido; (cfr., fls. 16 e 16-v).
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Em sede do recurso que do assim decidido interpôs a referida requerente “C”, proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão de 09.03.2023, (Proc. n.° 792/2022), onde concedeu provimento ao recurso e ordenou o “prosseguimento do incidente de habilitação”; (cfr., fls. 207 a 216).
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Inconformada, vem agora a executada “B” recorrer para esta Instância, pedindo a revogação do Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância e a consequente confirmação da decisão do Tribunal Judicial de Base; (cfr., fls. 231 a 243).
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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
Dos factos
2. No Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância, foram dados como assentes os seguintes factos (que agora não vem postos em causa):
“- Na pendência dos autos de execução deduzidos pela exequente, esta formulou no dia 21 de Maio de 2020 junto do juiz do processo o seguinte: “Visto que o crédito foi pago por terceiro, requer-se a Vossa Ex.ª o deferimento do levantamento da penhora do imóvel…” – cfr. fls. 860 do processo principal
- Face ao requerimento da exequente, o juiz de primeira instância ordenou a sustação da execução com remessa dos autos à conta.
- No dia 28 de Julho de 2020, a recorrente apresentou o pedido de habilitação processual de cessionário na posição da exequente – cfr. fls. 2 a 8 dos presente apenso.
- Entretanto, foi o pedido indeferido pelo juiz do processo nos seguintes termos transcritos:
"Com o devido respeito, o que resulta declarado nos autos principais, pela exequente (fls.861), é que a quantia exequenda lhe foi paga (não interessando por quem).
Se foi paga, a sorte do processo da execução era, como foi, à conta, e, na sequência do que, pagas as custas (e foram, pela executada) impunha-se, como se proferia, despacho final de extinção da instância.
Se não houver qualquer pagamento, se o que houver foi transação onerosa (cessão de crédito) entre a requerente e a exequente, tendo esta, enquanto exequente, faltado à verdade com a predita declaração, é coisa que não afecta a extinção da execução.
Pelo exposto, indefiro a requerida habilitação.
Custas pela requerente.
Notifique."”; (cfr., fls. 212 a 212-v).
Do direito
3. Como se deixou relatado, vem a executada “B”, recorrer do Acórdão datado de 09.03.2023 pelo Tribunal de Segunda Instância proferido que revogou a decisão do Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base que indeferiu a pela ora recorrida peticionada “habilitação processual” (da posição da exequente).
A fim de melhor se perceber os motivos que levaram a tal decisão (de revogação), vale a pena recordar no que ponderou o Tribunal de Segunda Instância no seu Acórdão agora recorrido.
Tem, (na parte que agora interessa), o teor seguinte:
“A questão que se coloca é saber se, tendo sido ordenada a sustação da execução com remessa dos autos à conta, em virtude da declaração por parte da exequente do recebimento da dívida exequenda, ainda é possível admitir-se a habilitação processual de cessionário.
Vejamos.
Preceitua-se no artigo 810.º do CPC o seguinte:
“1. Em qualquer estado do processo pode o executado ou qualquer outra pessoa obter a extinção da execução, pagando as custas e a dívida exequenda.
2. Quem pretenda usar desta faculdade deve solicitar verbalmente, na secretaria, guias para depósito da parte líquida ou já liquidada do crédito do exequente, que não esteja solvida pelo produto da venda ou adjudicação de bens; feito o depósito, requer ao juiz a liquidação de toda a responsabilidade do executado.
3. Apresentado o requerimento e comprovado o depósito, a execução é suspensa, ordenando-se a liquidação requerida.
4. Quando o requerente junte documento comprovativo de quitação, perdão ou renúncia por parte do exequente ou qualquer outro título extintivo, não há lugar ao depósito preliminar, ordenando-se logo a suspensão da execução e a liquidação da responsabilidade do executado.” – realçado e sublinhado nosso
Depois, prevê o artigo 811.º a liquidação da responsabilidade do executado:
“1. Se o requerimento for feito antes da venda ou adjudicação de bens, liquidam-se unicamente as custas e o que faltar do crédito do exequente.
2. Se já tiverem sido vendidos ou adjudicados bens, a liquidação tem de abranger também os créditos reclamados para serem pagos pelo produto desses bens, conforme a graduação e até onde o produto obtido chegar, salvo se o requerente exibir título extintivo de algum deles, que então não é compreendido; se ainda não estiver feita a graduação dos créditos reclamados que tenham de ser liquidados, a execução prossegue somente para verificação e graduação desses créditos e só depois se faz a liquidação.
3. A liquidação é notificada ao exequente, aos credores interessados, ao executado e ao requerente, se for pessoa diversa.
4. O requerente deposita o saldo que for liquidado, sob pena de ser condenado nas custas a que deu causa e de a execução prosseguir, não podendo tornar a suspender-se sem prévio depósito da quantia já liquidada, depois de deduzido o produto das vendas ou adjudicações feitas posteriormente e depois de deduzidos os créditos cuja extinção se prove por documento; feito este depósito, ordena-se nova liquidação do acrescido, observando-se o preceituado nos números anteriores.
5. Se o pagamento for efectuado por terceiro, este só fica sub-rogado nos direitos do exequente mostrando que os adquiriu nos termos da lei substantiva.” – realçado e sublinhado nosso
No caso dos autos, a exequente veio na pendência da acção executiva dizer ao tribunal que o seu crédito foi pago por terceiro, requerendo que fosse levantada a penhora incidida sobre o imóvel.
Face ao solicitado pela exequente, o juiz de primeira instância ordenou a sustação dos autos com remessa à conta.
Observa Galvão Telles1, quitação é “a declaração pela qual o credor declara achar-se a obrigação cumprida, considerando assim o devedor quite para com ele”.
Embora a exequente não tenha dito a que título recebeu aquela quantia e por quem foi paga, mas não deixa de ser uma quitação, a qual se traduz numa confissão com força probatória plena ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 351.º do Código Civil.
Depois de os autos serem remetidos à conta, e antes de a execução ser declarada extinta (que se operou em 21.9.2020), veio a recorrente requerer a habilitação de cessionário, alegando que foi celebrado um contrato de cessão de créditos entre ela e a exequente, pedindo que seja habilitada para prosseguir a execução.
Tal pedido foi indeferido pelo tribunal recorrido.
Vejamos se tem razão.
Em boa verdade, em qualquer estado do processo executivo pode o executado ou um terceiro fazer cessar a execução mediante o pagamento das custas e da dívida exequenda.
Em termos de tramitação processual, uma vez apresentado o requerimento e a prova do depósito da quantia exequenda e das custas (prováveis), é ordenada a suspensão da execução para efeitos de liquidação da responsabilidade do executado.
E segue o mesmo procedimento quando o requerente junte documento comprovativo de quitação, perdão ou renúncia por parte do exequente, como foi o caso.
Por outro lado, a lei prevê que quando o pagamento for pago por terceiro, este pode ficar sub-rogado nos direitos do exequente mostrando que os adquiriu nos termos da lei substantiva (artigo 811.º, n.º 5 do CPC).
Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, “Se o remidor2 for um terceiro (isto é, não for o executado), aquele só fica sub-rogado nos direitos do exequente se os tiver adquirido segundo o regime da lei substantiva (artº 917.º, nº 5, correspondente ao artigo 811.º, n.º 5 do nosso Código), ou seja, a transmissão do crédito para o terceiro e a substituição do credor por este só opera se se verificarem as condições substantivas da sub-rogação. Isto pressupõe que, no âmbito da sub-rogação voluntária, o credor que recebe a prestação tenha expressamente sub-rogado o terceiro nos seus direitos até ao momento do cumprimento (artº 589º CC, correspondente ao artigo 583.º do CC de Macau)…”.
Isso quer dizer que, mesmo que a execução se encontre sustada com remessa dos autos à conta, face ao estatuído no n.º 5 do artigo 811.º do CPC, não está o interessado (ou seja, o terceiro pagante) impedido de deduzir o incidente de habilitação, sendo que, uma vez verificadas as condições substantivas da sub-rogação previstas na lei civil, esse terceiro passará a exercer na execução todas as faculdades atribuídas à exequente.3
No caso sub judice, a exequente veio declarar perante o tribunal recorrido que o crédito foi pago por terceiro (mas não disse por quem), enquanto a recorrente veio depois deduzir o incidente de habilitação de cessionário alegando que entre ela e a exequente houve um acordo de cessão de créditos.
Em boa verdade, o requerimento apresentado pela recorrente trouxe um problema que tem que ser resolvido, que é o seguinte: das duas uma, ou a quantia que a exequente confessou ter recebido do terceiro se destinava a saldar a dívida exequenda, ou entre a exequente e o terceiro tinha sido outorgado um contrato de cessão de créditos, sendo a quantia por ela recebida uma contrapartida pela cessão dos créditos.
Na primeira situação, o n.º 5 do artigo 811.º do CPC estipula que quando o pagamento for pago por terceiro, este pode ficar sub-rogado nos direitos do exequente mostrando que os adquiriu nos termos da lei substantiva.
Se for na segunda, haverá uma efectiva transmissão ou cessão de créditos para a recorrente, nos termos consentidos pelo artigo 571.º e seguintes do Código Civil.
Seja como for, é por meio de incidente de habilitação que se resolve qualquer uma dessas situações.
Pelo que, a nosso ver, não se vislumbra que a pretensão solicitada pela recorrente no incidente de habilitação de cessionário seja evidentemente inviável. Para já devendo o tribunal indagar o que aconteceu entre as partes, aquilo que elas pretendiam efectivamente, ordenando, sempre que entender relevante para esclarecer quaisquer dúvidas, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, sobre os factos de que lhe é lícito conhecer, por decorrência do princípio do inquisitório consagrado no n.º 3 do artigo 6.º do CPC.
Nestes termos, com todo o respeito por diferente opinião, somos a entender que o pedido de habilitação deduzido pela recorrente não é manifestamente inviável, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos processuais até final, se outra razão a tal não obstar.
(…)”; (cfr., fls. 212-v a 215-v).
Opondo-se ao assim entendido, e em apertada síntese, diz a ora recorrente que finda já se devia considerar a execução, pelo que nenhuma habilitação devia ocorrer.
Quid iuris?
Ora, sem prejuízo do muito respeito devido a outro entendimento, cremos que a razão não está do lado da ora recorrente, apresentando-se-nos de confirmar o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância que, em nossa opinião, proferiu uma decisão justa e acertada.
Passa-se a (tentar) expor este nosso ponto de vista.
Vejamos.
Como – logo no início do seu “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., C.F.J.J., 2018, pág. 7 – alerta Viriato Lima:
“Os princípios do processo civil são os princípios informadores do sistema, são as grandes orientações da ordem positiva, que se deduzem a partir de várias normas.
O seu conhecimento tem o maior interesse para a interpretação da lei processual, dado que o intérprete deve reconstituir o pensamento legislativo (artigo 8.°, n.° 1 do CC), e este está plasmado nos chamados princípios de direito, no caso, do processo civil”.
Ora, vários sendo estes “princípios fundamentais”, (cfr., autor e ob. citado, pág. 7 a 41), eis os que para o caso dos autos se nos apresentam com especial relevância, pois que se nos mostram constituir os que enquadram e incidem sobre a “situação sub judice”, (à qual, cremos nós, pode-se identificar como o resultado de um pedido de “modificação da instância”).
Pois bem, com sem esforço se mostra de concluir, as “modificações da instância”, (e a convolação processual), são corolários dos princípios da “economia”, “gestão processual” e “adequação formal”.
Com o “princípio da economia processual”, (criado por elaboração doutrinal e jurisprudencial, nomeadamente, em resultado das normas que permitiam a “cumulação de pedidos”, o “litisconsórcio” e as “modificações subjectivas e objectivas da instância”), pretende-se, (essencialmente), que se atinja o (melhor) resultado processual com a maior economia de meios, devendo-se, em cada processo, resolver o maior número de litígios possível, (através dos actos e formalidades que se mostrem úteis e indispensáveis).
Já o “princípio da gestão processual”, (ainda que não se trate propriamente de uma novidade), tem hoje consagração expressa no art. 6° do C.P.C.M..
Tal princípio – que se formaliza como um “poder-dever do Juiz” – surge no direito processual civil na sequência das alterações várias que foram sendo feitas no sentido da sua “flexibilização”, ao Tribunal cabendo a adopção, (ainda que, ex officio), de mecanismos de “simplificação” e “agilização processual” que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável; (cfr., v.g., sobre o referido princípio, e com mais desenvolvimento, os Acs. deste T.U.I. de 27.11.2020, Proc. n.° 181/2020 e de 07.07.2021, Proc. n.° 22/2021, valendo aqui a pena recordar especialmente que nos termos do n.° 2 do referido art. 6° com sublinhado nosso, “O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, sempre que essa falta seja susceptível de suprimento, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, se estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los”).
Por sua vez, e em harmonia com o “princípio da adequação formal”, (hoje também expressamente consagrado no art. 7° do C.P.C.M.), o Juiz deve adoptar, tanto quanto possível, uma “tramitação processual adequada às especificidades da causa”, adaptando o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo, tratando-se também de uma manifestação do “dever de direcção do processo”, permitindo que se adopte uma tramitação processual – ainda que não (especialmente) prevista para aquela forma processual, (ou não prevista com aquela precisa configuração) – ficando subordinada ao fim que se tem em vista, ou seja, “adequando o processo às especificidades da causa e à justa composição do litígio”; (sobre a matéria, cfr., entre outros, Viriato Lima in, ob. cit., José Lebre de Freitas in, “Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo código”, 3ª ed., 2013, pág. 203 a 223, e Rui Moreira in, “Os princípios estruturantes do processo civil português e o projecto de uma nova Reforma do Processo Civil”).
Aqui chegados, e feita esta – digamos que – “introdução” ao tema a tratar, vejamos.
Aos indicados princípios, especialmente, da “economia” e da “gestão do processo” – em que, como se viu, se fundam as possibilidades de “modificação da instância” e de “convolação processual” – contrapõe-se um outro que é, exactamente, o “princípio da estabilidade da instância” acolhido no art. 212° do C.P.C.M. onde se prescreve que: “Citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”.
Pronunciando-se sobre o mesmo nota a Prof. Cândida S. A. Pires que, “Trata-se, aliás, de uma regra que a lei processual estabelece como sendo um dos efeitos da citação [artigo 401º, alínea b)]. E já ALBERTO DOS REIS afirmava que "Enquanto o réu não for citado, a situação é de instabilidade"”.
Porém, desde logo adverte que “O enunciado princípio da estabilidade da instância, funcionando como regra, consente desvios – "temperamentos e limitações (…) ou mutações", no dizer de ALBERTO DOS REIS, ao salientar o carácter não absoluto deste princípio –; excepções que a própria lei prevê e que, como sempre sucede, confirmam a regra.
O que a lei pretende é estabelecer a regra de que, com a citação do réu, a instância estabiliza-se, adquire uma certa unidade, mas não se torna rígida e absolutamente imutável.
Ora, essas modificações legalmente admitidas podem agrupar-se, consoante os elementos essenciais da causa a que respeitam, em modificações subjectivas, modificações objectivas e modificações mistas.
(…)”; (in “Lições de Processo Civil de Macau”, 2ª ed., pág. 265).
Com efeito, o dito “princípio da estabilidade da instância” comporta “exceções”, as quais, em termos de “modificação subjectiva”, podem incluir:
a) o chamamento do terceiro que falta para assegurar a legitimidade de alguma das partes;
b) a substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio; e,
c) a dedução de incidentes da intervenção de terceiros.
In casu, em causa está a primeira destas “modificações”, (a “subjectiva”, que diz respeito aos “sujeitos” do processo), que pode ocorrer como consequência de uma “substituição” (na relação substantiva em litígio) de alguma das suas partes, (activa ou passiva), e quer por sucessão mortis causa, quer por acto, entre vivos, (constituindo, esta última, a “situação” em questão neste recurso).
Isto dito, vejamos.
Na sequência do estatuído no art. 11° do C.P.C.M. sobre as “Espécies de acções” prescreve o art. 12° que:
“1. A acção executiva tem como base um título, pelo qual se determinam o seu fim e os seus limites.
2. O fim da acção executiva pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo, quer negativo”.
Por sua vez, em sede do capítulo referente à “legitimidade em matéria de execuções” preceitua o art. 68° do mesmo código que:
“1. A execução é promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que nele tenha a posição de devedor.
2. Se o título for ao portador, é a execução promovida pelo portador do título.
3. Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, têm legitimidade os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda, mencionando-se no próprio requerimento inicial da execução os factos constitutivos da sucessão.
4. A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro pode seguir directamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor.
5. Quando a execução tenha sido movida apenas contra o terceiro e se reconheça a insuficiência dos bens onerados com a garantia real, pode o exequente requerer, no mesmo processo, o prosseguimento da acção executiva contra o devedor, que é citado para completa satisfação do crédito exequendo.
6. Estando os bens onerados do devedor na posse de terceiro, pode este ser desde logo demandado juntamente com o devedor”; (sub. nosso).
Ora, o (assim) estatuído no n.° 3 do transcrito preceito legal constitui um “desvio” à regra geral da legitimidade para a acção executiva, (prevista no n.° 1), podendo, desta forma, a execução ser intentada por, e contra, pessoas que não figuram no título executivo por, entretanto, ter ocorrido uma “transmissão” no direito ou na obrigação, (cabendo notar que a palavra “sucessão” do dito n.° 3 é utilizada em sentido genérico, abrangendo tanto a sucessão mortis causa, como a sucessão inter vivos, cfr., v.g., A. Reis in, “C.P.C. Anotado”, Vol. I, pág. 182).
Ou seja, a legitimidade que é concedida aos sujeitos que constam do título executivo como credor e devedor é igualmente reconhecida aos seus “sucessores”.
Dito de outra forma: se houver sucessão no direito ou na obrigação, são partes legítimas os sucessores dos sujeitos que figuram no título como credor e devedor da obrigação exequenda, (podendo esta sucessão ser “universal”, como aquela que é ocorre mortis causa, ou “singular” como a que provém da transmissão ou cessão do direito ou da coisa, da assunção da dívida ou do endosso do título cambiário, cfr., v.g., Miguel Teixeira de Sousa in, “Acção Executiva Singular”, 1998, pág. 136).
Como igualmente considera o Prof. J. Lebre de Freitas, “Tendo havido sucessão, entre vivos ou mortis causa, na titularidade da obrigação exequenda, entre o momento da formação do título e o da proposição da acção executiva, seja do lado activo, seja do lado passivo, devem tomar, desde logo, a posição de parte, como exequentes ou como executados, os sucessores das pessoas que figuram no título como credores ou devedores”; (in “C.P.C. Anotado”, Vol. I, 1999, pág. 112 e segs.).
Com efeito, a “execução” pode correr, ou passar a correr, entre o(s) “sucessor(es) do credor” e o(s) “sucessor(es) do devedor”.
Se a sucessão se verificar na obrigação e tiver ocorrido “antes” de se ter dado início ao processo, o exequente terá de, logo no requerimento inicial, deduzir os “factos constitutivos da sucessão”; (cfr., v.g., Lebre de Freitas in, “C.P.C. Anotado”, 1999, Vol. I, pág. 113).
Por sua vez, se a sucessão ocorrer na “pendência do processo executivo”, (ou antes, mas dela só for tomado conhecimento no seu decurso), o adquirente terá então de promover o “incidente de habilitação”, (vide, por todos, Lebre de Freitas in, “A Acção Executiva”, 4ª ed., pág. 173, e nota 5), que surge assim também como um dos meios, ou incidente processual próprio para modificar subjectivamente a instância; (cfr., v.g., Lopes Cardoso in, “Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil”, 1999, pág. 296).
Em termos genéricos, pode-se dizer que a “habilitação” consiste na prova da aquisição, por sucessão ou transmissão, da titularidade dum direito ou complexo de situações jurídicas, com vista à substituição de alguma das partes, sendo, assim, (como se viu), o “meio processual próprio” para se certificar que determinada pessoa sucedeu a outra na posição jurídica que esta ocupava na lide.
Para o caso da “habilitação inter vivos”, (como é o caso dos autos), e precisamente com a epígrafe de “Habilitação do adquirente ou cessionário”, prescreve o art. 306° do C.P.C.M. que:
“1. A habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, faz-se nos termos seguintes:
a) Lavrado no processo o termo da cessão ou junto ao requerimento de habilitação, que é autuado por apenso, o título da aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar; na contestação pode o notificado impugnar a validade do acto ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo;
b) Se houver contestação, o requerente pode responder-lhe e em seguida, produzidas as provas necessárias, decide-se; na falta de contestação, verifica-se se o documento prova a aquisição ou a cessão e, no caso afirmativo, declara-se habilitado o adquirente ou cessionário.
2. A habilitação pode ser promovida pelo transmitente ou cedente, pelo adquirente ou cessionário, ou pela parte contrária; neste caso, aplica-se o disposto no número anterior, com as adaptações necessárias”.
E, assim, em face do estatuído no transcrito comando legal, e motivos não havendo para não se admitir o deduzido “incidente de habilitação” na execução em questão, pois que não deixaria de constituir uma (grave) ofensa do princípio da economia processual e possibilidade de grave lesão dos interesses do credor, forçando-o à propositura de nova acção executiva – constituindo, no dizer de Paula Costa e Silva, uma situação em que “a tutela da parte estranha à transmissão não tem de ser obtida à custa de uma amputação do poder de disposição da parte processual, geradora de uma paralisação injustificada de parte do tráfego jurídico”, in “Um Desafio à Teoria Geral do Processo; Repensando a Transmissão da Coisa ou Direito em Litígio; Ainda um Contributo Para o Estudo da Substituição Processual”, 2009, pág. 39, podendo-se ainda sobre o tema ver, Amâncio Ferreira in, “Curso de Processo de Execução”, 8ª ed., pág. 57 – vista cremos que está a solução para o presente recurso.
Na verdade, e como se deixou salientado no Acórdão recorrido:
“Depois de os autos serem remetidos à conta, e antes de a execução ser declarada extinta (que se operou em 21.9.2020), veio a recorrente requerer a habilitação de cessionário, alegando que foi celebrado um contrato de cessão de créditos entre ela e a exequente, pedindo que seja habilitada para prosseguir a execução”; (cfr., pág. 7 deste aresto).
E, nesta conformidade, constatando-se que o presente “incidente” teve início em 28.07.2020, inegável se nos apresenta que a referida execução ainda não tinha sido declarada “extinta”, (encontrando-se, apenas, “suspensa”), nenhum motivo havendo para o seu indeferimento liminar, (nem mesmo, pelo menos, por ora, e atento tudo o que se expôs, por eventual “ilegitimidade”, como também alega o ora recorrente, mas com evidente falta de qualquer razão).
Compreende-se que o pela exequente declarado no sentido de que a “quantia exequenda já lhe tinha sido paga”, (pedindo o levantamento da penhora), pudesse levar a crer que “resolvido” estava o litígio entre exequente e executado, e que, assim, (totalmente) “inútil” era o prosseguimento da execução.
Porém, importa igualmente ter presente que o “pedido de habilitação” foi deduzido quando a instância executiva ainda não se encontrava extinta, (por inutilidade), e, assim sendo, cremos pois que bem andou o Tribunal de Segunda Instância, cuja decisão, (por se nos mostrar em sintonia com o “regime legal” e “princípios fundamentais” atrás enunciados e que regulam a situação), se apresenta de confirmar.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, e em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 15 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 03 de Julho de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
1 Direito das Obrigações, 5.ª edição, pág. 263
2 Tradicionalmente ao pagamento voluntário chama-se remissão da execução, sendo remidor aquele que efectua o pagamento da dívida exequenda
3 É este o entendimento perfilhado por Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lisboa, 1998, pág. 406
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