Processo nº 929/2023
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 10 de Outubro de 2024
ASSUNTO:
- Recurso contencioso
- Processo disciplinar
- Punição
- Dever de obediência
- Dever de Zelo
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 929/2023
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 10 de Outubro de 2024
Recorrente: (A)
Entidade Recorrida: Secretário para a Segurança
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
(A), com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Segurança de 20.11.2023 que rejeitou o recurso hierárquico necessário e manteve a decisão que lhe aplicou a sanção de repreensão escrita emitido pelo Director da DSC em 14 de Setembro de 2023, formulando as seguintes conclusões:
1. No processo disciplinar n.º 0047-PDD/DSC/2022, foi aplicada à recorrente a pena de repreensão escrita por violação dos deveres de zelo e de obediência indicados no artigo 279.º n.º 2 alíneas b) e c) do ETAPM;
2. A recorrente interpôs recurso hierárquico necessário do despacho da decisão, e posteriormente, o Secretário para a Segurança negou provimento ao recurso hierárquico e procedeu às duas rectificações do conteúdo do referido despacho da decisão;
3. A recorrente entende que o acto recorrido enferma de vários vícios, pelo que, o acto recorrido deve ser declarado nulo ou anulado;
Dever de zelo e dever de obediência
4. O despacho da decisão entendeu que a recorrente entrou várias vezes na sala de amamentação por ter pensado que o frigorífico da referida sala se destinava para fins de colocação da comida, ignorando a existência do documento da utilização da referida sala que se encontra afixado na parede da referida sala, o que demonstra que a recorrente não cumpriu as referidas disposições estabelecidas nas “Observações”, e violou os deveres gerais de zelo e de obediência previstos no artigo 279.º n.ºs 1 e 2, alíneas b) e c) e n.ºs 4 e 5 do Estatuto;
5. Conforme a defesa escrita contra a acusação do presente processo disciplinar apresentada pela recorrente e as suas alegações feitas no recurso hierárquico necessário do despacho da decisão posteriormente interposto, podemos resumir as impugnações da matéria de facto da recorrente nos termos seguintes: 1) As “Observações” existentes na sala de amamentação não foram divulgadas aos trabalhadores por qualquer forma, a recorrente não tomou conhecimento da existência das “Observações” na sala de amamentação nem do seu conteúdo; 2) A recorrente praticou a referida conduta por não ter tomado conhecimento das “Observações” na sala de amamentação, não tendo culpa a sua conduta;
6. Em primeiro lugar, os elementos dos autos, nomeadamente o ponto 10 da acusação, o ponto 3.4 do despacho da decisão e os depoimentos prestados por (B), directora do Instituto de Menores, e (C), todos constantes dos autos, revelam que a sala de amamentação foi concluída e entrou em funcionamento no final de 2018, porém, a directora só deu instrução a (C) no fim de Maio de 2019 para afixar as “Observações” na sala de amamentação.
7. Como foi elaborado o conteúdo do referido documento? Quem decidiu as respectivas disposições? Por que forma é que foi notificado aos trabalhadores? Sem qualquer anúncio, notificação ou circular no Serviço, como é que os trabalhadores podem saber o conteúdo do documento afixado pelo trabalhador sob a exigência do directora ou como é que o mesmo produz os seus efeitos em relação a outrem? Tudo isso não foi analisado no acto recorrido;
8. Conforme o artigo 4.º n.º 1 alínea 4), o artigo 3.º e o artigo 20.º n.º 6 do Regulamento Administrativo n.º 27/2015 - organização e funcionamento da Direcção dos Serviços Correccionais os preceitos legais do aludido Regulamento Administrativo, podemos saber que o Instituto de Menores é um organismo dependente da Direcção dos Serviços Correccionais e compete ao seu director definir as normas e instruções de funcionamento interno a observar pelos seus organismos dependentes. E, quaisquer regulamentos internos definidos pelo Instituto de Menores também devem ser homologados pelo Secretário para a Segurança;
9. Porém, as “Observações” em causa não foram elaboradas mediante a competência da directora nem foram homologadas pelo Secretário para a Segurança;
10. Conforme os elementos dos autos, as referidas “Observações” não foram assinadas por qualquer autoridade competente nem há qualquer descrição que demonstra a entidade que as elaborou, as referidas “Observações” só foram afixadas numa das paredes da sala de amamentação;
11. Nesta circunstância, a elaboração das referidas “Observações” violou os preceitos legais acima referidos, não devendo produzir quaisquer efeitos;
12. Caso seja verdade como alegado pelo acto recorrido que as “Observações” já produzem efeitos de publicidade, então, porquê é que o Serviço ainda emitiu uma comunicação interna em 24 de Maio de 2022 e exigiu que todos os trabalhadores assinassem para confirmação?
13. Além disso, comparando o conteúdo das “Observações” em causa com o das “Directrizes padrão de equipamentos e gestão da sala de amamentação” elaboradas pelos Serviços de Saúde de Macau, podemos verificar que existe uma divergência evidente entre as “Observações” e as “Directrizes” dos Serviços de Saúde acerca do conteúdo e do local de afixação;
14. Conforme as “Directrizes” elaboradas pelos Serviços de Saúde de Macau, podemos vislumbrar que o ponto 2.8 do equipamento básico é o frigorífico (o Serviço pode fornecer compartimento de refrigeração para leite materno) (sublinhado e negrito nossos);
15. Segundo as referidas “Directrizes”, o frigorífico não é um equipamento obrigatório e o conteúdo que se segue dentro dos parênteses refere que o Serviço pode fornecer compartimento de refrigeração para leite materno, tal conteúdo deve significar que é marcada uma zona ou um compartimento no frigorífico para conservação exclusiva do leite materno;
16. Face a isso, podemos entender que as “Directrizes” dos Serviços de Saúde não exigem obrigatoriamente que o Serviço forneça frigorífico nem regulamentam que o frigorífico só pode ser utilizado para conservar o leite materno;
17. Porém, o ponto 8 das “Observações” em causa define que com excepção da conservação temporária do leite materno, o frigorífico não se destina para fins de colocação de outros objectos;
18. Verdade é que não podemos proibir ou opor-se ao fornecimento, pelo Serviço, condição mais favorável para criar o ambiente da sala de amamentação, tratando-se, pois, de objectivo que a Administração deve ter, porém, isto não pode ser o critério para valorizar o acto alheio nem pode constituir um pressuposto de que as pessoas devem necessariamente tomar conhecimento ou têm que tomar conhecimento;
19. Mais ainda, o ponto 2.15 das “Directrizes” dos Serviços de Saúde de Macau: “*Instruções de uso da sala de amamentação colocadas na porta”, indica expressamente que as instruções do uso devem ser afixadas na porta da sala de amamentação e não no interior da sala;
20. Isto também é a questão que o acto recorrido e o instrutor não analisaram intencionalmente no despacho da decisão. Apesar de a recorrente ter invocado tal questão na defesa escrita, o instrutor não a respondeu;
21. A razão pela qual o ponto 2.15 das “Directrizes” dos Serviços de Saúde de Macau define assim é evidente, uma vez que a porta é o único acesso à sala. Caso deseja que a pessoa que entra na sala cumpra as disposições da utilização da sala, deve deixá-la saber tais disposições antes da entrar na sala e ter liberdade de escolher a entrada ou a utilização da sala;
22. Caso as referidas disposições só possam ser vistas depois de entrar na sala, como se pode confirmar ou garantir que a pessoa que entra na sala possa definitivamente ver as referidas disposições ou como pode obrigá-la a ver as referidas disposições?
23. O acto recorrido entendeu que as referidas “Observações” já foram afixadas no local bem visível, porém, conforme a situação da recorrente e o ambiente actual da sala de amamentação, a recorrente entrou na sala só para colocar objectos no frigorífico, não podendo notar os objectos circundantes na sala de amamentação;
24. Mesmo que os dois trabalhadores que entravam sempre na sala para fazer limpeza se responsabilizassem pelos trabalhos de limpeza na sala de amamentação, estes trabalhadores também não notaram o conteúdo das referidas “Observações”, para já não falar de que a recorrente só entrou na sala para colocar objectos no frigorífico;
25. Entende a recorrente que caso deseja que as pessoas notem as referidas “Observações” quando utilizem o frigorífico, as referidas “Observações” devem ser afixadas na porta do frigorífico onde só é o local mais adequado para que as “Observações” produzam os efeitos de especificação;
26. Nesta circunstância exigiu que a recorrente ou outros trabalhadores devessem tomar conhecimento das referidas disposições e assim entendeu que já produziu os efeitos de publicidade, isto, obviamente, não corresponde à boa fé nem ao senso comum, e também não corresponde à situação de que os funcionários públicos gerais recebam a ordem superior ou a norma instrutiva que produz efeitos em relação a todos os trabalhadores;
27. Conforme as práticas anteriores do Instituto de Menores da DSC, qualquer notificação aos seus trabalhadores para o cumprimento das normas ou assuntos é registada no livro de mudança de turno ou no livro de registo diário, ou a notificação é feita por meio da comunicação interna, e mesmo exige que os trabalhadores procedam à assinatura para confirmar o seu conhecimento quando envolvam regras detalhadamente definidas;
28. Em 28 de Novembro de 2023, a DSC divulgou na intranet novas “Directrizes de utilização e gestão da sala de amamentação” para fazer circular e notificar a todos os trabalhadores, nas quais indicou expressamente a entidade emissora das Directrizes e as respectivas disposições;
29. Uma vez que sabendo o seu acto de elaborar e afixar as “Observações” em 2019 tinha conteúdo incorrecto e foi indevidamente comunicado a todos os seus trabalhadores, a Autoridade reajustou a referida instrução de serviço e divulgou-a na intranet para fazer circular e ser assinada pelos trabalhadores;
30. Apesar de que o acto recorrido referiu que não foi só uma vez que a recorrente entrou na sala de amamentação e a recorrente devia saber a existência do referido documento, a recorrente já alegou, no conteúdo acima referido, os vícios de que enfermam as referidas “Observações”, e é de salientar mais uma vez que a recorrente não tomou conhecimento da existência das referidas “Observações” e do seu conteúdo através de um meio regular e eficaz;
31. Por outro lado, o acto recorrido só alegou conclusivamente que as referidas “Observações” produzem os efeitos de publicidade, porém, nunca invocou quaisquer fundamentos ou motivos para suportar porquê já produzem os efeitos de publicidade;
32. Sem quaisquer motivos pelos quais podem produzir os efeitos de publicidade, como é que se pode afirmar que a recorrente tomou conhecimento da existência das referidas “Observações” e do seu conteúdo?
33. O processo disciplinar obedece aos princípios do Direito Penal, a parte acusadora deve apurar provas suficientes para comprovar que o agente praticou efectivamente a infração disciplinar e só assim o agente pode ser incriminado; neste sentido, cfr. o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância proferido no Processo n.º 205/2000;
34. O acto recorrido afirmou que a recorrente tomou conhecimento das referidas disposições só com base em que as referidas “Observações” já foram afixadas e a recorrente entrou várias vezes na sala de amamentação, porém, não há provas ou factos suficientes que podem comprovar que bem sabendo as referidas disposições, a recorrente ainda as violou com dolo;
35. O acto recorrido ignorou completamente a questão controvertida invocada pela recorrente nem analisou os efeitos das referidas “Observações” nem especificou as razões pelas quais as referidas “Observações” foram afixadas sem cumprir as instruções definidas pelos Serviços de Saúde mas ainda considerou que a referida afixação não tem problema;
36. A recorrente entende que tanto a decisão proferida pelo director no processo disciplinar, como o Secretário para a Segurança, entenderam erradamente os aludidos dois deveres, o que assim conduziu a que incorressem em erro na aplicação da lei quando proferiram a decisão;
37. A recorrente entende que conforme as actuais disposições válidas, o Serviço proíbe, em princípio, levar comida para o 1.º andar, pelo que, antes de entrar no Serviço, ela colocou a comida na sala de amamentação situada no rés-do-chão, a fim de evitar a violação da referida disposição;
38. E, cada vez que a recorrente entrou na sala de amamentação foi no seu tempo de descanso e não no exercício de funções;
39. Conforme os elementos da violação do dever de zelo referidos no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância proferido no Processo n.º 219/2003, a conduta da recorrente no presente caso não preenche completamente os referidos elementos;
40. A recorrente já salientou várias vezes não ter tomado conhecimento da existência das referidas “Observações” e do seu conteúdo nem ter violado as referidas disposições com dolo, o que ela violou é as instruções que não têm efeitos de publicidade nem foram elaboradas conforme a competência legal nem foram formalmente publicadas e notificadas, pelo que, apesar de ter violado as referidas disposições, não se pode considerar que existe ilicitude na sua conduta;
41. E, na prática da conduta, a recorrente não estava no âmbito das funções que ela tem dever de exercer, pelo que, não preenche o elemento do carácter ilícito nem incorre em qualquer conduta omissiva que lhe é imputável a título de culpa. Assim sendo, a recorrente não violou o dever de zelo;
42. Quanto ao dever de obediência, a recorrente já alegou os vícios de que padecem as referidas “Observações”. No caso em apreço, o superior hierárquico da recorrente não tem competência nem adoptou uma forma adequada para notificar o conteúdo das “Observações” a todos, pelo que, as referidas “Observações” não preenchem o pressuposto de “ordens emanadas dos seus legítimos superiores hierárquicos, dadas sobre o serviço e em forma legal”, pelo que, sem o preenchimento deste pressuposto, a conduta praticada pela recorrente também não deve ser considerada como violação do dever de obediência;
Vício de falta de fundamentação
43. Referiu o acto recorrido que “sendo trabalhadora do Instituto de Menores, o Serviço já afixou as “Observações de Utilização da Sala de Amamentação” para servir de regulamento da utilização da referida instalação, isto basta para produzir os efeitos de publicidade em relação às pessoas que entram na sala de amamentação, …”
44. A entidade recorrida alegou meramente que as referidas “Observações” já produzem os efeitos de publicidade, não alegando, porém, quaisquer fundamentos jurídicos para justificar porquê podem produzir os efeitos de publicidade nem esclareceu porquê a recorrente deve tomar conhecimento do conteúdo das referidas “Observações”;
45. O acto recorrido também referiu que a referida prática corresponde ao ponto 5.4 das “Directrizes” emitidas pelos Serviços de Saúde, isto é, “afixar o regulamento de uso da sala de amamentação para cumprimento pelas utentes”, porém, o acto recorrido ignorou o ponto 2.15 das mesmas “Directrizes” “Instruções de uso da sala de amamentação colocadas na porta”, não justificando que existe a contradição entre si;
46. O dever de fundamentação está previsto nos artigos 114.º e 115.º do Código do Procedimento Administrativo;
47. No Acórdão proferido no Processo n.º 128/2003, o Tribunal de Segunda Instância apontou os requisitos da fundamentação;
48. Do conteúdo do acto recorrido resulta que a entidade recorrida não esclareceu porquê produzem os efeitos de publicidade nem invocou os fundamentos eficazes, mas sim só referiu a referida conclusão, e não justificou claramente porquê só acolheu os fundamentos favoráveis à sua decisão e não admitiu outros fundamentos que podem conduzir à contradição da sua decisão, pelo que, violou o dever de fundamentação;
Vício da violação da lei: insuficiência da averiguação e violação do princípio in dubio pro reo
49. Quer na defesa escrita contra a acusação, quer no recurso administrativo do despacho da decisão (recurso hierárquico necessário), a recorrente negou os referidos factos, referiu a validade das “Observações” e invocou fundamentos para suportar que ela verdadeiramente não tomou conhecimento das referidas disposições;
50. Perante as impugnações invocadas pela recorrente, o instrutor pode fazer averiguação e análise;
51. Como por exemplo, como as “Observações” foram elaboradas? Por quem e de acordo com que critério foi elaborado o seu conteúdo?
52. Como por exemplo, o instrutor deve averiguar qual é a prática geral ou o progresso já estabelecido do serviço na elaboração das instruções a observar por todos os trabalhadores?
53. Ou se há instruções e regulamentos internos que regulam que a comida pode ser colocada no frigorífico do 1.º andar? Em caso afirmativo, se é verdade que só precisa de falar com o guarda de segurança? Se tal prática viola quaisquer disposições, entre outros;
54. Tudo acima referido constitui o pressuposto de facto importante que deve ser apurado no presente processo disciplinar e pode afectar completamente a decisão a proferir, porém, o instrutor não realizou mais averiguação nem nova averiguação dos referidos factos;
55. Para formar a convicção, o instrutor deve tentar recorrer a mais meios de prova para conhecer a verdade dos referidos factos;
56. O princípio inquisitório está previsto no artigo 85.º do Código do Procedimento Administrativo e no artigo 329.º n.ºs 1 e 2 do Estatuto;
57. Quanto ao princípio inquisitório, o Tribunal de Segunda Instância tem um entendimento brilhante no seu acórdão proferido no Processo n.º 193/2000:
58. Também refere no mesmo acórdão que independentemente do contributo destas, a entidade instrutora tem o dever de perseguir e carrear para os autos todos os elementos que possam contribuir para o esclarecimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo da infracção imputada ao arguido; e reiterando que a livre apreciação da prova não é totalmente sem restrições;
59. Assim sendo, na falta de outras provas objectivas, o instrutor não pode negar as alegações da recorrente só com base na divergência entre os depoimentos prestados pelas testemunhas e as alegações da recorrente. Para além de violar o princípio inquisitório por falta de averiguação de outras provas possíveis por sua iniciativa, também viola o princípio in dubio pro reo quando não se considera ser dúvida a simples existência das duas versões diferentes;
60. Na instrução e na formação da convicção, o instrutor violou o princípio inquisitório e o princípio in dubio pro reo, conduzindo a que o acto recorrido, ou seja, decisão do recurso hierárquico do despacho da decisão, também enferme do mesmo vício;
Vício da violação da lei: falta de análise sobre a suspensão da execução da pena
61. A pena de repreensão escrita está prevista no artigo 300.º n.º 1 alínea a) do Estatuto, pelo que, preenche o requisito formal da suspensão da execução;
62. Porém, a entidade recorrida não analisou se pode aplicar a suspensão da execução, pelo que, incorreu manifestamente na omissão de pronúncia;
Vício da violação da lei: violação do princípio do contraditório
63. A entidade recorrida fez duas rectificações do conteúdo do despacho da decisão;
64. Antes de proceder às referidas rectificações dos factos, a entidade recorrida nunca notificou o conteúdo rectificado à recorrente para que a recorrente se pronunciasse sobre os factos rectificados;
65. A acusação que imputou a recorrente a prática da infracção disciplinar e o despacho da decisão são partes inseparáveis do acto recorrido, devendo todo o seu conteúdo ser notificado à recorrente nos termos do artigo 333.º n.º 1 do Estatuto;
66. Isto visa salvaguardar o direito fundamental que a recorrente deve ter no processo disciplinar – direito de defesa;
67. Porém, a decisão definitiva do recurso hierárquico interposto pela recorrente (acto recorrido) também deve ser proferida com base na acusação e no despacho da decisão;
68. Caso a decisão final seja proferida com base nos factos rectificados sem que os mesmos tivessem sido notificados à recorrente para esta exercer o devido direito de defesa, isto equivale ao incumprimento do aludido preceito legal da garantia do direito de defesa que a recorrente deve ter;
69. Isto viola completamente o princípio do contraditório no processo disciplinar;
70. Com a aplicação dos preceitos legais previstos no artigo 277.º do Estatuto, do artigo 4.º do Código de Processo Penal, no artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil e no artigo 339.º do Código de Processo Penal, podemos saber que no acto ora recorrido deve ser concedido à recorrente um tempo necessário para a preparação da defesa quanto à alteração dos factos do despacho da decisão nos termos do artigo 339.º n.º 1 do Código de Processo Penal;
71. A aludida conclusão também pode ser comprovada pelo Acórdão do Tribunal de Última Instância proferido no Processo n.º 77/2019;
72. Ao abrigo do artigo 298.º n.º 1 do Estatuto: “1. É insuprível a nulidade resultante da falta de audiência do arguido em artigos de acusação, nos quais as infracções sejam suficientemente individualizadas e referidas aos preceitos legais infringidos, bem como a que resulte de omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade.”
73. E, nos termos do artigo 122.º n.º 2 alínea d) do Código do Procedimento Administrativo: “2. São, designadamente, actos nulos: d) Os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental;”
74. Nestes termos, a recorrente entende que o acto ora recorrido enferma do vício de nulidade indicado nos preceitos legais acima referidos, pelo que, o acto recorrido deve ser declarado nulo.
Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Segurança contestar, apresentando as seguintes conclusões:
1. A Recorrente interpôs o presente recurso contra o Despacho n.º 087/SS/2023 (sic), de 20 de Novembro de 2023, do Secretário para a Segurança, com os seguintes fundamentos: Deveres de zelo e de obediência; falta de fundamentação; violação da lei: défice de instrução e violação do princípio de in dubio pro reo; violação da lei: falta da análise sobre a possibilidade da suspensão da pena; e, violação da lei: violação do princípio do contraditório.
2. No que concerne aos deveres disciplinares violados pela Recorrente, declarou a mesma que ela tinha entrado na sala de amamentação sem conhecimento da existência das “Instruções de uso da sala de amamentação” fixadas na referida sala e do seu conteúdo, pelo que a conduta dela não era culposa.
3. Como indicou o Despacho recorrido: “Conforme os elementos constantes do processo, a recorrente sabia perfeitamente que a sala de amamentação era instalação do Instituto de Menores, onde o serviço afixou as “Instruções de uso da sala de amamentação” como regulamento de uso da aludida instalação, produzindo suficientemente efeitos de edital perante as pessoas que tivessem entrado na sala de amamentação. Como indicou o despacho recorrido, tal prática era compatível com a alínea 5.4 das “Directrizes padrão de equipamentos e gestão da sala de amamentação” emitidas pelos Serviços de Saúde” – “Afixar o regulamento de uso da sala de amamentação para cumprimento pelas utentes”. Segundo os elementos constantes do processo, a recorrente admitiu que, várias vezes, tinha entrado na sala de amamentação, pondo e tirando comidas e gasosas do frigorífico nela colocado, pelo que não merecia provimento os motivos invocados pela recorrente.”.
4. Face à elaboração, ao conteúdo e à eficácia das “Instruções de uso da sala de amamentação”, tais Instruções são regras de uso de instalação do serviço, não estando sujeitas a nenhuma exigência de forma legal de elaboração e de publicação, e podendo o serviço, conforme a situação real, adoptar razoavelmente o método que considerava adequado para efectuar o respectivo aviso.
5. A sala de amamentação é instalação do Instituto de Menores, onde o serviço afixou as “Instruções de uso da sala de amamentação” como regulamento de uso da aludida instalação, produzindo suficientemente efeitos de edital perante as pessoas que tenham entrado na sala de amamentação.
6. Por outro lado, as “Instruções de uso da sala de amamentação” não abordam a organização e o funcionamento do Instituto de Menores, não sendo nem devendo ser reguladas pelos regulamentos internos.
7. Após a recepção da queixa, o Instituto de Menores emitiu um aviso interno em 24 de Maio de 2022 aos seus trabalhadores, com vista a adverti-los para cumprirem as Instruções em causa (cfr. fls. 54 do processo).
8. A publicação das novas “Instruções de uso da sala de amamentação” em 28 de Novembro de 2023 pela Direcção dos Serviços Correccionais na sua intranet, mencionada pela Recorrente, é um acto praticado depois da prolação do Despacho recorrido, não sendo mencionado no processo, pelo que não deve ser discutido no presente recurso contencioso.
9. Além disso, o conteúdo do ponto 42 da petição inicial é meramente uma conjetura da Recorrente, não sendo demonstrado por qualquer prova.
10. Quanto à questão de saber se a Recorrente tinha ou não conhecimento da existência das “Instruções de uso da sala de amamentação” fixadas na referida sala e do seu conteúdo, de acordo com as fotografias constantes do processo (cfr. fls. 7 e 8; e 15 a 17 do processo), salvo o devido respeito por opinião contrária, entende a Entidade recorrida que as “Instruções de uso da sala de amamentação” são fixadas em lugar que permite que as mesmas sejam facilmente reparadas por pessoas que tenham entrado na referida sala.
11. Com efeito, várias testemunhas arroladas no processo e até um outro arguido no processo, (D), afirmaram que tinham conhecimento da existência das “Instruções de uso da sala de amamentação” (cfr. fls. 50 do processo).
12. Como os casos dos sinais de trânsito ou sinais luminosos instalados nas vias públicas, desde que os sinais de trânsito ou sinais luminosos estejam, objectivamente, instalados em lugar que permite que os mesmos sejam claramente visíveis, considera-se inacreditável o argumento de invisibilidade dos sinais invocado por utentes da via pública.
13. A par disso, a Recorrente entrou não só uma única vez na sala de amamentação.
14. Assim sendo, a Entidade recorrida não aceitou a tese da Recorrente – ela não era culpada por não ter conhecimento da existência das “Instruções de uso da sala de amamentação” fixadas na sala de amamentação.
15. Nos termos do disposto no n.º 4 do art.º 279º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, o dever de zelo consiste em exercer as suas funções com eficiência e empenhamento e, designadamente, conhecer as normas legais e regulamentares e as instruções dos seus superiores hierárquicos, bem como possuir e aperfeiçoar os seus conhecimentos técnicos e métodos de trabalho.
16. Nos termos do disposto no n.º 5 do art.º 279º do supracitado Estatuto, o dever de obediência consiste em acatar e cumprir as ordens dos seus legítimos superiores hierárquicos, dadas em objecto de serviço e com a forma legal.
17. A Recorrente sabia perfeitamente que a sala de amamentação era instalação do Instituto de Menores, onde o serviço afixou as “Instruções de uso da sala de amamentação” como regulamento de uso da aludida instalação, produzindo suficientemente efeitos de edital perante as pessoas que tivessem entrado na sala de amamentação. Ela desrespeitou várias vezes as “Instruções de uso da sala de amamentação”, entrando na sala de amamentação, violando indubitavelmente os deveres de zelo e de obediência previstos no art.º 279º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
18. Relativamente à falta de fundamentação, entendeu a Recorrente que o Despacho recorrido não tinha exposto nenhum fundamento de direito para esclarecer por que razão foram produzidos os efeitos de edital.
19. Os “efeitos de edital” mencionados no Despacho recorrido não são conceitos jurídicos, mas sim, têm o sentido de edital público, isto é, comunica-se publicamente o conteúdo das “Instruções de uso da sala de amamentação” a todas as pessoas que entrem na sala de amamentação, sendo esta um simples conhecimento factual.
20. Existe imperfeição por as “Instruções de uso da sala de amamentação” não terem sido fixadas na parte exterior da porta da sala de amamentação, porém, tendo em conta que a Recorrente entrou não só uma única vez na referida sala, tal imperfeição não afecta a culpabilidade da Recorrente.
21. Quanto ao “défice de instrução e violação do princípio de in dubio pro reo” mencionado na petição inicial, como referido nos pontos 10 a 14 que antecedem, a Entidade recorrida, tendo ponderado suficientemente todos os elementos constantes do processo, não aceitou a tese da Recorrente – ela não tinha conhecimento da existência das “Instruções de uso da sala de amamentação” fixadas na sala de amamentação.
22. No processo foi averiguado o conteúdo do ponto 75 da petição inicial, o que não está associado à existência ou não da falta disciplinar da Recorrente.
23. Face ao conteúdo do ponto 76 da petição inicial, como referido no ponto 4 que antecede, as regras de uso de instalação do serviço não estão sujeitas a nenhuma exigência de forma legal de elaboração e de publicação, podendo o serviço, conforme a situação real, adoptar razoavelmente o método que considera adequado para efectuar o respectivo aviso.
24. A sala de amamentação é instalação do Instituto de Menores, onde o serviço afixa as “Instruções de uso da sala de amamentação” como regulamento de uso da aludida instalação, produzindo suficientemente efeitos de edital perante as pessoas que tenham entrado na sala de amamentação, sendo este um aviso distinto dos de outros assuntos.
25. O conteúdo que deve ser provado, mencionado no ponto 77 da petição inicial, não está associado, de forma qualquer, à infracção disciplinar da Recorrente.
26. No que concerne à “falta da análise sobre a possibilidade da suspensão da pena” mencionada na petição inicial, salvo o devido respeito por opinião contrária, entende a Entidade recorrida que só é necessário expor a fundamentação no despacho quando a suspensão da pena seja ajuizada nos termos do art.º 317º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, e não é necessária a fundamentação especial se não for adequada. Todavia, isto não significa que a Entidade recorrida não tenha analisado e ponderado o disposto no art.º 317º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
27. Ademais, no Despacho recorrido afirma-se claramente: “Tendo-se considerado e analisado o processo, o processo de instrução é legal, e tendo-se atendido à natureza e à gravidade da conduta da recorrente, ao grau de culpa e à personalidade da recorrente, e às circunstâncias que depuserem a favor da mesma ou contra ela, verifica-se que a pena aplicada à recorrente é adequada e proporcional.”.
28. A violação do princípio do contraditório mencionada na petição inicial consiste concretamente nas rectificações parciais do conteúdo do despacho sancionatório, de 14 de Setembro de 2023, do Director dos Serviços Correccionais, feitas pela Entidade recorrida no Despacho recorrido após ponderação dos conteúdos da petição de recurso hierárquico e do processo disciplinar.
29. Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 161º do Código do Procedimento Administrativo, o órgão competente para conhecer do recurso pode, sem sujeição ao pedido do recorrente, salvas as excepções previstas na lei, confirmar ou revogar o acto recorrido; se a competência do autor do acto recorrido não for exclusiva, pode também modificá-lo ou substituí-lo.
30. Rectificações feitas no Despacho recorrido:
1) Deu se como não provado o facto de a Recorrente e os demais dois arguidos terem posto e tirado comidas do frigorífico colocado na sala de amamentação;
2) Rectificou-se “Tanto por costume como pelos depoimentos das 16 testemunhas do Instituto de Menores, considera-se que os homens e as mulheres que não estejam amamentando, não podem entrar casualmente na sala de amamentação…” por “Os arguidos sabiam perfeitamente que a sala de amamentação era instalação do Instituto de Menores, onde o serviço afixou as “Instruções de uso da sala de amamentação” como regulamento de uso da aludida instalação, produzindo suficientemente efeitos de edital perante as pessoas que tivessem entrado na sala de amamentação; e, a par disso, os arguidos entraram não só uma única vez na sala de amamentação”.
31. No Despacho recorrido deu-se como não provado o facto invocado na acusação e na contestação – “A Recorrente e os demais dois arguidos tinham posto e tirado comidas do frigorífico colocado na sala de amamentação.” – o que não afecta o direito de defesa da Recorrente.
32. Rectificou-se “Tanto por costume como pelos depoimentos das 16 testemunhas do Instituto de Menores, considera-se que os homens e as mulheres que não estejam amamentando, não podem entrar casualmente na sala de amamentação…” por “Os arguidos sabiam perfeitamente que a sala de amamentação era instalação do Instituto de Menores, onde o serviço afixou as “Instruções de uso da sala de amamentação” como regulamento de uso da aludida instalação, produzindo suficientemente efeitos de edital perante as pessoas que tivessem entrado na sala de amamentação; e, a par disso, os arguidos entraram não só uma única vez na sala de amamentação”. Esta parte é a rectificação parcial do conteúdo do ponto 3.30 do despacho sancionatório do Director dos Serviços Correccionais; tal conteúdo rectificado é compatível com o conteúdo do ponto 3.29 do despacho sancionatório do Director dos Serviços Correccionais; e, o facto – “Os arguidos sabiam perfeitamente que a sala de amamentação era instalação do Instituto de Menores” – já consta da acusação, não ultrapassando o conteúdo da acusação e sendo um facto conhecido pelo público.
33. Deste modo, o Despacho recorrido não violou o princípio do contraditório.
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, ambas silenciaram.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer pugnando para que se julgasse procedente o recurso.
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
Dos autos consta a seguinte factualidade com relevância para a decisão da causa:
1. Pelo Senhor Secretário para a Segurança em 20.11.2023 foi indeferido o recurso hierárquico necessário interposto pela Recorrente da decisão que lhe aplicou a sanção disciplinar, com a seguinte fundamentação:
«(…)
A Recorrente face ao despacho de aplicação da sanção de repreensão escrita emitido pelo Director da DSC em 14 de setembro de 2023, veio dele interpor recurso.
Após leitura dos elementos contantes nos autos, a Recorrente no ano de 2022, nas datas de 26 de abril às 14h49 e 27 de abril às 14h57 pediu ao guarda de segurança que abrisse a porta da sala de amamentação do Instituto de Menores para a deixar entrar e colocar ou retirar coisas do frigorífico, a conduta relevante não cumpriu as orientações sobre “excepto para armazenamento temporário de leite materno, o frigorífico não pode ser usado para colocação de outros objectos” e “mães que não dão de amamentação e indivíduos do sexo masculino não podem entrar arbitrariamente na sala de amamentação” constantes nas Instruções sobre Utilização da Sala de Amamentação, posto isto reconheceu que ela violou o artigo 279.º, n.º 2, alíneas b) e c) do "ETAPM” ", o dever de zelo e o dever de obediência.
No recurso hierárquico, a Recorrente salientou que não sabia que na sala de amamentação tinha fixado “Instruções sobre Utilização da Sala de Amamentação”, foi por ignorância que praticou a conduta relevante, pelo que não devia considerar que praticou com dolo a infracção disciplinar.
De acordo com os elementos constantes nos autos, a Recorrente tinha perfeito conhecimento que a sala de amamentação pertence às instalações do Instituto de Menores, e o departamento afixou dentro da sala as "Instruções sobre Utilização da Sala de Amamentação" como regras de utilização do espaço, que são suficientes para produzir o efeito de publicidade a quem entra na sala de amamentação, tal como indica no despacho recorrido, a prática pertinente está em consonância com o nº 5.4 das “Orientações sobre Utilização dos Equipamentos e Padrões de Gestão das Salas de Amamentação” emitidas pelos Serviços de Saúde, que estabelecem “os utentes devem seguir as instruções e as regras de utilização das salas de amamentação fixadas”. Dos elementos constantes nos autos, a Recorrente entrou várias vezes na sala de amamentação para colocar ou retirar alimentos e gasosas no frigórico, portanto o fundamento da Recorrente julga improcedente.
Com base nisso, o alegado no recurso que é contra o “direito de acesso às informações” e “a punição deve basear-se em evidências e não no senso comum”, “é contra o princípio da boa fé”, “a existência de erro no pressuposto legal”, assim como “omissão do procedimento administrativo” por as “Instruções sobre Utilização da Sala de Amamentação” estavam afixadas dentro da sala de amamentação que é impossível as pessoas antes de entrar na sala tomassem conhecimento, tudo isso julga não provado.
Relativamente à “natureza secreta do processo” alegada no recurso, o instrutor interrogou oficiosamente a testemunha não prejudica a natureza secreta do processo, nem afecta a decisão final do processo.
Quanto à “falta de neutralidade e justiça da instrução”, após verificar o processo, o instrutor no ponto 48 da acusação e ponto 53 do relatório, afirmou que conforme o ponto 2.15 das “Orientações sobre Utilização dos Equipamentos e Padrões de Gestão das Salas de Amamentação” emitidas pelos Serviços de Saúde, “deve afixar na porta da sala de amamentação as instruções sobre utilização”, pelo que o alegado pela Recorrente não corresponde a verdade do facto.
Além disso, no artº 115º, nº 1 do CPC estipula que a fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito, assim sendo, no despacho recorrido somente expôs os factos considerados apurados e como fundamento para reconhecer o acto da infracção disciplinar, preenche a fundamentação exigida por lei.
No que respeita às “Instruções sobre Utilização da Sala de Amamentação” não cumpriu as orientações dos Serviços de Saúde, de fixar as “Instruções sobre utilização” na porta da entrada da sala, tal como referido, não afecta o efeito de publicidade a quem entra na sala de amamentação, tal como indica no despacho recorrido, a prática pertinente está em consonância com o nº 5.4 das “Orientações sobre Utilização dos Equipamentos e Padrões de Gestão das Salas de Amamentação” emitidas pelos Serviços de Saúde.
Quanto à alegação da Recorrente de que no despacho não expôs detalhadamente factos novos provenientes da investigação complementar feita pelo instrutor, após verificação do teor da investigação complementar, nada afecta aos factos imputados, a ilicitude e a culpa da Recorrente, pelo que não é necessário elencar detalhadamente o conteúdo relevante na fundamentação da decisão.
Quanto à “insuficiência da fundamentação” alegada no recurso, onde diz que na decisão não esclareceu as dúvidas suscitadas pela Recorrente na sua contestação, nem explicou a razão da não adopção, ora de acordo com o disposto no artigo 115.º, n.º 1, do CPC, estipula que a fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito, no despacho recorrido expôs de forma expressa e clara os fundamentos de facto e de direito, portanto cumpriu a fundamentação exigida por lei, pelo que o fundamento da Recorrente julga improcedente.
Quanto à “omissão do procedimento administrativo” alegada no recurso, salienta-se que o departamento não tomou qualquer actuação sobre a carta anônima (ver 929/10) que acusava falsamente o pessoal em causa, tal nada tem a ver com este recurso.
Após leitura e análise dos autos, constatou-se que o processo de instrução foi legal, e depois de considerar a natureza e gravidade da conduta do Recorrente, o grau da sua culpa, a sua personalidade e outras circunstâncias a si favoráveis e desfavoráveis, pois a sanção aplicada à Recorrente foi adequada e proporcional.
Com base no exposto, o Exmº Sr. Secretário para a Segurança no exercício do poder conferido pelo RA n.º 182/2019, veio nos termos do artigo 341.º, n.º 3 do "ETAPM" e artigo 161.º do CPA, rejeitar o recurso interposto, mantendo a sanção aplicada, mas quanto ao ponto 3.30 do despacho sobre: “………… bem como, quer seja da prática estabelecida, ou do depoimento das supracitadas dezasseis testemunhas da direcção, todos entendem que “mães que não dão de amamentação e indivíduos do sexo masculino não podem entrar arbitrariamente na sala de amamentação……” rectifica-se para: "todos os suspeitos têm perfeito conhecimento que a sala de amamentação pertence às instalações do Instituto de Menores, e o departamento afixou dentro da sala as "Instruções sobre Utilização da Sala de Amamentação" como regras de utilização do espaço, que são suficientes para produzir o efeito de publicidade a quem entra na sala de amamentação, e os suspeitos entraram na sala de amamentação mais de uma vez”; e no ponto 3.30 do despacho sobre: "...mas os três não cumpriram as “Instruções” estipuladas, entraram diversas vezes na sala de amamentação e utilizaram o frigorifico da sala para colocar e retirar alimentos;" rectifica-se para: "…… No entanto, os três não cumpriram as “Instruções” estipuladas, entraram várias vezes na sala de amamentação, tendo a suspeita (A) utilizado o frigorífico da sala para colocar e retirar alimentos;" e no ponto 6 do despacho sobre "............mas ele sob o pretexto de inspecionar a sala de amamentação, entrava e saía muitas vezes da sala, usando o frigorifico para colocar e retirar alimentos……" rectifica-se para: “Mas ele sob o pretexto de inspecionar a sala de amamentação entrou e saiu várias vezes da sala de amamentação.”
Notifique a Recorrente, inconformado com o presente despacho pode interpor recurso contencioso ao TSI no prazo de 30 dias.»
– cf. fls. 90v e 91 traduzido a fls. 101 a 106 -;
b) Do Direito
É do seguinte teor o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público:
«1.
(A), melhor identificada nos autos, interpôs o presente recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Segurança, de indeferimento do recurso hierárquico da decisão do Director dos Serviços Correccionais que o puniu com a pena disciplinar de repreensão escrita, pedindo a respectiva anulação.
Foi apresentada douta contestação pela Entidade Recorrida na qual se concluiu no sentido da improcedência do recurso.
2.
(i)
O primeiro fundamento do presente recurso contencioso consiste na alegação por parte da Recorrente de que a sua conduta não violou nem o dever de zelo nem o dever de obediência, não consubstanciando, por isso, a infracção disciplinar que esteve na base da aplicação da medida punitiva cuja anulação agora peticiona.
Vejamos.
(i.1)
Comecemos por referir os factos que a Administração considerou constituírem a infracção disciplinar aqui em causa, é dizer, integrativos da violação, por parte da Recorrente, dos deveres funcionais de zelo e de obediência. Tais factos são, no essencial, os seguintes:
- No dia 26 de Abril de 2022, pelas 14 horas e 49 e no dia 27 de Abril de 2022, pelas 14 horas e 57 minutos, a Recorrente pediu ao guarda de segurança que lhe abrisse a porta da sala de amamentação existente nas instalações do Instituto de Menores para a deixar entrar.
- A Recorrente entrou mencionada na sala de amamentação e colocou e retirou alimentos do frigorífico aí existente, infringindo as «Regras sobre a Utilização da Sala de Amamentação».
(i.2)
Sendo estes os factos relevantes, olhemos agora para o seu enquadramento jurídico-disciplinar na perspectiva que aqui interessa, que é a da aferição da legalidade do acto punitivo recorrido.
Esse acto, como já vimos, considerou que tais factos constituíram a violação, pela Recorrente, dos deveres de zelo e de obediência que estão previstos nas alíneas b) e c) do Estatuto dos trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro, e, portanto, integravam infracção disciplinar que, concretamente, foi punida com a pena de repreensão escrita (segundo o disposto no artigo 281.º do ETAPM, «considera-se infracção disciplinar o facto culposo, praticado pelo funcionário ou agente, com violação de algum dos deveres gerais ou especiais a que está vinculado»).
(i.2.1)
Comecemos pelo dever de zelo.
De acordo com o preceituado no n.º 4 do artigo 279.º do ETAPM, o dever de zelo «consiste em exercer as suas funções com eficiência e empenhamento e, designadamente, conhecer as normas legais e regulamentares e as instruções dos seus superiores hierárquicos, bem como possuir a aperfeiçoar os seus conhecimentos técnicos e métodos de trabalho», podendo dizer-se, a partir da leitura interpretativa dessa norma, que dela resulta, inequivocamente, a existência de um nexo de instrumentalidade entre o dever de zelo e o exercício ou desempenho das funções por parte do trabalhador. É por isso que se tem entendido que este dever se assume como um dever de diligência, de competência, de aplicação e de brio profissional no concreto desempenho e execução dessas funções, e que a sua violação ocorre quando a conduta funcional do trabalhador se afasta do padrão pressuposto, mormente, por não utilização do empenho, dos conhecimentos e meios apropriados ou por subversão dos fins estabelecidos no estrito exercício das funções (nestes termos, pode ver-se o ac. Tribunal Central Administrativo Norte de 19.11.2015, processo n.º 2287/10.1BEPRT que segue de perto o Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 23.01.2013, processo n.º 042/12 e, no mesmo sentido, o ac. STA de 15.10.2020, processo n.º 02207/10.3BEPRT). Deste modo, parece-nos correcto dizer-se que, para aferir do cumprimento ou não do dever de zelo, há, pois, que tomar como referência a actividade funcional desempenhada pelo trabalhador.
De salientar, ainda, que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Última Instância, importa também considerar que, implicando o dever de zelo conhecer as normas legais e regulamentares, constitui violação de dever de zelo a não aplicação dessas normas legais e regulamentares (veja-se o ac. do Tribunal de Última Instância de 18.12.2013, processo n.º 77/2013). Em todo o caso, parece-nos, por interpretação do doutamente decidido nesse acórdão pelo nosso mais alto Tribunal, a partir do concreto contexto decisório em que operou, que essas normas legais ou regulamentares têm de respeitar ao exercício das funções, por isso que o dever de zelo, na formulação textual da lei, «consiste em exercer as suas funções com eficiência e empenhamento» (o destacado é nosso). Além disso, também nos parece que o Tribunal de Última Instância deixou de fora do âmbito do dever de zelo a não aplicação das instruções de superiores hierárquicos que reservou para a violação do dever de obediência (cfr. p. 29 do citado acórdão).
(i.2.2)
Ora, no caso em apreço, parece-nos, salvo o devido respeito, que a conduta da Recorrente aqui em questão e que esteve na base da aplicação da medida punitiva contenciosamente impugnada, não constituiu uma violação de dever de zelo.
Isto, na exacta medida em que essa conduta não consubstancia, por parte do Recorrente, um exercício de funções com falta de empenho ou ineficiente. Designadamente, não se vê nessa conduta uma inobservância de quaisquer normas legais ou regulamentares ou instruções que respeitem ao desempenho das suas funções, visando, nomeadamente a eficiência, correcção, adequação e competência nesse desempenho. Na verdade, estamos em crer que, mesmo a considerar-se que a Recorrente infringiu, ou não aplicou, as chamadas «Regras sobre a utilização da sala de amamentação» existente nas instalações do Instituto de Menores, onde o mesmo trabalha - e já veremos, a propósito da violação de dever de obediência, que se não demonstra que essas «regras» provenham dos legítimos superiores hierárquicos do Recorrente, o que, face ao disposto no n.º 4 do artigo 279.º do ETAPM sempre lhes retiraria relevância na perspectiva da existência de violação do dever de zelo - não se pode vislumbrar aí a conexão funcional que antes vimos ser indispensável à afirmação da existência de uma contravenção ao dever de zelo disciplinarmente relevante, uma vez que o conteúdo de tais «Regras», como é manifesto, não estava vocacionado, na perspectiva teleológica que aqui interessa, para se projectar, de alguma forma, num desempenho eficiente, correcto, competente das tarefas que integravam a concreta posição funcional da Recorrente enquanto trabalhador da Direcção dos Serviços Correcionais. Para além de que, como antes dissemos, na interpretação feita pelo Tribunal de Última Instância das normas do n.º 4 do artigo 279.º do ETAPM, a falta de aplicação intencional de instruções dos superiores hierárquicos por parte do trabalhador é susceptível de integrar violação do dever de obediência, mas não do dever de zelo.
(i.3)
(i.3.1)
Viremos a nossa atenção, agora, para o dever de obediência.
O dever de obediência, consiste, de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 279.º do ETAPM, «em acatar e cumprir as ordens dos seus legítimos superiores hierárquicos, dadas em objecto de serviço e com a forma legal», podendo, pois, dizer-se que a afirmação, em concreto, de um dever de obediência cuja eventual violação possa justificar uma intervenção disciplinar exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) a existência de uma ordem; (ii) dada pelo legítimo superior hierárquico; (iii) em objecto de serviço; (iv) na forma legal. Concretizemos.
A existência de uma ordem pressupõe que ao trabalhador seja transmitido um comando de fazer ou de não fazer, impondo-lhe, portanto, a concretização de um comportamento activo ou omissivo.
Além disso, essa ordem tem de provir ou emanar do legítimo superior hierárquico do trabalhador, devendo considerar-se como tal todos aqueles que, numa dada estrutura organizatória, ocupem uma posição que lhes confira um poder de direcção, isto é, um poder de dar ordens e instruções a subalternos (sobre este ponto, o ac. do Tribunal de Segunda Instância de 22.09.2016, processo n.º 235/2015).
A ordem tem de ser dada «em objecto de serviço», o que significa ela tem de se inserir no quadro de atribuições e competências do serviço, o que pressupõe que ela se destine a realizar uma finalidade que compita ao serviço prosseguir, tem de ser dada em serviço e deve estar em conformidade com as habilitações ou capacidades do trabalhador.
Finalmente, a ordem constitui o trabalhador na obrigação de a cumprir e de lhe obedecer se tiver sido efectuada na forma legal pelo que só não haverá dever de obediência a ordens verbais se a lei impuser a forma escrita (seguimos de muito perto, PAULO VEIGA MOURA/CÁTIA ARRIMAR, Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, 1.º volume, Coimbra, 2014, pp. 301-302. A jurisprudência portuguesa perante uma norma com conteúdo idêntico à do n.º 5 do artigo 279.º do nosso ETAPM, tem decidido que a violação do dever de obediência pressupõe o incumprimento de uma ordem concreta e individualizada que seja dada por um superior hierárquico: neste sentido, veja-se o ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 7.1.2016, processo n.º 545/15).
(i.3.2)
No caso, com todo o respeito pelo entendimento contrário, não nos parece que estejam preenchidos os requisitos legais que vimos serem indispensáveis para se poder afirmar a existência de uma violação de dever de obediência a partir dos pressupostos de facto que o acto recorrido deu por demonstrados.
Com efeito, não se vê, a partir da factualidade relevante, que tenha a Recorrente tenha infringido ou inobservado qualquer ordem ou instrução proveniente ou emanada pelos seus legítimos superiores hierárquicos. Não nos parece que qualquer das «Regras sobre a Utilização da Sala de Amamentação» que estavam afixadas na parede da sala de amamentação existente no Instituto de Menores possa ser considerado como tal. Isto, pela simples razão de que se desconhece quem é o autor dessas «Regras», as quais, a esse propósito, são completamente omissas (na verdade, na parede dessa sala de amamentação estavam afixadas as chamadas «Regras sobre a Utilização da Sala de Amamentação», nos termos que melhor constam da fotografia que se encontra a fls. 7 do processo administrativo apenso, mas essas «Regras» não se mostram assinadas por quem quer que seja nem, por qualquer outra forma, delas resulta a sua proveniência ou a respectiva autoria). Resulta, por isso, inviável afirmar que qualquer dessas «Regras» corresponda, como parece ter entendido a Administração, a uma ordem ou instrução proveniente de um legítimo superior hierárquico da Recorrente. Isto basta, a nosso humilde ver, para afastar a existência da violação do dever de obediência que foi imputada à Recorrente e que justificou a aplicação da sanção disciplinar aqui em causa (esta conclusão, sempre se diga, torna desnecessário que entremos na apreciação da questão, de outro modo relevante, de saber se qualquer faladas «Regras», nomeadamente aquela que, alegadamente terá sido violada pela Recorrente, constitui uma ordem «em objecto de serviço» tal como vimos ser exigido pelo n.º 5 do artigo 279.º do ETAPM).
(i.4)
Não sendo a conduta da Recorrente enquadrável jurídico-disciplinarmente nem como infracção do dever de zelo nem como infracção de dever de obediência, parece-nos impor-se a conclusão de que o acto administrativo recorrido sofre do vício de violação de lei implicante da respectiva anulabilidade face ao disposto no artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo (segundo a doutrina, a violação de lei, «é o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis», abrangendo, portanto, entre outras situações, «o erro de direito cometido pela Administração na interpretação, integração ou aplicação das normas jurídicas»: assim, por todos, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3.ª edição, Coimbra, 2017, pp. 345-347).
Com a conclusão que antecede, e tendo em conta o disposto no artigo 74.º, n.ºs 2, 3, alínea b), e 5 a contrario do CPAC, ficará, ao que nos parece, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela Recorrente.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que o recurso contencioso deve ser julgado procedente com a consequente anulação do acto administrativo recorrido.».
Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual integralmente aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta, entendemos que o acto impugnado enferma do vício de violação de lei, pelo que, nos termos do artº 124º do CPA implica a anulabilidade do mesmo, sendo de conceder provimento ao recurso contencioso.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso anula-se a decisão recorrida.
Sem custas por delas estar isenta a Entidade Recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 10 de Outubro de 2024
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Juiz Relator)
Fong Man Chong
(1º Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
(2º Juiz-Adjunto)
Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto)
929/2023 REC CONT 1