Processo nº 491/2024
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 17 de Outubro de 2024
ASSUNTO:
- Acidente trabalho
- Acidente ocorrido no trajecto de e para o trabalho em veículo do trabalhador
- Direitos indisponíveis
- Sub-rogação da seguradora do acidente de trabalho
SUMÁRIO:
- Se a entidade patronal ao contratar o seguro para acidentes de trabalho nele incluir os acidentes de viação ainda que ocorridos em meio de transporte conduzido pelo trabalhador entende-se haver o acordo a que alude o nº 6 da alínea a) do artº 3º do Decreto-Lei nº 40/95/M requisito para caracterizar como acidente de trabalho, o acidente ocorrido no percurso de ida e volta entre a residência e o local de trabalho em qualquer meio de transporte;
- A exigência de notificação ao devedor prevista no artº 577º do C.Civ. e que por remissão do artº 589º do mesmo diploma legal se aplica à sub-rogação, incluindo a legal, não tem a ver com a validade da sub-rogação mas apenas com a sua eficácia, isto é, com a possibilidade de demandar o devedor para o pagamento;
- No caso da sub-rogação legal prevista no artº 58º do Decreto-Lei nº 40/95/M é o próprio preceito legal que impõe ao sub-rogado - companhia de seguros do acidente de trabalho - que proceda primeiro ao pagamento da indemnização devida, ficando o devedor - companhia de seguros responsável pelo acidente de viação -, querendo fazer o pagamento, condicionado a notificar o sub-rogado, o que de forma tácita derroga a aplicação do artº 577º do C.Civ. ainda que apenas para efeitos de eficácia;
- A responsabilidade por acidente de trabalho é direito indisponível sendo nula nos termos do artº 60º do Decreto-Lei nº 40/95/M qualquer convenção, acordo, ou declaração no sentido do sinistrado prescindir do respectivo direito.
___________________
Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 491/2024
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 17 de Outubro de 2024
Recorrentes: Companhia (A) (Recurso Interlocutório / Recurso Final)
Companhia (B) (Recurso Final)
Recorridas: As mesmas
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
Companhia (B), com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
Companhia (A), também com os demais sinais dos autos,
pedindo que seja a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de MOP385.943,60, acrescida de juros à taxa legal contados a partir da data da citação da Ré.
No decorrer da acção foi admitida a intervenção da sinistrada (C) e a empregadora da sinistrada (D) Casino S.A..
Proferido despacho saneador foi julgada improcedente a defesa sobre a inexistência de direito de sub-rogação e da excepção do caso julgado.
Não se conformando com aquele despacho veio a Ré interpor recurso apresentando as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo erra no julgamento quando, seguindo a posição do acórdão TSI Proc. nº 989/2020, vem concluir e declarar que não há norma que afasta a possibilidade de exercer o direito de sub-rogação pela seguradora de acidente de trabalho nos termos do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M a partir das premissas que nos casos em que as partes estipularem cláusulas especiais de cobertura do risco de trajecto (in itinere). quando o acidente for, simultaneamente, de viação e de trabalho, e se trata de acidente que o trabalhador sofre no trajecto normal para o local de trabalho ou no regresso deste com meio de transporte próprio, a seguradora para quem foi transferida a responsabilidade pelo acidente de trabalho que procedeu a reparação ao sinistrado nos termos do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto tem direito de sub-rogar nos direitos do sinistrado em relação a seguradora do veiculo causador do acidente de viação conforme o artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M
2. Assim, para que a conclusão fosse verdadeira, teriam as premissas de o serem, e de facto não o são no caso concreto.
3. Ao dizer-se que quando o acidente for, simultaneamente de viação e de trabalho nos termos do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M…, o tribunal a quo está a declarar que, no caso concreto, o acidente foi simultaneamente de viação e de trabalho, o que face à lei não corresponde à verdade, uma vez que o acidente de viação não é, face à lei, um acidente de trabalho.
4. Com efeito, conforme matéria dada como provada, ocorreu um acidente de viação no dia 03.04.2017, pelas 05:32 da manhã, no qual foram intervenientes um motociclo pesado com a chapa de. mat rícula MB-xx-xx conduzido por (E) (Agente da PSP) e (C) enquanto condutora do motociclo CM-xxxxx quando esta se dirigia para o local de trabalho em meio de transporte não fornecido pelo empregador.
5. Nos termos do artigo 3º DL nº 40/95/M acima parcialmente transcrito, uma vez que (C), enquanto condutora do motociclo CM-xxxxx não usava meio de transporte fornecido pelo empregador, o acidente de viação em que esteve envolvida não pode ser caracterizado, face à lei, como acidente de trabalho.
6. A definição legal de acidente de trabalho tal como decorre do artigo 3º do DL nº 40/95/M tem carácter prescritivo, impondo ao aplicador do direito uma determinada solução normativa a uma determinada situação de facto.
7. Neste sentido, se o legislador não caracteriza a situação de facto em discussão (acidente de viação de uma trabalhadora quando se deslocava para o local de trabalho em veículo não fornecido pela entidade patronal) como acidente de trabalho, não pode o Tribunal a quo, sobrepor-se a vontade do legislador e caracterizar como acidente de viação como acidente de trabalho simultaneamente.
8. Veja-se que, é por esta razão, de natureza legislativa, que a A. e qualquer outra companhia de seguros em Macau, vende uma cobertura extra para danos ocorridos em acidente de viação em trajecto, quando o meio de transporte não seja fornecido pelo empregador, como no caso sub judice, veja-se matéria dada como provada.
9. Portanto, a conclusão do Tribunal a quo, de que não há norma que afasta a possibilidade de exercer o direito de sub-rogação pela seguradora de acidente de trabalho nos termos do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é também ela em toda a extensão falsa, uma vez que pressupõe erradamente que o acidente é simultaneamente de viação e de trabalho quando, como se demonstrou, não o é.
10. Pelo que, a sub-rogação prevista no artigo 58º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é afastada quando o acidente de viação não é simultaneamente de viação e trabalho como no caso concreto.
11. E nem vale aqui invocar a ideia da alínea 2) do acórdão do TSI Processo nº 989/2020 em que se baseia o Tribunal a quo onde se diz, cita-se “A obrigatoriedade de seguro contra o acidente de trabalho através de cláusulas estandardizadas, não afasta a possibilidade de, entre as partes do contrato de seguro, estipular cláusulas de conteúdo mais favorável ao segurado/trabalhador, uma das hipóteses é introduzir uma cláusula de “ampliar” o conceito de “ida e regresso do local de trabalho a casa”, ou seja, incluir no seguro de acidente de trabalho a cobertura dos acidentes que possam ocorrer durante o trajecto para o local de trabalho ou no regresso deste, independentemente do meio de transporte utilizado”,
12. Porque pelo facto de as partes ampliarem a cobertura do contrato de seguro, não significa que a definição legal de acidente de trabalho seja ampliada ou que seja criada uma nova categoria de acidente de trabalho.
13. As partes contraentes deste tipo de seguros não têm competência legislativa para criar novas categorias de acidentes de trabalho.
14. Como melhor se transcreveu supra do Acórdão do TSI, Proc. nº 533/2016: “Não é o simples facto de ter sido transferida para a recorrente seguradora a responsabilidade pelos danos ocorridos em acidente de viação em trajecto, mesmo que o meio de transporte não seja fornecido pelo empregador, que automaticamente é transformado em laboral o acidente que se vier a verificar”.
Contra-alegando veio a Autora apresentar as seguintes conclusões:
I. Veio a Recorrente insurgir-se contra o despacho saneador de fls. 362 e seguintes dos autos na parte em que julga improcedente a defesa sobre a inexistência de direito de subrogação, por entender que o acidente em causa não é acidente de trabalho.
II. Entende a Recorrida que não poderia o douto Tribunal a quo ter decidido de modo diferente de como decidiu.
III. Refere a Ré que o acidente em discussão nos presentes autos não se trata simultaneamente de um acidente de viação e de trabalho, pois, no momento deste acidente de viação o sinistrado deslocava-se para o seu local de trabalho num motociclo de que era proprietário, ou seja, não se tratava de um meio de transporte providenciado ou proporcionado pelo empregador, pelo que o artigo 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, não se aplica ao presente caso,
IV. E por esse motivo a Autora não tem o direito de sub-rogação por si alegado (artigo 58.º, n.º 3 do referido diploma legal), nem o direito de receber da Ré a quantia total de MOP$385,943.60 (trezentas e oitenta e cinco mil novecentas e quarenta e três patacas e sessenta avos), correspondente aos montantes já pagos à vítima do acidente de viação supra descrito, acrescida de juros legais.
V. O acidente em questão ocorreu no dia 3 de Abril de 2017, pelas 5:32, quando a Ofendida se deslocava para o seu local de trabalho, no “(D) Casino, S.A.”, no Cotai.
VI. Aquando da ocorrência do acidente encontrava-se em vigor o Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 6/2015, a qual alterou o artigo 3.º, al. a), n.ºs (5) e (6) do Decreto-lei n.º 40/95/M que passou a ter a seguinte redacção:
“Artigo 3.º
Para efeitos do presente diploma, considera-se:
a) «Acidente de trabalho» ou «Acidente» - o acidente que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza, directa ou indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou incapacidade temporária ou permanente de trabalho ou de ganho.
É igualmente considerado como acidente de trabalho o ocorrido:
[...]
(5) No percurso de ida e volta entre a residência e o local de trabalho, quando o trabalhador, com a autorização expressa ou tácita do empregador, se desloque como passageiro de qualquer meio de transporte que, no momento da ocorrência do acidente:
Seja conduzido pelo empregador ou por outrem, em nome deste, ou conforme acordo estabelecido com o empregador; e
ii) Não se integre na rede de transportes públicos;
(6) No percurso de ida e volta entre a residência e o local de trabalho, quando o trabalhador seja o condutor de qualquer meio de transporte providenciado ou proporcionado pelo empregador, ou por outrem, em nome deste, ou conforme acordo estabelecido com o empregador, nas seguintes situações:
Se desloque para o local de trabalho, para efeitos de e em relação com a actividade profissional; ou
ii) Se desloque para a residência, após o termo do tempo de trabalho;” - sublinhado e realçado nossos.
VII. Ou seja, se na versão pretérita desta disposição legal constava que “é igualmente considerado como acidente de trabalho o ocorrido: na ida para o local de trabalho ou no regresso deste, quando for utilizado meio de transporte fornecido pelo empregador”,
VIII. O que originava inúmeras dúvidas interpretativas quanto ao conceito de acidente de trabalho no que respeita aos acidentes de viação ocorridos no percurso directo de ida e volta entre a residência e o local de trabalho,
IX. Foi intenção do Legislador dissipar essas dúvidas, fazendo agora expressamente constar “quando o trabalhador seja o condutor de qualquer meio de transporte”.
X. O acidente in casu tem natureza laboral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3.º, al. a), n.º (6) ii) do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto.
XI. Ao contrário do que pretende a Ré invocar, o conceito de acidente de trabalho no que respeita aos acidentes ocorridos no percurso directo de ida e volta entre a residência e o local de trabalho poderá ir além das circunstâncias descritas no supracitado artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, se tanto for convencionado entre a Seguradora e o Segurado.
XII. De acordo com a Portaria n.º 236/95/M, que aprovou a tarifa de prémios de seguro e condições para o ramo de acidentes de trabalho a que estão obrigadas todas as entidades seguradoras em Macau, refere no seu artigo 13.º, sob a epígrafe “Cobertura do risco de trajecto”, o seguinte:
“1. Quando a cobertura do seguro incluir o risco de trajecto, nos termos da subalínea (7) da alínea a) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, aplica-se uma sobretaxa de 0,25%.
2. Quando o segurado pretenda incluir no seguro a cobertura do risco de trajecto, fora das situações referidas no número anterior, há lugar à aplicação da sobretaxa mínima de 0,1%”.
XIII. Por “cobertura do risco de trajecto” entende-se, obviamente, a cobertura dos acidentes que possam ocorrer no percurso directo de ida e volta entre a residência e o local de trabalho, isto é, o Segurado pode, mediante o pagamento de uma sobretaxa sobre o prémio, incluir no seguro de acidente de trabalho a cobertura dos acidentes que possam ocorrer durante o percurso directo de ida e volta entre a residência e o local de trabalho, independentemente do meio de transporte utilizado pelo Sinistrado.
XIV. De acordo com a apólice que titula o contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre a Interveniente e a Entidade Empregadora do sinistrado, a (D) Casino, S.A., prevê a cláusula 1) o seguinte:
“Journey To and From WorkPlace Clause (Excluding non-traffic accidents)
This insurance is extended to cover to cover traffic accidents sustained by employees involving at least one motor vehicle during their usual traveI within Macau SAR to and fram the place of employment and place of residence, irrespective of the means of commute. The operative time of each journey is limited to 2 hours”.
XV. Resulta assim claro que a apólice em causa que titula o contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre a Autora e a Entidade Empregadora do sinistrado garantiu, de forma expressa, a cobertura do risco no caso de acidentes sofridos pelos seus trabalhadores no percurso directo de ida e volta entre a residência e o local de trabalho, independentemente do meio de transporte utilizado pelo Segurado, incluindo o transporte privado.
XVI. E tendo esta cláusula contratual natureza indemnizatória, pois que a mesma visa cobrir indemnizações (pagas pela Seguradora da Entidade Patronal) pelos danos ocorridos em consequência de acidentes sofridos pelos trabalhadores segurados,
XVII. A norma do artigo 1009.º, n.º 1, do Código Comercial, sob a epígrafe “Sub-rogação da seguradora” é aplicável in casu, ficando a Interveniente sub-rogada no direito que assistia do sinistrado, o Autor, de exigir uma indemnização à seguradora do veículo causador do acidente de viação, a Ré, pelos montantes despendidos pelo Autor em consequência deste acidente.
XVIII. Nesta conformidade, o sinistro dos presentes autos tem a natureza de acidente de trabalho, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3.º, al. a), n.º (6) ii) do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, do artigo 1009.º do Código Comercial e da cláusula 9) da apólice que titula o contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre a Interveniente e a Entidade Empregadora do sinistrado.
XIX. Razão pela qual deverá improceder a invocação da Ré de que o acidente a que respeitam os presentes autos não consubstancia um acidente de trabalho.
XX. É este o entendimento claro do Tribunal da Segunda instância, nomeadamente no Acórdão proferido nos autos do processo n.º 989/2020.
XXI. No mais, mantém-se tudo o que se deixou alegado em sede da Petição Inicial e Réplica da Autora,
XXII. Ficando a Autora sub-rogada nos direitos do sinistrado, em relação à seguradora do veículo causador do acidente de viação, a Ré.
Foi proferida sentença a julgar parcialmente procedentes a acção e a condenar a Ré a pagar à Autora MOP231.806,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação da Ré até efectivo e integral pagamento e absolve a Ré do pedido de condenação de pagamento de MOP154.137,60 e respectivo juros de mora.
Não se conformando com a decisão proferida veio a Autora interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões:
I. O presente recurso tem por objecto o segmento decisório da sentença proferida a fls. 497 a 502 dos autos, de 7 de Novembro de 2023, que decidiu absolver a Ré Companhia (A), ora Recorrida, do pedido de condenação relacionado com a indemnização pela incapacidade permanente parcial paga a (C), Sinistrada nos autos, no valor de MOP154,137.60 e respectivos juros de mora, julgando assim parcialmente procedente a presente acção.
II. O Tribunal a quo entendeu que já se encontram ressarcidos todos os créditos relacionados com as indemnizações pelos danos provocados pelo acidente de viação in casu, decidindo não haver lugar à sub-rogação da Recorrente em relação aos valores pagos à Sinistrada (C), a título de indemnização pela incapacidade permanente parcial sofrida pela mesma, e resultado desse acidente de viação, simultaneamente acidente de trabalho.
III. O Tribunal a quo entende que a Recorrente não pode exigir da Recorrida o pagamento da indemnização por incapacidade permanente parcial paga à Sinistrada, por via de sub-rogação, porquanto a desistência da Sinistrada relativamente a todos os pedidos patrimoniais e não patrimoniais, no âmbito do referido processo-crime, inclui também o crédito relativo à indemnização pela incapacidade permanente parcial, por esse pagamento ter sido feito depois da transacção homologada.
IV. Esta decisão consubstancia uma violação do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, um dos pilares do Direito de Trabalho, que torna as suas normas imperativas, bem assim um desvio à norma imperativa consagrada no artigo 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto.
V. Quando o acidente for, simultaneamente, de viação e de trabalho, compete à seguradora para quem foi transferida a responsabilidade pelo acidente de trabalho, a Recorrente, efectuar a indemnização devida, ficando esta sub-rogada nos direitos do sinistrado em relação à seguradora do veículo causador do acidente de viação, a Recorrida, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M.
VI. Esta sub-rogação, que é legal, tem como finalidade última a protecção dos direitos do sinistrado, vítima de um acidente de trabalho e de viação, permitindo que o mesmo receba célere e integralmente todas as indemnizações daí decorrentes.
VII. Estamos perante uma sub-rogação legal, em que a lei confere o direito de sub-rogação da seguradora para quem foi transferida a responsabilidade pelo acidente de trabalho, e que tenha efectuado o pagamento das indemnizações devidas ao sinistrado, de posteriormente vir pedir da seguradora do veículo causador do acidente de viação todas essas quantias indemnizatórias, por via dessa sub-rogação legal nos direitos do sinistrado.
VIII. Tal sub-rogação legal inclui todas as importâncias pagas em virtude da sua obrigação contratual para com a entidade patronal do sinistrado.
IX. A Recorrente, de boa-fé, liquidou todas as indernnlzações devidas à Sinistrada, onde se inclui MOP101,128.00 a título de indemnização por despesas médicas, MOP130,678.00 a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta e MOP154,137.60 a título de indeminização por incapacidade permanente parcial.
X. A norma do artigo 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M tem uma evidente natureza imperativa, não podendo ser afastada por qualquer acordo ou contrato, que directa ou indirectamente lese ou subtraia, ou represente uma renúncia aos direitos ou garantias conferidas nesse diploma legal.
XI. A declaração assinada pela Sinistrada no âmbito do processo-crime, pela qual desistiu livre e voluntariamente dos pedidos de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, representa um acto expresso, uma convenção, de renúncia ao direito à devida reparação, à devida indemnização, pelos danos emergentes do acidente de trabalho de que foi vítima.
XII. O acordo feito entre Sinistrada e Recorrida obsta a que a Recorrente possa sub-rogar-se, in totum, nos direitos da Sinistrada em relação à Recorrida, impossibilitando a transmissão para si do crédito relativo à indeminização pela incapacidade permanente parcial.
XIII. O acordo assinado pela Sinistrada é nulo nos termos do artigo 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M porque impossibilita o exercício dessa sub-rogação legal.
XIV. Em processos judiciais contra a seguradora do veículo causador do acidente de viação, existe o dever da seguradora do acidente de trabalho, neste caso a Recorrente, de ser chamada à demanda, ainda que oficiosamente, nos termos do disposto no artigo 58.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 40/95/M.
XV. Trata-se de um dever legal da seguradora do acidente de trabalho intervir nesse processo judicial para vir reclamar da seguradora do veículo causador do acidente de viação todas as quantias pagas ao Sinistrado, no âmbito do contrato de seguro de reparações de danos emergentes de acidentes de trabalho que assinou com a respectiva entidade patronal.
XVI. A Recorrente nunca foi chamada a intervir, ou sequer pronunciar-se, no aludido processo-crime n.º CR4-18-160-PCC, no qual interveio apenas a Recorrida e a Sinistrada, desconhecendo os contornos do mesmo, ficando assim impossibilitada de exercer a subrogação legal consagrada no artigo 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 40/95/M.
XVII. A Recorrida apenas cumpriu a sua obrigação legal de pagar todas as indemnizações devidas à Sinistrada, e fê-lo de boa-fé, desconhecendo a existência e o alcance desse acordo.
XVIII. É do entendimento da Jurisprudência nos Tribunais Superiores da RAEM que nos casos em que existe um acidente viação e ao mesmo tempo acidente de trabalho, mesmo que a sinistrada declare que se encontra totalmente ressarcida, a seguradora do acidente de viação não se pode opor ao pagamento efectuado no processo laboral por parte da seguradora para quem foi transferida a responsabilidade pelo acidente de trabalho, a Recorrente, por se tratar de matéria indisponível à liberdade contratual das partes.
XIX. O Tribunal a quo incorreu num erro de aplicação das normas jurídicas in casu, ao julgar improcedente o pedido de condenação da Recorrida a pagar à Recorrente a quantia de MOP154,137.60 a título de indemnização pela incapacidade permanente parcial, quantia essa paga de boa-fé à Sinistrada.
XX. Esta decisão deve ser revogada por esse Venerando Tribunal de Segunda Instância, sendo proferido douto Acórdão que condene a Recorrida a pagar a quantia peticionada de MOP385,943.60, a título das indemnizações legais, nos termos do Decreto-Lei n.º 40/95/M, e por via da sub-rogação legal consagrada no artigo 58.º desse diploma, acrescida dos respectivos juros de mora à taxa legal.
Igualmente não se conformando com a decisão proferida veio a Ré interpor recurso da mesma apresentando as seguintes conclusões e pedidos:
1. Constitui objecto do presente recurso jurisdicional a Sentença do TJB, de 7/11/2023, na parte em que condenou a Recorrente, com os fundamentos aí explicitados, no pagamento à Autora/Recorrida da quantia de MOP$231.806,00 e juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento;
2. A decisão recorrida padece do vício de deficiência da matéria de facto integrada na Base Instrutória, impedindo a formação da base factual necessária e suficiente a permitir uma decisão de direito do caso vertente de forma adequada e justa;
3. Para que a sub-rogação, mesmo a sub-rogação legal, seja plenamente eficaz em relação a todos os interessados, deve ser notificada ao devedor, para evitar que este, ignorando de boa fé a existência da sub-rogação, celebre com o credor originário qualquer negócio com incidência sobre o crédito, como sucedeu nos presentes autos;
4. No caso dos autos, releva saber se a Recorrida notificou ou não a Recorrente da sub-rogação, o que decorre da norma do artigo 577.º do CC, aplicável por força do artigo 589.º do mesmo diploma, sendo este um dos fundamentos do presente recurso;
5. A Recorrida alegou na sua p.i. (artigo 33.º) que, por diversas vezes, interpelou, extrajudiciaImente, a ora Recorrente para o pagamento do montante despendido, e a Recorrente, a outro propósito, defendendo-se, afirmou, no artigo 45.º da sua Contestação, que a desconhecia os pagamentos efectuados pela Recorrida à sinistrada;
6. Considerando a doutrina que os negócios celebrados entre o devedor e a credor originário, incidentes sobre o crédito, na ignorância da sub-rogação, são oponíveis ao sub-rogado, saber se houve notificação da Recorrente da sub-rogação ou que esta conhecia os pagamentos efectuados pela Recorrida revela-se relevante para a boa e justa decisão da causa;
7. Não beneficiando tais factos de prova plena, deveriam os mesmos ter sido seleccionados e levados à Base Instrutória, dado os mesmos serem considerados factos controvertidos, nos termos do artigo 430.º/1-b do CPC;
8. Razão por que o despacho que procedeu à selecção da matéria de facto e, através dele, a Sentença recorrida, ficaram inquinados do vício de deficiência da matéria de facto seleccionada, previsto nas normas dos artigos 629.º/4 e 650.º do CPC;
9. A Sentença recorrida padece, no que respeita à resposta dada ao quesito 2.º, do vício de erro de julgamento, dado que a prova produzida não constitui base suficiente para uma convicção segura no sentido de uma resposta positiva ao referido quesito;
10. O Tribunal recorrido, na decisão sobre tal ponto da matéria de facto, formou a sua convicção tendo por base apenas o relatório de participação de acidente, de fls. 71 a 73, e o rela·~,,:;·:·tório de visionamento do vídeo, de fls. 465 a 469, nada mais existindo nos autos que pudesse servir de arrimo seguro;
11. A Recorrida absteve-se de produzir prova necessária e relevante para permitir uma convicção segura sobre a atribuição da responsabilidade do acidente ao condutor do motociclo, (E), sendo que cabia à Autora/Recorrida alegar e provar, entre o mais, que foi este o responsável pelo mesmo, acidente simultaneamente de viação e de trabalho, o que, manifestamente, não conseguiu fazer;
12. Na audiência de julgamento dos presentes autos, não foi possível proceder-se ao visionamento da gravação-vídeo do acidente, apreendida nos autos criminais, dado que a mesma, no momento em que foi oficiosamente solicitada pelo Tribunal, já se encontrava destruída nos referidos autos criminais, tendo sido enviados para os presentes autos apenas o referido relatório de visionamento e um conjunto de fotografias extraídas da referida gravação, razão por que não foi possível submeter ao contraditório a referida gravação-vídeo do acidente, mas apenas as referidas fotografias dessa gravação;
13. Das fotografias não resulta que (E) tenha invadido a via de trânsito em que seguia a sinistrada ou que não tenha assegurado a distância mínima relativamente ao veículo desta, dado que o acidente ocorreu pelas 5:43 horas da manhã, ainda noite, e as fotografias não mostram como o acidente ocorreu;
14. Também o relatório de participação do acidente de viação e o relatório de visionamento da gravação-vídeo não permitem extrair, com segurança, que (E) foi o responsável pelo acidente;
15. O relatório de participação do acidente de viação contém apenas as declarações prestadas pelos dois intervenientes no acidente, naturalmente divergentes, e uma descrição da gravação-vídeo do acidente;
16. O Tribunal recorrido não esclarece por que razão apenas deu credibilidade às declarações da sinistrada e não às do arguido, (E), sendo que o Tribunal recorrido acaba por não dar credibilidade àquela na parte em que afirma que (E) embateu no seu ciclomotor;
17. Se o Tribunal considerou “não haver prova suficiente” para dar como provada a existência do embate entre os veículos, também, por identidade de razão, deveria considerar “não haver prova suficiente” para afirmar que (E) entrou na via de trânsito da sinistrada e que não assegurou a distância mínima relativamente a este;
18. O relatório de visionamento da gravação-vídeo não é elemento suficiente para servir de base a uma convicção segura acerca da responsabilidade pela ocorrência do acidente, dado que a gravação-vídeo não foi visionada em audiência, para além de que o conteúdo do relatório não foi confirmado em audiência de julgamento pelo agente que o elaborou;
19. O relatório de visionamento constante da participação de acidente (fls. 71 a 73) e o relatório de visionamento (fls. 465 e ss.) divergem quanto a aspectos fundamentais da dinâmica do acidente, sendo que no primeiro se afirma que o ciclomotor passou pelo lado direito do veículo tripulado por (E) e que “o acidente não foi capturado pela câmara vídeo, uma vez que a câmara estava parcialmente encoberta”;
20. Sendo estes os únicos elementos probatórios existentes nos autos, nada deles resultando de seguro quanto ao acidente, os mesmos não são suficientes para formar uma convicção válida acerca da imputação da responsabilidade pelo mesmo a (E);
21. Pelo que o Tribunal erra no julgamento que faz de tal matéria;
Sem conceder,
22. A Sentença recorrida padece de erro de julgamento, por não aplicação ao caso das normas do artigo 577.º do CC, ex vi artigo 589 do mesmo diploma;
23. Contrariamente ao ponderado na Sentença recorrida, o Tribunal recorrida deveria ter dado relevância à transacção dos autos criminais, celebrada entre a Recorrente e a sinistrada, credora originária, no que respeita aos pagamentos efectuados pela Autora/Recorrida à sinistrada antes da homologação da referida transacção;
24. No caso dos autos, estamos perante o instituto da sub-rogação, na modalidade de sub-rogação legal, a qual se traduz “na substituição do credor, na titularidade do direito a prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou faculta a este os meios necessários ao pagamento”;
25. Tal como resulta da doutrina, “tanto o sub-rogado, como o primitivo credor, podem e devem notificar o devedor, para que a transmissão seja plenamente eficaz, produzindo todos os seus efeitos em relação a todos os interessados”;
26. Se a notificação se não fizer e, na ignorância da sub-rogação, o devedor pagar ao antigo credor ou efectuar com ele qualquer negócio relativo ao crédito (remissão, compensação, concessão de moratória, etc.), quer o pagamento, quer estoutro negócio, são oponíveis ao sub-rogado;
27. Doutrina esta que se aplica igualmente à sub-rogação legal;
28. A Autora/Recorrida não alegou nem provou que notificou a Recorrente da sub-rogação, tendo apenas alegado (e que não chegou a ser seleccionado), que, por diversas vezes, interpelou extrajudicialmente para pagamento a ora Recorrente (cfr. artigo 33.º da p.i.) e a Recorrente afirmado que não tinha conhecimento dos pagamentos efectuados à sinistrada pela Recorrida;
29. Nos autos criminais CR4-18-160-PCC, com enxerto de pedido de indemnização cível, formulado apenas contra a ora Recorrente, sem qualque referência à natureza laboral do acidente de viação, nem a qualquer processo laboral, nem a pagamentos efectuados por seguradora laboral, tendo a Demandante formulado pedido de indemnização de MOP$423.100,00, por danos patrimoniais, e de MOP$500.000,00, por danos morais, a Demandante/credora originária e a Recorrente chegaram a acordo, visando pôr termo ao referido processo (transacção homologada em 4/10/2018), nos termos do qual aquela renunciava a toda indenização pedida por danos patrimoniais e reduzia o pedido de indemnização por danos morais para o valor de MOP$320.000,00, sendo MOP$200.000,00, a pagar pela Recorrente, e MOP$120.000,00, pelo arguido nesse processo;
30. Em 21/2/2019, nos autos de processo laboral, a credora originária e a Recorrida chegam também a acordo, pagando a Recorrida, para além do que havia já pago anteriormente, a indemnização por incapacidade parcial permanente, no valor de MOP$150.244,61;
31. Não tendo sido notificada, a Recorrente desconhecia totalmente a existência de tal processo laboral, tal como os pagamentos anteriormente efectuados pela Recorrida, como a transacção a que chegaram;
32. Não sendo eficaz para a Recorrente a sub-rogação, com a transacção nos autos criminais, para a Recorrente ficaram extintos os créditos da credora originária, não apenas, como reconhece o Tribunal, os que foram pagos pela Recorrida após a homologação da referida transacção, como também os créditos que foram pagos por aquela anteriormente à referida homologação;
33. Não tendo a Recorrida feito a notificação referida, encontrando-se a Recorrente na ignorância de boa fé da sub-rogação, a transacção efectuada, nos autos criminais, entre a Recorrente e a credora originária, incidindo sobre o crédito desta, não pode deixar de ser oponível à Recorrida sub-rogada, contrariamente ao que se defenda na Sentença recorrida;
34. Pelo que não poderia vir a Recorrida, como faz nos presentes autos, exigir da Recorrente a devolução das referidas quantias, uma vez que tal crédito se extinguiu com a referida transacção, negócio que é oponível à Recorrida;
35. Situação que apenas ocorreu pelo facto de a Recorrida, não tendo feito tal notificação, ter permitido que a Recorrente, no desconhecimento sem qualquer culpa da sub-rogação, celebrasse com a credora originária o referido acordo relativo ao seu crédito;
36. A Sentença recorrida violou, nomeadamente, as normas dos artigos 430.º/1-c) do CPC e, pela sua não aplicação, as normas do artigo 577.º do CC, aplicáveis por força da norma do artigo 589.º do mesmo diploma.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., se requer se dignem V. Exas.:
- Conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, absolver a Recorrente do pedido;
Sem conceder,
- Revogar a Sentença recorrida, proferindo nova decisão ao quesito mencionado, nos termos das normas do artigo 629/1/2/3 do C.P.C, e, em consequência, negando provimento à acção e absolvendo a Ré do pedido;
- Anular a decisão recorrida, com fundamento na deficiência da matéria seleccionada e integrada no questionário, determinando a sua ampliação com a matéria dos artigos 33.º da p.i. e 45.º da Contestação, remetendo-se processo para novo julgamento, nos termos da norma do artigo 629.º/4 do C.P.C.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Vem a Ré/Recorrente da decisão final suscitar a insuficiência da matéria de facto porque entende que haveriam de ser aditados o artº 33º da p.i. e o artº 45º da contestação, por se ter invocado que a Autora havia interpelado extrajudicialmente a Ré para o pagamento e tal facto haver sido impugnado.
Ora, o que sucede é que no artigo 45º da contestação a Ré/Recorrente impugna os artigos 15º a 32º da p.i. e não o artigo 33º.
No artigo 46º a Ré/Recorrente diz expressamente que “reconhece que foi interpelada para pagar, recusando o pagamento porque nenhum direito assistia à Autora”
Sendo que no artigo 33º da p.i. de essencial se dizia que a Ré foi diversas vezes interpelada extrajudicialmente para pagar mas nunca o fez, fácil é concluirmos pela ausência de razão da Ré/Recorrente a qual quase raia a má-fé por vir invocar argumento que tem obrigação de saber não ser verdadeiro.
Destarte, sem necessidade de outras considerações improcede o recurso no que concerne à ampliação da matéria de facto.
Mais impugna a Ré/Recorrente a resposta dada pelo Tribunal ao quesito 2º da Base Instrutória.
Para tanto invoca as suas razões no sentido de que não percebe porque é que o Tribunal “a quo” valorou determinados elementos prova e não outros e considera que com base nos elementos de prova que possuía não devia ter retirado a conclusão que retirou quanto a dar aquela matéria como provada.
Ou seja, com base na sua argumentação pretende a Ré/Recorrente que este Tribunal faça um segundo julgamento da matéria de facto e conclua pelo erro de julgamento da Tribunal “a quo”.
É abundante a Jurisprudência deste Tribunal no sentido da improcedência deste género de argumentação no que concerne à impugnação da matéria de facto.
Ao tribunal de recurso não cabe fazer um novo julgamento sobre a matéria de facto em face da prova que foi produzida e apreciar se o tribunal recorrido decidiu bem ou mal.
Nos termos do nº 4 do artº 629º do CPC só quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre determinado ponto da matéria de facto é que o tribunal de recurso a pode anular.
Igualmente apenas nos termos previstos no nº 1 do mesmo preceito legal o tribunal de recurso apenas pode alterar a decisão sobre a matéria de facto se os meios probatórios produzidos e indicados nos termos do artº 599º do CPC demandarem decisão diversa, ou quando houver erro grosseiro na apreciação da prova e dos elementos existentes resultar decisão diversa.
Ora, no caso dos autos, para além de expor em jeito de alegações sobre a matéria de facto as razões pelas quais entende que a decisão havia de ser outra, sustentando que se havia de dar maior valor a determinados elementos que outros, nada mais invoca a Ré/Recorrente de onde resulte qual o meio probatório ou o erro de julgamento que demandava decisão diversa.
Assim sendo, também no que concerne à impugnação da decisão sobre a matéria de facto deve improceder a decisão recorrida.
a) Factos
Na decisão sob recurso foi apurada a seguinte factualidade:
1. A Autora é uma empresa que se dedica à actividade seguradora, nomeadamente, celebração de contratos de seguro em todos os ramos, com os seus segurados.
2. No âmbito da sua actividade, a Autora celebrou um contrato de seguro do Ramo de Acidentes de Trabalho com a (D) Casino S.A., titulado pela apólice n.º CIM/EGI/2016/003776, cuja cópia se junta a fls. 33 e 34.
3. A Ré é uma empresa que se dedica à actividade seguradora.
4. No âmbito da sua actividade, a Ré celebrou um contrato de seguro do Ramo Automóvel com (E), titulado pela apólice n.º LFH/MFT/2017/000002.
5. Através do contrato de seguro n.º LFH/MFT/2017/000002, foi transferida para a Ré a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula MB-xx-xx.
6. No dia 3 de Abril de 2017, pelas 5H32, ocorreu um acidente de viação, em Macau, na Rua 1.º de Maio, junto ao parque de estacionamento da Polícia Judiciária, em que foram intervenientes o sobredito veículo ligeiro de passageiros com a matrícula MB-xx-xx, conduzido à data dos factos por (E) e (C), trabalhadora da (D) Casino S.A. e condutora do motociclo CM-xxxxx.
7. Aquando do acidente, (C) dirigia-se para o seu local de trabalho, para entrar ao serviço.
8. O acidente foi objecto de discussão e apreciação nos autos de processo especial do trabalho (acidente de trabalho) que correram termos no 1.º Juízo Laboral do Tribunal Judicial de Base sob o n.º LB1-18-0355-LAE, onde as partes chegaram a acordo na tentativa de conciliação.
9. No âmbito do processo n.º LB1-18-0355-LAE foram acordadas as indemnizações devidas ao sinistrado.
10. No âmbito do processo n.º LB1-18-0355-LAE, em 16 de Janeiro de 2019, o sinistrado (C) foi submetido a exame médico, realizado por perito medico nomeado pelo Ministério Público.
11. Em 06.04.2018 (C) deu entrada pedido de indemnização em processo penal nº CR4-18-160-PCC (fls. 219 a 233, cujo teor aqui se dá reproduzido).
12. Em 20.09.2018, (C) deu entrada de um pedido de ampliação do pedido de indemnização em processo penal nº CR4-18-160-PCC (fls. 317 a 320, cujo teor aqui se dá reproduzido).
13. No processo nº CR4-18-160-PCC, (C) formulou os seguintes pedidos relacionados com danos patrimoniais derivados do acidente de viação:
a. Despesas de consulta de emergência e de internamento no Hospital Kiang Wu, no montante total de MOP$70.472,00;
b. Despesas de consultas de acompanhamento, no montante total de MOP$3.210,00;
c. Despesas de tratamento em médicina chinesa, no montante total de MOP$1.300,00;
d. Despesas de aquisição de cadeira de rodas, no montante de MOP$239,00;
e. Despesas de táxi, no montante total de MOP$1.153,00;
f. Perda de remuneração, no montante total de MOP$156.439,00;
g. Pagamento de despesas médicas para tratamento no futuro, devido aos ferimentos causados pelo acidente de viação, bem como outras despesas patrimoniais e não patrimoniais inerentes, devendo o montante em causa ser liquidado aquando da execução.
14. No processo nº CR4-18-160-PCC, (C) pediu a ampliação de pedido no sentido de aditar os seguintes pedidos:
a. Despesas de tratamento ocorridas em 11 de Junho de 2018 e 1 de Agosto do mesmo ano, no montante de MOP$170,00;
b. Despesas com a operação de “remoção da fixação interna”, despesas hospitalares e subsequentes despesas de consultas de acompanhamento, no montante total de MOP$13.935,00;
c. Perda de remuneração salarial entre 7 de Agosto de 2018 a 13 de Setembro do mesmo mês, em virtude de ausência de trabalho, no montante de MOP$26.182,00.
15. Em 04.10.2018 foi realizado o julgamento nos autos de processo crime que correu termos no 4º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base com o nº CR4-18-160-PCC.
16. No julgamento do processo n.º CR4-18-160-PCC, (C) veio desistir livre e voluntariamente dos pedidos por danos patrimoniais e outros pedidos cíveis.
17. A sentença proferida no processo n.º CR4-18-160-PCC no dia 4 de Outubro de 2018 homologou a transacção sobre os pedidos civeis formulados por (C).
18. O condutor do veículo com a matrícula MB-xx-xx, segurado na Ré, circulava na faixa esquerda da Avenida do Nordeste, e seguiu em direcção à Rua Nova da Areia Preta.
19. A condutora do veículo CM-xxxxx, (C), seguia na faixa do meio da Rua 1 de Maio, em direcção à Rua Ma Kau Seak e quando se aproximou do local reservado para estacionamento da PJ, o veículo MB-xx-xx entrou na sua faixa de rodagem, provocando a caída do veículo CM-xxxxx.
20. Na sequência da caída, (C) sofreu lesões, tendo precisado de tratamento hospitalar.
21. Na sequência do acidente, (C) sofreu uma incapacidade temporária absoluta para o trabalho (ITA) desde 4 de Abril de 2017 a 14 de Dezembro de 2017 e 7 de Agosto de 2018 a 13 de Setembro de 2018, num total 293 dias.
22. Em consequência das lesões sofridos no acidente, (C) foi atribuída uma incapacidade permanente parcial de 8%.
23. O sinistrado (C) nasceu em 13.02.1964.
24. (C) auferia um salário mensal de MOP$20,070.00.
25. Entre 2017/4/24 a 2019/3/8, na qualidade de Seguradora para quem foi transferida a responsabilidade pelo acidente de trabalho nos termos da apólice de seguro n.º CIM/EGI/2016/003776 e nos termos do prescrito na Lei, a Autora já procedeu ao pagamento da quantia global de MOP$385,943.60.
26. O sobredito montante MOP$385,943.60 refere-se à soma das seguintes parcelas:
A. MOP$101,128.00 - a título de indemnização por despesas médicas;
B. MOP$130,678.00 - a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta para o trabalho (ITA);
C. MOP$154,137.60 - a título de indemnização por incapacidade permanente parcial (IPP).
Do Recurso interlocutório
É do seguinte teor o despacho recorrido:
«- Inexistência de direito de sub-rogação alegado pela Autora
A Ré defende que o acidente em causa não é acidente de trabalho pelo que não há lugar a sub-rogação invocada pela Autora.
É verdade que o acidente de presente acção não se enquadra no conceito definido no artigo 3.º/a) (5) do Decreto-Lei n.º 40/95/M. Mediante a aplicação da correspondente sobretaxa, o seguro de trabalho pode abranger os acidentes que os trabalhadores possam sofrer no trajecto normal para o local de trabalho ou no regresso deste, fora das situações referidas na subalínea (7) da alínea a) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto (cfr. Cláusula n.º 3 das Cláusulas Especiais Aplicáveis Quando Expressamente Referidas nas Condições Particulares, constantes da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pela Portaria n.º 237/95/M, de 14 de Agosto).
Ou seja, mediante as cláusulas especiais, o âmbito de seguro de acidente de trabalho pode abranger os acidentes que os trabalhadores sofrem no trajecto normal para o local de trabalho ou no regresso deste mesmo que os trabalhadores não tinham utilizado os meios de transportes fornecidos pelo empregador.
Com efeito, nos casos em que as partes estipularem cláusulas especiais de cobertura do risco de trajecto (in itinere), quando o acidente for, simultaneamente, de viação e de trabalho, e se trata de acidente que o trabalhador sofre no trajecto normal para o local de trabalho ou no regresso deste com meio de transporte próprio, a seguradora para quem foi transferida a responsabilidade pelo acidente de trabalho que procedeu à reparação ao sinistrado nos termos do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto tem direito de sub-rogar nos direitos do sinistrado em relação à seguradora do veículo causador do acidente de viação conforme o artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M.
É essa a posição do Tribunal de Segunda Instância. Segundo o Tribunal de Segunda Instância, nos casos em que foi incluído no seguro de acidente de trabalho a cobertura dos acidentes que possam ocorrer durante o trajecto para o local de trabalho ou no regresso deste, independentemente do meio de transporte utilizado, não há norma que afasta a possibilidade de exercer o direito de sub-rogação pela seguradora de acidente de trabalho nos termos do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M (“a obrigatoriedade de seguro contra o acidente de trabalho através de cláusulas estandardizadas, não afasta a possibilidade de, entre as partes do contrato de seguro, estipular cláusulas de conteúdo mais favorável ao segurado/trabalhador, sendo uma das hipóteses introduzir uma cláusula ampliadora do conceito de “ida e regresso do local de trabalho a casa”, ou seja, incluir no seguro de acidente de trabalho a cobertura dos acidentes que possam ocorrer durante o trajecto para o local de trabalho ou no regresso deste, independentemente do meio de transporte utilizado. Na situação em que o acidente seja simultaneamente laboral e de viação, e, caso ele seja provocado pelo condutor do veículo acidentado, é este que se responsabiliza pelo dano causado, sem prejuízo de que tal responsabilidade civil seja transferida para a seguradora nos termos da legislação reguladora da matéria em causa. Uma vez provada a culpa do condutor do veículo acidentado, em termos de justiça e em situação normal, é ele que deve ser responsável pelos danos causados. O artigo 58º/1 do DL nº 40/95/M, de 14 de Agosto, consagra uma situação de sub-rogação legal, figura igualmente prevista no artigo 586º do CCM, cuja aplicação é independentemente da natureza do direito da indemnização (exercido pelo sub-rogante/segurador), que pode assumir uma natureza convencional ou legal. ” - Processo n.º 989/2020).
In casu, o acidente de viação ocorreu quando (C), trabalhadora da (D) Casino S.A., dirigia-se para o seu local de trabalho, para entrar ao serviço.
Segundo a cláusula especial de cobertura do risco de trajecto (in itinere) consagrado no contrato de seguro para acidente de trabalho celebrado entre a Autora e o empregador do sinistrado, (C), a Autora e a entidade patronal do sinistrado acordaram em estender a cobertura a qualquer acidente de trânsito sofrido durante a deslocação dos trabalhadores de e para o local de trabalho independentemente do transporte utilizado (fls. 33 e 34).
Assim, podemos concluir que a Autora, quem procedeu à reparação ao sinistrado nos termos do DL nº 40/95/M, de 14 de Agosto, tem direito de sub-rogar nos termos do artigo 58.º do mencionado diploma.
Pelas razões expostas, julga-se improcedente a defesa sobre a inexistência de direito de sub-rogação.»
Entende o Recorrente quanto a esta matéria que quando o trabalhador segue em meio de transporte próprio quando ocorre o acidente no trajecto para o, ou no regresso do local de trabalho, tal não configura um acidente de trabalho.
Sobre esta matéria rege o artº 3º do Decreto-Lei nº 40/95/M de 14 de Agosto, onde se pode ler:
Artigo 3.º
(Conceitos)
Para efeitos do presente diploma, considera-se:
a) «Acidente de trabalho» ou «Acidente» — o acidente que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza, directa ou indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou incapacidade temporária ou permanente de trabalho ou de ganho.
É igualmente considerado como acidente de trabalho o ocorrido:
(1) Fora do local ou do tempo de trabalho, quando verificado na execução da actividade laboral ou de serviços determinados pelo empregador ou por este consentidos;
(2) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador;
(3) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito, excepto se aquele for efectuado por crédito em conta bancária;
(4) No trajecto para o local onde deva ser prestada ao trabalhador qualquer forma de assistência ou tratamento por causa de anterior acidente, no regresso desse local e enquanto neste permanecer para esses fins;
(5) No percurso de ida e volta entre a residência e o local de trabalho, quando o trabalhador, com a autorização expressa ou tácita do empregador, se desloque como passageiro de qualquer meio de transporte que, no momento da ocorrência do acidente:
i) Seja conduzido pelo empregador ou por outrem, em nome deste, ou conforme acordo estabelecido com o empregador; e
ii) Não se integre na rede de transportes públicos;
(6) No percurso de ida e volta entre a residência e o local de trabalho, quando o trabalhador seja o condutor de qualquer meio de transporte providenciado ou proporcionado pelo empregador, ou por outrem, em nome deste, ou conforme acordo estabelecido com o empregador, nas seguintes situações:
i) Se desloque para o local de trabalho, para efeitos de e em relação com a actividade profissional; ou
ii) Se desloque para a residência, após o termo do tempo de trabalho;
(…)
Ou seja, o que da leitura do preceito resulta é que se conforme acordo estabelecido com o empregador for considerado acidente de trabalho o acidente ocorrido no percurso de ida e volta entre a residência e o local de trabalho o trabalhador seja o condutor de qualquer meio de transporte, tal assim será considerado como acidente de trabalho.
Não desconhecemos a invocada jurisprudência onde se sustenta posição contrária, contudo, de uma leitura atenta da mesma, facilmente se verifica que ali não se pondera a última parte da redacção do nº 6 da alínea a) do artº 3º do indicado preceito onde admite a hipótese e desse transporte ser feito nos termos do acordo estabelecido com a entidade patronal.
Ora, no caso em apreço a entidade patronal ao contratar o seguro para acidentes de trabalho fez incluir no mesmo os acidentes de viação ainda que ocorridos em meio de transporte conduzido pelo trabalhador, pelo que, está demonstrada a existência do acordo, e em consequência a caracterização do acidente de viação simultaneamente como de trabalho.
Neste sentido é unânime a Jurisprudência deste Tribunal, veja-se Acórdão de 30.05.2024 proferido no processo que correu termos sob o nº 245/2024, 17.12.2020 proferido no processo que correu termos sob o nº 989/2020.
Assim sendo, entendendo-se que o acidente objecto destes autos é acidente de trabalho em face do acordo que havia sido celebrado com a entidade patronal, situação legalmente permitida nos termos expostos, impõe-se negar provimento ao recurso interlocutório interposto deste segmento da decisão.
Do Recurso da Decisão Final
b) Do Direito
É do seguinte teor a decisão recorrida:
«Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Vem exigir a Autora a condenação da Ré no pagamento da quantia reclamada, por via de sub-rogação nos direitos do sinistrado num acidente simultaneamente de trabalho e de viação.
Preceitua-se o n.º 1 do artigo 58.º do D.L. nº 40/95/M, de 14 de Agosto, que “Quando o acidente for, simultaneamente, de viação e de trabalho, a reparação é efectuada pela seguradora para quem foi transferida a responsabilidade pelo acidente de trabalho, nos termos deste diploma, ficando esta sub-rogada nos direitos do sinistrado em relação à seguradora do veículo causador do acidente de viação.”
Diz o acórdão do S.T.J. de 09/03/2010, in www.dgsi.pt, que “Quando ocorre um acidente simultaneamente de viação e de trabalho, não pode olvidar-se que a responsabilidade primeira é daquele a quem o acidente puder ser imputado, a título de culpa ou de risco. O dever de indemnizar os prejuízos decorrentes de um acidente recai, primacialmente, sobre o lesante que lhe deu causa. Alguém que adiante a indemnização está a cumprir uma obrigação alheia, a obrigação do lesante.”
Ficou provado que (C) era trabalhador de (D) Casino S.A. e aquando do acidente, (C) dirigia-se para o seu local de trabalho, para entrar ao serviço.
Tal como decidido na sede de saneador, a Autora, quem procedeu à reparação ao sinistrado nos termos do DL nº 40/95/M, de 14 de Agosto, tem direito de sub-rogar nos termos do artigo 58.º do mencionado diploma.
Restar analisar se o condutor do veículo ligeiro com matrícula MB-xx-xx, segurado pela Ré, é responsável pela reparação dos danos.
No caso vertente, ficou provado que o acidente ocorreu porque (E) entrou na faixa de rodagem que o veículo com a matrícula CM-xxxxx seguia e provocou a caída do veículo com a matrícula CM-xxxxx, conduzido por (C). Na sequência do acidente, (C) sofreu lesões, uma incapacidade temporária absoluta para o trabalho (ITA) desde 4 de Abril de 2017 a 14 de Dezembro de 2017 e 7 de Agosto de 2018 a 13 de Setembro de 2018, num total 293 dias e incapacidade permanente parcial de 8%.
Segundo o artigo 6.º/2 da Lei n.º 3/2007 (Lei do Trânsito Rodoviário), os utentes da via pública devem abster-se de quaisquer actos que possam impedir ou embaraçar o trânsito ou comprometer a segurança ou comodidade dos outros utentes.
Como o condutor do veículo com matrícula MB-xx-xx, (E), não teve cuidado aquando da entrada na faixa de rodagem que o veículo com a matrícula CM-xxxxx seguia, podemos concluir que o condutor do veículo agiu com culpa.
Segundo o artigo 477.º/1 do CC, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Portanto, o condutor do veículo com matrícula MB-xx-xx, segurado da Ré, é responsável pelos danos causados ao sinistrado nos termos do artigo 477.º do CC.
A Ré é seguradora do veículo causador do acidente de viação.
Por outro lado, está assente que a Autora já pagou à sinistrada (C) a quantia de MOP$385,943.60, sendo a MOP101,128.00 a título de indeminização por despesas médicas, MOP130,678.00 a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta, e MOP154,137.60 a título de indemnização por incapacidade permanente parcial.
Com efeito, por força do disposto do n.º1 do artigo 58.º do D.L. n.º 40/95/M, a Autora tem direito de sub-rogar nos direitos do sinistrado, assistindo-lhe o direito de exigir a Ré pelo montante indemnizatório que tinha pago ao sinistrado a título de indemnização por despesas médicas e por incapacidade temporária absoluta prevista no D.L. n.º 40/95/M, de 14 de Agosto.
Em relação à indemnização por incapacidade permanente parcial, a Ré deduziu a excepção de renúncia de direito, invocando que (C) desistiu de outros pedidos cíveis nos autos de processo crime que correu termos no 4º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base com o nº CR4-18-160-PCC, o que significa (C) renunciou todo e qualquer direito que a mesma pudesse eventualmente ter face à Ré, incluído o direito ao IPP.
Ficou provado que no julgamento do processo n.º CR4-18-160-PCC, (C) veio desistir livre e voluntariamente dos pedidos por danos patrimoniais e outros pedidos cíveis e a sentença proferida no processo n.º CR4-18-160-PCC no dia 4 de Outubro de 2018 homologou a transacção sobre os pedidos cíveis formulados por (C).
Como a indemnização pela incapacidade permanente parcial é uma das indemnizações que a Autora pode pedir ao responsável do acidente, deve entender que o âmbito de desistência feita por (C) inclui a indemnização pela incapacidade permanente parcial.
A Autora defende que o acordo respeitante à indemnização dos danos resultantes de acidente de trabalho é nulo nos termos do artigo 60.º Decreto-Lei n.º 40/95/M.
Como o acordo chegado no âmbito do processo n.º CR4-18-160-PCC foi homologado pelo Tribunal pela sentença transitada em julgado, a sentença em causa só pode ser posto em causa com o recurso extraordinário. Ou seja, a sentença em causa deve ser respeitado.
A sub-rogação legal prevista no artigo 58.º/1 do D.L. n.º 40/95/M é uma forma de transmissão de crédito, coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito que pertencia ao credor primitivo. Trata-se de substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor.
Sendo forma de transmissão de crédito, o pressuposto de sub-rogação prevista no artigo 58.º/1 do D.L. n.º 40/95/M é a existência de direito à indemnização em relação à seguradora do veículo causador do acidente de viação.
Como a sinistrada, (C), já renunciou o direito de exigir a indemnização pela incapacidade permanente parcial contra o responsável de acidente, o direito à indemnização pela incapacidade permanente parcial deixou de existir com a homologação de transacção. Ou seja, quando a Autora efectuou o pagamento de indemnização pela incapacidade permanente parcial a (C) no dia 8 de Março de 2019, após a homologação de transacção, não pode haver lugar a transmissão de crédito relativo à indemnização pela incapacidade permanente parcial.
Na falta de objecto de transmissão de crédito, não há lugar a sub-rogação. Não havendo lugar a sub-rogação em relação à indemnização pela incapacidade permanente parcial, deve julgar improcedente o pedido de condenação relacionado com a indemnização pela incapacidade permanente parcial.
O mesmo não sucede com o crédito relacionado com a indemnização por despesas médicas e por incapacidade temporária absoluta paga a (C) na medida em que o pagamento em causa ocorreu antes de data de homologação de transacção. A aquisição do sub-rogado funda-se no acto do cumprimento. Como a sub-rogação ocorreu antes de data de homologação de transacção e a sentença homologatória não vincula a Autora, a Autora tem direito de exigir à Ré o pagamento de indemnização por despesas médicas e por incapacidade temporária absoluta paga a (C), por via de sub-rogação.
Pelo exposto, é de condenar a Ré no pagamento da quantia de MOP231,806.00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação da Ré e absolver o restante pedido.».
Vejamos então.
Vem a Autora recorrer da decisão no segmento em que julga improcedente o pedido de condenação da Ré a pagar-lhe MOP154.137,60 a título de indemnização pela incapacidade permanente parcial porquanto se trata de um direito indisponível da sinistrada ao qual esta não podia ter renunciado.
Por sua vez em sentido contrário vem a Ré recorrer da decisão que a condena a pagar a quantia de MOP231.806,00 alegando que a Autora enquanto sub-rogada havia de ter sido notificado a Ré nos termos do artº 577º e 589º do C.Civ. o que não aconteceu, pelo que, não seria a Ré responsável pelo pagamento à Autora das quantias que esta pagou a título de indemnização à Sinistrada. Mais invoca em benefício de não ser responsável pelo pagamento a circunstância de em processo crime em que a aqui Ré foi parte a Sinistrada ter renunciado à indemnização por danos materiais e morais que ali demandava em função do acidente de viação.
No que concerne à questão da necessidade notificação, pretende a Ré que a seguradora do acidente de trabalho haveria de ter notificado a seguradora do acidente de viação quando procedeu ao pagamento da indemnização, tudo nos termos do artº 577º e 589º do C.Civ..
Tal argumentação resulta de entender que mesmo no caso de sub-rogação legal se o sub-rogado não notificar o devedor de que vai proceder ao pagamento do crédito, a ausência dessa notificação seria condição “de validade” da sub-rogação.
Ora, tal entendimento é perfeitamente descabido, ainda para mais quando estamos numa situação de sub-rogação legal prevista nos termos do artº 58º do Decreto-Lei nº 40/95/M.
A exigência de notificação ao devedor exigida para a cessação de créditos no artº 577º do C.Civ. não tem a ver com a validade do negócio de cessão do crédito, o qual não depende da aprovação do devedor tal como resulta do artº 571º do C.Civ..
Por maioria de razão, a sub-rogação legal – precisamente porque resulta de uma imposição legal – para ser válida não resulta da aprovação do devedor.
A notificação prevista no artº 577º do C.Civ. e que por remissão do artº 589º do mesmo diploma legal se aplica à sub-rogação, incluindo a legal, tem a ver com a eficácia, isto é, com a possibilidade de demandar o devedor para o pagamento.
E tal eficácia visa obstar a que o devedor pague ao credor inicial em vez de o fazer ao sub-rogado.
Contudo, no caso dos autos ainda que tal tivesse acontecido, cabia à demanda Ré demonstrar quais os pagamento que havia feito, sendo tal facto modificativo ou extintivo da sua obrigação nos termos do artº 335º nº 2 do C.Civ..
O que em momento algum resulta da lei é que por a seguradora do acidente de trabalho não ter notificado a seguradora do acidente de viação de que ia pagar a indemnização não possa exercer o direito à sub-rogação legal que resulta do artº 58º do Decreto-Lei nº 40/95/M.
Ao contrário, a seguradora do veículo causador do acidente de viação só pode proceder ao pagamento da indemnização directamente ao sinistrado depois de efectuar a notificação da seguradora do acidente de trabalho nos termos do nº 2 do indicado artº 58º.
Sobre esta matéria veja-se em Jurisprudência comparada Acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 12.05.2009, proferido no processo 29488/05.1YYLSB.L1-7:
«5. Importa ponderar, ainda que a título complementar, se a notificação da cessão poderia considerar-se substituída pela citação dos devedores para a acção executiva.
Trata-se de uma questão com respostas antagónicas. A sua correcta resolução apela à invocação da função instrumental do processo civil em relação ao direito substantivo.
5.1. No Ac. do STJ, de 9-11-00, CJ, tomo III, pág. 121, defendeu-se que a notificação deveria encontrar-se efectuada no momento em que a acção é instaurada, tendo em conta que integra a respectiva causa de pedir. Aí se negou a concessão à citação da potencialidade para produzir aquele efeito substantivo que a lei apenas reconhece no art. 481º do CPC.
Tal solução foi acolhida por Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 6ª ed., pág. 361, que explicitamente refere, ainda que através da mera menção do citado Ac. do STJ, de 9-11-00, que não se pode “considerar equivalente à notificação o facto de o cessionário se limita a instaurar contra o devedor acção de cobrança do crédito”.
Tese contrária foi adoptada pelo Ac. do STJ, de 3-6-04 (Rel. Noronha do Nascimento), em www.dgsi.pt. Considerando que a notificação se destina tão só a tornar a cessão de créditos eficaz em relação ao devedor, tendo em vista, além do mais, evitar que a satisfação da prestação seja feita ao primitivo credor, aí se concluiu nada obstar a que tal efeito se produza através da própria citação para a acção executiva ou declarativa.
Trata-se da solução que desenvolvidamente é acolhida por Assunção Cristas, em Transmissão Contratual do Direito de Crédito, págs. 133 e 134, e em Cadernos de Direito Privado, nº 14, neste caso em apreciação conjunta dos mencionados Acs. de STJ de 9-11-00 e de 3-6-04.
5.2. Parece-nos evidente ser esta a solução correcta, por ser a que, além de melhor integrar a natureza e eficácia da notificação do devedor, faz jus à natureza instrumental que essencialmente deve ser atribuída ao direito adjectivo.
Assim, ainda que se considerasse necessária a notificação do devedor para legitimar a intervenção activa do cessionário na acção executiva, não poderia negar-se à citação já efectuada tal funcionalidade, tornando-se inequívoca, a partir de então, a eficácia em relação aos devedores que foram citados, nos termos do art. 583º do CC.
Já anteriormente se disse que a notificação do devedor não é facto constitutivo do direito do cedente, mas mera condição de eficácia em relação ao devedor. Menos ainda é admissível que se associe tal facto à causa de pedir, extrapolando para a respectiva falta. Sendo a causa de pedir o facto jurídico de onde emerge a pretensão (art. 498º, nº 3, do CPC) e confundindo-se na acção executiva tal pressuposto processual com o próprio título executivo, importa sublinhar, mais uma vez, que a notificação do devedor é irrelevante para a modificação da relação creditícia no que concerne ao elemento subjectivo, produzindo-se esta a partir da outorga do acordo de cessão.
É esta a solução defendida, com vasta argumentação, por Assunção Cristas, relevando argumentos substanciais ligados à natureza jurídica da cessão de créditos e à função cometida à notificação do devedor, a que se somam argumentos formais atinentes à delimitação do conceito de causa de pedir. Para além de evidenciar que a referida norma não permite qualificar a notificação do devedor como facto constitutivo da cessão de créditos, defende que nada obsta a que a citação sirva para conferir eficácia à cessão de créditos perante o devedor. Conclui “não restarem dúvidas quanto a valer a citação como notificação, exactamente porque os conteúdos funcionais acabam por corresponder: de uma maneira ou de outra o devedor cedido fica a saber da ocorrência, pelo menos alegada, de uma transmissão do direito de crédito. Não está mais numa situação de ignorância que deva ser protegida” (ob. cit., pág. 133).
A mesma posição e os mesmos argumentos encontram-se expostos na anotação conjunta que a mesma autora fez aos já citados Acórdãos do STJ de 9-11-00 e de 3-6-04, em Cadernos de Direito Privado, nº 14, onde assinalou a oportunidade perdida no sentido de o Supremo Tribunal de Justiça declarar uma solução uniforme ao abrigo do regime da revista ampliada, nos termos dos arts. 732º-A e 732º-B.
A mesma autora revela estranheza quanto à adesão de Menezes Leitão à solução defendida no Ac. do STJ de 9-11-00. E, na verdade, na falta de mais argumentos, também nos parece que a irrelevância atribuída à citação, para efeitos de substituir a notificação necessária para que a cessão produza efeitos em relação ao devedor, parece brigar com a estrutura jurídica da cessão de créditos nos termos que uniformemente tem sido definida pela doutrina nacional. No mesmo sentido Vaz Serra, Cessão de Créditos e outros Direitos, BMJ, 1995, pag. 213 e 367.
5.3. Se a notificação ao devedor constitui simplesmente uma condição de eficácia da cessão perante si e se o efeito substancial que se pretende obter com tal notificação é o de tornar a cessão eficaz em relação ao devedor, dando-lhe a conhecer a identidade do cessionário e evitando que o cumprimento seja feito perante o primitivo credor, tal desiderato é assegurado com a citação para a acção executiva (ou para a acção declarativa), momento a partir do qual o devedor fica ciente da existência da cessão e inibido de invocar o seu desconhecimento, nos termos do art. 583º, nº 2, do CC.
Dito de outro modo, que apela mais incisivamente à função acessória que a citação deve exercer, a comunicação da cessão ao devedor constitui uma formalidade que se revela essencial para a exigibilidade da obrigação por parte do cessionário, de modo semelhante ao que está previsto no art. 662º, nº 1, e nº 2, al. b), do CPC.
Uma vez que os executados foram citados para a acção executiva e nem sequer deduziram oposição ou objecção à intervenção da cessionária exequente, não se descortinam motivos relevantes, quer de natureza substancial, quer de natureza formal que obstem à prossecução da execução.».
Aqui chegados impõe-se concluir que a ausência de notificação do devedor de que se ia efectuar o pagamento ao sinistrado não afecta a validade da sub-rogação legal, para além de que no caso da sub-rogação legal prevista no artº 58º do Decreto-Lei nº 40/95/M é o próprio preceito legal que impõe ao sub-rogado - companhia de seguros do acidente de trabalho - que proceda primeiro ao pagamento da indemnização devida, ficando o devedor - companhia de seguros responsável pelo acidente de viação -, querendo fazer o pagamento, condicionado a notificar o sub-rogado, o que de forma tácita derroga a aplicação do artº 577º do C.Civ. ainda que apenas para efeitos de eficácia.
Por fim sustenta a Ré que a sua obrigação se extinguiu face à desistência da sinistrada do pedido de indemnização no processo crime.
O pedido da sinistrada no processo crime tem como causa de pedir a responsabilidade por acto ilícito, ou ainda que fosse pelo risco, seria o risco decorrente da circulação de um veículo automóvel – artº 477º e artº 496º ambos do C.Civ. -.
A indemnização paga pela seguradora do acidente de trabalho emerge da responsabilidade pelo risco da entidade empregadora, no âmbito dos acidentes de trabalho.
O fundamento para o pagamento de uma e de outra indemnização é distinto.
Quando a sinistrada desiste do pedido em sede de processo crime está a desistir do pedido que emerge da responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco resultante da circulação de veículo automóveis.
A responsabilidade por acidente de trabalho é direito indisponível sendo nula nos termos do artº 60º do Decreto-Lei nº 40/95/M qualquer convenção, acordo, ou declaração no sentido do sinistrado prescindir do respectivo direito.
Pelo que, a declaração da sinistrada de que prescindia do direito à indemnização por danos materiais e morais no processo crime nunca pode ser interpretada nem aceite – sob pena de ser nula – como prescindir ou desistir do seu direito à indemnização no âmbito da responsabilidade decorrente de acidente de trabalho.
Neste sentido é também vária a Jurisprudência deste Tribunal. Veja-se Acórdão de 30-05-2024 proferido no processo que correu termos sob o nº 245/2024.
Por fim e se outras razões não houvesse, essa desistência por banda da sinistrada seria sempre legalmente inoponível à seguradora do acidente de trabalho uma vez que face ao disposto no artº 58º do Decreto-Lei nº 40/95/M, goza da sub-rogação legal quanto aos montantes que haja pago no âmbito da indemnização devida pelo acidente de trabalho, vantagem legal esta, por contraposição à imposição legal de primeiro satisfazer a indemnização devida ao sinistrado ainda antes que se determine a quem cabe a responsabilidade pelo acidente de viação.
Por todas estas razões improcede o recurso da Ré quando pretende ver revogada a decisão que a condena a pagar parte da indemnização que foi paga pela Autora e procede o recurso da Autora, revogando-se a decisão recorrida quando absolve a Ré do pagamento da quantia de MOP154.137,60 em cujo pagamento haveria de ter sido condenada nos termos do artº 58º do Decreto-Lei nº 40/95/M.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento aos recursos interpostos pela Ré – interlocutório e decisão final – e concede-se provimento ao recurso interposto pela Autora da decisão final, revogando a sentença recorrida na parte em que absolve a Ré do pagamento da quantia de MOP154.137,60, condenando-se a Ré no pagamento desta quantia para além daquelas em que já foi condenada, acrescida dos juros de mora também nos termos já antes fixados.
Custas a cargo da Ré por todos os Recursos e em ambas as instâncias.
Registe e Notifique.
RAEM, 17 de Outubro de 2024
Rui Pereira Ribeiro (Juiz Relator)
Fong Man Chong (Primeiro Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng (Segundo Juiz-Adjunto)
491/2024 CÍVEL 4