Processo nº 46/2024
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão de 15.12.2023 proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR1-23-0151-PCC do Tribunal Judicial de Base decidiu-se condenar os (1° e 2ª) arguidos, A, e B, com os restantes sinais dos autos, como co-autores materiais da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena individual de 9 anos de prisão; (cfr., fls. 471 a 476-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Do assim decidido, recorreram os ditos (2) arguidos para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 07.03.2024, (Proc. n.° 88/2024), negou provimento aos recursos; (cfr., fls. 555 a 559-v).
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Ainda inconformados, vêm agora os mesmos arguidos recorrer para esta Instância.
Em apertada síntese que se nos mostra adequada, diz o (1°) arguido A que o Acórdão recorrido padece do vício de “nulidade por omissão de pronúncia” e “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 573 a 582).
Por sua vez, imputa a (2ª) arguida B ao mesmo Acórdão recorrido os vícios de “falta de fundamentação”, “erro notório na apreciação da prova” e “violação do art. 12° e 13° do C.P.M.”; (cfr., fls. 583 a 606).
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Em Resposta, foi o Ministério Público de opinião que se devia negar provimento aos recursos; (cfr., fls. 616 a 619 e 620 a 624).
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Oportunamente, nesta Instância, e em sede de vista, juntou a Exma. Representante do Ministério Público douto Parecer considerando também que os recursos não mereciam provimento; (cfr., fls. 635).
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Adequadamente processados os autos, e nada obstando, cumpre decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como “provados” os factos como tal elencados no seu Acórdão que foram totalmente confirmados pelo Acórdão ora recorrido do Tribunal de Segunda Instância, e que, mais adiante, se fará adequada referência; (cfr., fls. 472-v a 474 e 556 a 557).
Do direito
3. Dois são os recursos pelos (1° e 2ª) arguidos A e B trazidos do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que, como se referiu, (negando provimento aos anteriores recursos que interpuseram do Acórdão do Tribunal Judicial de Base), confirmou a decisão que os condenou nos termos atrás já relatados.
E, sem prejuízo do muito respeito por diferente opinião, cremos que nenhuma razão se pode reconhecer aos ora recorrentes, sendo pois de se lhes negar provimento aos ditos recursos.
Passa-se a (tentar) expor o porque deste nosso ponto de vista.
Vejamos.
Pois bem, (como se deixou relatado), após a sua condenação pelo Tribunal Judicial de Base, ambos os arguidos, ora recorrentes, interpuseram recurso para o Tribunal de Segunda Instância, e, alegando, que “desconheciam que as garrafas de vinho que trouxeram na sua viagem de avião para Macau continham Cocaína”, imputaram ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”; (sobre este vício, cfr., v.g., e para citar os mais recentes, os Ac. deste T.U.I. de 11.03.2022, Procs. n°s 8/2022 e 12/2022, de 27.07.2022, Proc. n.° 71/2022, de 21.09.2022, Proc. n.° 78/2022, de 13.01.2023, Proc. n.° 108/2022, de 03.03.2023, Proc. n.° 97/2022, de 29.09.2023, Procs. n°s 71/2023 e 81/2023, de 01.11.2023, Proc. n.° 82/2023, de 26.01.2024, Proc. n.° 98/2023-I e de 08.03.2024, Proc. n.° 9/2024-I, cujo teor aqui se dá como reproduzido).
Apreciando o dito recurso, entendeu – em síntese – o Tribunal de Segunda Instância que tal “vício” não existia porque o Tribunal Judicial de Base não tinha desrespeitado as regras legais sobre o valor das provas tarifadas, as regras de experiência ou legis artis, considerando, ainda, apresentar-se a decisão (então) recorrida clara e lógica em face da prova produzida e existente nos autos, sendo igualmente adequada na sua fundamentação.
Mantendo-se inconformados, trazem os ditos (1° e 2ª) arguidos os presentes recursos, assacando os “vícios” que atrás já se fez referência, apresentando-se, em nossa opinião, e em face do decidido, imperativa a solução que se deixou adiantada.
Com efeito, e como já se deixou dito, com o seu Acórdão agora objecto do presente recurso, não deixou o Tribunal de Segunda Instância de conhecer e emitir (expressa) pronúncia sobre o vício de “erro notório na apreciação da prova” pelos recorrentes então assacado ao Tribunal Judicial de Base, (não havendo assim qualquer “omissão de pronúncia”), tendo, também, fundamentado (adequadamente) a sua decisão, (não havendo, igualmente desta forma, qualquer “falta de fundamentação”), evidente se apresentando assim que não incorreu em nenhuma “violação aos art°s 12° e 13° do C.P.M.”, (onde se trata da matéria do “dolo e negligência”).
Em síntese, (e em bom rigor), voltam os ora recorrentes a afirmar que foram (e que estão) “indevidamente condenados”, invocando, tão só e apenas que, nas “declarações” que prestaram, alegaram (sempre) que desconheciam que o “produto” que com eles transportaram para Macau era “Cocaína”.
E, como tal, são de opinião que, perante tal “postura processual” (de “negação dos factos” que lhes eram imputados), adequado – possível – não era dar-se como “provado” o seu “dolo” (e “consciência da ilicitude”) quanto ao crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” pelo qual, e como co-autores, foram condenados.
Porém, em face do que dos presentes autos consta, tal “ponto de vista” não procede, (nem se pode aceitar).
Como se viu, foram os ora recorrentes condenados pela prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, onde se prescreve que:
“Quem, sem se encontrar autorizado, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, ceder, comprar ou por qualquer título receber, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no n.º 1 do artigo 14.º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos”.
Ora, como cremos que sabido é, o crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” tem sido englobado na categoria do “crime exaurido”, “crime de empreendimento” ou “crime excutido”, sendo caracterizado como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no seu tipo.
Dito de outra forma, o resultado típico alcança-se logo com aquilo que surge por regra como realização inicial do iter criminis, tendo em conta o processo normal de actuação.
A previsão molda-se, na verdade, em termos de uma certa progressividade, no conjunto dos diferentes “comportamentos” contemplados na norma que atrás se deixou transcrita, e que podem ir de uma (mera) “detenção” à “venda” (propriamente dita).
A “consumação”, como se deixou referido, verifica-se com a comissão de “um só acto de execução”, (ainda que sem se chegar à realização completa e/ou integral do tipo legal pretendido pelo agente, ou seja, o resultado típico obtém-se logo pela realização inicial da conduta ilícita, de modo que, a eventual continuação da mesma, mesmo que com propósitos diversos do originário, não se traduz, necessariamente, na comissão de novas violações do respectivo tipo legal, sendo pois um “crime de trato sucessivo”).
Trata-se, pois, de um crime que se enquadra na categoria dos “crimes de perigo abstracto”, visto que não pressupõem nem o “dano”, nem o “perigo” de lesão de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, bastando apenas a “perigosidade da acção” para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, sendo cada uma das “actividades” previstas no transcrito preceito dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objetivo do crime.
E, assim, por ser um crime de perigo abstrato ou presumido, não se exige para a sua consumação, a existência de um “dano real e efetivo” verificando-se a sua consumação com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem jurídico protegido, ou seja, a saúde pública na dupla vertente física e moral, (sobre o tema, cfr., v.g., o recente Ac. deste T.U.I. de 08.05.2024, Proc. n.° 107/2023 e o de 05.06.2024, Proc. n.° 43/2024).
Por sua vez e como cremos que igualmente sabido é, a prova do “elemento subjectivo” extrai-se, (de forma indirecta), da factualidade provada, com recurso às regras de experiência e da normalidade de situações.
Aliás, como perante idêntico crime e em situação análoga à dos presentes autos já teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de consignar, “A intenção é um acontecimento do foro interno do agente e não um acontecimento do mundo que lhe é exterior, mas não deixa, por causa disso, de ser matéria de facto, susceptível de ser apreendida com recurso a factos indiciários a partir dos quais se possam extrair presunções judiciais geradoras de uma suficiente convicção positiva sobre a sua verificação”; (cfr., Ac. de 31.10.2001, Proc. n.° 13/2001).
Ora, o “crime” é uma “acção típica”, “ilícita”, “culposa” e “punível”.
Nos termos do art. 13° do C.P.M.:
“1. Age com dolo quem, representando-se um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2. Age ainda com dolo quem se representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3. Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização”.
Resulta assim da Lei que o “dolo” é um dos pressupostos da punição, ou, mais rigorosamente “(…) um dos fundamentos da imputação”, (cfr., v.g., Teresa Pizarro Beleza in, “Direito Penal”, Vol. II, A.A.F.D.L., pág. 161), sendo vulgar distinguir dentro do dolo dois elementos: o chamado “elemento intelectual” e o chamado “elemento volitivo”.
O “elemento volitivo”, corresponde ao elemento querer a prática de um certo facto ou querer a produção de um certo resultado.
O “elemento intelectual”, (ou seja, o “conhecimento”), desdobra-se, por sua vez, em dois vetores, quais sejam, o “descritivo” e o “normativo”.
Os elementos “descritivos” do facto típico correspondem a conceitos da linguagem comum, vulgar, (como, por exemplo, “pessoa” para o crime de “homicídio” e “coisa” para os crimes de “furto” ou “dano”), e os elementos “normativos” do facto típico são aqueles que, constando do tipo, não são reconduzíveis à linguagem comum, consistindo em “conceitos jurídicos” derivados de regras legais: por exemplo, o caráter “alheio” da coisa subtraída no crime de “furto”, que resulta das disposições legais sobre o direito de propriedade; (cfr., v.g., Teresa Pizarro Beleza in, ob. cit., pág. 170, e Figueiredo Dias in, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, Coimbra, 2ª ed., pág. 349 e segs.).
Ora, o referido art. 13° do C.P.M. contém, evidentemente, estes dois elementos na sua previsão.
Com efeito, e como se viu, age com dolo quem,
- representando um facto que preenche um tipo de crime (elemento intelectual),
- actuar com intenção de o realizar (elemento volitivo).
Assim, em todos os tipos de dolo, é necessário, em primeiro lugar, e como diz a lei, “representar um facto que preenche um tipo de crime”.
Só depois de se realizar esta operação intelectual, (racional), é possível então atuar com o intuito de levar a cabo a “cena” que se representou no intelecto.
In casu, atento ao que se provou, essencialmente, que os ora recorrentes – nascidos em 1988 e 1973 – foram “recrutados” por indivíduos (desconhecidos e) que conheceram “por mero acaso”, (de nome “XXX”, ou “YYY”), para transportar para Macau um total de 18 garrafas (supostamente) de vinho tinto – 9 garrafas cada um, mas que, por excesso de peso, acabou um por trazer 10 e o outro as restantes 8 – contendo no seu interior um total de 14.661g de “Cocaína”, que deviam ser (posteriormente) enviadas por correio para Hong Kong, (onde seriam alegadamente vendidas por um preço elevado), auferindo pelo “trabalho” cerca de HKD$5.000,00 cada, evidente se nos mostra que não basta alegar que se “desconhecia”, (ou ignorava), a “natureza do conteúdo” das ditas garrafas para se pensar ou concluir que inviável ou inadequada foi a decisão condenatória como a proferida pelo Tribunal Judicial de Base (e a sua confirmação em sede de recurso pelo Tribunal de Segunda Instância), aos mesmos recorrentes cabendo, também, em face da prova recolhida e produzida, esclarecer, (e convencer), das razões e justificações do seu alegado “erro” em que incorreram quanto à natureza do “produto” com o qual foram interceptados à sua chegada ao aeroporto de Macau..
Na verdade, ditam as (mais elementares) “regras de experiência” que, nos dias de hoje, qualquer pessoa (normal), e, especialmente, com a idade dos ora recorrentes, sabe, e tem a obrigação de saber (e ter plena consciência), que não se deve (ajudar a) transportar objectos ou bens entregues por terceiros (desconhecidos), sem previamente se certificar – devidamente – da sua “origem” e “natureza”, e que, o concreto transporte, numa viagem de avião, com circulação e passagem em postos de imigração e alfandegários, com um número tão elevado de garrafas de vinho – 10 e 8 respectivamente – (tão só pelo seu número), não é certamente “coisa vulgar” (ou “banal”), e muito menos (legalmente) “permitida”.
No caso, e salientando-se do que se expôs o referido “desconhecimento” da identidade dos “mandantes”, com quem trocavam mensagens por “[Aplicação de Rede Social]”, e atento o seu teor, que são claramente reveladoras da existência de um “esquema” que não se queria revelar, com um evidente “esforço para o esconder”, (com recurso a “expressões codificadas”), apresenta-se-nos pois de considerar que demonstrado está também, que os ora recorrentes – sublinha-se, com as suas respectivas idades, e, assim, natural e normal “experiência de vida”, salientando-se ainda que até são naturais da Malásia, que como se sabe tem medidas penais (extremamente) severas para determinados crimes, e que, tão só recentemente, (há cerca de 2 anos), aboliu a “pena de morte obrigatória” para certos crimes, de entre os quais, precisamente, o de “tráfico ilícito de estupefacientes” – não podiam deixar de ter (pleno) conhecimento que praticavam actos de “tráfico ilícito de substâncias proibidas” do interesse económico de uma “estrutura ilícita organizada”, pois que aos mesmos eram feitas as marcações e reservas de bilhetes de avião e de estadias em hotel, estando “instruídos” e “acompanhados” pelo telemóvel de forma permanente durante toda a viagem e percurso, lógica e razoável se mostrando desta forma a “conclusão” a que chegaram as Instâncias recorridas, até porque, “situações” idênticas de “tráfico ilícito de estupefacientes” são objecto de abundante e repetida notícia – na televisão, rádio e jornais de todo o mundo – e de representação em filmes e séries televisivas, sendo pois inegável considerar que se mostra, no mínimo, verificado o seu “dolo eventual”.
Com efeito, segundo as aludidas “regras de experiência”, normal se apresenta que, na “situação” em questão, os ora recorrentes, (com as suas condições pessoais, idade e experiência de vida, e outras circunstâncias próprias dos “acontecimentos” atrás referidos), não podiam ignorar que estavam a ser pagos para agirem como – “correios” e – meio de transporte e tráfico de “produtos ilícitos e proibidos”, e que estes, podiam, (perfeitamente), ser “substâncias estupefacientes ou psicotrópicas”, de detenção, posse e transporte ilegais, tendo-se, mesmo assim, conformado com tal situação e com o resultado da sua conduta.
E, nesta conformidade, em face do que provado está, evidente se nos mostra que, não basta, (simplesmente), “negar” – convenientemente – os factos que lhes eram imputados ou invocar qualquer tipo de “erro”, havendo, obviamente, que o “justificar”, (de forma razoável e cabal), o que, de maneira alguma ocorreu nos presentes autos.
Na verdade, e como bem notou J. A. H. Santos Cabral na sua intervenção no C.F.J.J. datada de 30.11.2011, importa não perder de vista que:
“A actividade probatória é constituída pelo complexo de actos que tendem a formar a convicção da entidade decidente sobre a existência, ou inexistência, de uma determinada situação factual. Na formação da convicção judicial intervêm provas e presunções, sendo certo que as primeiras são instrumentos de verificação directa dos factos ocorridos e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que temos por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir”, sendo clássica a distinção entre “prova directa” e “prova indiciária”, referindo-se aquela “aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta, ou indiciária, se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova, (v.g., uma coisa é ver homicídio e outra encontrar o suspeito com a arma do crime)”, acrescentando que “Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervêm a inteligência e a lógica do juiz. A prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova directa, ao qual se associa uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum. Este facto indiciante permite a elaboração de um facto consequência em virtude de uma ligação racional e lógica (v.g., a prova directa – impressão digital – colocada no objecto furtado permite presumir que o seu autor está relacionado com o furto; da mesma forma, o sémen do suspeito na vítima de violação)”, e salientando ainda ser importante referir “que a prova indiciária, ou o funcionamento da lógica e das presunções, bem como das máximas da experiência, é transversal a toda a teoria da prova, começando pela averiguação do elemento subjectivo de crime, que só deste modo pode ser alcançado, até à própria creditação da prova directa constante do testemunho (a intenção de matar infere-se da zona atingida; da arma empregada; da forma de utilização)”.
Importa pois não olvidar que a “prova indirecta”, (lógica, por presunção ou por indícios), consiste em dar como provado um facto sem que sobre ele exista qualquer meio (directo) de prova, chegando-se ao “factum probandum” a partir da prova de outros factos que a ele se ligam (com segurança), segundo as regras da lógica e da experiência comum, pois que, os “factos psicológicos” que traduzem o “elemento subjetivo” da infracção, são, em regra, objecto de prova indirecta: isto é, só são suscetíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objectivos, analisados à luz das regras da experiência comum.
E, tratando-se, como se referiu, de “processos interiores”, se não forem admitidos pelos próprios, só com uma avaliação alicerçada em “presunções judiciais” – que como se viu, não são proibidas por lei; cfr., art. 344° do C.C.M. – formadas com base nos demais factos apurados e “circunstâncias” e seu “contexto global” em que se verificam, atentos os dados da personalidade do agente e as regras da experiência comum se consegue chegar.
Com efeito, nem só quando o arguido faz uma “confissão integral e sem reservas dos factos”, (ou quando ocorrem situações de “flagrante delito” ou em que há “testemunhas presenciais” ou outras fontes de “prova directa”), pode haver condenações, sendo até muito variadas e frequentes as situações em que não há “prova directa” porque o agente do crime procura cometê-lo sem ser descoberto, (às escondidas, dissimuladamente, sorrateiramente), e, nem por isso, deixa de haver responsabilidade penal.
Se apenas a “prova directa” servisse para a condenação, estar-se-ia a abrir caminho à criação de amplos espaços de impunidade…
Sabendo-se que os “traficantes de drogas” fazem uso dos mais variados (e, não raro, sofisticados) esquemas e meios para escapar ao controlo das autoridades de fiscalização e repressão, o combate a este tipo de criminalidade seria, certamente, uma luta inglória…
Daí que a chamada “prova indirecta” tenha um papel fundamental, não se lhe podendo negar a virtualidade que em matéria incriminatória igualmente possui.
Não se pode perder de vista que, quer a “prova directa”, quer a “prova indirecta”, são modos, igualmente “legítimos”, de se chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do “factum probandum”.
Pela primeira via ou método, “a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda, “a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção”; (cfr., v.g., Germano Marques da Silva in, “Curso de Processo Penal”, Vol. II, 1993, pág. 79).
De facto, e uma vez que em processo penal “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”, (cfr., art. 112° do C.P.P.M.), delas, (das provas admissíveis), não pode ser excluída a “prova por presunções”, (prevista, como noção geral, no art. 342° do C.C.M., onde se prescreve que “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”, meio de prova perfeitamente prestável e válido como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos em “processo penal”), em que se parte de um “facto conhecido”, (o facto base ou facto indiciante, que funciona como indício), para afirmar um “facto desconhecido”, (o factum probandum), recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar a um resultado verdadeiro.
Como este Tribunal de Última Instância também já teve oportunidade de ponderar, “Considerar provado um facto através das regras de normalidade e experiência equivale ao recurso a presunções judiciais, para firmar um facto desconhecido a partir de um facto conhecido (art.ºs 342.º e 344.º do Código Civil)”, (cfr., v.g., os Acs. de 19.07.2006, Proc. n.° 12/2006 e de 16.03.2022, Proc. n.° 3/2020), cabendo ainda salientar, como nota V. Lima, que “As presunções judiciais, naturais ou de facto, são aquelas que se fundam nas regras práticas da experiência, e que o juiz usa na apreciação de muitas situações de facto.
A presunção assenta sobre uma base (um facto) que tem de ser provada. E esta há-de ser feita por qualquer dos procedimentos probatórios regulados na lei (documentos, testemunhas, etc.)”; (in “Manual de Direito Processual Civil”, 3ª ed., pág. 468 e 469).
Da mesma forma, não se duvida ou ignora que a “liberdade de convicção” não pode nem deve significar o emocional arbítrio ou a decisão irracional, “puramente assente num incondicional subjectivismo alheio à fundamentação e comunicação”; (cfr., v.g., Castanheira Neves, citado por Germano Marques da Silva in, “Curso de Processo Penal”, Vol. I, pág. 43).
Pelo contrário, o “princípio da livre apreciação da prova”, (conjugado com o dever de fundamentação das decisões dos Tribunais), exige uma apreciação motivada, crítica e racional, fundada nos critérios legais de apreciação vinculada, enfim, nas “regras da experiência”, da “ciência” e da “lógica”, havendo ainda de se ter presente que a “certeza judicial” não se confunde com a “certeza absoluta”, “física” ou “matemática”, sendo antes uma “certeza empírica, moral, histórica”; (cfr., v.g., Climent Durán in, “La Prueba Penal”, pág. 615).
Por outro lado, a “presunção de inocência” não exclui, nem proíbe, como se viu, a produção dos “meios de prova legais”, sendo a “prova por presunções” um meio de prova legalmente previsto no art. 342° do C.C.M., esclarecendo o art. 344° do mesmo Diploma que “As presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal”.
Assim, não sendo a sua relevância afastada no processo penal por qualquer disposição legal, constituirá “meio de prova” permitido, (dentro do princípio geral dos art°s 112° e 274° do C.P.P.M.).
No caso, as “inferências” extraídas dos “factos comprovados” – e que não foram de forma alguma contrariadas de forma idónea ou minimamente credível – são inteiramente lógicas e conformes com as regras da experiência e da normalidade das coisas, pois que nenhuma outra explicação plausível foi apresentada ou existe, sendo de notar que aquelas que os recorrentes pretendem fazer passar não merecem qualquer credibilidade pelas precisas razões atrás já indicadas.
Com efeito, a expressão que se refere ao “modo de actuação livre e consciente”, tem em vista significar, especialmente, que o agente “agiu de forma voluntária e deliberada”, com liberdade de se comportar de forma diferente, (diversa), com a possibilidade de adoptar outro tipo de conduta.
E, no caso dos autos, em face dos elementos apurados, não se mostra pois minimamente indiciado sequer que os arguidos agiram desconhecendo que transportavam “produtos proibidos”, cujo transporte era por lei punido, absolutamente nada existindo quanto a um eventual “erro sobre as circunstâncias do facto” ou (de um possível) “erro sobre a ilicitude” desculpável, (cfr., art°s 15° e 16° do C.P.M., sob pena de se considerar, também, razoáveis e aceitáveis, as apelidadas condutas de “cegueira deliberada”, em que o sujeito se esforça para ignorar os contornos e consequências da sua conduta para, desta forma, evitar a aplicação da Lei penal; cfr., sobre o tema, Rui Aido in, “Cegueira Deliberada”, F.D.U.L., 2018).
Isto visto e dito, adequada se apresenta a seguinte última nota.
Não se olvida ainda que alegam também os recorrentes a violação pelo Acórdão recorrido do “princípio in dubio pro reo”.
Porém, não se vê como.
Este Tribunal tem repetidamente afirmado que este “princípio” só actua em caso de “dúvida insanável”, “razoável” e “motivável”, definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”, pelo que para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não basta que tenha havido “versões dispares” ou mesmo “contraditórias”, sendo antes necessário que perante a “prova produzida”, reste no espírito do julgador – e não no do recorrente – (alguma) dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”, (neste sentido, e com maior desenvolvimento, vd., v.g., os Acs deste T.U.I. de 02.07.2021, Proc. n.° 97/2021, de 11.03.2022, Proc. n.° 12/2022, de 14.04.2023, Proc. n.° 29/2023-I, de 29.09.2023, Proc. n.° 71/2023 e de 01.11.2023, Proc. n.° 82/2023).
Por isso, para a sua “violação”, exige-se a comprovação de que o Juiz – e não o recorrente – tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido “contra o arguido”, (sendo ainda de se exigir que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num “estado de dúvida” quanto aos factos que devia dar por “provados” ou “não provados”).
Não sendo o que ocorreu nos presentes autos, e outra questão não havendo a apreciar, resta decidir como segue.
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam negar provimento aos recursos dos (1° e 2ª) arguidos A e B, confirmando-se o Acórdão recorrido.
Custas pelos arguidos ora recorrentes, com taxa de justiça individual que se fixa em 12 UCs.
Honorários aos Exmos. Defensores dos 1° e 2ª arguidos no montante de MOP$3.500,00.
Registe e notifique.
Oportunamente, nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 19 de Junho de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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