Processo nº 138/2024
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 17 de Outubro de 2024
ASSUNTO:
- Recurso contencioso
- infracção disciplinar
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 138/2024
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 17 de Outubro de 2024
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Economia e Finanças
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Indeferimento Tácito do Secretário para a Economia e Finanças quanto ao Recurso Hierárquico necessário interposto pelo Recorrente em 14.11.2023 da Decisão do Director dos Serviços de Finanças de 10.10.2023 que aplicou ao Recorrente por infracção disciplinar a pena de multa de 30 dias de vencimento, no montante de MOP52.325,00, formulando as seguintes conclusões e pedidos:
1. Em 8 de Abril de 2022, o Recorrente tomou conhecimento de que a Direcção dos Serviços de Finanças lhe instaurou no mesmo dia um processo disciplinar – Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022.
2. Em 17 de Outubro de 2023, o Recorrente recebeu o extracto da decisão do Director dos Serviços de Finanças no Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022 que decidiu aplicar-lhe a pena de multa de 30 dias de vencimento, no montante de MOP$52.325,00, o relatório (tradução para chinês) elaborado pela instrutora do Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022 e o relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023.
3. Pelo que, em 14 de Novembro de 2023, o Recorrente interpôs recurso hierárquico necessário da aludida decisão para o Secretário para a Economia e Finanças ao abrigo do artigo 341.º n.º 3 do Estatuto e dos artigos 153.º a 157.º do Código do Procedimento Administrativo.
4. Ao abrigo dos artigos 162.º n.º 1 e 102.º do Código do Procedimento Administrativo, o Secretário para a Economia e Finanças devia tomar decisão no prazo de 30 dias contado a partir da recepção do aludido recurso hierárquico necessário, isto é, antes ou no dia 14 de Dezembro de 2023. Porém, até 12 de Janeiro de 2024, o Recorrente ainda não recebeu qualquer decisão do aludido recurso hierárquico necessário.
5. Nos termos do artigo 162.º n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, o recurso hierárquico necessário interposto pelo Recorrente para o Secretário para a Economia e Finanças em 14 de Novembro de 2023 considera-se indeferido.
6. Visto que o recurso hierárquico necessário interposto pelo Recorrente se considera indeferido, isto quer dizer que o Secretário para a Economia e Finanças manteve inalterados a decisão proferida pelo Director dos Serviços de Finanças no Processo Disciplinar n.º 005/AT/2023 que aplicou ao Recorrente a pena de multa de 30 dias de vencimento, no montante de MOP$52.325,00, e os seus fundamentos.
7. Nos termos do artigo 338.º n.º 3 do Estatuto, a decisão proferida no processo disciplinar deve ser fundamentada e deve ser proferida no prazo de 20 dias contado a partir da recepção do processo quando não ordenar diligências nem solicitar parecer.
8. Por força do artigo 115.º n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, “A fundamentação (…) podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas que constituem neste caso parte integrante do respectivo acto.”
9. Conforme o parecer emitido pelo Director dos Serviços de Finanças no Relatório n.º 002/AT/2023 em 6 de Julho de 2023 e o seu despacho proferido em 10 de Outubro de 2023, mais em conjugação com os documentos recebidos pelo Recorrente da instrutora do Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022 mencionados no Doc. 2, não resta dúvida de que a decisão da aplicação da pena de multa ao Recorrente tem por fundamento o relatório elaborado pela instrutora e o relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023.
10. Por outras palavras, o conteúdo do relatório elaborado pela instrutora do Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022 e o conteúdo do relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023 são os fundamentos que fazem parte integrante da decisão da aplicação da pena de multa ao Recorrente.
11. De facto, existe manifestamente contradição da questão fulcral entre o relatório elaborado pela instrutora e o relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023.
12. Conforme o relatório elaborado pela instrutora, a instrutora entendeu que os factos acusados contra o Recorrente invocados na acusação do Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022 já foram dados como provados; os factos acusados são, em síntese, os seguintes:
12.1 O Recorrente foi acusado de ter escrito, desde 3 de Março de 2021 a 6 de Abril de 2022, 29 mensagens na caixa de sugestões de funcionários da intranet da Direcção dos Serviços de Finanças (doravante designadas por “referidas 29 mensagens de funcionários)
N.º de mensagem de funcionários
Texto original
1. 1022
Um colega fica 7 horas no serviço mas brinca com o telemóvel por 6 horas. Será que o seu trabalho é para brincar?
2. 1025
Se ver com os próprios olhos que um trabalhador dorme sempre durante o expediente e brinca com o telemóvel debaixo da mesa, o que os trabalhadores de nível baixo podem fazer
3. 1028
Everyday, i saw a male colleague put his black mobile phone openly on his desk, and kept pushing up and playing with his hand and kept copying down the information. Why he has the privilege to openly play with the mobile phone for 6 hours every day at the designated time? People are chilling! I hope that the bureau can establish a system to enable colleages to work actively.
4. 1040
Um colega está brincando com seu telefone preto sobre a mesma há uma hora e todos se sentem envergonhados.
5. 1041
Um colega com uma carreira especial brinca com um celubar preto das 9h30 até agora e está brincando abertamente em sua mesa. O colega não ousa falar abertamente
6. 1047
Do trabalho à tarde até agora, o colega brinca com a mão esquerda na mesa e toca a cabeça com a direita. O supervisor interino e todos os colegas não se atrevem a falar. Até o colega que sai do escritório não ousa falar. Além de se reportar aos superiores imediatos, existem outras maneiras de reflectir as opiniões?
7. 1052
Um colega com uma carreira especial brinca no celular, copia e dorme na mesma do escritório desde a manhã até agora, brinca no celular com a mão esquerda e coloca a direita na cabeça, um olho cego para o bilhete.
8. 1053
Todos os colegas estão ocupados, mas ele sempre pode brincar com telefones celulares, copiar papéis e dormir embaixo e acima da mesa do escritório.
9. 1054
Todos os colegas trabalham para a empresa, só ele pode brincar com o telefone e copiar documentos por até 6 horas durante o expediente.
Seu trabalho diário é brincar com o telefone. Ele coloca o telefone sobre ou embaixo da mesa do escritório. Às vezes, ele coloca um telefone preto do lado esquerdo da mesa e segura a caneta origina! na mão direita.
Cada vez que o supervisor passava, ele ficava folheando os documentos.
10. 1056
O colega passou a manhã inteira brincando e copiando documentos na mesa do escritório com um celular preto.
11. 1067
Verdadeiramente não estou a perceber, qual o trabalho pode levar a um colega colocar o seu telemóvel em cima da mesa e mexer no telemóvel por longo período de tempo desde manhã à tarde?
12. 1071
Mensagem 1067, decorridos dois dias, ainda… @
Desejo que um colega possa fazer mais trabalhos para a função pública que deveria fazer durante o expediente.
De facto, as coisas privadas podem ser feitas fora do expediente, não é necessário perder o tempo de trabalho
13. 1073
Concordo com o 1071, desejo que aquele colega estime a oportunidade de trabalhar na Administração Pública, não gaste tempo nem perça oportunidade para servir o público.
14. 1074
& Desejo sinceramente que os colegas possam emitir mais opiniões, % guardar o nosso ambiente de trabalho, $ combater conjuntamente à pandemia e manter a higiene pessoal. @
15. 1081
Proponho que não brinquem com o telemóvel durante o expediente, quer em cima quer debaixo da mesa, nem emitem sons, especialmente no local ao público ou perto do corredor, sob pena de afectar a imagem geral dos funcionários públicos destes Serviços, o chefe e os colegas do gabinete devem lembrar isso um a outro.
16. 1094
Inspetor Inspetor
17. 1097
A casa de banho para masculino situada no átrio do 2.º andar deste Edifício está em condições de higiene muito más, com um cheiro bastante mau. Apesar de ser limpada sempre pelos trabalhadores de limpeza, a situação ainda é grave. O 3.º cubículo da casa de banho não funciona muitas vezes, havendo sempre chocolate (sic), causando o crescimento de bactérias. Está cheia de lenços de papel molhados usados após tomada de banho, causando más condições de higiene com um cheiro muito mau! Estou muito insatisfeito com isso! Desejo que a higiene seja mantida o mais rápido possível, de forma que a casa de banho para masculino do 2.º andar possa voltar a ser limpa!
18. 1098
19. 1099
20. 1100
21. 1106
De acordo com a comunicação interna n° 41162/DAF/NAG/2l emitida pelo Departamento de Administração e Finanças para lembrar aos funcionários do departamento de cumprir os deveres de entusiasmo e diligência dos funcionários públicos, um colega violou flagrantemente seus deveres ao jogar telefones celulares e dormir durante o trabalho, mas o chefe do departamento sem supervisão, resolva o problema o mais rapidamente possível pelo Departamento de Administração e Finanças, de modo a não afetar a imagem do Bureau @
22. 1100
De acordo com a circular interna n° 41162 / DAF / NAG / 21 emitida pelo Departamento de Administração e Finanças, lembramos aos nossos funcionários que desempenhem as suas funções como funcionários públicos com entusiasmo e diligência. Solicita-se aos chefes de departamento que reforcem a supervisão e o cuidado com as condições de trabalho dos colaboradores e o seu conhecimento e acompanhamento oportuno.
23. 1111
Condição mantida-Colego
De acordo com a circular interna n° 41162 / DAF / NAG / 21 emitida pelo Departamento de Administração e Finanças, lembramos aos nossos funcionários que desempenhem as suas funções como funcionários públicos com entusiasmo e diligência. Solicita-se aos chefes de departamento que reforcem a supervisão e o cuidado com as condições de trabalho dos colaboradores e o seu conhecimento e acompanhamento oportuno
24. 1113
Por favor não brigue.
25. 1117
Continua … continua … continua
26. 1123
Como usa a máscara correctamente. 1. Abrir: Abrir a embalagem e examinar se a máscara está danificada ou defeituosa. É o design geral que a camada colorida é a parte externa que está voltada para fora e o clip nasal deve ficar na parte superior da camada mais externa. 2. Usar: Colocar os elásticos dos dois lados à volta das orelhas, fixar o clip nasal sobre a ponte do nariz, desdobrar completamente as pregas da máscara até o queixo, caso haja necessidade pode ajudar os elásticos com nó, manter a cobertura da cara. 3. Pressionar: Pressionar suavemente o clip nasal com os dedos das mãos para uma cobertura máxima sobre a ponte do nariz.
27. 1133
Estar preparados para o perigo em tempo de paz, fazer face a todo o tipo de eventualidade e ferver o sapo com água morna. Proponho que a DAF dê importância mais uma vez ao uso correcto da máscara de todos os funcionários destes Serviços durante o expediente, quer os da linha da frente, quer os logísticos, não deixando a máscara abaixo do nariz.
28. 1134
Reposta à 1133, após várias persuasões, ainda deixou a máscara abaixo do nariz durante o expediente e durante o atendimento aos contribuintes.
29. 1136
Circular interna n.º 41162/DAF/NAG21 … ocorrer …
12.2 Desde 2018 a 2022, a Direcção dos Serviços de Finanças recebeu irregularmente 9 queixas anónimas que visavam suspeitosamente um colega do Núcleo de Transgressões que se chama “B”, pelo que, a instrutora presumiu que o visado das referidas 29 mensagens de funcionários também era o colega B;
12.3 Dado que as referidas 29 mensagens de funcionários têm o mesmo conteúdo das 9 queixas anónimas quer na sua forma quer no seu nível, e correspondem integralmente ao conteúdo, a ideologia e a argumentação das declarações prestadas pelo Recorrente no processo de averiguações, a instrutora presumiu que o agente directo das referidas 9 queixas anónimas era o Recorrente;
12.4 Além disso, visto que o Recorrente deixou de trabalhar com o colega B no mesmo espaço de trabalho desde Maio de 2020, porém, as queixas ainda não pararam, pelo contrário, aumentaram a sua quantidade e a sua intensidade, pelo que, a instrutora continuou a presumir que o Recorrente e outra arguida, C, praticaram, em conluio, “assédio moral horizontal no trabalho de forma rara, arrogante” e “assédio moral vertical no trabalho directamente para chefia funcional”.
12.5 Com base nas presunções acima referidas, o Recorrente foi finalmente presumido que agiu, de forma abjecta e ao abrigo do anonimato, ao violar o dever de prossecução do interesse público, o dever de zelo, o dever de lealdade e o dever de correcção, actos esses constituem os pressupostos previstos no artigo 281.º do Estatuto, pelo que, nos termos dos artigos 300.º n.º 1 alínea c) e 303.º do Estatuto, é teoricamente aplicável a pena de suspensão ao Recorrente.
13. O aludido relatório também referiu expressamente que a aplicação da pena de suspensão é da competência subdelegada do Secretário para a Economia e Finanças.
14. Porém, no seu relatório n.º 14/GC-SEF/2023, o Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças referiu expressamente que existem duas questões fulcrais no relatório elaborado pela instrutora:
"As 29 mensagens na intranet da DSF
Um dos poucos factos que parece ter sido provado de forma segura no processo disciplinar e que A publicou 29 mensagens, anonimamente, na rede online interna da DSF (intranet) criticando o comportamento de determinado funcionário, nunca identificado nas mesmas. Segundo o relatório, tais mensagens teriam conteúdo difamatório e visariam B (ver os parágrafos 65 e 75 do documento).
Se o o conteúdo das mensagens era ou não difamatório, e coisa que não sabemos, pois o relatório não as reproduz. No entanto, o relatório informa que B nunca foi identificado nessas mensagens - nem era, aparentemente, identificável pelas mesmas. Ora, a difamação consiste, por definição, na imputação a outra pessoa, junto de terceiros, de algo ofensivo da sua honra ou consideração (ver art. 174 do Código Penal). Não pode, pois, haver difamação sem haver difamado. Assim sendo, se B nao era identificado nem identificável nessas mensagens, como pode ter havido difamagao do mesmo?
A instrutora presumiu que o visado era B por presunção (vide infra), partindo de outra informação. Todavia esta informação não era do conhecimento dos leitores da intranet, pelo que estes não tinham forma de chegar àquela conclusão.
O relatório parece também entender que o mero facto de escrever uma mensagem anónima constitui infração disciplinar (Parág. 99). Não podemos concordar com isso, pois se assim fosse também uma mensagem anónima elogiando o trabalho de um colega seria ilícita, o que não faria sentido. Admitimos que possa haver na DSF normas internas obrigando os trabalhadores a identificarem-se nas mensagens que colocam na intranet, mas o relatório não menciona a existência dessas normas.
Insurge-se ainda o relatório contra a infantilidade e a inutilidade do teor de algumas dessas mensagens - mas também a infantilidade e inutilidade não constituem, em si mesmas, infracção disciplinar.
A prova por presunção
Se bem percebemos o relatório, também as queixas e denuncias anonimas mencionadas nas als. b) a e) supra não identificavam B. A sua autoria foi atribuída a A por presunção hominis, dado o seu conteúdo ser semelhante ao das 29 mensagens colocadas na intranet e por corresponderem "integralmente ao conteúdo, ideologia e argumentação das suas declarações" (parag. 101).
As presunções hominis, ou presunções judiciais, são ilações lógicas que o julgador, com base na experiência humana, tira de um facto conhecido para considerar provado um facto desconhecido (art. 342 do C. Civil). Tai como o relatório bem nos informa (parág. 101), são um meio de prova admitido, nos mesmos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (C Civil, art. 344), mesmo em processo-crime.
Neste ultimo. contudo. e nos processos sancionatórios em geral. há uma especial exigência de certeza sobre os factos.
Para que a prova por presunção seja admissível é necessário que o facto conhecido. a partir do qual se faz a ilação lógica para o facto desconhecido. seja provado de forma directa. sem margem para dúvidas. E parece-nos que isso não acontece no caso concreto - e que o que se passa é que o relatório final considera provados por presunção factos que também já foram. eles próprios. provados por presunção. criando uma situação de incerteza. Aliás. a maior parte dos factos relevantes imputados ao arguido são considerados provados por presunção.
Nomeadamente. considera-se provado por presunção que:
I As 29 mensagens colocadas na intranet visavam difamar B, apesar de este nunca ser identificado nas mesma;
II Que as missivas das ais. b) a e) supra foram também da autoria do arguido. por serem semelhantes às 29 mensagens na intranet;
III Que essas missivas das ais. b) a e) visavam igualmente difamar B, mesmo quando este não era identificado. nem identificável. nas mesmas.
Repare-se que o facto referido em III é considerado provado. por presunção. a partir do facto referido em I. também ele provado por presunção. Temos. assim. uma espécie de cascata de presunções. que nos parece esticar demasiado a admissibilidade deste meio de prova e ser incompatível com as elevadas exigências de certeza no processo sancionatório - e que acaba por converter o princípio in dubio pro reo num principio in dubio contra reo."
15. Daí pode-se ver que as duas questões fulcrais invocadas no relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023 ilidem exactamente uma série de presunções da instrutora sobre os factos acusados contra o Recorrente; e nas conclusões, o relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023 também referiu expressamente que não pode recomendar ao Senhor Secretário que concorde com a proposta da aplicação da pena de suspensão apresentada pelo senhor Director da DSF: “Tudo ponderado, com a distância critica própria de quem não esteve de forma alguma envolvido no procedimento disciplinar, não podemos, com segurança, recomendar ao senhor Secretario que concorde com a proposta do senhor director da DSF, pelo que propomos que a mesma lhe seja devolvida para reconsideração."
16. Além disso, o Relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023 também referiu indirectamente que não há provas nem sequer indícios suficientes de que o Recorrente era o agente directo das queixas anónimas mencionadas no aludido ponto 6.2, e não entendeu que a emissão de mensagens na caixa de mensagens da intranet constitui infracção disciplinar.
17. De facto, depois de a DSF ou a instrutora receber o relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023, a instrutora não propôs mais ou invocou mais fundamentos de facto/direito para a alteração da pena (alterar a pena de suspensão para a pena de multa); igualmente, o Director dos Serviços de Finanças também não invocou mais fundamentos de facto e de direito para a decisão da aplicação da pena de multa de 30 dias de vencimento, no montante de MOP$52.325,00.
18. Assim sendo, a decisão da aplicação da pena de multa de 30 dias de vencimento, no montante de MOP$52.325,00, adoptou manifestamente fundamentos contraditórios e insuficientes que não podem esclarecer concretamente a motivação da referida decisão.
19. Ao abrigo do artigo 115.º n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo, tal decisão equivale à falta de fundamentação, violando manifestamente a forma legal de “ser sempre fundamentada” prevista no artigo 338.º n.º 3 do Estatuto.
20. Aliás, o Director dos Serviços de Finanças já recebeu o relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023 em 8 de Setembro de 2023 (cfr. Doc. 5 – parte assinalada em amarelo); posteriormente, tal como acima referido, a instrutora não propôs mais ou invocou mais fundamentos de facto/direito para a alteração da pena (alterar a pena de suspensão para a pena de multa) nem o Director dos Serviços de Finanças pediu a qualquer serviço/organismo apropriado da DSF para emitir parecer sobre a sua decisão da aplicação da pena, pelo que, nos termos do artigo 338.º n.º 3 do Estatuto, o Director dos Serviços de Finanças devia, pelo menos, proferir a decisão sancionatória no prazo de 20 dias contado a partir do dia 8 de Setembro de 2023, dia em que recebeu o relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023, ou seja, antes do dia 28 de Setembro de 2023.
21. Porém, a decisão sancionatória contra o Recorrente só foi proferida em 10 de Outubro de 2023 - isto é, 12 dias após o prazo legal, pelo que, tal decisão também violou manifestamente a forma legal de “prazo máximo de 20 dias” prevista no artigo 338.º n.º 3 do Estatuto.
22. Pelos acima expostos, a decisão da aplicação da pena de multa de 30 dias de vencimento ao Recorrente, no montante de MOP$52.325,00, constitui o acto que carece em absoluto de forma legal previsto no artigo 122.º n.º 2 alínea f) do Código do Procedimento Administrativo por falta de fundamentação e violação da forma legal prevista no artigo 338.º n.º 3, sendo um acto administrativo nulo.
23. Ao abrigo do artigo 21.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Administrativo Contencioso, a decisão mantida enferma do vício de forma, o Recorrente tem fundamentos para interpor recurso contencioso para o tribunal, pedindo a declaração da nulidade da decisão mantida (decisão da aplicação da pena de multa de 30 dias de vencimento ao Recorrente, no montante de MOP$52.325,00).
24. Para além das aludidas situações da nulidade, a decisão da aplicação da pena de multa de 30 dias de vencimento ao Recorrente no montante de MOP$52.325,00 também enferma do vício de anulabilidade.
25. No Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022, a instrutora adoptou as seguintes diligências para recolher provas:
25.1 A instrutora obteve, junto do Departamento de Sistemas de Informação, as 26.ª a 29.ª mensagens de funcionários mencionadas na tabela constante do aludido ponto 12.1, as quais revelam ser emissor o Recorrente.
25.2 No seu despacho, a instrutora referiu que o Processo de Averiguações n.º 01/MG/2022 é a base do Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022, e dispensou a repetição das diligências já realizadas no Processo de Averiguações n.º 01/MG/2022 e juntou todas as provas obtidas no Processo de Averiguações n.º 01/MG/2022 ao Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022.
25.3 No Processo de Averiguações n.º 01/MG/2022, a referida instrutora realizou principalmente as seguintes diligências instrutórias:
(a) Obteve, junto da Divisão Administrativa e Financeira da DAF, as 8 queixas anónimas mostradas no Doc. 10 a 17;
(b) Obteve, junto do Departamento de Sistemas de Informação, as 1.ª a 25.ª mensagens de funcionários mencionadas na tabela constante do artigo 6.1 do ponto II do presente recurso contencioso, as quais revelam ser emissor o Recorrente;
(c) Recebeu a seguinte resposta dada pelo Departamento de Sistemas de Informação: “Antes das 09h00 do dia 12 de Janeiro de 2022, não houve equipamento informático da DSF que navegou na página electrónica do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças”
(d) Ouviu os seguintes trabalhadores da DSF:
- D;
- C, outra arguida do presente processo disciplinar;
- E;
- B;
- F; e
- Recorrente
25.4 Em 14 de Abril de 2022, a instrutora pediu à Divisão Administrativa e Financeira a cópia do Processo Disciplinar n.º 002/AT/2020 para junção aos autos do Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022 (Doc. 27). A diligência instrutória realizada naquele processo disciplinar é apenas a audição dos seguintes trabalhadores da DSF:
- B, arguido no Processo Disciplinar n.º 002/AT/2020;
- G;
- H;
- I; e
- E
25.5 Em 22 de Abril de 2022, a instrutora ouviu o Recorrente na qualidade de arguido (Doc. 33); em 26 de Abril de 2022, a instrutora J ouviu outra arguida C (Doc. 34).
26. Conforme as provas recolhidas acima referidas, o único facto que pode ser confirmado é: o Recorrente era meramente o agente directo das referidas 29 mensagens de funcionários, isto também é reconhecido pela instrutora; porém, existem dúvidas relevantes nas seguintes matérias por não serem provadas na instrução:
(a) As referidas 29 mensagens de funcionários emitidas pelo Recorrente destinaram-se a fazer queixas e denúncias contra B;
(b) O Recorrente é o agente directo da queixa telefónica anónima anexa ao Ofício da SAFP n.º 3794/SAFP-CIP/OFI/2021, de 12 de Novembro de 2021;
(c) O Recorrente é o agente directo da carta anónima anexa ao Ofício da SAFP n.º 0103/SAFP-CIP/OFI/2022, de 11 de Janeiro de 2022;
(d) O Recorrente é o agente directo da queixa anónima recebida na página electrónica do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças em 12 de Janeiro de 2022;
(e) O Recorrente é o agente directo das restantes 5 queixas anónimas recebidas pelo Gabinete de Apoio ao Contribuinte entre 2018 e 2019;
(f) O Recorrente é o agente directo das denúncias anónimas feitas ao Secretário para a Economia e Finanças e à DSF em 2020; e
(g) O Recorrente e outra arguida emitiram, em conluio, as referidas 29 mensagens de funcionários e todas as queixas anónimas acima referidas.
27. De facto, na acusação deduzida em 27 de Maio de 2022 e no relatório elaborado em 26 de Junho de 2023, a instrutora referiu que as aludidas matérias foram argumentadas com base nas suas ilações e presunções.
28. Para além de provar que o Recorrente é o agente das referidas 29 mensagens de funcionários (é o único facto que foi dado como provado), visto que todos outros factos do Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022 não foram provados, não se pode aplicar ao Recorrente a pena de multa ou a pena mais severa nos termos do artigo 291.º n.º 1 do Estatuto; pelo que, a decisão da aplicação da pena de multa ao Recorrente violou o artigo 291.º n.º 1 do Estatuto.
29. Além disso, ao abrigo do artigo 277.º do Estatuto, aplicam-se supletivamente ao regime disciplinar as normas de Direito Penal em vigor no Território, com as devidas adaptações, pelo que, os princípios de Direito Penal de Macau também são aplicáveis ao regime disciplinar, nomeadamente aos processos disciplinares.
30. Conforme o princípio do ónus da prova em matéria penal, o ónus da prova deve caber à parte acusadora, não precisando de incumbir o ónus da prova a parte do acusado; a parte acusadora deve fornecer provas suficientes para comprovar a prática do crime do réu, e quando as provas fornecidas pela parte acusadora não podem comprovar a prática do crime, o tribunal deve proferir decisão absolutória, o réu não precisa de assumir a responsabilidade criminal.
31. Assim sendo, no Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022, conforme as devidas adaptações do aludido princípio do ónus da prova, cabe à instrutora do processo disciplinar o ónus da prova enquanto o Recorrente não precisa de fornecer provas para as matérias acusadas/presumidas.
32. Caso a instrutora não consiga fornecer provas para comprovar as matérias por si acusadas/invocadas, conforme o princípio doutrinário em matéria penal – princípio in dúbio pro reo/ princípio in dúbio pro reo (sic)/princípio da presunção de inocência, quando os factos relevantes não podem ser confirmados pelas provas suficientes, o Recorrente deve ser considerado inocente em caso de dúvidas.
33. Em cumprimento do princípio da presunção de inocência, o Recorrente deve ser considerado inocente e que não praticou a infracção disciplinar mencionada na acusação.
34. Em todo o caso, a instrutora deve actuar conforme o princípio da presunção de inocência, absolutamente não pode ilidir, sem quaisquer provas e só conforme o seu juízo e a sua presunção, o princípio da presunção de inocência nem pode aplicar o “princípio da presunção de culpabilidade” que não é aceite pela lei penal de Macau.
35. Mais ainda, a publicação de mensagem na caixa de sugestões de funcionários da intranet por parte do Recorrente constitui o exercício do direito à liberdade de expressão conferido por lei, e não há quaisquer dados de identificação nas mensagens alegadamente visadas B (o Recorrente não concorda nem confessa que as mensagens de funcionários por si emitidas visavam B).
36. Tal como foi referido no relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023, B nunca foi identificado nessas mensagens, a instrutora presumiu que B era o visado conforme outros elementos, porém, através das referidas mensagens de funcionários, os leitores da intranet não conseguiram chegar àquela conclusão da instrutora. Assim sendo, se B não seja identificado nem identificável nessas mensagens, como pode ter havido difamação do mesmo?
37. Apesar de ter confessado nas suas declarações que tinha reflectido os comportamentos de B nos serviços ao seu ex chefe E no Núcleo de Transgressões e que tinha emitido mensagem na caixa de sugestões de funcionários da intranet, porém, o Recorrente não percebeu por que a instrutora interpretou as suas declarações fora do contexto e ligou todos os factos confessados pelo Recorrente para afirmar que o Recorrente confessou ter escrito mensagens contra B na caixa de sugestões.
38. E também tal como referido no relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023, se o facto de escrever mensagem anónima constituir infracção disciplinar, uma mensagem anónima elogiando o trabalho de um colega seria também ilícita? Assim sendo, ao entender que a mensagem anónima constitui infracção disciplinar, isto não faz sentido nenhum.
39. Nesta circunstância, o acto de publicar mensagens na caixa de sugestões da intranet pelo Recorrente não pode ser considerado casos puníveis previstos nos artigos 312.º a 314.º do Estatuto. Conforme o princípio da legalidade, absolutamente não deve ser punido o acto de publicar mensagens na caixa de sugestões praticado pelo Recorrente.
40. Pelos acima expostos, a decisão da aplicação da pena de multa ao Recorrente não só violou o artigo 291.º n.º 1 do Estatuto, como também violou manifestamente os dois princípios fundamentais aplicáveis ao processo disciplinar – princípio da presunção de inocência e princípio da legalidade.
41. Nestas circunstâncias, nos termos dos artigos 124.º e 127.º do Código do Procedimento Administrativo, a decisão do Director dos Serviços de Finanças que aplicou ao Recorrente a pena de multa de 30 dias de vencimento no montante de MOP$52.325,00 também é um acto anulável.
42. Ao abrigo do artigo 21.º n.º 1, alínea d) do Código de Processo Administrativo Contencioso, a decisão mantida violou a lei, o Recorrente também tem fundamentos para interpor recurso contencioso para o tribunal, pedindo a anulação da decisão mantida (decisão da aplicação da pena de multa de 30 dias de vencimento ao Recorrente, no montante de MOP$52.325,00).
Termos em que, solicita aos MM.ºs Juízes:
1. Citem a entidade recorrida (ao abrigo dos artigos 52.º e s.s. do Código de Processo Administrativo Contencioso);
2. Julguem procedentes os fundamentos de facto e de direito da nulidade invocados no presente recurso contencioso, declarem a nulidade da decisão da aplicação da pena de multa de 30 dias de vencimento ao Recorrente no montante de MOP$52.325,00 e ordenem o arquivamento do Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022;
3. Caso os MM.ºs Juízes não concordem com os fundamentos da nulidade invocados no presente recurso contencioso, também solicita que julguem procedentes os fundamentos de facto e de direito da anulação invocados no presente recurso contencioso, revoguem a decisão da aplicação da pena de multa de 30 dias de vencimento ao Recorrente no montante de MOP$52.325,00, e ordenem o arquivamento do Processo Disciplinar n.º 005/AT/2022.
Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Economia e Finanças contestar, não apresentando, contudo, conclusões.
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, ambos silenciaram.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer pugnando pela procedência do recurso.
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
Dos autos consta a seguinte factualidade com relevância para a decisão da causa:
1. Por Despacho do Senhor Director dos Serviços de Finanças datado de 10.10.2023 foi aplicada ao agora Recorrente a pena de multa de 30 dias de vencimento, no montante de MOP52.325,00, tendo o respectivo despacho o seguinte teor:
«Considerando o conteúdo do relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023, decido aplicar, nos termos dos artigos 302.º n.º 1 e 321.º do ETAPM, a pena de multa de 30 dias de vencimento no montante de MOP52.325,00 ao arguido A.
(…)» – cf. fls. 30 traduzido a fls. 270 -;
2. Do relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças referido no despacho anterior consta o seguinte:
«(…)
A DSF enviou ao GSEF o relatório final do processo disciplinar n. 005/AT/2022, em que foram arguidos A e C, propondo ao senhor Secretário, no uso das competências que lhe foram delegadas pelo CE, a aplicação ao primeiro de uma pena de suspensão (ETAPM, art. 322). Quanto à segunda, foi-lhe já aplicada pelo senhor Diretor dos Serviços de Finanças uma pena de multa (ETAPM art. 321).
Segundo o relatório, A terá praticado uma série de actos que, considerados na sua totalidade, consubstanciam um comportamento de assédio em relação a um outro funcionário da DSF, B, em violação do dever de correcção para com esse colega e do dever de lealdade (ETAPM, art. 279, n. 2, als. d) e f), e ns. 6 e 8), entre outros.
Tais actos terão consistido no seguinte:
a) colocação de 29 mensagens anónimas na rede de intranet da DSF;
b) apresentação de 5 queixas anónimas, por escrito, em diversos locais da RAEM, que foram re-enviadas ao Gabinete de Apoio ao Contribuinte da DSF;
c) apresentação de 1 queixa anónima, por via telefónica, aos SAFP;
d) apresentação de 1 queixa anónima, por escrito, aos SAFP;
e) apresentação de 1 queixa anónima, por email, ao GSEF;
f) outras queixas anónimas, com fotografias de B, apresentadas em Maio de 2020 ao GSEF e à DSF, e que levaram à instauração de um processo disciplinar contra aquele funcionário;
g) várias queixas contra B apresentadas verbalmente à chefia directa do arguido.
O relatório final do processo disciplinar, no entanto, levanta-nos várias dúvidas, como passamos a explicar.
As 29 mensagens na intranet da DSF
Um dos poucos factos que parece ter sido provado de forma segura no processo disciplinar é que A publicou 29 mensagens, anonimamente, na rede online interna da DS (intranet) criticando o comportamento de determinado funcionário, nunca identificado nas mesmas. Segundo o relatório, tais mensagen teriam conteúdo difamatório c visariam B (ver os parágrafos 65 c 75 do documento).
Se o o conteúdo das mensagens era ou não difamatório, é coisa que não sabemos, pois o relatório não as reproduz. No entanto, o relatório informa que B nunca foi identificado nessas mensagens - nem era, aparentemente, identificável pelas mesmas. Ora, a difamação consiste, por definição, na imputação a outra pessoa, junto de terceiros, de algo ofensivo da sua honra ou consideração (ver art. 174 do Código Penal). Não pode, pois, haver difamação sem haver difamado. Assim sendo, se B não era identificado nem identificável nessas mensagens, como pode ter havido difamação do mesmo?
A instrutora presumiu que o visado era B por presunção (vide infra), partindo de outra informação. Todavia esta informação não era do conhecimento dos leitores da intranet, pelo que estes não tinham forma de chegar àquela conclusão.
O relatório parece também entender que o mero facto de escrever uma mensagem anónima constitui infracção disciplinar (parág. 99). Não podemos concordar com isso, pois se assim fosse também uma mensagem anónima elogiando o trabalho de um colega seria ilícita, o que não faria sentido. Admitimos que possa haver na DSF normas internas obrigando os trabalhadores a identificarem-se nas mensagens que colocam na intranet, mas o relatório não menciona a existência dessas normas.
Insurge-se ainda o relatório contra a infantilidade e a inutilidade do teor de algumas dessas mensagens - mas também a infantilidade e inutilidade não constituem, em si mesmas, infracção disciplinar.
A prova por presunção
Se bem percebemos o relatório, também as queixas e denúncias anónimas mencionadas nas als. b) a c) supra não identificavam B. A sua autoria foi atribuída a A por presunção hominis, dado o seu conteúdo ser semelhante ao das 29 mensagens colocadas na intranet e por corresponderem “integralmente ao conteúdo, ideologia e argumentação das suas declarações” (parág. 101).
As presunções hominis, ou presunções judiciais, são ilações lógicas que o julgador, com base na experiência humana, tira de um facto conhecido para considerar provado um facto desconhecido (art. 342 do C. Civil). Tal como o relatório bem nos informa (parág. 101), são um meio de prova admitido, nos mesmos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (C. Civil, art. 344), mesmo em processo-crime. Neste último, contudo, e nos processos sancionatórios em geral, há uma especial exigência de certeza sobre os factos.
Para que a prova por presunção séja admissível é necessário que o facto conhecido, a partir do qual se faz a ilação lógica para o facto desconhecido, seja provado de forma directa, sem margem para dúvidas. E parece-nos que isso não acontece no caso concreto - e que o que se passa é que o relatório final considera provados por presunção factos que também já foram, eles próprios, provados por presunção, criando uma situação de incerteza. Aliás, a maior parte dos factos relevantes imputados ao arguido são considerados provados por presunção.
Nomeadamente, considera-se provado por presunção que:
I. As 29 mensagens colocadas na intranet visavam difamar B, apesar de este nunca ser identificado nas mesmas;
II. Que as missivas das als. b) a e) supra foram também da autoria do arguido por serem semelhantes às 29 mensagens na intranet;
III. Que essas missivas das als. b) a e) visavam igualmente difamar B, mesmo quando este não era identificado, nem identificável, nas mesmas.
Repare-se que o facto referido em III é considerado provado, por presunção, a partir do facto referido em I, também ele provado por presunção. Temos, assim, uma espécie de cascata de presunções, que nos parece esticar demasiado a admissibilidade deste meio de prova e ser incompatível com as elevadas exigências de certeza no processo sancionatório - e que acaba por converter o princípio in dubio pro reo num princípio in dubio contra reo.
Conclusão
Tudo ponderado, com a distância crítica própria de quem não esteve de forma alguma envolvido no procedimento disciplinar, não podemos, com segurança, recomendar ao senhor Secretário que concorde com a proposta do senhor director da DSF, pelo que propomos que a mesma lhe seja devolvida para reconsideração.
E, recordamos que o senhor Director poderá sempre exercer o seu poder disciplinar, se assim o entender, aplicando ao arguido uma pena que esteja dentro da sua competência (maxime multa) - assim como poderá resolver o problema surgido no serviço através de medidas de gestão (i.e. não disciplinares).» - cf. fls. 53 a 55 -.
b) Do Direito
É do seguinte teor o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público:
«1.
A, melhor identificado nos presentes autos, interpôs o presente recurso contencioso, pedindo a anulação do acto praticado pelo Secretário para a Economia e Finanças que lhe aplicou a pena disciplinar de multa de 30 dias de vencimento equivalente à quantia de 52.325,00 patacas.
A Entidade Recorrida apresentou contestação na qual concluiu no sentido da improcedência do recurso.
2.
2.1
O Recorrente começou por alegar o que considera ser um vício gerador da nulidade do acto recorrido relativo à sua fundamentação que considera ser contraditória.
Vejamos.
(i.)
De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 338.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro, a decisão final do processo disciplinar será sempre fundamentada. Isso mesmo também decorre, aliás, das normas contidas nos artigos 114.º, n.º 1, alínea b) e 115.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo (CPA), as quais, como é de todos sabido, consagram o chamado dever legal de fundamentação dos actos administrativos, e, fora de qualquer dúvida, a aplicação de uma sanção disciplinar a um trabalhador da Administração Pública é um acto administrativo.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 115.º do CPA, a fundamentação deve ser expressa e consistir numa sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, entre outros, dos actos administrativos que neguem, extingam, restrinjam ou afectem por qualquer modo direitos ou interesses legalmente protegidos. Além disso, ainda segundo a mesma norma legal, ela pode consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas que constituem, nesse caso, parte integrante do respectivo acto.
A falta de fundamentação, contrariamente ao que sustenta o Recorrente, não gera a nulidade, mas, antes, como é pacífico entre os Tribunais e a doutrina, a anulabilidade do acto administrativo que se mostre afectado por esse vício de forma, uma vez que não encontra enquadramento no disposto na norma do artigo 122.º do CPA.
(ii.)
No caso em apreço, analisada a fundamentação do acto recorrido (rectius: do acto confirmado pelo acto recorrido) parece-nos que não pode deixar de reconhecer-se razão ao Recorrente.
Passamos a justificar.
O ponto de partida não deixar de ser o teor textual do acto recorrido, o qual, na respectiva tradução para língua portuguesa, é o seguinte: «Considerando o conteúdo do relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças n.º 14/GC-SEF/2023, decido aplicar, nos termos dos artigos 302.º, n.º 1 e 321.º do ETAPM, a pena de multa de 30 dias de vencimento, no montante de MOP$52.325,00, ao arguido A».
Como se pode verificar, a fundamentação do acto foi feita por remissão, não para o relatório final elaborado pela instrutora do processo disciplinar que culminou com a prática do acto recorrido, mas, antes, para o relatório elaborado pelo assessor do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças e que se encontra no processo administrativo. Não pode haver dúvidas quanto a este ponto. Na verdade, basta comparar o teor da redacção do acto de aplicação da sanção disciplinar à co-Arguida C com a do acto respeitante ao Recorrente para se perceber que, quanto a este, não há qualquer remissão, referência, adesão ou concordância com o relatório final da instrutora ao contrário do que, expressis verbis, acontece em relação ao acto da mencionada co-Arguida.
Isto assente, a questão seguinte a que importa responder é a de saber se o dito relatório elaborado no Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças contém, ele próprio, a exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, uma vez que foi esse relatório que foi assumido como constitutivo da fundamentação do acto recorrido.
A resposta a essa questão, estamos em crer, não pode deixar de ser negativa. Pelo seguinte.
O falado relatório surgiu no âmbito do processo disciplinar aqui em causa em momento posterior ao do relatório final elaborado pela instrutora nomeada naquele processo, e antes da respectiva decisão final. A sua existência deve-se ao facto de a proposta constante desse relatório final da instrutora ter sido no sentido da aplicação de uma pena de suspensão de 120 dias que é da competência do Secretário para a Economia e Finanças e não do Director dos Serviços de Finanças, e, por via disso, o processo ter sido remetido ao Gabinete do Secretário.
Sendo este o contexto procedimental do relatório absorvido para servir como fundamentação do acto, importa agora fazer dele uma breve análise. Assim. Desse relatório nada resulta que permita a um destinatário normal conhecer as razões de facto e de direito pelas quais foi aplicada uma sanção disciplinar de multa ao Recorrente. E compreende-se que nada resulte. Na verdade, o relatório foi elaborado como uma espécie de contraponto (muito) crítico relativamente ao relatório final da instrutora. Nele foram colocados em causa, não só o enquadramento jurídico-disciplinar de certas condutas imputadas ao Recorrente (veja-se, por exemplo, a página 3 do relatório, onde, a dado passo se escreveu: «Não pode, pois, haver difamação sem haver difamado. Assim sendo, se B não era identificado nem identificável nessas mensagens, como pode ter havido difamação do mesmo?», e, mais adiante, «o relatório parece também entender que o mero facto de escrever uma mensagem anónima constitui uma infracção disciplinar (página 99). Não podemos concordar com isso, pois se assim fosse também uma mensagem anónima elogiando o trabalho de um colega seria ilícita, o que não faria sentido»), mas, de forma ainda mais assertiva, também a própria metodologia decisória adoptada pela instrutora no processo disciplinar e que esteve na origem do seu relatório final, nomeadamente, o recurso por parte da mesma a presunções naturais para, com base nelas, dar por provados os factos que considerou integrarem os pressupostos da responsabilidade jurídico-disciplinar do Recorrente (veja-se, por exemplo, a página 4 do relatório onde, a dado passo, se escreveu: «Para que a prova por presunção seja admissível é necessário que o facto conhecido, a partir do qual se faz a ilação lógica para o facto desconhecido, seja provado de forma directa, sem margem para dúvidas. E parece-nos que isso não acontece no caso concreto – e o que se passa é que o relatório final considera provados por presunção factos que também já foram, eles próprios, provados por presunção, criando uma situação de incerteza»).
Deste modo, ao adoptar o relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças para fundamentar o acto recorrido, o Director dos Serviços de Finanças deixa o Recorrente sem quaisquer condições de saber, afinal, por que razão é que lhe foi aplicada a sanção disciplinar, uma vez que, como vimos, do dito relatório não só não constam quaisquer factos disciplinarmente relevantes, como também não resulta qualquer referência aos deveres funcionais que terão sido violados pelo Recorrente. Na verdade, e em bom rigor, dada a lógica que presidiu à elaboração do relatório do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças, pode mesmo dizer-se, em nosso modesto entender, que a simples e exclusiva remissão para o mesmo por parte do Director dos Serviços de Finanças como forma de fundamentar o acto recorrido acaba por corresponder a uma verdadeira falta absoluta de fundamentação.
Ora, nesta circunstância, o vício assinalado que, como julgamos ter demonstrado, afecta irremediavelmente o acto recorrido, é impeditivo de qualquer pronuncia sobre os demais vícios invocados (a razão é simples: a detectada patologia implica a impossibilidade de conhecimento dos factos em que assentou o acto e/ou o seu enquadramento jurídico, inviabilizando, por isso, o controlo jurisdicional do vício substancial também alegado pelo Recorrente).
(iii)
Face ao exposto, salvo melhor opinião, deve ser julgado procedente o presente recurso.
É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público.».
Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual integralmente aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta entendemos que o acto impugnado enferma do vício de falta de fundamentação violando o disposto no artº 114º do CPA, sendo consequentemente anulável nos termos do artº 124º do CPA1.
Destarte, impõe-se conceder provimento ao Recurso com as necessárias consequências.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso anula-se a decisão recorrida.
Sem custas por delas estar isenta a Entidade Recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 17 de Outubro de 2024
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(1º Adjunto)
Ho Wai Neng
(2º Adjunto)
Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto)
1 Veja-se José Eduardo Figueiredo Dias em Manual de Formação de Direito Administrativo de Macau, Centro de Fornação Juridica e Judiciária, 2020, pág. 370 a 372 e 379/380.
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138/2024 REC CONT 1